Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Arthur Dias Duarte1 

RESUMO: Este artigo trata, de forma breve, acerca do Estado Plurinacional da Bolívia. Para o completo entendimento do tema a ser tratado, optou-se por uma concisa digressão histórica dos temas correlatos, como: a interligação dos direitos humanos com a questão pluralista, o contraditório entre o universalismo e o pluralismo, e a situação da União Europeia nesse contexto. Dessa forma, análises históricas, normativas e sociais encontram-se ao longo do texto.  

PALAVRAS-CHAVE: Estado Plurinacional da Bolívia; Plurinacionalidade; Universalismo; Europa e Diversidade Cultural como Direito Humano.  

SUMÁRIO: 1. Introdução: delimitando o objeto de estudo; 2. Breve digressão histórica: temas pertinentes; 3. Sistema mundo: de fato plural?; 4. Direito a diversidade cultural como direito humano; 5. Universalismo vs. Pluralismo; 6. Estado plurinacional da bolívia; 7. A situação da união europeia; 8. E o brasil nesse contexto?; 9. Considerações finais; Referências.  

ÁREA DE INTERESSE: Direito Internacional.

 

1. INTRODUÇÃO: delimitando o objeto de estudo

Neste trabalho, pretende-se tratar acerca do novo movimento constitucional internacional, o chamo Estado Plurinacional. Ressaltamos que não pretendemos exaurir, de forma alguma, o tema aqui discutido; uma vez que ele é complexo e apresenta-se em constante mutação. 

Para a melhor compreensão da emergência desse novo modelo de Estado, iremos fazer uma breve digressão histórica aos temas pertinentes, bem como apresentaremos, de início uma visão global, para que posteriormente possamos afunilar a linha de pensamento no recorte temático proposto, no caso o Estado Plurinacional da Bolívia.

A linha principal de pensamento desse artigo se conecta com os povos autóctones, ou seja, os povos originários das terras; que tiveram o poder, cultura e tradições usurpadas pelo estrangeiro branco. Fazer-se mister, lembrar, que os povos originários são os maiores interessados em uma ordem jurídica dualista ou plural, mas não são os únicos, como exemplo de outros expoentes, pode-se citar: os ciganos, as comunidades estrangeiras, quilombolas, dentre diversas outras comunidades.

De antemão, adiantamos que o surgimento do Estado Plurinacional não ocorreu repentinamente, como diz o brocado popular “da noite para o dia”; ele foi fruto de um continuo processo histórico, marcado por mobilizações da população de baixa renda e dos povos nativos, que reenvidavam uma real democracia e a concentração dos recursos nacionais em âmbito nacional.

Há de se ater, também, que o povo bolivariano e equatoriano, possuíram uma carga de coragem e patriotismo considerável, tendo em perspectiva que abdicaram “em parte do atual” contexto de consumismo desenfreado do capitalismo. Dessarte, eles conseguiram abandonar a visão de xenofilia que tinha, a qual concerne em valorizar apenas o outro, o outro ser o superior o melhor em tudo; e o eu ficar como o a evoluir para alcançar o estágio do diferente.

Dessa forma, acreditamos ser possível uma mudança de pensamento, em que não se observe mais o outro como ser inferior ou superior, vislumbrando suas práticas como selvagens ou não. Nessa linha de pensamento, afirma François Laplantine:

A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido ‘selvagem’ fora de nós mesmos. (2009, pg. 23)

 

2 BREVE DIGRESSÃO HISTÓRICA: temas pertinentes

Para a conteudística aqui proposta, a qual seja o constitucionalismo internacional. Trabalharemos como ponto inicial o tratado de paz de Westfalia( 1648), que foi uma série de documentos assinados no contexto europeu afim de por fim a guerra dos trinta anos. Percebe-se que, ainda de forma superficial, pode-se falar em uma união do que viria a ser o velho continente.

Acreditamos que o Direito a Diversidade Cultural só se tornou possível com a consolidação das chamadas das dimensões dos direitos humanos, e posterior vigência dos direitos de terceira dimensão, desse modo, discorrer-se-á, de modo conciso sobre o aparato histórico desses direitos.

Como marco do direito de primeira dimensão, tem-se: a já citada paz de Westfália (1648), o Habeas Corpus Act (1679), o Bill of Rights (1688), a declaração americana (1776) e por fim a declaração francesa (1789). Nesse contexto, cabe destacar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é de grande valia, uma vez que começa a consolidar, de forma bem simples e não vinculante, o primeiro direito humano. Esse é eivado de liberdades individuais, de direitos civis e políticos.

O direito de segunda dimensão apresenta como alicerces a constituição do México (1917) e de Weimar (1919). Já que não apenas repaginaram os direitos de primeira dimensão, como também apresentaram os direitos de segunda dimensão. Destarte, esse direito é composto pelos direitos sociais, culturas e econômicos. Tal necessidade de o estado garantir a eficácia desses direitos, acabar por gerar um inchaço estatal.

Já os direitos de terceira dimensão apresenta como ponto fundador a Segunda Guerra Mundial (1945), a criação da ONU (1948). Essa realidade passa a ser gerenciada por uma estupenda internacionalização, nunca antes vivida. Nesse momento, houve a renovação dos direitos de primeira e segunda dimensão. Os de terceira dimensão são relativos ao direitos à paz, ao desenvolvimento, a propriedade e a vários outros, tendo em vista que são difusos, ou seja, englobam uma gama de direitos basilares, tendo caráter universal.

O eminente doutrinador Paulo Bonavides advoga o pensamento dos direitos de quarta e quinta geração, todavia, não iremos descer a minucias, já que esse não é o objetivo do referido trabalho.

Discorrido, de forma rápida, mas clarifica os marcos dos direitos humanos, passamos agora para o ponto importante para a América Latina. Para isso, retornaremos ao ano de 1492, época em que Colombo aportou na América. Na visão europeia do fato, houve a descoberta de novas terras aliado a uma missão civilizadora, que teria como objetivo educar os povos nativos. Entretanto, a historiografia aponta que o que de fato ocorreu foi um roubo dos recursos naturais presentes no novo continente e um extermínio dos povos originários, que apesar de serem os detentores da terra, foram exterminados sem qualquer piedade. Tudo isso se devem por um claro e destemido jogo europeu de interesses, tendo como pano de fundo a atuação da burguesia.

Bem, é nesse choque de culturas que surge o problema, que vivenciamos até os dias atuais. Isso tem nome, e se chama etnocentrismo, que é o fato de o “eu” acreditar que é o dono da verdade, e que o ele é inferior. Por não aceitar o outro, vejo ele como não apenas degradante, mas também como um bárbaro, selvagem, que portanto acaba se tornando indesejado. Nessa linha de pensamento, afirma Everaldo P. Guimarães Rocha:

Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência (1988, pg 5).                 

De modo a complementar a temática, lembre-se que o etnocentrismo é mais voltada para visão europeia dos “outros” povos. Passemos agora para a visão da xenofilia, a qual está presente em algumas sociedades do chamado mundo em desenvolvimento. Essa é marcada pela demasiada simpatia do que é o estrangeiro, do que é o novo. Essa característica é saudável, porém de forma desmedida percebe-se que significa uma verdadeira negação de si mesmo, e uma tristeza internalizada por não poder ser o outro, que é vislumbrado como o melhor.

Observa-se como fator preponderante para a prática do etnocentrismo e da xenofilia, não apenas as desavenças culturais, mas principalmente o status de “em desenvolvimento ad eternum”. De um lado, os europeus acreditam que os demais países devem alcançar o seu nível de complexidade, de outro lado, esse países acabam por crer que devem conquistar o desenvolvimento europeu, por que se não serão rebaixados à categoria de serem os piores.

Uma solução para esse sistemático conflito seria o relativismo, o qual seja deixar o etnocentrismo de lado e passar a levar em consideração a essência do outro, e não apenas o que eu penso ser verdade. Com relação a isso, advoga Everaldo P. Guimarães Rocha:

Relativizar é sempre mais complicado, pois nos leva a abrir mão das ‘certezas’ etnocêntricas em nome de dúvidas e questões que obrigam a pensar novos sentidos para a compreensão da sociedade do ‘eu’ e da sociedade do outro. (1988, pg 22).

 

3 SISTEMA MUNDO: de fato plural?

Esse tópico se propõe a discutir sobre a globalização, como ela surgiu, como ela afeta nosso cotidiano, e sob o ela se sustenta. Para isso, foi adotado o posicionamento do digníssimo geógrafo Milton Santos. Ele defende que houve duas globalizações: a primeira ocorreu com as navegações marítimas europeias no século XV/XVI, a segunda globalização começou no final do século XX, sendo marcada pelas revoluções tecnológicas.

No século XV tem início a primeira globalização, no contexto em que uma região do mundo busca se conectar com a outra, e com ela realizar trocas culturais, econômicas, sociais e afetivas. A segunda globalização, em meados do século XXI, é caracterizada peles telecomunicações e pelo rápido comercio global. Essa situação acaba por funcionar como um apoio ao sistema capitalista, que quando mais rápido e mais quantidade, maiores lucros serão auferidos.

Milton Santos advoga a ideia de que existem três mundos em um só, sendo eles: o mundo tal como no fazem ver ( a globalização como fábula), o mundo tal como ele é ( a globalização como perversidade) e o mundo como ele pode ser ( uma outra globalização). Dessarte, discutiremos sobre essas três vertentes do mundo e sobre o atual contexto global, de forma rápida. Nessa perspectiva, será possível perceber como o mundo globalizado acaba por encobrir a diversidade.

O mundo como fábula é o mundo como ele é nos vendido, como algo extremamente benéfico, marcado pelo bem comum, pela união dos povos e pela ideia de reciprocidade; seria como o contrato social defendido por Rousseal. O mundo como perversidade é o mundo no qual vivemos, que é marcado pelas desigualdades sociais, pela concentração de terras, pelo domínio de recursos naturais por empresas transnacionais e pela detenção do poder por uma elite, ou seja, um mundo que não se atenta a diversidade, mas sim a uma elite econômica. Já o mundo como ele pode ser, refere-se a uma mudança de paradigma, onde as diferenças serão observadas e haverá uma maior preocupação do “ser” em si mesmo.

Na atual conjuntura observa-se que não há de fato e de maneira ativa uma pluralidade nas relações internacionais, tendo em perspectiva que a dois protagonistas globais, que tem o poder de decidir qual será o rumo tomado sobre referida situação. Sendo esse poder econômico, politico e militar. Tal referência concerne aos Estados Unidos e a União Europeia. Atente-se que o Estados Unidos atual no contexto da globalização como um verdadeiro “xerife” global, já que devido ao seu aparato militar, tem a faculdade de decidir fazer o que acha interessante, mesmo que em algumas situações não tenha tido o aval da comunidade internacional.

 

4 DIREITO A DIVERSIDADE CULTURAL COMO DIREITO HUMANO        

Diversidade cultural são a existência e o intercâmbio que é realizado dentre as diversas expressões culturais que são vivenciadas, tal situação é desejável, uma vez que colabora para o enriquecimento cultural e do modo de vida de uma nação.

Como marco consolidador, dessa sistemática de proteção dos direitos humanos, tem-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nessa senda, fazer-se mister aludir o pensamento de Antônio Augusto Cançado Trindade:

A Declaração Universal de 1948 alcançou um determinado grau de universalidade que a tornou aceita por seres humanos de todas as civilizações e culturas – a ponto de seu elenco de direitos consagrados vir a permear gradualmente as Constituições nacionais, e a ser invocado ante tribunais nacionais, de numerosos países de todo o mundo. A Declaração Universal tornou-se possível, apesar das distintas cosmovisões dos seres humanos e de sua diversidade cultural. A universalidade da Declaração de 1948 erigiu-se, com efeito, no respeito a estas distinções e à diversidade do gênero humano, subjacente à proclamação de direitos inerentes à pessoa humana. (Trindade, citado por Verônica Vaz de Melo, 2010, p.61) 

No que tange a proteção ao direito da diversidade cultural, é imprescindível tratarmos sobre a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural da Unesco (2002), grande marco para esse direito no sistema internacional, afirma em seu artigo 4:

Os Direitos Humanos, garantias da diversidade cultural.

A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance. (UNESCO, 2002) 

Fazer-se mister dirimir, também, sobre a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, que teve como primeiro país signatário a Bolívia2. A Declaração, afirma em seu artigo 4:

Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas ( ONU, 2008)  

Complementa essa vertente de pensamento de autogoverno e autodeterminaçãos dos povos nativos, o livro: Understanding and Implementing the UN Declaration on the Rights of Indigenous Peoples: an introductory handbook, que advoga :

Based on this understanding of self-determination, the right to self-determination means that Indigenous peoples are entitled to determine thei relationship with the State and be involved in setting up the States´ governing structure. It also means that Indigenous peoples have the right to maintain their own political systems and institutions, as stated in article 5 […].(Indigenous Bar Association and by the University of Manitoba, 2011, p.11). 

Ora, é evidente que a diversidade cultural é um direito humano, e, portanto deve ser respeitada; uma vez que é essa diversidade é essencial para o bem estar social e para a amistosa relação entre os povos.

 

5 UNIVERSALISMO VS. PLURALISMO

Nessa tópico trabalharemos com duas doutrinas, a do eminente José Luiz Quadros e a do ilustre Antônio Augusto Cançado Trindade. Para isso, iremos contrapô-las e discutir sobre a qual nos acreditamos ser a mais adequada.

José Luiz Quadros defende que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948) não é plural, uma vez que a época houve uma participação acentuada da comunidade europeia, em detrimento das nações em desenvolvimento, dessa forma, os direitos humanos consagrados seria uma criação europeia, que não contou com a participação de outros autores.

Já a visão de Antônio Cançado Trindade é a de que, apesar dos direitos humanos serem uma criação europeia, ela atende aos demais países, uma vez que apresenta como pano de fundo uma perspectiva de proteção mínima dos seres humanos.

No que concerne a essa temática, optamos por crer que apesar dos Direitos Humanos, ser em sua maior porção, uma criação europeia, ele tornou-se universal, inalienável e indisponível, levando em consideração que o conjunto de tratados, convenções e pactos internacionais propiciaram e propiciam um padrão mínimo existencial aceitável para todos os seres humanos.

Ressalta-se que atualmente, de maneira gradativa, há o surgimento de novos atores internacionais, que passam, mesmo que de modo tímido a apresentar e discutir suas opiniões no jogo de interesses das relações internacionais. Desse modo, há o surgimento de uma esfera plural. Maior exemplo disso é o grupo dos BRICS, composto por países emergentes; as siglas simbolizam o Brasil, Rússia, China e a África do Sul.

No que tange a assuntos indiretos aos direitos humanos, acredita-se que se deve manter o atual processo de inserção de outras potências mundiais, como forma de melhorar e incrementar o padrão de vida da população mundial.

Mister, nesse processo, falar da construção da identidade dos Estados Nacionais, que em muitos casos, para sua construção e manutenção, encobriu de maneira cabal uma série de minorias anteriormente presentes em determinada localidade. Com relação a isso, enfático é o pensamento de José Luiz Quadros de Magalhães (2012. p. 20), que relata:

Importante lembrar como funciona o dispositivo narcisista de construção da identidade nacional: “sou nacional, sou europeu e espanhol porque sou católico, porque compartilho uma identidade fundada em valores comuns, em uma moral e uma ética compartilhada pelos nacionais iguais a mim […].  

Nesse sentido, percebe-se que uma identidade nacional é forjada, com o objetivo que o poder estatal, ou como diria Thomas Robes, que o Leviatã se imponha, dessa forma, é uma coesão social coercitiva. Essa ação estatal ainda é presente nos dias de hoje, e possui uma necessidade, como transcreve José Luiz Quadros de Magalhães (2012, p. 22): 

Esta uniformização de comportamentos foi e continua sendo necessária não só para o poder do Estado, como também para a economia capitalista: é essencial que as pessoas gostem de consumir objetos, marcas, carros, é fundamental que as pessoas sejam individualistas, egoístas e competitivas para o sistema funcionar. Mas: é fundamental que as pessoas acreditem que isto é natural delas. 

Desse modo, admite-se que o Estado, como é constituído hoje, encobre as minorias étnicas, e sobrepõe uma, que acredita ser a melhor e a mais plausível; afim de que haja um sentimento pessoal de nacionalidade, e que isso esteja internalizado com intensidade suficiente para que não gere questionamentos.

Acreditamos que há uma solução possível, e essa solução já está em prática na Bolívia, que em 2008, após diversos movimentos sociais, tornou-se o Estado Plurinacional da Bolívia, fato gerador de orgulho para a sociedade pátria, como mensura o recorte textual abaixo:

If, in the past, deep walls had gone up between indios and non-indios, now many people want to be indios, or at least dress like them or live as one with them without being indigenous. Of course, none of this was a gift given by the dominant groups. It was a painful, bold, and astute re-conquest carried out by these once revieled bodies. (FABRICANT, GUSTAFSON e RAMIRES, 2011, p. 32)

 

6 ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA         

Finalmente, após um alicerce teórico com assuntos relacionados ao tema, passemos para o tópico central desse artigo, o qual seja o sistema plurinacional da Bolívia3, trabalharemos questões como: de que forma se deu o surgimento desse modelo de estado, sob o que ele é baseado e como ele se sustenta. Para isso, se faz necessário uma breve digressão histórica-social da Bolívia, para que se possa compreender a complexidade social geracional de diversas mobilizações sociais.

Antes de mais nada, gostaríamos de citar o seguinte pensamento, com o objetivo de ensejar os ânimos e instigar a reflexão: “Definir que alguém tem de ser o que não é, e não gosta, é mera expressão de poder opressor e, exatamente por isso, joga contra a liberdade de ser e fazer o diverso”.(Bittar e Almeida,2012, p.712)

Na década de 90, surge o chamado Consenso de Washington, espécie de uma bula neoliberal, que descrevia ações governamentais para o crescimento econômico, tal sistema foi testado na América Latina, incluindo a Bolívia, e se mostrou falho.

Em 2000, na cidade de Cochabamba, ocorre à privatização da água, o que causa um enorme clamor social contra tal fato. Pode-se dizer que essa manifestação foi à primeira indicação da necessidade de uma assembleia constituinte originária4.

Nesse começo de mobilizações, observa-se a emergência de diversos atores sociais, como exemplo: o movimento social sem terra (MST), federação dos conselheiros de vizinhos (FEJUVE), os plantadores de coca (cocaleros), movimento para o socialismo (MAS) e a confederação nacional do quéchua e aymara ayllus ( CONAMAQ).

Em outubro de 2003 ocorre um “choque social” na cidade de El Alto, considerada a periferia da capital La Paz, a população se volta contra a privatização do gás para a empresa argentina Repsol. Nesse ponto, há evidente percepção de que a sociedade bolivariana nega as práticas neoliberais e deseja que todos os recursos naturais do país permaneçam sob o poder do povo.

Nesse contexto, instaura-se o debate acerca de quem será o controlador dos recursos naturais5, os ânimos se exaltam, alguns creem que as populações indígenas devem cuidar desses recursos, outros já acreditam que mesmo em terras indígenas, o Estado pode realizar a extração; tais antagonismos acabaram, mais tarde, por resultar na nova constituição bolivariana.

Tal fato de que os bolivarianos se importam sobre a destinação dos recursos naturais fica comprovada de fato na mobilização de outubro de 2006. Situação na qual o projeto de lei para a nova reforma agrária estava sendo discutida no senado. Alguns setores sociais não gostaram, de modo algum, da proposta que era analisada, como o Poder Democrático e Social (PODEMOS), esses juntamente com a oposição organizaram a quinta marcha anual pela terra e pela dignidade. Eles andaram por vinte oito dias à distância entre Santa Cruz e La Paz, dessa vez perderam a batalha, uma vez que o senado aprovou a lei.

Em 2008 o texto da Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia é redigido e em 2009 entra em vigor. Ele traz ao longo de seus 411 artigos um novo paradigma de constitucionalismo, pautado no respeito aos povos nativos e no intercâmbio cultural. Nessa seara, há de se observar:

[…] A new constitution approved in 2009 moves beyond interculturalism to the idea of plurinationalism, with explicit support for robust indigenous rights and forms of indigenous self-determination or ‘autonomy’. Beyond interculturalism, the constitution and government now back the idea of  “decolonization” – of education, the economy, law, the state, and society – promising to dismantle centuries of racialized and racist cultural, legal, and political-economic state form and practice […] (Gustafson e Fabricant, 2011, p. 2) 

  Há de atermos no artigo 11, inciso II, alínea III da constituição bolivariana, que diz:

II. La democracia se ejerce de las siguientes formas, que serán desarrolladas por la ley:

3. Comunitaria, por medio de la elección, designación o nominación de autoridades por normas y procedimientos propios de los pueblos y naciones indígena originario campesinos, entre otros. (Constituição da Bolívia, 2009). 

Devemos ressaltar, contudo, que essa jurisdição indígena não é absoluta, tendo em vista que a decisão da justiça indígena pode sofrer revisão da jurisdição estatal6. No que diz respeito às dimensões territoriais, também há restrições, já que a representação política dos indígenas não devem ultrapassar os limites dos municípios ou dos departamentos.

Dessarte, nessa conteudística, o Estado Bolivariano adotou uma repaginada em sua formação social7, passando a reconhecer, oficialmente, sua formação plural e concedeu o devido respeito aos povos originários, sem, entretanto, exagerar na autonomia confiada, a fim de manter o bom funcionamento do contrato social. 

 

7 A SITUAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA

Nesse tópico, pretende-se demostrar, de maneira concisa, que a União Europeia, está em sentido contrário aos ventos, quando em comparação ao Estado da Bolívia. Para isso, será analisado de forma superficial, já que não se trata do tema direto desse trabalho, o desenvolvimento desse bloco econômico ao longo do tempo histórico.

Antes de qualquer coisa, gostaríamos de citar o pensamento acerca da temática, do brilhantíssimo José Luiz Quadros de Magalhães (2012, p.27), que advoga:

A União Europeia e o direito europeu nada mais são do que a reprodução do direito moderno, uniformizador e hegemônico. Lembremos que os estados europeus são todos hegemônicos: castelhanos sobre os outros (bascos, catalães, galegos etc.) na Espanha; ingleses sobre os outros (escoceses, irlandeses e galeses) no Reino Unido; francos sobre os outros (bretões, corsos, catalães etc) na França, e assim segue. 

Em 1951 surge a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), através do tratado de Paris, com o objetivo de se evitar uma nova guerra mundial. Em 1952 foi estabelecida a Comunidade Europeia de Defesa (CED). Pelo tratado de Roma de 1957 foi criada A Comunidade Econômica Europeia (CEE). O tratado de Maastricht de 1992 criou o conceito de cidadania europeia. Já o tratado de Lisboa de 2007, que pretende criar uma constituição europeia, a fim de afinar ainda mais o processo de integração dos países do bloco.

Desse modo, percebe-se que a União Europeia caminha para um rumo uniformizador, que não leva em consideração a diversidade cultural, tendo em vista que busca atingir um conceito nunca antes imaginado, o de cidadão europeu, pertencente a um Estado Supralegal, que é formado por um conjunto considerável de nações.

 

8 E O BRASIL NESSE CONTEXTO ?

No que concerne ao Brasil, há de se falar que, sem dúvida ele é um país diverso, devido não apenas as suas peculiaridades, mais também pela sua enorme extensão territorial. Entretanto, deve-se refletir se essas pluralidades culturais têm sido respeitadas e levadas em consideração nas políticas públicas.

No que tange aos povos autóctones, o país tem avançado, porém encontra-se distante da ideia de povos nativos no contexto boliviano. Há de se falar que é de valor inestimável a adoção por parte do Brasil da Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n° 169, internalizado no sistema jurídico pátrio pelo Decreto n° 5051/2004. E no mesmo sentido a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco, presente no direito interno pelo Decreto Legislativo 485/2006.

Com relação à Convenção n° 169 da OIT, é mister citarmos seu artigo 8, que prevê:

1. Na aplicação da legislação nacional aos povos interessados, seus costumes ou leis consuetudinárias deverão ser levados na devida consideração.

2.  Esses povos terão o direito de manter seus costumes e instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais previstos no sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para a solução de conflitos que possam ocorrer na aplicação desse princípio. 

No que remete ao artigo 8.1 da Convenção da OIT, anteriormente citada, há de se falar, que no que diz respeito às leis consuetudinárias serem levadas em devida consideração, entende-se que o Brasil acabou realizando uma interpretação meramente literal do texto, uma vez que apenas às respeita, mas não as valoriza, a ponto de concederem uma autonomia difusa, como no caso da Bolivia.

Nessa perspectiva, observa-se que o sistema jurídico pátrio valoriza as práticas/expressões culturais, entretanto, não as cede autonomia no sentido jurídico do termo. Enquanto que na Bolívia, a autonomia jurídica e politica é concedida em determinados casos.

 

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como dito no início dessa discussão, não esgotamos o tema, já que a demais por menores que poderiam ter sido dirimidos, como: questões filosóficas, o posicionamento de outros doutrinadores e uma análise mais detalhada do texto constitucional bolivariano. Entretanto, acredita-se que esse trabalho é de grande valia para que se possa compreender o conceito de Estado Plurinacional.

Foi possível mensurar que é necessário olharmos para o “outro” de um modo diferente, ou seja, se colocar na posição desse outro, tal ação se intitula alteridade. Todavia, essa alteridade não pode ser acentuada, a título de poder ocasionar na xenofilia, a qual seja a o desprendimento de si, para a verdadeira adoração do “outro”, fato que acaba por gerar uma internalização da tristeza, por não poder ser o “outro”.

Fizemos um retorno histórico, desde os tratados de paz de Westfália (1648), um conjunto de tratados que acabou por delimitar algumas fronteiras europeias, passamos pela “tomada” da América por parte dos europeus em 1452, até chegarmos até os dias atuais.

Esse olhar histórico foi possibilitou para que criássemos a compreensão de que a questão da diversidade cultural foi sempre tolida ao longo do tempo, fato que, justifica parcialmente o modelo uniformizador instaurado hoje.

Percebe-se que começa a surgir no constitucionalismo internacional à ideia de Plurinacionalidade, a qual seja a abertura do sistema jurídico nacional, para que haja vários direitos em um território, a fim de atender aos diversos grupos étnicos presentes.

Em sentido contrário ao pluralismo, discutimos sobre a Comunidade Europeia, que desde o seu nascimento até os dias de hoje, apresenta uma ordem homogeneizadora, universal.

Em suma, essa temática do Estado Plurinacional é de imensa relevância, uma vez que seria para muitos povos, um conceito real do que vem a ser justiça, bem como o reconhecimento por parte do poder estatal da diversidade e das peculiaridades que envolvem cada etnia nativa.

 

REFERÊNCIAS

A história da União Europeia. Disponível em: <http://europa.eu/about-eu/eu-history/index_pt.htm> Acessado em: 01/10/2013.

Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia. Disponível em: <http://www.elpais.com/elpaismedia/diario/media/200711/29/internacional/20071129elpepiint_1_Pes_PDF.pdf> Acessado em 01/10/2013.

Convenção n°169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Disponível em:  <http://www.oitbrasil.org.br/node/292> Acessado em 01/10/2013

Convenção sobre a proteção e a promoção da                                            Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO, 2005): Disponível em : <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224POR.pdf> Acessado em 30/09/2013.

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2008). Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf> Acessado em 29/09/2013.

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002). Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf> Acessado em 29/09/2013.

Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/paz-de-vestfalia> Acessado em 29/09/2013.

Fabricant, Nicole e Gustafson, Bret. Remapping Bolivia: resources, territory, and indigeneity in a plurinational state, 2011.

Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, pg 958-961, 16ªedição, 2012

Santos, Milton. Encontro com Milton Santos ou o Mundo Globalizado Visto do Lado de Cá (documentário). Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=UJd5YKhR9gE> Acessado em 29/09/2013

Magalhães, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional, 2012

Melo, Verônica Vaz de. Direitos Humanos: A proteção do direito à diversidade cultural, pg 41-90, 2010.

Understanding and Implementing the UN Declaration on the Rights of Indigenous Peoples: an introductory handbook (.Indigenous Bar Association and by the University of Manitob, 2011) Disponível em: <http://www.indigenousbar.ca/pdf/undrip_handbook.pdf> Acessado em: 30/09/2013.

 

NOTAS DE FIM

1 Discente do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.  E-mail: arthurdiasduarte@gmail.com

 2 “Bolivia, indeed, was the first country to adopt the United Nations Declaration on the Rights of Indigenous Peoples into national law” ( Fabricant and Gustafson, 2011, p.20) 

3 “ […] the advances in the constitution put into place in 2008 after a long and conflictive process of national debate. A central category of this new constitution is ‘indigenous autonomy’ – a legal possibility more the a concrete – which offer the possibility that indigenous peoples establish certain territorialized modes of governance that are distinct from the winder templates of department, provincial, and municipal administration” (Garcés, Fabricant, Gustafson, 2011, p.47)  

4 “[…] In recente history, for instance, the Water War in 2000 against privatization was followed by demands by the urban leaders of the movement for a Constitutional Assembly that would be a mechanism for the Bolivian people to claim decision-making power over their resources”. (Garcés, Fabricant, Gustafson, 2011, p.47) 

5 “[…] There was intense debate over the control and ownership of natural resources. This confronted difficult positions, in the sense that some argues that indigenous peoples should have total control (domination, property, and benefits derived from exploitation) and others proposed rights of use and usufruct of renewable natural resources in indigenous territories […]” (Garcés, Fabricant, Gustafson, 2011, p.58) 

6 “The possibilite that indigenous jurisdctions not face review and control by ordinary jurisdictions was removed (art. 192 of the original version)” (Garcés, Fabricant e Gustafson, 2011, p.60) 

7 “[…] In the Bolivia of today, we also see that the indigenous peoples were and also are participating in national construction. Yet, distinct from the communitarian nationalism of the past, the pursuit now is of a plurinational state that has some consonance with the polysemic character of the term plural […]” (Garcés, Fabricant e Gustafson, 2011, p.63)