Reinaldo Silva Pimentel Santos1
Daniela Recchioni Barroso2
RESUMO: O presente artigo busca analisar a experiência observada no Equador e na Bolívia, sendo apresentada como Estado Plurinacional. Para tanto, parte-se da análise do conceito de democracia, verificando a necessidade de superação da concepção democrática representativa para a democracia participativa. Ainda, observa-se o papel desenvolvido pelo constitucionalismo e seu embate essencial com a democracia. Nesse universo, verificar-se-á a concepção de ideologia, além de sua utilização perante a formação dos estados nacionais ou modernos. Conclui-se que o estado plurinacional – conforme observado no Equador e na Bolívia – reflete uma nova concepção de participação social, desconstruindo a imposição de identidade e nacionalidade anteriormente observadas. Essa maior participação remete a um sentimento de pertencimento do indivíduo que, ante o exposto, retoma o espaço público.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia, Constitucionalismo, Plurinacionalidade.
ABSTRACT: This article intents to show the experience lived in Ecuador and Bolivia, like “Multinational State”. Therefore, it starts from the analysis of the concept of democracy, verifying the need to overcome the design representative democracy to participatory democracy. Still, there is the role played by constitutionalism and its clash essential to democracy. In this universe, there would be the conception of ideology, beyond its use in formation of national states or modern. We conclude that the multinational state – as noted in Ecuador and Bolivia – reflects a new conception of social participation, deconstructing the imposition of identity and nationality previously observed. This increased participation leads to a feeling of belonging of the individual, compared to the above, takes over public space.
KEYWORDS: Democracy, Constitutionalism, “Multinational State”.
SUMÁRIO: 1Democracia, Constitucionalismo e Formação do Estado Moderno; 1.1 Revisitando o Conceito de Democracia; 1.2 O Papel do Constitucionalismo e a Formação do Estado Moderno; 2 Ideologia e Formação dos Estados Nacionais; 2.1 Ideologia – Breves Considerações; 2.2. A Ideologia na Formação dos Estados Nacionais; 3 O Estado Plurinacional; 3.1. Novas Perspectivas e Plurinacionalidade; 4 Considerações Finais.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional
1 DEMOCRACIA, CONSTITUCIONALISMO E FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO
1.1 Revisitando o conceito de democracia
O conceito de democracia sofreu significativas modificações desde o seu surgimento na Grécia Antiga. Etimologicamente, o termo advém de ‘demos’, povo, e ‘kratos’, poder, ou seja, poder do povo. Entretanto, a democracia contemporânea não possui o mesmo significado que aquele presente na Grécia Antiga.
Em Atenas, no século V a.C., quando se consolidou no governo de Péricles a democracia era direta e possuía como princípio maior a igualdade. Essa era essencialmente política, sem se estender à igualdade social ou econômica, por não serem conceitos existentes naquela época. Por ser política, a isonomia – igualdade perante a lei – e a isegoria – igualdade de fala – eram de extrema importância para o exercício democrático. Os cidadãos atenienses (homens livres e com idade superior a 20 anos) se reuniam na ágora para decidir sobre as questões da polis, debatendo diretamente sobre as melhores escolhas para a sua coletividade.
Ressalta Bobbio (1998) que a mudança no conceito do termo democracia não se dá relativamente à modificação de quem é considerado titular da soberania política, posto que este sempre será o povo, mas sim na forma como se constitui tal democracia. A democracia em sua concepção contemporânea se demonstra muito mais ampla e subjetiva do que a democracia grega, pois além de não excluir seu significado anterior, agrega a ele outras idéias que se tornam relevantes na modernidade.
Conforme Maria Cristina Seixas Vilani “somos diferentes dos antigos porque nossa democracia assenta-se em premissas e valores que a política grega desconhecia” (2000, p.20). Tem-se na modernidade uma democracia representativa, muito mais complexa que a grega devido às condições atuais dos Estados modernos. A contemporaneidade traz consigo a idéia de um Estado constitucional, juntamente com a soberania dos povos e respeito às minorias.
O poder popular, para o moderno, não é concebido como o direito do governo e sim como direito de autorizar o governo e de impedir o arbítrio do governante. Nas palavras de Matteucci, a democracia, como nós a conhecemos, consiste em um ‘complexo processo de formação da vontade política que partindo dos cidadãos, passa pelos partidos e pela assembléia e culminada na ação do Governo, limitada pela lei constitucional (VILANI, 2000, p.24)
Não obstante, cumpre a democracia representativa passar por diversas mudanças para que possa transcender a teoria e efetivar de fato seu conceito atual. Na prática percebe-se o que a democracia esconde, havendo um jogo de poder econômico, em que não é a vontade do povo que se faz, mas a vontade dos próprios representantes. Nesse sentido, nos aponta Maressa da Silva Miranda:
o simples direito de voto, ou a mudança periódica de governantes, por si só, não representa a democracia. O discurso democrático pregado pelos Estados ocidentais serve apenas de fachada para esconder o real poder que prevalece nestas sociedades: o poder econômico. (MIRANDA, 2010, p. 11)
O problema da representatividade ganha novos traços quando a concepção de participação é colocada. Trata-se da inserção da sociedade civil organizada, não mais aceitando a idéia de representada, mas buscando efetivamente o diálogo e execução dos interesses da coletividade. Assim como o modelo democrático observado na Grécia antiga é inaceitável para a democracia moderna, a concepção representativa vêm demonstrando sua incapacidade, sendo que a concepção participativa surge como nova possibilidade. Nesse sentido, conforme apresentado por MAGALHÃES (2002, p.163)
Hoje, com a necessária inserção da idéia de participação (democracia participativa) como elemento essencial para que a democracia representativa seja efetivamente democrática, não podemos aceitar a idéia de que os representantes atuem em seu próprio nome, ignorando a vontade do povo. (…) Diante de uma sociedade cada vez mais complexa, podemos dizer que a democracia representativa irá cumprir um papel importante no processo democrático, que é o de, principalmente, dar transparência, visibilidade, aos grandes debates, aos grandes temas nacionais e globais, permitindo que a sociedade organizada atue de forma democrática nos meios de comunicação social, nas ruas, nos sindicatos, enfim, podemos dizer que o elemento mais democrático desse processo é o povo nas ruas (MAGALHÃES, 2002, p. 163)
1.2 O Papel do Constitucionalismo e a Formação do Estado Moderno
Realizada as devidas considerações sobre a democracia e a necessidade de superação de sua concepção essencialmente representativa, cumpre observar o papel do Constitucionalismo. Esse nasce com um viés liberal e não democrático, em 1211 com a elaboração da Magna Carta inglesa. Surge para limitar o poder do Estado e garantir os direitos à propriedade, segurança e privacidade. Apenas no século XVIII, com a Revolução Francesa, que a Constituição passou a representar parte da vontade soberana do povo. Com o passar do tempo as Constituições passaram a proteger direitos sociais e econômicos, além dos direitos civis e políticos já contemplados. Nesse sentido e utilizando-se do exemplo do voto para demonstrar a evolução de textos constitucionais, aponta MAGALHÃES (2009)
A fusão entre democracia e constituição ocorreu apenas na segunda metade do século XIX, quando então, por força dos movimentos operários e dos partidos de esquerda conquistou-se primeiramente o voto igualitário masculino, para depois de algum tempo, gradualmente, conquistar-se o sufrágio universal com o voto igualitário e o fim da discriminação de gênero. (MAGALHÃES, 2009)
Juntamente com a concepção de evolução do constitucionalismo, cumpre observar as diversas divergências quanto o poder constituinte ao definir sua natureza, amplitude e titularidade. Quanto à sua natureza a questão se refere ao Poder Constituinte ser um poder de Direito ou ser um poder de fato. Em relação à sua amplitude, alguns autores defendem que o Poder Constituinte se limita a criação originária do Direito e outros o percebem com algo mais amplo, com uma criação derivada do Direito por meio da reforma do texto constitucional. No que tange à titularidade, Sieyès defende que o Poder Constituinte é produto da vontade da nação, e outros autores consideram-no fruto da soberania do povo.
Apesar dos conceitos ‘democracia’ e constitucionalismo’ serem apresentados hoje com indiscutível proximidade, é possível observar-se uma tensão entre ambos, uma vez que este pressupõe segurança e estabilidade, enquanto aquela enseja a mudança, evolução e pretensão de transformar a sociedade constantemente. Ainda assim, o constitucionalismo possui papel essencial para a democracia, uma vez que limita a arbitrariedade do Estado e garante que o direito das minorias não seja desrespeitado. Dessa forma
Esta fusão entre democracia e constituição ocorreu trouxe a importante noção de ‘democracia com segurança’ que se transformou com o tempo na idéia de que a vontade da maioria tem limites de decisão, estabelecidos na obrigatoriedade de respeitar os direitos das minorias e no núcleo duro de qualquer constituição: os direitos fundamentais” (MAGALHÃES, 2009)
Ora, bem é sabido que a democracia enseja mudanças. As concepções apresentadas pelo titular do poder constituinte em um determinado momento histórico serão reconstruídas, adotando novas perspectivas e sentidos. Entretanto tais mudanças não podem ultrapassar limites previamente estabelecidos, limites esses apresentados como os direitos fundamentais. Nesse universo, observa-se a importância que o constitucionalismo adquire. Dessa forma, percebe-se a importância da tensão observada por José Luiz Quadros de Magalhães (2009) entre a democracia e o constitucionalismo. Pode-se afirmar que a super-expressão do constitucionalismo significaria a desconsideração das evoluções do grupamento social, enquanto a super-expressão da democracia ensejaria uma ditadura da maioria.
Nesse universo, cumpre verificar o advento da formação do Estado Moderno, sua ligação com a democracia e o constitucionalismo. Este surge na forma de Estado Nacional, devido à decadência do feudalismo e a necessidade de restabelecer a ordem da Europa no século XV. À época, a burguesia buscava a unificação de moedas como mecanismo facilitador das transações comerciais que vinham reaparecendo. Não só, os senhores feudais queriam a proteção dos reis contra os camponeses que começavam a se revoltar.
Para o sucesso desse empreendimento, o rei não podia ter nenhum vínculo com as etnias presentes no território que seria futuramente o Estado Nacional. Deveria ser criado um meio de uniformização capaz de satisfazer a maioria das etnias pré-existentes e que pudesse expulsar os que não fossem semelhantes o bastante. Assim,
a tarefa de construção do Estado Nacional (do Estado Moderno) dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras, da imposição de valores comuns que deveriam se compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. (MAGALHÃES, 2009)
Se na Europa a formação do Estado Nacional se deu com a invenção de uma nacionalidade, na América Latina esse processo ocorreu de forma diferente. No decorrer do século XIX, com as lutas de independência surgem os Estados Modernos na América Latina. Em sua maioria, estes Estados foram constituídos por uma pequena parte da população, descendentes de europeus.
Devido a esta formação do Estado Moderno na América Latina, sem que houvesse nenhum tipo de interação com a cultura pré-existente no continente ou com a cultura dos imigrantes forçados; não se permitiu que a identidade destes povos fosse incluída no conceito de nacionalidade criado. Os povos nativos foram totalmente excluídos do processo de construção da nação latino-americana. Em outras palavras,
em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de nacionalidade. O direito não era para as maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais. (MAGALHÃES, 2009)
Em grande parte, o sentimento de pertencimento, de nacionalidade será de grande importância para o Estado Moderno. A ausência de participação nos espaços públicos pode ser apresentada como conseqüência da inexistência do sentimento de nacionalidade. Não só, a ausência do sentimento de pertencimento, de nacionalidade e conseqüente inexistência de participação nos espaços públicos passa a ser importante instrumento na manutenção do status quo.
Conforme apresentado, na América Latina nunca interessou as elites européias que os povos originários e escravos africanos sentissem como parte dos novos estados. Caso contrário, esses que aproximavam de 80% da população iriam questionar as estruturas de poder, retirando o poder da elite européia. Como forma de exclusão desses povos originários e escravos africanos, cumpre analisar a formação da ideologia e suas conseqüências para o Estado Nacional.
2 IDEOLOGIA E FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS
2.1 Ideologia – Breves considerações
Seguindo a concepção de Karl Marx (1988) ideologia é o conjunto de idéias, crenças, conceitos e valores que um grupo impõe a outro a fim de dominá-lo. Segundo Marx, é o mascaramento da realidade, da verdade através da universalização de interesses particulares de um determinado grupo. Dessa forma, os indivíduos sob a ação da ideologia não percebem que estão sendo oprimidos, determinados e limitados, por estarem vivendo uma fantasia, e não a realidade.
Trata-se de um véu espesso que encobre e distorce a realidade, condicionando as pessoas a verem as coisas de uma maneira única e pré-determinada. Ou seja, a ideologia é uma forma de interpretar o mundo por meio da criação de esteriótipos e pré-conceitos, que são considerados dogmas, verdades absolutas, impossíveis de modificação.
A linguagem é um instrumento ideológico, uma vez que as palavras, segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, são meras invenções, que não dão um significado, mas impõe interpretações. A linguagem
É, assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o instrumento do engano, do falso e da mentira; a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente. (CHAUÍ, 1998, p. 190)
A alienação, outro conceito de Marx , é consequência da ideologia. Alienação é o aprisionamento do pensamento de muitos às idéias de outros poucos. Uma vez alienados, os indivíduos passam a raciocionar e agir conforme a vontade do grupo dominante. Os indivíduos não se reconhecem como os criadores da sociedade, da história, da cultura e da política. Creem que as instituições sociais e políticas são obra da Natureza, da Razão ou de Deus. Ademais, submetem-se às condições sociais, políticas e culturais de sua sociedade por não poderem controlá-las ou alterá-las. Destarte, por estarem condicionadas e moldadas pela sociedade, as pessoas consideram-se seres livres, possuidores de livre-arbítrio, e não percebem a opressão.
Em outras palavras,
a alienação se exprime numa ‘teoria’ do conhecimento espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida. (CHAUÍ, 1998, p. 220)
Assim, a ideologia, por meio da alienação, determina a mentalidade do ser humano. Devido à esse caráter determinista, a ideologia se contradiz com o Existencialismo. Essa corrente filosófica sustenta que o homem é um ser existente, sendo a existência uma auto-determinação consciente e livre. Ou seja, o indivíduo decide ser e é responsável pelos seus atos, não havendo espaço para escusas. Além disso, não há verdades a priori, uma vez que o homem não é pré-definido. Isso significa que os existencialistas são contrários à ideologia, pois não acreditam que a essência precede a existência.
A idéia de ideologia também é combatida pela Escola de Frankfurt. A filosofia dessa escola acredita que a razão filosófica, de caráter crítico, foi convertida, ou melhor, pervertida pelo Iluminismo em razão instrumental. O movimento iluminista, de concepções capitalistas, criou o mito do progresso linear ilimitado, que só poderia ser conquistado com a dominação da natureza.
Destarte, a razão se tornou doente e viciada, por se colocar a serviço da destruição do meio ambiente, além de tornar os homens instrumentos dos próprios homens. Graças à ideologia econômica e política da época, a razão mascarou a realidade destrutiva do progresso iluminista e deixou de refletir sobre ela mesma – fato este que é uma exigência clássica da filosofia. Por causa disso é afirmado que “o Iluminismo incinerou os últimos restos de sua própria consciência de si.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985)
Outra crítica da Escola de Frankfurt refere-se à indústria cultural. Cúmplice da ideologia capitalista, essa “indústria” massifica a cultura, distribuindo imagens e necessidades artificiais que tornam os indivíduos em simples consumidores. Com isso, há uma falsificação das relações sociais, além de que os homens não desenvolvem suas consciências devido à alienação.
A sociedade impõe necessidades e sonhos aos indivíduos, apesar de não precisarem deles. Herbert Marcuse considera como falsas essas necessidades.
A maior parte das necessidades que hoje prevalecem, a necessidade de relaxar, de se divertir, de se comportar e de se consumir de acordo com os anúncios publicitários, de amar e de odiar aquilo que outros amam e odeiam, pertencem a esta categoria de falsas necessidades. (MARCUSE, 1967, p.75)
Marcuse acredita, assim, que o homem é voltado somente para consumir e seguir a ideologia capitalista.
Nesse sentido observa-se como a ideologia desenvolve importante papel para a sociedade, tornando os indivíduos fantoches e seguidores das concepções de um pequeno grupo. Cumpre verificar a utilização da ideologia – conforme anteriormente analisado – para a formação dos Estados Nacionais ou Modernos.
2.2. A ideologia na formação dos Estados nacionais
Conforme anteriormente apresentado, o Estado nacional surgiu na Europa do século XV. O rei unificou o poder interno, antes detido pelos senhores feudais, e, assim, afirmou sua supremacia perante a Igreja Católica e os impérios. Entretanto, não bastou apenas concentrar o poder para formar o Estado; o rei também teve de se ligar a todos os diferentes grupos étnicos e impor valores culturais comuns a eles. Ou seja, o rei criou uma identidade nacional para unir os povos e fazer com que eles o reconhecessem e legitimassem seu poder.
Para a criação dessa identidade nacional fez-se necessária a escolha de um inimigo em comum a todos as etnias. Como exemplo, pode-se citar o caso da Espanha, que, durante a sua formação, elegeu os mouros como rivais de toda a nação. Porém, havia também outro componente dessa nacionalidade: a religião. A escolha de uma única religião para todo o Estado, além do inimigo, serviu para unir todas as etnias e foi usada como pretexto para expulsar os indesejáveis, isto é, os que não se encaixavam nos valores culturais nacionais.
Nota-se que a identidade nacional não passa de uma ideologia que foi utilizada como uma das bases para a formação do Estado nacional. Este impôs valores e conceitos aos indivíduos, sem respeitar as diferenças culturais de cada etnia. Em outras palavras, houve a massificação da cultura e a alienação dos indivíduos para uni-los a partir de um sentimento de nacionalidade em favor somente do rei. Conforme apresenta MAGALHÃES
A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionado com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação. (MAGALHÃES, 2009)
Na América Latina, o discurso ideológico também foi empregado na criação dos Estados, mas de maneira diferente da ocorrida na Europa. Neste continente, o Estado era voltado para todos aqueles que seguissem o padrão cultural e religioso imposto pelo rei. Contudo, os Estados latino-americanos foram feitos para a minoria elitista, não reconhecendo os milhões de negros e indígenas como membros do povo nacional. E isso foi realizado através da própria Constituição, que positivava os valores da minoria e os colocavam como os únicos existentes na sociedade, excluindo a tradição e a moral dos grupos étnicos oprimidos.
A Constituição, portanto, foi usada como um instrumento de implementação da ideologia elitista, que via os indígenas como inferiores. Encobria-se, dessa forma, uma realidade marcada pelas desigualdades sociais e pela exclusão dos povos originários da tutela do Direito interno. Conforme Slavoj Zizek (1992), a lei só funcionaria na medida que os subordinados fossem enganados, entendendo sua autoridade como autêntica e eterna e, desconhecendo a usurpação.
Além disso, as Constituições contemporâneas – essencialmente liberais – prevêm direitos humanos e fundamentais, mas que na maioria das vezes são meramente simbólicos. A ideologia dos direitos fundamentais refere-se à falsa visão que tais direitos são universais e estão sendo cumpridos e respeitados por todas as nações.
A ideologia afirma que somos todos cidadãos e, portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. No entanto, sabemos que isso não acontece de fato: as crianças de rua não têm direitos; os idosos não têm direitos; os direitos culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos das crianças que estão em escolas particulares, pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas; os negros e índios são discriminados como inferiores; os homossexuais são perseguidos como pervertidos, etc. (CHAUÍ, 1998, p. 221)
A ideologia liberal e capitalista coloca os interesses particulares e o poder financeiro acima do bem coletivo e de qualquer direito. Ademais, esse simbolismo dos direitos humanos abre espaço para a manipulação política, além do fato de que “a sociedade, pode perder a confiança no sistema jurídico e cair em uma inércia que impedirá a obstruirá, em parte, a evolução dos direitos.” (MAGALHÃES, REIS, 2009)
Cumpre salientar que a ideologia se fez presente não apenas na criação do Estado nacional, mas também contribuiu no surgimento e desenvolvimento dos Estados totalitários, como ocorreu na Alemanha nazista, na Itália fascista e na União Soviética stalinista. O Totalitarismo pode ser apresentado como governo de uma só idéia. Isso significa que o Estado cria uma ideologia oficial que busca a uniformidade e a unanimidade. Os cidadãos, portanto, passam a ser considerados massa, onde todos são iguais física e mentalmente. Para manter essa unidade, cria-se um ambiente generalizado de fiscalização e delação, onde não há espaço para diferenças e particularidades.
A ideologia totalitária deve ter a adesão da maioria, para que ela possa efetivamente destruir a autonomia, a identidade e a consciência dos indivíduos, impedindo que estes descubram as contradições do regime e se rebelem contra ele. Utilizando a propaganda como instrumento ideológico, o Totalitarismo exalta o regime, cultua o Líder e prega a destruição do inimigo do Estado (no caso da Alemanha nazista, o inimigo a ser combatido eram os judeus):
Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa lealdade total é a base psicológica do domínio total. (ARENDT, 1989, p. 414)
Essa atomização do indivíduo e a lealdade dele para com o regime é fruto da ideologia. A imposição de valores, conceitos e crenças pelo movimento totalitário é necessária, pois, assim, o Totalitarismo pode reprimir qualquer tipo de manifestação intelectual contrária às concepções do regime e conseguir a dominação total. De acordo com Hannah Arendt (1989) as chamadas mentiras ideológicas são modificadas e converidades em mentiras concretas e de natureza universal. Essas irão exigir crença absoluta, criando um sistema formado por provas científicas que convencerá os leigos.
Conclui-se que a ideologia foi indispensável para a formação dos Estados. Provavelmente, sem a sua produção não haveria uma união dos grupos étnicos nem o sentimento de nacionalidade e de pátria. Todavia, a ideologia é um instrumento poderoso, de grande influência, que conseguiu causar relevantes transformações sociais e históricas.
Será no Estado Plurinacional que observar-se-á a reconstrução da verdadeira identidade nacional, onde o elemento unificador não reside no idioma utilizado ou na religião praticada pela maioria. Para tanto, verificar-se-á a experiência em dois países da América Latina que vêm reconstruíndo a concepção de nacionalidade e identidade de seus cidadãos.
3 O ESTADO PLURINACIONAL
3.1. Novas perspectivas e plurinacionalidade
São observados na América Latina durante o século XX, significativas mudanças relativas a condição social dos indivíduos. Como supramencionado no item 1.3, o Estado Moderno impediu os povos originários e escravos de terem acesso a direitos básicos e fundamentais, fazendo-se necessário a criação de um novo Estado ou a reconstrução do antigo, que pudesse reduzir a desigualdade social e suprir as necessidades destes. Essa nova possibilidade vem sendo tratada como Estado Plurinacional e observado na Bolívia e Equador.
O Estado Plurinacional superou a uniformidade e intolerância impostas pelo Estado Nacional, afastou a idéia de “museificação” (como exemplo, a idéia de que os índios são ‘intocáveis’ e devem ser considerados como peças de museus, por serem mais frágeis, e assim, isolados), fazendo com que houvesse liberdade de credo e não mais alienação e aculturação dos povos, decorrentes da uniformização dos sistemas econômico e civil.
Além disso, trouxe novas perspectivas, dentre elas uma nova forma de se constituir a família e o sistema econômico e o reconhecimento da democracia participativa. Além de haver a aceitação dessas culturas, principalmente indígenas, tido antes como inferiores. Conforme apresentado por MAGALHÃES (2009):
Este Estado rompe com o paradigma de 500 anos de Estado Nacional permitindo que cada grupo étnico preserve seu próprio direito de família e de propriedade e tribunais próprios para resolver os conflitos nestes âmbitos, criando um espaço de diálogo democrático onde as partes comparecem em condição de igualdade para construir uma agenda comum de Direitos Humanos.
O significado principal do Estado Plurinacional encontra-se no multiculturalismo. Em um mesmo espaço podem ser consideradas diferentes concepções de direito, moral ou ética. Nessa realidade, perante o direito, o Estado Plurinacional propõe-se a reconstruir o direito de família e o direito de propriedade. Ante a possibilidade de convivência – conforme apresentando por José Luiz Quadros de Magalhães – o direito de família e o direito de propriedade não mais pode ser utilizado como forma de imposição a uma determinada coletividade. Em diferentes esferas de poder, os grupamentos sociais partirão a identificar seus elementos de contato, sendo plenamente legítimas suas decisões.
Como exemplo, cumpre observar a realidade na Bolívia e no Equador. Na Constituição da Bolívia, após a sua aprovação, os povos originários passaram a ter uma maior participação na política e na economia. Com isso, houve a criação de uma cota para parlamentares indígenas, que passaram a ter direitos que antes estavam longe de serem alcançados, como citado anteriormente. Foi estabelecido um nível de equidade entre as duas justiças do país: a tradicional indígena e a ordinária. Não só, merece destaque o fato de que “cada comunidade indígena poderá ter seu próprio ‘tribunal’, com juízes eleitos entre os moradores“. (MAGALHÃES, 2009), além de ser prevista a criação de um Tribunal Constitucional Plurinacional. Não só, reconhece as diversas formas da constituição familiar. Nesse universo, conforme apresentado por ALMEIDA (sem data, p. 19-20)
Em contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la especificidad étnica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resistência al imperialismo bajo calquiera de sus formas (genocídio, imposición política, religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación econômica.
É interessante ressaltar a realidade na Bolívia anterior ao movimento de plurinacionalidade aqui discutido. As crises fiscais motivadas pelas privatizações deixavam o país dependente e com uma considerável dívida externa. Não só observava-se a crise de representação, na qual os partidos eleitorais tinham poucas diferenças em suas propostas e defendiam basicamente a mesma classe social (prioritariamente a elite). Há, também, crise de legitimidade, fato que assola não só a Bolívia, mas também a América Latina como um todo, que significa que os partidos, por não representarem igualmente todas as classes, vêm sofrendo uma série de críticas acerca da corrupção. Isso fez com que houvesse diversos conflitos em defesa da Assembléia Constituinte e da nacionalização. No último elemento de crise, pode-se explicitar a crise de correspondência, que trata da não correspondência entre o Estado boliviano, seus poderes e políticas e os povos que foram marginalizados nos tempos de Estado Liberal. Esse é o ponto de crise que mais vem tendo repercussão e mais merece a atenção.
A solução para esses pontos de crise encontra-se na recomposição, ou seja, uma reforma severa entre os aspectos que não correspondem ao modelo Boliviano, entre eles a diversidade cultural. É aí que encontra, então, a idéia de Estado Plurinacional na Bolívia. Porque, por um lado, a Bolívia apresenta as chamadas nações comunitárias, ou seja, os assuntos de caráter político e econômico são resolvidos de forma comunitária.
Lo que está en juego en Bolivia es si se reconoce y organiza una plurinacionalidad que consista exclusivamente en autonomías, es decir, la diversidad separada, o si se organiza una pluriculturalidad que comparta las mismas instituciones de autogobierno en todos los territórios y sobre todo en lo que hace a la articulación y dirección conjunta del país, y que a su vez respete la autodeterminación de los pueblos y culturas. Las tendencias recientes que tienen representación en la asamblea parecen dirigirse a una plurinacionalidad por la vía de las autonomías departamentales e indígenas. (TAPIA, 2007)
A nova constituição boliviana foi aprovada e apresenta como seu artigo 1° como um estado unitário, social, de direito, plurinacional, comunitário, livre, autonômico e descentralizado, independente, soberano, democrático e intercultural.
Não só, a realidade equatoriana também deve ser observada. Sua Constituição desenvolve a idéia de aceitação da diversidade cultural, construindo a concepção de constitucionalismo plurinacional – baseada na diversidade cultural. Essencialmente, na realidade equatoriana observa-se a realidade de um estado intercultural e plurinacional. Será na ampliação dos direitos dos povos originários que será verificado o caráter inovador equatoriano. Nesse sentido, apresenta ALMEIDA
Al funcionar el Estado como representación de una nación única cumple también su papel em el plano ideológico.La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena en vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho esta generalizada en los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a formar filas de la nación ecuatoriana aunque, por lo general, en su sectores más explotados. (ALMEIDA, sem data, p. 19-20)
A nova Constituição do Equador estabelece em seu artigo:
1°.- O Equador é um Estado constitucional das leis e da justiça, que é social, democrático, soberano, independente, singular, intercultural, plurinacional e secular. Soberania pertence ao povo, cuja vontade é a base da autoridade que é exercida através dos órgãos do poder público e através das formas de participação direta previstos na Constituição.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou o presente artigo analisar as recentes experiências observadas na Bolívia e no Equador – sendo chamados de Estados Plurinacionais. Partiu-se, inicialmente de um conceito de democracia, verificando suas alterações históricas. Se na Grécia antiga observava-se uma democracia essencialmente direta, o advento da modernidade demonstrou a impossibilidade de utilização desse mesmo modelo. Para tanto, foi adotado a noção de democracia representativa, onde um determinado grupamento social escolhia um indivíduo que representaria o interesses da coletividade. Ora, restou devidamente demonstrado a falência da democracia representativa na contemporaneidade. Nesse universo, faz-se necessário a adoção de novas perspectivas, como por exemplo, a democracia participativa.
Tal conceito, deve ser observado juntamente com a concepção de constitucionalismo e com a formação dos estados modernos. Percebe-se o embate existente entre a democracia e o constitucionalismo. Se, em um pólo, a democracia remete a mudanças e evoluções, o constitucionalismo aponta para a segurança e manutenção jurídica. Cumpre ressaltar que o embate existente entre os dois institutos não significa a impossibilidade de co-existência, e sim a necessidade de mediação entre ambos.
A formação do estado moderno deve ser claramente analisada perante a concepção de democracia, constitucionalismo e ideologia. Seguindo a concepção adotada por Marx e reformulada por Zizek, a ideologia aponta como instrumento da dominação de uma coletividade, como forma de encobrimento do real. Ora, a ideologia terá importante papel na formação do estado moderno. Será através desse encobrimento que será construído a concepção de nacionalidade e identidade. Face o interesse de um determinado grupo, serão criadas novas concepções de identidade coletiva – identidades essas essencialmente falsas – onde o sujeito não participa de sua construção.
Na América Latina a criação dessa identidade e nacionalismo seguiu diferente ótica da Europa. Nunca houve o interesse que os povos originários e descendentes de escravos participassem do ideário coletivo. Se, na Europa, foi criado uma concepção de identidade onde apenas o mais diferente seria expulso; na América a identidade faria referência apenas a classe dominante e européia. E, o afastamento desses povos originários e descendentes de africanos resultou em um esvaziamento e abandono da coisa e espaço público por grande parte da população.
Ante tal realidade, novas perspectivas vem sendo observadas na América Latina. Bolívia e Equador em suas recentes reformas constitucionais verificaram a necessidade de recomporem o espaço público com toda a população – seja ela européia, originária ou descendente de africanos. A crise da representatividade – comumente observada na América Latina – foi desconstruída nos citados países. O chamado Estado Plurinacional vem apresentando interessantes resultados, sob uma nova concepção de participação e soberania. Nessa realidade, o ente Estado admite a co-existência de diferentes formas do direito de família e de propriedade. Cada grupamento social é plenamente capaz de construir acordos e consensos, sendo que, cabe ao estado reafirmar a validade desses acordos, decisões e consensos.
Por fim, a experiência do Estado Plurinacional vem demonstrando uma retomada dos espaços públicos por grupamentos sociais que jamais foram considerados verdadeiros sujeitos de direito. A construção de verdadeiras identidades nacionais, não impostas e sim discutidas, enseja a reconstrução do ente estado sob novas perspectivas, essencialmente democráticas.
REFERÊNCIAS
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NOTAS DE FIM
1 Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Email: reinaldosps@gmail.com
2 Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Email:danirecc@gmail.com