Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Cristian Kiefer da Silva1
Emmanuel Fernandes Versiani2
 

RESUMO: O trabalho em epígrafe tem como escopo, de forma apriorística, diferenciar organização criminosa, quadrilha e bando, para que posteriormente, seja possível demonstrar os efeitos nocivos dos entorpecentes no organismo humano, bem como o respectivo tratamento penal imputado aos narcotraficantes e aos dependentes químicos. Será demonstrado ainda que, muito embora hajam políticas públicas voltadas à repressão ao narcotráfico, estas demonstram-se claudicas por diversos motivos que, aliados aos caracteres de complexidade e transnacionalidade do crime organizado, este acaba configurando-se como uma atividade normal à sociedade contemporânea, isto é, esta conduta está disseminada em todo o território nacional e adquire feição subsistencial. Por questões metodológicas, o presente trabalho foi dividido em dois artigos, neste será tratado de forma específica o conceito de crime organizado e os efeitos provocados no sistema biológico humano. 

PALAVRAS-CHAVE: NARCOTRÁFICO; CRIMINALIZAÇÃO; DESCRIMINALIZAÇÃO; VITIMIZAÇÃO. 

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. As organizações criminosas e o tráfico de entorpecentes; 2.1. Organizações Criminosas: aspectos conceituais; 2.2. O Objeto do Tráfico: drogas ilícitas; 2.3. Os Efeitos dos Entorpecentes no Sistema Biológico Humano; 2.3.1. Maconha; 2.3.2. Heroína; 2.3.3 Cocaína; 2.3.4. Crack; 2.3.5. Cola; 2.3.6. LSD; 2.3.7. Cristal ou ice; 2.3.8. Oxi; 2.4 Tráfico de Entorpecentes: traficante e usuário vistos sob o aspecto legal; 3. O traficante sob o aspecto vitimizador: a ausência do estado democrático de direito enquanto promotor da igualdade e justiça social; 4. Considerações finais; Referências. 

ÁREA DE INTERESSE: Direito Penal

 

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como fito perquirir o tráfico de entorpecentes enquanto atividade de subsistência exercida pelos integrantes das organizações criminosas, levando-se a cabo os dispositivos legais aplicáveis a estes criminosos bem como o aspecto vitimizador que eles se encontram, qual seja: a ausência estatal deixa-os em um estado de marginalização, isto é, um estado onde as condições de sobrevivência revelam-se incompatíveis com os ditames constitucionais, em especial o da dignidade humana.

Como corolário, o caminho tortuoso do tráfico oferece uma falsa ideia, mascarada pela oferta fácil de dinheiro e poder, de uma vida considerada “digna”. Infere-se daí, a adoção do tráfico de entorpecentes como modo de subsistência, que vem adquirindo feição de normalidade no seio social, muito embora haja políticas públicas com o intuito de repreender tais condutas.

Por seu turno, será laborado a situação de vitimização e sub-vitimização em que se encontra o usuário de drogas, vale dizer, este torna-se vítima da atuação claudica do Estado – enquanto promotor da dignidade e justiça social – e vítima dos traficantes que têm o interesse em mantê-lo na relação de “fornecedor” e “consumidor”.

Neste diapasão, torna-se imperioso ressaltar na pesquisa em epígrafe o aspecto conceitual e metamórfico das organizações criminosas. Uma organização criminosa tem como principal característica a mutabilidade não somente no que tange às atribuições ou “cargos” dos seus integrantes, mas também, na forma de produção e comercialização dos entorpecentes.

Por seu turno, o conceito de crime organizado não é estático e necessita de constantes pesquisas afim de que o conceito, os dispositivos legais e as políticas públicas de prevenção e repressão acompanhem e combatam esta conduta que alastra-se no seio social. Reforçando o caráter metamórfico das organizações criminosas, pode-se elencar em tom de premissa o surgimento de novas espécies de entorpecentes a exemplo do oxi ou oxidado e do ice, também conhecido como cristal.

O crime organizado vislumbra-se como um problema social comum, frequente e típico; isto porque em toda a América do sul o tráfico de drogas encontra-se extremamente conectado com o tráfico de armas, bem como com vários colaboradores, cada qual com a sua respectiva competência na escala hierárquica.

Neste ínterim, o crime organizado abrange desde o usuário que está preso em uma cadeia e que cai em culpa ao utilizar de meios antijurídicos para a obtenção da droga, perpassando pelo indivíduo que levou a droga até o presídio, pelo “laranja” ou “peixe pequeno” – que é o pequeno traficante, culminando com os líderes e os grandes narcotraficantes que se encarregam de importar drogas e armas a fim de manter este comércio ilícito.

Com efeito, cumpre elucidar que o crime organizado, em especial o tráfico de armas e de drogas, configura-se não só como um problema social comum, frequente e típico, mas também complexo, uma vez que as organizações criminosas contam com forte aparato bélico, bem como com seus respectivos colaboradores.

Estes, a seu tempo, se dão por dois motivos, o primeiro devido à coação psicológica – como é o caso dos moradores dos aglomerados – o segundo,  é devido à corrupção existente nos diversos níveis administrativos da sociedade, inclusive no executivo (polícias) e no Judiciário (juízes) com a venda de sentenças. O que conduz à assertiva de que o crime apresenta-se em toda e qualquer sociedade, independente das classes sociais.

O crime organizado representa um grande desafio ao Estado Democrático de Direito, uma vez que a sociedade é a principal vítima do crime e da violência empregada, sendo que esta verifica-se em dois âmbitos: no psicológico e no físico.

Nesta esteira de raciocínio, percebemos uma inversão de papéis, ou, em melhor desdobramento, para aqueles delinquentes que optaram pelo crime como um modo de subsistência ou escolha racional (tema este que, por questões metodológicas será laborado no trabalho intitulado – O TRÁFICO DE ENTORPECENTES COMO POSTULADO FENOMÊNICO SUBSISTENCIAL), não existe temor, pelo contrário, eles impõem o temor à sociedade e servem como desafio às políticas estatais, configurando uma afronta ao Estado Democrático de Direito e, de modo especial, aos Direitos e Garantias Fundamentais.

 

2 AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E O TRÁFICO DE ENTORPECENTES 

2.1 Organizações Criminosas: aspectos conceituais

Constata-se em todo o território nacional a existência de um autêntico fenômeno denominado de crime organizado. Esta conduta criminosa é vislumbrada, aqui, como um fenômeno social normal, quer isto dizer em melhor desdobramento, o crime organizado é uma prática frequente no âmbito social configurando-se como um disseminador de diversas outras condutas típicas. Nesta esteira de raciocínio lógico, vem à lume o sábio posicionamento de Émile Durkheim para quem fato social consiste em:

[…] toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 2003, p. 13) 

Para Durkheim o crime não ocorre na maioria das sociedades, mas em todas as sociedades constituídas de seres humanos, ou nas palavras do sociólogo: “Um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento, quando ele se produz na média das sociedades dessa espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução”. (DURKHEIM, 2003, p. 65)

Prossegue Durkheim justificando o seu posicionamento:

Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível. O crime, conforme mostramos alhures consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. Para que, numa sociedade dada, os atos reputados criminosos pudessem deixar de ser cometidos, seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com grau de força necessário para conter os sentimentos contrários. Ora, supondo que essa condição pudesse efetivamente ser realizada, nem por isso o crime desapareceria, ele simplesmente mudaria de forma; pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas. (DURKHEIM, 2003, p. 68). 

Comungam deste posicionamento doutrinário juristas de escol como Cesar Roberto Bitencourt, em sua obra Tratado de Direito Penal, Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde, em sua obra intitulada Introduccion a la Criminologia y al Derecho Penal, Luiz Flávio Gomes e Antonio García Pablos-de Molina em obra intitulada Criminologia.

Uma vez que o crime organizado propaga a violência no seio social, ele exerce o papel de modificar a sociedade, tal mudança influencia diretamente na seara jurídico-penal exigindo a elaboração, aplicação e até a adaptação de dispositivos legais. Emana daí a necessidade que os legisladores e os demais cultores do Direito têm de conhecer o conceito e a constante evolução que vem sofrendo o crime organizado.

O vocábulo “organizar” estabelece uma ordem nas relações entre diversos elementos que compõem o todo e/ou resultado das ações praticadas pelos seres humanos. Em consonância com este posicionamento Aurelio Buarque de Hollanda Ferreira em seu Pequeno dicionário da língua portuguesa define o termo em epígrafe como “constituir o organismo de; ordenar; formar; arranjar; estabelecer as bases de; p. constituir-se; formar-se.” (FERREIRA, 1974, p. 873)

Neste desideratum, o crime organizado pode ser vislumbrado como toda atividade de caráter empresarial a nível nacional e/ou internacional que possui a prática e os fins baseados em meios ilícitos, isto é, organização criminosa é o agrupamento de indivíduos que possuem o animus de auferir lucro e poder através de meios considerados ilegais. Neste sentido, exsurge o indelével posicionamento de Thosten Sellin citado por Roberto Lyra:

Um dos aspectos mais curiosos do delito nos Estados Unidos é a comumente chamada criminalidade organizada. Não se deve confundi-la com a criminalidade do gangsterismo ordinário, que é o fato de algumas pessoas que agem com grande habilidade e engenhosidade para cometer um assalto a um banco ou um roubo noturno a uma casa, por exemplo. O delito organizado é uma empresa ilegal que consiste em promover de bens ou serviços aos consumidores e sujeita desta maneira aos dirigentes e empregados de empresa – e geralmente aos próprios consumidores – a possíveis sanções penais. O fim dessas empresas é propiciar o jogo, o consumo de álcool etc., escapando ao controle dos impostos o fomento da prostituição ou de procurar prazeres ilícitos com os narcóticos. Elas existem frequentemente em grande escala e se fazem constantes competições. A organização e o funcionamento dessas empresas, seu papel na corrupção dos funcionários ou políticos, tem sido constantemente descritos em filmes. (LYRA, 1969, p. 98). 

Com efeito, o Promotor de Justiça do Estado de São Paulo Marcelo Batlouni Mendroni propala acerca do conceito de crime organizado e o diferencia de quadrilha e bando, in verbis:

Importante diferenciar, desde logo, a caracterização de organização de organização criminosa e bando ou quadrilha – conforme disposição do artigo 288 do Código Penal brasileiro vigente. Enquanto este evidencia-se tão-somente pela reunião de pessoas para a prática de crimes, aquela exige mínima organização para a mesma finalidade. Exemplificando: quatro pessoas se reúnem e combinam para assaltar bancos. Acertam dia, local e horário em que se encontrarão para o assalto. Decidem funções de vigilância e execução entre eles e partem. Executam o crime em agência bancária eleita às vésperas. Repetem a operação em dias quaisquer subsequentes. Formaram bando ou quadrilha. Se, ao contrário, as pessoas planejam – de forma organizada – os assaltos, buscando informações privilegiadas – como por exemplo estudar dias e horários em que determinada agência bancária contará com mais dinheiro em caixa, a sua localização na agência, a estrutura da vigilância e dos alarmes, planejar rotas de fuga, infiltrar agentes de segurança, neutralizar as câmeras filmadoras internas etc. – , esse grupo poderá ser caracterizado como uma organização criminosa voltada para a prática de roubos a bancos. Enquanto na primeira inexiste prévia organização para a prática, e os integrantes executam as suas ações de forma improvisada ou desorganizada, na segunda sempre haverá a mínima vontade organizacional prévia de forma a tornar os resultados mais seguros. Certo é, porém, que muitas vezes são designados os termos bando ou quadrilha também para as organizações criminosas, simplesmente pela facilidade da expressão. Entende-se por “organização”: associação ou instituição com objetivos definidos. Decorre daí, em precária suposição, que organização criminosa seja um organismo ou empresa, tendo como objetivo a prática de crimes, ou seja, a prática de atividades ilegais. É, portanto, “empresa” voltada para à prática de crimes. As associações (ou organizações) criminosas praticam atividades ilícitas e assumem características que se adaptam às mudanças do ambiente social onde se encontram inseridas e portanto apresentam conotações diversas, no tempo e no espaço. (MENDRONI, 2009, p. 10). 

O crime organizado possui um caráter metamórfico, isto é, as organizações criminosas evoluem constantemente e até modificam os seus métodos criminais (modus operandi) com o intuito de assegurar a continuidade da conduta criminosa.

Ergue-se neste contexto, a importância de se realizar constantes pesquisas que envolvem a evolução e o modus operandi das organizações criminosas, a fim de que todos os dados coletados se conjuguem em dispositivos penais específicos e se externem através da eficácia social, ou seja, a obtenção da paz social. Razão pela qual se torna imperioso trazer à lume as palavras de Pino Arlacchi e Dalla Chiesa citados por Marcelo Batlouni Mendroni:

[…] seria necessário que a definição sempre tivesse análises recentes a respeito das atividades das organizações criminosas, referindo os seus tentáculos internacionais e o desenvolvimento do mercado sempre crescente de tráfico de drogas, de armas e as infiltrações por elas provocadas no âmbito da economia. (MENDRONI, 2009, p. 11). 

Aprofundando um pouco mais na análise ora proposta, poder-se-á vislumbrar que a Lei 9.034 de 1995 que versa sobre o tema em epígrafe apresenta-se claudica uma vez que não traz em seu corpo o conceito de crime organizado. Tal falha propicia aos leigos e aos operadores do Direito a falsa ideia de que quadrilha, bando e crime organizado tenham o mesmo significado, destarte, há diferenças essenciais que os caracterizam.

Quadrilha ou bando são termos que a lei emprega como sinônimos, outrossim, cumpre-nos fazer uma importante e minudente diferenciação. O Código Penal dispõe em seu artigo 288 a seguinte redação: “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes. Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.” Ao analisar o núcleo do tipo penal nota-se que o termo “associarem-se” possui o mesmo sinônimo de “organizar-se” ou “reunir-se” tal como revela Guilherme de Souza Nucci:

Associar-se significa reunir-se em sociedade, agregar-se ou unir-se. O objeto da conduta é a finalidade de cometimento de crimes. “O crime de formação de quadrilha aperfeiçoa-se com o momento associativo, o qual já pode se revelar pelas dimensões objetivas e subjetivas do modus operandi em único cometimento de autoria múltipla, sem se condicionar à realização de mais de um, consumado ou tentado, pelos membros da sociedade de delinqüentes” (TJSP, Rev. 254.056 – Limeira, 2º Grupo de Câmaras, rel. Gonçalves Nogueira, 03.11.1998, v.u., JUBI 30/99). (NUCCI, 2009, p. 998). 

Por seu turno, o núcleo do tipo penal revela-se tão somente como o animus delinquendi aliado ao animus contrahendae societatis, o que conduz a um equívoco, que é afirmar que quadrilha, bando e crime organizado são sinônimos. De fato, o núcleo dos três tipos penais gravitam em torno da societas delinquentium, porém, a diferenciação destes tipos penais deve ser feita levando-se em consideração o a cronologia (época de aplicação da lei), os acontecimentos sociais (a análise da sociedade) e o modus operandi.

Neste contexto, o termo bando pode ser vislumbrado como um conceito obsoleto, isto é, o termo a quaesto remete a época de confronto entre o Estado e cangaceiros, ou seja, remete ao conflito que existia entre “Lampião” e o Estado. A constituição de um bando não requer armamentos considerados “pesados” tais como: fuzis, pistolas semi-automáticas, metralhadoras ou granadas; e nem integrantes especializados configurando uma distribuição rígida de competências. Para a formação de um bando é necessário um líder e armas consideradas “brancas” ou “leves” tais como: facas, facões, foices, revólver, espingarda etc.

Assim, nota-se que o bando não demanda alto grau de inteligência e nem articulação, logo, não possui vínculos internacionais, ou seja, bando remete a ideia de zona rural. Prova indelével do que se intenta asseverar, encontra-se na oportuna alusão perfectibilizada por Marcelo Fortes Barbosa citado por Guilherme de Souza Nucci que “Quadrilha é organizada e dirigida a um fim, portanto, teleológica, operacionalizada previamente e indicativa de societas sceleris racional. Bando é difuso, inorgânico, de regra, ocasionalmente composto e sem articulação, demandando racionalidade maior.” (NUCCI, 2009, p. 999)

A quadrilha possui uma organização e uma distribuição de competências mais evoluída do que o bando, quer isto dizer, verifica-se a existência de quadrilhas nas cidades de médio e grande porte, outrossim esta não possui caráter transnacional e nem uma estrutura hierárquica complexa como o crime organizado. Este, constata-se sob uma prática criminosa que possui uma distribuição rígida de competências, armamentos considerados “pesados” tais como: fuzis, pistolas semi-automáticas, metralhadoras, granadas e integrantes especializados.

Os principais aspectos do crime organizado são o caráter transnacional e a complexidade de sua estrutura hierárquica. A respeito deste quadrante, não se pode olvidar da arguta e penetrante observação timbrada por Paulo César Correa Borges citado por Guilherme de Souza Nucci em sua obra Leis penais e processuais penais comentadas, a saber:

[…] que existem muitas quadrilhas ou bandos que são totalmente desorganizados e jamais poderiam ser considerados organizações criminosas com base nos critérios doutrinários. Embora normalmente tenham liderança, que organiza a ação do grupo, as quadrilhas ou bandos são para a prática de delitos sem nenhuma ligação com o Estado, sem uma ação global e sem conexões com outros grupos, e jamais possuirão um caráter transnacional. […] (NUCCI, 2008, p. 250). 

Em consonância com este posicionamento, Marcelo Batlouni Mendroni afirma que enquanto na formação de Bando ou Quadrilha, constata-se apenas uma “associação”, com solidariedade entre seus integrantes no caso da Organização Criminosa, verifica-se uma verdadeira ‘estrutura organizada’, com articulação, relações, ordem e objetivo, com intenso respeito às regras e à autoridade do líder. (MENDRONI, 2009, p. 9)

Per summa capita, uma organização criminosa possui aspectos sui generis, dentre os quais obstam a confusão com quadrilha e bando. Dentre estes aspectos podemos elencar o tráfico de armas a nível nacional e internacional que visa assegurar a prática dos demais tipos penais, uma distribuição complexa de competências que configura-se como elemento determinante para a atuação a nível internacional destas sociedades criminosas dando a estas um formato de “empresa”, emprego de alto grau de inteligência.

Vale dizer, para a formação e consolidação de uma organização criminosa é necessário o emprego de raciocínio lógico uma vez que o gerenciamento do grupo pressupõe uma ordenação e coordenação e por fim os altos valores monetários movimentados por estes criminosos. 

2.2 O Objeto do Tráfico: drogas ilícitas

Como já dito alhures, a organização criminosa possui caráter transnacional e tem como finalidade a obtenção de lucros através de meios ilícitos. Com efeito, qualquer objeto poderá versar como fonte de renda de determinada organização criminosa, porém, verifica-se que as formas mais comuns de tráfico são: armas, entorpecentes, vestuários (ressalte-se que esta forma versa sobre marcas de grifes famosas), calçados etc.

Interessa-nos aqui os entorpecentes enquanto objeto de lucro das organizações criminosas. Vale ressaltar que esta forma de comércio ilícito ganha relevo com o tráfico de armas, isto é, o segundo assegura a prática contínua do primeiro.  

2.3 Os Efeitos dos Entorpecentes no Sistema Biológico Humano

Segundo Genival Veloso de França entende-se como tóxicos ou drogas “um grupo muito grande de substancias naturais, sintéticas ou semi-sintéticas que podem causar tolerância, dependência e crise de abstinência” (FRANÇA, 2008, p. 321). Como corolário, a toxicofilia é definida como: “um estado de intoxicação periódica ou crônica, nociva ao indivíduo ou a sociedade, produzida pelo repetido consumo de uma droga natural ou sintética.” (FRANÇA, 2008, p. 321)

Levando-se em consideração que o ordenamento jurídico-penal resguarda em seu âmago os bens julgados vitais, ou ao menos, mais importantes para o desenvolvimento do ser humano, aduz-se que ao instituir como ilícito o comércio de entorpecentes, o legislador visou não somente combater o enriquecimento ilegal ou crimes de ordem tributária, mas sobretudo, resguardar a saúde, a vida e o bem estar da coletividade. Tal assertiva justifica-se em virtude dos malefícios oriundos do uso de entorpecentes.

Neste sentido, será laborado de modo específico os multifários efeitos que os entorpecentes provocam no organismo humano. 

2.3.1 Maconha

Esta espécie de entorpecente é extraída das folhas da Cannabis Sativa, planta de coloração verde escura, dióica e, quando seca possui odor forte e característico. O consumo da maconha dá-se através de xaropes, pastilhas, infusões, folhas in natura, cachimbos, e principalmente, através de cigarros.

Muito embora o uso da maconha não cause tolerância, dependência nem tão pouco crises de abstinência; as consequências do seu uso variam desde a plena prostração até o desencadeamento de um comportamento agitado e agressivo. Via de regra, os usuários apresentam lassidão, olhar apático, falta de orientação no tempo e no espaço, comportamento excêntrico e perda de ambição. São comuns também, a ocorrência de ilusões como prolongamento de vida, isto é, sensações semelhantes a de flutuar sobre nuvens.

O princípio ativo da Cannabis Sativa é o tetraidrocabinol (THC), que pode ser representado quimicamente como: 

 

 

 

 

 

 

O THC ainda é alvo de pesquisas científicas em razão de a sua ação limitar-se basicamente no sistema nervoso central. Pesquisas recentes, indicam que o princípio ativo da Cannabis Sativa inibe a atividade da adenilato ciclase (esta enzima é responsável pela conversão do ATP no AMP cílico, este último, regula numerosos processos neuroniais – inclusive a excitação). Infere-se daí, uma das principais justificativas do comportamento de lassitude e apatia por parte do usuário.

Em suma, a maconha se comparada a outros entorpecentes apresenta um grau de nocividade relativo. Por este motivo, os usuários deste entorpecente apresentam maior facilidade para reabilitação se comparados com usuários de outros entorpecentes. 

2.3.2 Heroína

A heroína consiste em uma droga sintética que se caracteriza sob o aspecto de um pó branco cristalino derivado da morfina. O seu consumo ocorre através de injeções (pó diluído) e cigarros (misturado ao fumo). Trata-se de um entorpecente pouco utilizado no Brasil se comparado a outros entorpecentes. Porém, o efeito da morfina no organismo humano é extremamente desastroso como bem esclarece Genival Veloso de França:

A morfina é um alcalóide derivado do ópio e apresenta-se em forma de liquido incolor. Esse narcótico é utilizado sob a forma de injeção intramuscular, aplicada nas mais diferentes regiões do corpo, principalmente, nos braços, no abdome e nas coxas. […] Na fase final, premido pela necessidade da droga, aplica-as sem assepsia e vai criando ao longo do corpo, uma série de pequenos abscessos. Ou então, esteriliza a agulha na chama de uma vela ou de um fósforo, produzindo nas regiões picadas inúmeras tatuagens provenientes da fuligem. No início do uso da droga, o paciente sente-se eufórico, disposto, extrovertido, loquaz e alegre. Esta fase é chamada de “lua-de-mel da morfina”. Com o passar dos tempos, o viciado emagrece, torna-se pálido, de costas arqueadas e cor de cera. Envelhece precocemente, a pele se enruga e o cabelo cai. Surgem a insônia, os suores, os tremores, a angústia, o desespero, a impaciência, a impotência sexual e os vômitos. […] vindo a falecer quase sempre de tuberculose ou problemas cardíacos. (FRANÇA, 2008, p. 322-323). 

O efeito da heroína é semelhante ao da morfina, porém, muito mais potencializado se comparado a esta. Vale dizer, o uso da heroína propicia em poucas semanas a dependência, em meses o organismo do dependente suscita por mais de uma dose de heroína. A morte sobrevém rapidamente, geralmente, acompanhada dos sintomas mais comuns como: náuseas, vômitos, delírios, convulsões, e sério comprometimento do sistema nervoso central. Quimicamente, a heroína é representada pela seguinte fórmula: 

 

 

 

 

 

 

2.3.3 Cocaína

A cocaína é um alcaloide extraído das folhas da coca (Erythroxylum coca). Trata-se de um nartótico na forma de um pó branco de efeito estimulante, resultante de diversas filtragens e processos de decantação envolvendo, na maioria das vezes, o extrato da folha da coca, gasolina, ácido sulfúrico, soda cáustica, amônia e óxido de cálcio. Os narcotraficantes podem utilizar outros componentes afim de tornar o processo de fabricação desta droga mais rentável, como por exemplo, o cimento. Desta feita, tem-se a seguinte representação química deste alcalóide:

 

 

 

 

 

Os efeitos desta droga no organismo humano são irreversíveis, uma vez que, esta age no sistema nervoso central, deixando desta forma, sequelas como taquicardias, estados depressivos, alucinações visuais e tácteas. Neste contexto, esclarece Genival Veloso de França, a saber:

Colocado na mucosa nasal por aspiração, é esse alcalóide absorvido rapidamente para o organismo. A continuação do uso da cocaína por via nasal termina perfurando o septo nasal, lesão esta muito significativa para o diagnóstico da cocainomania. Um dos fatos que mais chama a atenção num viciado por essa droga é o contraste arrasador entre uma decadência física lamentável e um humor imoderado e injustificável. Os olhos do drogado por cocaína são fundos, brilhantes, de pupilas dilatadas. Há um tremor quase generalizado, mais predominante nos lábios e nas extremidades dos membros. Tiques nervosos e excitações repentinas. Na intoxicação aguda pela cocaína o paciente apresenta uma série de sintomas, quais sejam: a) psíquicos: excitação motora, agitação, ansiedade, confusão mental e loquacidade; b) neurológicos: afasia, paralisias, tremores e, às vezes, convulsão; c) circulatórios: taquicardia, aumento da pressão arterial e dor precordial; d) respiratórios: polipnéia e até síncope respiratória; secundários: náuseas, vômitos e oligúria. (FRANÇA, 2008, p. 323). 

O consumo da cocaína dá-se por inalação, fricção gengival ou através de injeções. O índice de usuários deste narcótico é considerado elevado no território nacional se comparado à outras drogas como: a cola, o LSD, o cristal e o oxi.  

2.3.4 Crack

O crack é um entorpecente oriundo da pasta base da cocaína. Caracteriza-se pelo formato de uma pedra de coloração esbranquiçada. O usuário a consome através de cachimbos, daí o seu nome, isto é, no momento em que o usuário fuma a pedra, ela emite ruídos semelhantes a estouros “crack”.

Por ser um subproduto da cocaína, esta droga é comercializada por um valor menor se comparado à outros entorpecentes. Porém, seu efeito no organismo humano possui curto lapso temporal, mas de altíssimo potencial destrutivo. Assim como a cocaína, o crack atua no sistema nervoso central, provocando efeitos semelhantes aos da droga que o origina.  

2.3.5 Cola

A princípio a cola não é considerado um narcótico, porém devido a sua constituição ser basicamente de hidrocarbonetos e, a sua ação dá-se sobre o sistema nervoso central, os seus efeitos equiparam-se aos de outros entorpecentes.

O efeito da cola no organismo humano possui um curto lapso temporal, podendo o usuário apresentar desde um estado de euforia à alucinação. O estágio avançado de dependência pode acarretar lesões na medula óssea, nos rins, no fígado e nervos periféricos. Por ser uma substância altamente volátil, o consumo ocorre por inalação.  

2.3.6 LSD

Dentre todos os tipos de entorpecentes de cunho alucinógeno, este é o de maior potencial. Trata-se de um entorpecente semi-sintético extraído da dietilamina do ácido lisérgico, cuja representação química dá-se da seguinte forma: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O viciado em LSD apresenta intensa depressão e fadiga, além de uma feição pálida e triste. Ainda no tocante às transformações psíquicas, nota-se perturbação da percepção do mundo exterior, delírios, alucinações, pesadelos e constantes quadros de crises convulsivas que, nos estágios mais agudos, pode conduzir o dependente químico ao coma.

Segundo Genival Veloso de França (FRANÇA, 2008, p. 323), pesquisas recentes concluíram que o LSD produz reações que, podem ser classificadas em quatro grupos.

O primeiro grupo é denominado de reação megalomaníaca, isto é, o dependente tem a impressão de que sua força e sua possibilidade aumentam de forma ilimitada.

O segundo grupo opõe-se ao primeiro. O dependente apresenta estados de depressão profunda, angústia e solidão; chegando até a tentativa de suicídio.

Quanto às reações classificadas no terceiro grupo, pode-se elencar as perturbações paranóicas, isto é, o dependente sente-se perseguido e por este motivo torna-se agressivo em face das pessoas que o cerca.

No quarto e último grupo inferem-se os sintomas semelhantes às doenças mentais, tais como: ilusões, alucinações, irracionalidade, sentimentos absurdos e incapacidade de se ordenar no tempo e no espaço.

A forma de consumo deste entorpecente ocorre em forma de pequenos tabletes ou em pedaços de cartolina umedecidos. Muito embora o consumo desta droga seja considerado baixo no âmbito nacional, se comparado a outros narcóticos, a sua ocorrência geralmente dá-se em festas (particulares, boites, clubes etc.) e festivais musicais. 

2.3.7 Cristal ou Ice

No âmbito nacional esta nova droga é denominada de cristal, porém, no exterior recebe a nomenclatura de ice.

A maioria dos entorpecentes obteve primeiramente a aceitabilidade nos grandes centros urbanos, para que posteriormente, viessem a adquirir relevo nas cidades do interior. Com esta droga, porém, o caminho foi inverso. Devido a este motivo, este entorpecente vem adquirindo, nos últimos anos, grande aceitação, em especial nas capitais. Segundo a polícia da cidade de Portland (Oregon – EUA), o consumo de ice aumentou significativamente nos últimos dez anos, isto é, estima-se que cerca de doze milhões de pessoas já fizeram uso deste narcótico. No Brasil, os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro já constataram usuários de ice.

Trata-se de um entorpecente sintético derivado da anfetamina. Razão pela qual, pode-se classificá-la como metanfetamina. Quimicamente, a metanfetamina é conhecida pela seguinte representação:

 

 

 

 

 

A produção ocorre em laboratório, por isso, o seu custo é elevado se comparado a outros entorpecentes, isto é, enquanto uma pedra de crack é comercializada com um valor que varia de cinco a sete reais, um quarto de grama de ice é vendido por um valor que varia de quarenta e cinco a cinqüenta reais. O que justifica o perfil dos usuários desta metanfetamina: jovens com idade entre quinze e trinta anos, pertencentes à classe média alta.

O consumo desta droga ocorre por inalação, injeção ou ingestão. Entrementes, os efeitos resultantes duram até doze horas após o uso da droga e combinam a hiperatividade da cocaína e as alterações psíquicas do LSD, motivo pelo qual, o ice é considerado dez vezes mais potente do que a cocaína.

Dentre as diversas alterações desencadeadas pelo ice, pode-se elencar: taquicardia, hipertensão, euforia, insônia, perda de apetite, coceiras, alucinações, pequenas equimoses, envelhecimento precoce e, após anos de uso, o usuário apresenta uma aparência depressiva. 

2.3.8 Oxi

O oxi surgiu como uma alternativa ao crack, isto é, aquele consiste num entorpecente mais barato e mais potente do que este.

Trata-se de uma droga que se apresenta sob a forma de pedra, composta pela pasta base de cocaína, cal virgem e gasolina. Razão pela qual, a sua coloração varia de acordo com a concentração de substâncias nela contida, isto é, quando mais clara (branca) for a pedra de oxi, maior será a quantidade de cal empregado na produção deste entorpecente.

Por outro lado, se a pedra apresentar uma coloração amarelada significa que foi utilizada grande quantidade de gasolina para a obtenção do produto final. Mas, se a pedra de oxi apresentar-se na cor roxa, significa que houve uma mistura equânime dos componentes.

Por ser um entorpecente considerado duplamente mais potencializado do que o crack, os efeitos colaterais duram por um curto lapso temporal, o que justifica o seu alto potencial de dependência.

Dentre os efeitos, pode-se elencar: o alto grau de euforia (isto porque o índice de concentração de pasta base de cocaína é mais elevado do que no crack), hipertensão, queimaduras no pulmão (ao fumar, o usuário envia o cal e as substâncias tóxicas da gasolina para o pulmão, acarretando desta forma, queimaduras e, posteriormente, a falência do órgão), alto risco de infarto e acidente vascular cerebral. Em longo prazo, o uso desta droga causa perda de memória e redução da capacidade de raciocínio. 

2.4 Tráfico de Entorpecentes: traficante e usuário vistos sob o aspecto legal 

Diversos agentes, no intuito de consumarem determinada conduta típica, valem-se de outros tipos penais. Não é diferente com o narcotráfico. Com o alvitre de exercerem esta atividade ilícita, os narcotraficantes não poupam esforços a fim de garantir, expandir e aumentar os seus lucros.

Inferem-se daí, os caracteres de complexidade e subsistência (caracteres estes, que serão laborados oportuno tempore), ou seja, para consumarem a conduta típica, os narcotraficantes valem-se de outras condutas como o tráfico de armas, homicídios, torturas, furto, roubo, falsidade ideológica dentre outros. Neste quadrante, torna-se imperioso salientar que os dispositivos penais aplicáveis variam de acordo com a conduta típica de cada agente bem como seus antecedentes criminais, o que nos remete ao casuísmo.

Entrementes, impõe-se laborar os dispositivos legais julgados de maior relevância para a temática em questão.

Tecidas as considerações conceituais acerca do crime organizado, impõe-se analisar, de forma literal e taxativa, o dispositivo constitucional do artigo 5ª, XLIV que institui como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

O crime organizado consiste numa ação típica praticada na maioria das vezes por civis, entrementes, esta conduta não exclui a conivência de determinados agentes públicos, inclusive policiais cujos meios empregados para a obtenção da atividade fim (lucro e poder), atentam contra os preceitos constitucionais, a ordem pública, o Estado de Direito e o Estado Democrático.

Vale dizer, as condutas típicas praticadas pelas organizações criminosas, tais como: roubos, furtos, homicídios, torturas, ameaças dentre outros, atentam contra a saúde e a segurança pública, ou seja, contrapõe-se aos preceitos constitucionais do artigo 1º, III e artigo 5º incisos, II, III, XI, XX, XXXVII, XLV e LIII.

A atuação de organizações criminosas, implica necessariamente e consequentemente, em condutas pautadas na coerção, na violência extrema, isto é, a atuação dos narcotraficantes representa um poder paralelo cujas punições são estabelecidas interna corporis.

Visando coibir esta conduta típica, e por outro lado, resguardar os direitos humanos considerados fundamentais, o legislador ordinário penalizou, de forma constitucional e, em caráter inafiançável o fato de vários indivíduos se associarem com escopo criminoso, e cujos meios empregados para consumação de tal fato delituoso fulcram-se na violência extrema.

Não obstante, erige-se a Lei 9.034 de 03 de maio de 1995 que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.

Em detida análise da referida norma penal, constata-se um recrudescimento penal em face dos agentes que contribuem incisivamente na formação e continuidade da sociedade criminosa. Note-se que, apesar de haver grande receptividade do Direito Penal Mínimo por parte da doutrina penal contemporânea, não devem os operadores do Direito – especialmente, os que militam na seara penal – cometerem o equívoco de confundir a aplicação do Minimalismo Penal com a inafastabilidade do recrudescimento penal.

Trata-se aqui, da aplicabilidade do principio constitucional da proporcionalidade das penas, princípios este, esposado pelo Direito Penal Libertário. Deve-se imputar uma pena mais severa aos crimes de maior teor ofensivo ao corpo social, e penas mais brandas aos de menor potencial ofensivo.

Como corolário, torna-se dever do Estado, enquanto detentor do Ius Puniendi, aplicar a punição equivalente ao delito cometido. Não somente pelo fato dos cidadãos pagarem impostos, ou por uma questão de aplicabilidade dos direitos fundamentais, tão pouco pelo fato de o Estado ser um ente social organizado, mas por todos estes fatores citados e inúmeros outros que, reunidos, tornam os cidadãos credores do Direito à paz.

Neste contexto, prescreve com percuciência Winfried Hassemer:

Es a partir de determinados limites (que también son variables) que no se toleran las desviaciones que van más allá de la norma o que llegan a lesionarla. […] La sanción no es únicamente la imposición de un mal; tal como de forma tan bella sostienen los penalistas, la sancion es ante todo la respuesta a la lesión de una norma y esto tiene una importante consecuencia. La lesión de una norma tiene que fundamentarse en una relación determinada que está cerca tanto del aspecto comunicativo como del normativo: la sanción se debe basar en la infracción de una norma y debe estar estrechamente vinculada a ésta, si es que en verdad quiere ser la respuesta a esa afectación. La sanción no debe ser la pura y unilateral imposición de un mal, sino debe manter un equilibrio con el daño causado. Por eso es que tiene que suceder la lesión, por lo cual tiene que darse prisa de tal manera que se aplique consecutivamente a la afectación causada y de esta forma pudeda ser, todavía, experimentada como una respuesta a la lesión producida. Luego la pena no puede superar en su intensidad a la intensidad de la lesión de la norma causada, por lo que debe ser proporcional a ésta, es decir, debe ser equitativa. […] (HASSEMER, 2003, p. 13 e ss.). 

Se por um lado, constata-se a aplicabilidade da proporcionalidade das penas, por outro, vislumbra-se a hipótese de arrependimento posterior prevista precisamente no artigo 6º da referida norma penal. Trata-se da redução de um a dois terços da pena nas hipóteses em que o agente colaborar com o processo de investigação penal.

Outrossim, não se deve olvidar que a Lei 8.072/90 que versa sobre crimes hediondos dispõe, em seu artigo 8º parágrafo único que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de 1 (um) a 2 (dois) terços.

A respeito do parágrafo único do artigo 8º, impõe-se tecer duas considerações. A primeira versa sobre mais uma infelicidade do legislador ao ser omisso na elaboração do dispositivo legal. Neste caso específico, o erro foi mais gravoso do que na Lei 9.034/95 onde constata-se a ausência conceitual de organização criminosa. Na Lei de crimes hediondos, sequer há a distinção entre quadrilha e bando, pior, não há previsão legal dos crimes cometidos pelas organizações criminosas. Infere-se daí, a segunda questão: na hipótese de crimes cometidos por organizações criminosas serão estes, sempre regulados por analogia? Tal tratamento poderia ensejar injustiças?

Levando-se a cabo que, a interpretação da norma penal deverá sempre ser feita stricto sensu e que os diplomas penais em questão são omissos, resta aos operadores do Direito valerem-se dos conceitos doutrinários e da analogia; o que não escusam possíveis injustiças.

Em suma, aplicam-se no que couber, o Código de Processo Penal, Código Penal, a Lei de Combate ao Crime Organizado, a Lei de Crimes Hediondos, a Lei institutiva do SISNAD, e as demais normas penais vigentes.

Entrementes cumpre ressaltar que, no que tange ao tráfico de entorpecentes, as condutas criminalizadas são, basicamente, o transporte e a produção de narcóticos, ambos insculpidos nos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/06. A referida Lei de combate às drogas inovou ao descriminalizar o mero uso de entorpecentes, isto é, o usuário passa a ser tratado como um doente que necessita de tratamento médico e psiquiátrico.

A descriminalização visa tão somente resguardar o direito dos dependentes químicos, que estão em um estado de vitimização, a um tratamento médico adequado.

 

3 O TRAFICANTE SOB O ASPECTO VITIMIZADOR: A AUSÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ENQUANTO PROMOTOR DA IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL.

Consiste em um “poder dever” do Estado Democrático de Direito promover a erradicação das desigualdades sociais e da criminalidade, cuja finalidade é a promoção do bem comum e da justiça social.

É dever do Estado promover políticas públicas de repressão e prevenção à criminalidade. Dentre ambas medidas, as mais importantes classificam-se como as políticas de prevenção. Prevenir a criminalidade, consiste, sobretudo, em promover de forma contínua a dignidade humana, isto é, promover os indivíduos que encontram-se em uma situação de marginalização social, ou simplesmente, de pobreza, de miserabilidade.

Obviamente, não se intenta demonstrar aqui, que o único fator decisivo do caráter criminógeno seria a pobreza ou a miserabilidade, mesmo porque, este é somente um dos multifários fatores contributivos para o caráter delitivo. Entrementes, a efetivação dos preceitos fundamentais-constitucionais fulcrados na elevação dos princípios jurídicos e valores humanos, contribuem significativamente para a redução da propensão à conduta delituosa.

Vale dizer, o narcotráfico consiste em uma opção racional, outrossim, resta-nos indagar: qual (is) o (s) motivo (s) desta opção?

As razões da conduta criminosa não se radicam somente na figura do criminoso, mas estende-se a toda a comunidade, especialmente ao Estado enquanto promotor e fiscalizador dos direitos e garantias fundamentais e, detentor do Ius Puniendi. Saliente-se que a responsabilidade do Estado é majorada se comparada a de um cidadão qualquer, isto porque aquele reúne em seu cerne o caráter jurídico e político, ou seja, o Estado resguarda em seu cerne o poder dever de legislar e aplicar a norma aos casos sub iudice.

Logo, a ausência do Estado, ainda que de forma parcial, na efetivação dos preceitos constitucionais da equidade e da justiça social consiste em um dos fatores que impulsionam a opção racional do delito.

Gerando assim, um estado de dupla vitimização, qual seja: em primeiro plano, o narcotraficante torna-se vítima de uma atuação claudica do ente estatal, o que o conduz (de forma consciente e racional) à conduta delitiva na expectativa de adquirir de forma rápida e fácil dinheiro e poder; e em segundo plano, torna-se vítima da própria conduta criminosa uma vez que, o crime organizado figura-se como um “caminho sem volta”, isto é, prevalecem nas sociedades criminosas os tribunais e juízes de exceção, um autêntico poder paralelo.

Uma vez instaurado o estado de dupla vitimização, ou simplesmente, estado sobrevitimizador, verifica-se o aumento da complexidade fática. Vale dizer, uma vez erigida a sobrevitimização torna-se mais difícil reverter tal situação em virtude da multiplicidade de problemas oriundos do referido estado.

Entrementes, apesar de demonstrar-se complexo, não possui, e nem poderia possuir, o caráter de irreversibilidade. O estado sobrevitimizador pode ser minimizado, ou até mesmo erradicado, observando-se da forma mais plena possível os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da justiça social e da igualdade de todos perante a lei.

Neste sentido, elucida Celso Ribeiro Bastos a respeito da dignidade humana, a saber:

A referência à dignidade da pessoa humana parece conglobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam is individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social. […] Portanto, o que ele está a indicar é que um dos fins do Estado é propiciar as condições para que as pessoas se tronem dignas. É de lembrar, contudo, que a dignidade humana pode ser ofendida de muitas maneiras. Tanto na qualidade de vida desumana quanto na prática de medidas como a tortura, sob todas as suas modalidades, podem impedir que o ser humano cumpra na terra a sua missão, conferindo-lhe um sentido. (BASTOS, 2001, p. 472-473). 

Na mesma esteira, propala o referido constitucionalista a respeito da justiça social, in verbis:

A Justiça é um dos valores fundamentais, transcendendo o próprio direito. […] O homem revolta-se contra a injustiça. O dar a cada um o que lhe pertence parece constituir-se princípio mínimo para a convivência humana. […] Daí ter o Estado um papel importante na restauração desses desequilíbrios e desigualdades. Mas o que o Texto Constitucional impõe não é aquela igualdade acenada em países autoritários, e sim igualdade compatibilizada com a liberdade. Isso significa dizer que um valor não pode ser obtido pelo esmagamento do outro. No entanto, para que as injustiças sociais sejam vencidas, é necessário que se supere uma concepção egoísta de vida. Daí a Constituição agregar aos dois valores já referidos a solidariedade. (BASTOS, 2001, p. 490-491). 

Por derradeiro, Eros Grau sustenta que:

A igualdade, desde Platão e Aristóteles, consiste em tratar-se de modo desigual os desiguais. Prestigia-se a igualdade, no sentido mencionado quando, no exame de prévia atividade jurídica em concurso público para ingresso no Ministério Público Federal, dá-se tratamento distinto àqueles que já integram o Ministério Público. (MS 26.690, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 03/09/08, DJE de 19/12/08). 

Em suma, não se intenta sustentar que a criminalidade está arraigada somente ao potencial aquisitivo, educacional ou cultural, pois se assim fosse, não existiria criminalidade na classe média alta. Pelo contrário, intenta-se demonstrar que estes são apenas uma parte de uma gama de elementos que interferem no potencial criminógeno, e que a falta de oportunidades para adquirir e manter uma vida digna pode, em alguns casos, ensejar a delinquência.

Vale ressaltar, o crime reside também em uma opção racional e modo de subsistência. A promoção do cidadão, enquanto ser dotado de dignidade, interfere significativamente na probabilidade à delinquir, isto é, reduz significativamente a chance de determinado indivíduo ingressar na criminalidade em busca de potencial aquisitivo.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tom de síntese, pode- se constatar que o conceito de crime organizado não possui caráter estático, mas assim como o próprio fato, possui em seu âmago o caráter mutagênico.

Sob outro prisma, vislumbra-se que a intenção do legislador ao tipificar o tráfico, a produção, o armazenamento ou o transporte de entorpecentes justifica-se tão somente em virtude do poder-dever do Estado de proteger a saúde e a segurança pública. Vale dizer, o efeito nocivo que o narcotráfico produz põe em risco o bom funcionamento do corpo social, isto é, a violência física e psíquica, assim como os danos à saúde desencadeados pelo uso de narcóticos, afeta não somente o usuário, mas todos os indivíduos que o cercam.

Com efeito, constata-se o estado de sobrevitimização que pode ser compreendido como o fato de a vítima tornar-se vítima dentro de um quadro já instaurado de vitimização. Tal estado aqui mencionado pode ser traduzido também como o acúmulo de diversos fatores vitimizadores em um único indivíduo. Trata-se de um problema complexo e pouco investigado na seara criminológica, isto é, constata-se que grande parte dos criminólogos estudam pontos estratégicos ou partes específicas da mesma, evitando, assim, conceber a plúride de fatores vitimológicos que podem recair sobre determinado indivíduo.

Neste diapasão, verifica-se que o estado de sobrevitimização não se limita somente na figura do narcotraficante que opta pelo crime como modo de subsistência (questão esta que será melhor laborada no artigo intitulado “O TRÁFICO DE ENTORPECENTES COMO POSTULADO FENOMÊNICO SUBSISTENCIAL”), mas estende-se ao usuário que torna-se vítima do crime organizado e da dependência química.

O narcotraficante, ainda que atue na seara criminal por uma opção racional, utilizando o narcotráfico como modo de subsistência, ainda sim, há por detrás desta atuação ilícita diversos motivos que o impulsionaram a delinquir. Este é o caráter sobrevitimizador que recai sobre o narcotraficante, ou seja, ele é vítima não somente das circunstâncias sociais, culturais, educacionais, econômicas ou genéticas, mas também da própria coerção imposta pela organização criminosa; pelo dever que há entre os membros desta de permanecerem fiéis à própria organização.

No mesmo sentido ocorre com o dependente químico, porém em situação mais gravosa. Este torna-se vítima não somente do próprio uso de narcóticos que ceifa a sua vida de forma paulatina, mas também da discriminação, da coerção imposta pelos narcotraficantes e até mesmo (em determinados casos) vítima do abandono familiar.

O legislador acertou ao conceber o dependente químico como um doente e não como um delinquente. De fato, a dependência química é uma patologia que surte efeitos psicológicos negativos no seio familiar do próprio dependente. Entrementes, cabe ao legislador evoluir no que tange à adequação da lei 9.034/95, bem como no Código Penal, no sentido de, estabelecer o conceito de organização criminosa e diferenciá-lo de quadrilha e bando. 

 

REFERÊNCIAS

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001, v. 1. 

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário da língua portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. 

HASSEMER, Winfried. Por qué no debe suprimirse el Derecho Penal. México: Instituto Nacional de Ciencias Penales, 2003. 

LYRA, Roberto. Sociologia Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1969. 

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: Aspectos gerais e mecanismos legais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 

PELEGRINI, Angiolo; COSTA JR, Paulo José da. Criminalidade organizada. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2008. 

 

NOTAS DE FIM

1 Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Processo Civil Aplicado pelo CEAJUFE/IEJA. Bacharel em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Professor e Pesquisador da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor e Pesquisador do Centro Universitário Newton Paiva. Professor e Pesquisador da Faculdade de Minas (FAMINAS-BH). Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante dos Grupos de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”.  E-mail para contato: cristiankiefer@yahoo.com.br 

2 Bacharelando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Monitor de Hermenêutica e Argumentação Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e do Grupo de Pesquisa Direito, Constituição e Processo “José Alfredo de Oliveira Baracho”. E-mail para contato: emmanuelversiani@hotmail.com