Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Fernando Gonçalves Coelho Júnior[1]
Aline Serakides Gonçalves[2]

 

RESUMO: Com a evolução e modificação do conceito de família, bem como o surgimento de nova modalidade de filiação, qual seja, a socioafetiva, tem-se que a paternidade não decorre somente de laços consanguíneos. A Constituição da República Federativa do Brasil prevê expressamente o princípio da igualdade de filiação, o qual proíbe quaisquer designações discriminatórias referentes à filiação, não podendo os filhos receber tratamento diferenciado por sua origem, seja ela genética ou não.  A todos os filhos é garantido o reconhecimento da paternidade, inclusive, após a morte do suposto pai, sendo tal direito relacionado ao princípio constitucional da dignidade humana, configurando-se direito fundamental. Entretanto, em relação à paternidade socioafetiva não há previsão expressa no ordenamento jurídico da possibilidade de seu reconhecimento post mortem.

 

PALAVRAS-CHAVES: paternidade socioafetiva, filiação, reconhecimento post mortem.

 

Áreas de interesse: Direito Civil

 

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente estudo consiste em analisar a possibilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, sob a luz dos princípios constitucionais, quais sejam, o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da igualdade de filiação, haja vista a lacuna jurídica acerca do assunto.

Com os avanços e a modificação do conceito de entidade familiar, no qual a Constituição confere proteção não só à família constituída pelo casamento, mas também à união estável e família monoparental, bem como proíbe quaisquer designações discriminatórias à filiação, conferindo assim, proteção a uma vida digna, se faz necessário o estudo e análise sob diferentes prismas do surgimento de novos conceitos, que melhor retrata a realidade atual, sendo um deles a filiação socioafetiva.

A lei não é muito clara ao explicitar que, o parentesco poderá resultar da consanguinidade ou outra origem, o que acarreta entendimentos jurisprudenciais e doutrinários no sentido de que a parentalidade socioafetiva se enquadraria num parentesco de outra origem.

Segundo Maria Berenice Dias (2009), a expressão filiação socioafetiva significa a consagração de novo elemento estruturante do direito das famílias, no qual a família começou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial. Assim, o conceito de paternidade ampliou-se, e passou a compreender o parentesco socioafetivo, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal.

Assim, em torno dessa modificação na concepção jurídica de família, é de suma importância o estudo do referido tema, analisando o caso concreto e adequando a norma á realidade, e, finalmente, preenchendo uma lacuna jurídica.

 

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE FAMÍLIA 

Para melhor explicar o significado da expressão família, é mister analisar o conceito sob vários prismas, bem como a modificação e a evolução que a palavra sofreu ao longo da história da humanidade.

Ainda no Direito Romano, a família era fundada na autoridade soberana de um chefe e um grupo de pessoas submetidas ao seu poder ilimitado, a qual tinha a forma patriarcal. Assim, mulheres, filhos e servos sujeitavam-se ao poder do pai, este, era o único sujeito de direitos, e poderia dispor livremente deles e seus bens.

Nesse sentido, assinala Edinês Maria Sormani Garcia:

Em Roma, a família era organizada sobre o princípio da autoridade e abrangia quantos a ela estavam submetidos. Então, a família era definida como o conjunto de pessoas que estavam sob a patria potestas do ascendente comum vivo mais velho. Observa-se que o conceito de família independia da consanguinidade. (GARCIA, 2003,P. 57). 

Conforme preleciona Maria Berenice Dias (2009, p. 28), “a família patriarcal não subsistiu com a Revolução Industrial, haja vista que, com o aumento da necessidade de mão de obra, a mulher precisou ingressar no mercado de trabalho, houve grande migração das famílias do campo para os grandes centros industriais, que passou a viver em espaços menores, e levou à aproximação de seus membros. O homem deixou de ser a única fonte de subsistência da família, esta se tornou nuclear, restrita ao casal e sua prole, prestigiando-se o vínculo afetivo entre eles.”

Dessa forma, há uma nova concepção de família, a qual está pautada nos laços de afetividade e solidariedade entre seus membros, e não mais na hierarquia existente entre eles, o que não priorizava a dignidade da pessoa humana.

A família, reconhecida no Código Brasileiro de 1916, era aquela constituída exclusivamente pelo matrimônio. Seus integrantes eram diferenciados por sua origem. Assim, os únicos filhos reconhecidos pela legislação, sujeitos de direitos, eram os legítimos, ou seja, aqueles havidos da relação de casamento, bem como a presunção de paternidade, eram exclusivamente da filiação biológica.

Nesse sistema, o homem, ainda exercia sua posição anterior de chefe de família, com algumas restrições. Havia a submissão da mulher ao marido, tido como “chefe da casa”, sendo esta considerada relativamente capaz, e dependendo da autorização do marido para que exercesse qualquer profissão.

Todavia, esta visão foi alterada no decorrer do tempo, e, atualmente, desapareceram da legislação brasileira quaisquer designações discriminatórias referentes aos filhos havidos ou não da relação de casamento, bem como todos os membros da família, passaram a ter proteção igualitária, prevalecendo a igualdade entre homem e mulher, sendo vedada qualquer forma de discriminação entre eles.

Atualmente, a Constituição da República Federativa do Brasil, estabelece os mesmos direitos para todos, não podendo os filhos ser discriminados por sua origem, seja ela genética ou não, consagrando o princípio da igualdade de filiação, e privilegiando o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim como, confere proteção não só à família constituída pelo casamento, mas também à união estável e família monoparental. Senão vejamos: 

Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. […]

§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 

No entanto, juridicamente, a questão da possibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva, ou seja, aquela estabelecida pelos laços de afeto, e não genéticos, ainda é controversa, haja vista que não há codificação em vigor que a reconheça, embora existam jurisprudências e pensamentos doutrinários, que perfilhem essa possibilidade.

 

3  PATERNIDADE

3.1  Biológica

O ordenamento jurídico civil pátrio (art. 1607 do Código Civil) prevê a possibilidade do reconhecimento da paternidade biológica, qual seja, aquela que decorre de vínculo consanguíneo, dos filhos havidos ou não na constância da relação conjugal.

Outrossim, o  Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), em seu art. 27, garante o reconhecimento do filhos, sendo um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado, inclusive, após a morte do suposto pai.

 

3.2  Outras possibilidades

3.2.1 Socioafetiva

Atualmente, com o surgimento de nova estrutura de família, a qual não mais se constitui pelo matrimônio, “passou-se a reconhecer a afetividade como elemento constitutivo da família, tal mudança refletiu-se também nas relações de filiação, que também passou a ser identificada pelo vínculo de afeto, o que acarretou no desligamento da origem biológica no estado de filiação”, pensamento este, cunhado por Maria Berenice Dias (2009, p. 331).

A paternidade socioafetiva está fundada na “posse do estado de filho”, o que significa dizer que a mencionada paternidade decorre da manifestação de vontade de ser pai, por meio do vínculo de afeto estabelecido. É cediço que o genitor não é somente aquele que fornece seu material genético, e sim, a pessoa que cria, dá amor e carinho, isto é, o que detém a referida “posse do estado de filho”.

 

3.2.2  Post Mortem

No Ordenamento Jurídico Brasileiro não há vedação ao reconhecimento póstumo da paternidade socioafetiva, isto é, após a morte do suposto pai afetivo, bem como a possibilidade de seu reconhecimento se depreende da parte final do artigo 1593 do Código Civil, que assim dispõe: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2012, p. 253). Verifica-se, assim, que a modalidade de paternidade socioafetiva constitui parentesco de outra origem, sendo admissível o seu reconhecimento póstumo, cujo efeito é o registro da filiação no cartório de registro de pessoas naturais, com todas as consequências jurídicas da filiação.

A possibilidade do reconhecimento da citada paternidade encontra respaldo precipuamente no princípio da igualdade de filiação, previsto constitucionalmente,  o qual veda qualquer tratamento discriminatório relativo à filiação. “Apesar da lei esquecer a filiação socioafetiva, para que seja atingido um modelo ideal de igualdade absoluta de filiação” é necessário que não haja nenhum resquício de diferenciação entre os filhos, sejam eles de origem genética, adotiva ou afetiva. (MADALENO, 2011, p. 96).

Igualmente, a mencionada possibilidade está fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, o maior princípio previsto no ordenamento jurídico pátrio, o qual não comporta qualquer forma de tratamento diferenciado às diversas formas de filiação, haja vista que, desse princípio decorre todos os outros direitos fundamentais do homem, sendo ele fundante do atual Estado de Direito. Segundo Ednês Maria Sormani Garcia (2003, p. 32), “de valor supremo, tal princípio atrai todos os direitos fundamentais do homem, ser humano, seja de qual origem for (…).”

 

4  POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL 

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, vem, entendendo, pela possibilidade jurídica do reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, como demonstra a recente decisão proferida no processo de nº 0063321-24.2010.8.13.0518, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cujo Relator foi o Desembargador Alberto Vilas Boas.

 

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, verifica-se que, com a evolução e modificação das entidades familiares, o que acarretou no surgimento de nova modalidade de filiação, não decorrida dos laços genéticos, se fez necessário o estudo e análise sob diferentes prismas do surgimento de novos conceitos, que melhor retrata a realidade atual, sendo um deles a filiação socioafetiva.

Há que se ressaltar que é possível o seu reconhecimento após a morte do suposto pai afetivo, uma vez que o ordenamento jurídico garante expressamente o mesmo direito aos filhos biológicos.

Destarte, a impossibilidade do reconhecimento da referida paternidade causaria violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, do qual decorre o princípio da igualdade de filiação, que estabelece tratamento isonômico a todos os filhos, seja qual for sua origem, proibidas quaisquer designações discriminatórias referentes à filiação.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. In: Saraiva. Vade Mecum. 13ª ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. Págs. 139-303.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2009.

GARCIA, Ednês Maria Sormani. Direito de Família: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 1ª ed. Leme/São Paulo: Editora de Direito, 2003.

MADALENO, Rolf. Curso de direito de familia. 4ª ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1.0518.10.006332-1/001, Relator: Des. Alberto Vilas Boas, Minas Gerais. Acórdão de 05 de abril de 2011).Disponível em < http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1 &comrCodigo=518&ano=10&txt_processo=6332&complemento=1&sequencial=0&palavrasConsulta=&todas=&expressao=&qualquer=&sem=&radical=>  Acesso em 27 de maio de 2012. 

 


NOTAS DE FIM

[1] Mestre em Direito Internacional pela UFMG, Especialista em Direito Social, Professor de Direito Internacional nos cursos de Direito e Relações Internacionais Centro Universitário Newton Paiva, ex-Professor de Direito Internacional na Universidade de Itaúna – UIT, no Instituto Brasileiro de Estudos Diplomáticos – IBRAE, nos cursos Praetorium, ANAMAGES e na Pós-graduação na PUC-MG. 

[2] Graduanda do curso de Direito no Centro Universitário Newton Paiva.