Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Bárbara Rodrigues Faria[1]

 

RESUMO: O presente estudo se propõe a realizar uma análise da evolução do direito de família, com o intuito de demonstrar que, sob a ótica do atual ordenamento jurídico, o fenômeno da dupla paternidade é perfeitamente possível. Para tanto, a presente pesquisa se concentrará na exploração do conceito histórico de família, abordando o seu modelo quando ainda regida pelo Código Civil de 1916, as influências advindas da constitucionalização do Direito, e a sua concepção contemporânea à Luz da Constituição da República de 1988 e do Código Civil de 2002. Ademais, também serão objeto do nosso estudo o atual conceito de paternidade e a lei de registros públicos.  

 

PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalização; Família; Dignidade da Pessoa Humana; Paternidade; Afetividade.

 

Área de Interesse: Direito Civil. 

 

1 INTRODUÇÃO 

A família, em seu conceito histórico, traz uma bagagem conceitual extremamente conservadora, em um tempo em que a figura do casamento era tida como instrumento político e financeiro com fins de adquirir ou aumentar a riqueza e o poder. Por esta razão, a figura da separação e do concubinato eram absolutamente marginalizadas da sociedade, de modo que, uma vez casados, os cônjuges estariam fadados à convivência vitalícia.

Sob a influência da constitucionalização do Direito Civil, verificou-se uma significativa mudança de comportamento e pensamento na sociedade, implicando em significativas mudanças em todo o ordenamento jurídico, inclusive no direito de família.

O conceito de família e paternidade, agora influenciados pela Constituição de 1988, sofreram significativas evoluções com fins de amparar as novas situações jurídicas existentes.

Atualmente, tem se tornado cada vez mais comum a existência de mais de um individuo exercendo a função de pai de uma única pessoa, submetendo o judiciário à análise acerca da possibilidade ou não da dupla paternidade. 

Assim, na presente pesquisa realizou-se um estudo acerca da evolução do direito de família, de modo a identificar o atual conceito de família e de paternidade. Além disso, realizou-se uma detida análise da lei de registros públicos, tudo com fins de averiguar a possibilidade ou não da dupla paternidade à luz do atual ordenamento jurídico.

Com efeito, a presente pesquisa demonstrará a legalidade da dupla paternidade, comprovando que ela está amparada pelo atual conceito de família e paternidade, bem como pela lei de registros públicos. 

 

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE FAMÍLIA 

Quando regida pelo Código Civil de 1916, a família, diretamente influenciada pelos valores advindos da Revolução Industrial, era modelada sob um aspecto absolutamente hierarquizado e patriarcal cuja formação estava diretamente ligada aos laços patrimoniais e políticos. Sua formação se dava, não pela existência de afeto recíproco – que nesta época era sequer levado em consideração – mas sim pela união de outras famílias visando-se a formação, recuperação ou aumento de patrimônio ou força política. (ROSENVALD E FARIAS, 2013; DIAS, 2005).

Por esta razão, era atribuído ao casamento um caráter vitalício, tendo-se como regra que somente a morte poderia dissolvê-lo. Sua dissolução era completamente abominada, tendo vista que representava a quebra do vínculo patrimonial e político entre as famílias e, via de consequência, a desestruturação da própria sociedade. A família somente era constituída através do matrimônio e a este se restringia, de modo que somente faziam parte dela o casal e os filhos oriundos do casamento – então chamados de filhos legítimos. Grande discriminação pesava sobre aqueles que, por ventura, se unissem sem o matrimônio. E diferente não era com seus filhos, sejam eles legítimos ou ilegítimos – oriundos das relações extraconjugais.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias destacam que: 

[…] toma-se como ponto de partida o modelo patriarcal, hierarquizado10 e transpessoal da família, decorrente das influências da Revolução Francesa sobre o Código Civil brasileiro de 1916. Naquela ambientação familiar, necessariamente matrimonializada, imperava a regra “até que a morte nos separe”, admitindo-se o sacrifício da felicidade pessoal dos membros da família em nome da manutenção do vínculo do casamento. (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p.40) 

E Maria Berenice Dias completa que: 

O Código Civil anterior, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em sua versão original, trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações.37 As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e a filhos ilegítimos eram punitivas, exclusivamente para excluir direitos. (ROSENVALD E FARIAS, 2005, p.27) 

Este contexto exteriora quão restritos eram os direitos e o próprio conceito de família à luz do Código Civil de 1916. Ressalte-se que o caráter extremamente político, patrimonialista e reprodutivo então atribuído às famílias e praticado pela sociedade nada mais é que uma herança do próprio códex que se preocupava, prioritariamente, com o direito de propriedade, com a liberdade de contratar e demais questões essencialmente patrimoniais. Este também era o comportamento característico de toda a sociedade, enquanto primordialmente regida pelo Código Civil de 1916 que, àquela época, era posto no centro do ordenamento jurídico, exercendo uma espécie de direito geral.

Luís Roberto Barroso destaca que “[…] o direito civil desempenhou no Brasil – como alhures – o papel de um direito geral, que precedeu muitas áreas de especialização, e que conferia certa unidade dogmática ao ordenamento.” (BARROSO, 2005, p.13)

E ainda:  

[…] o Código Civil era documento jurídico que regia as relações entre particulares, frequentemente mencionado como a “Constituição do direito privado”. Nessa etapa histórica, o papel da Constituição era limitado, funcionando como uma convocação à atuação dos Poderes Públicos, e sua concretização dependia, como regra geral, da intermediação do legislador. Destituída de força normativa própria, não desfrutava de aplicabilidade direta e imediata. Já o direito civil era herdeiro da tradição milenar do direito romano. O Código napoleônico realizava adequadamente o ideal burguês de proteção da propriedade e da liberdade de contratar, dando segurança jurídica aos protagonistas do novo regime liberal: o contratante e o proprietário. (BARROSO, 2005, p.13) 

Ocorre, todavia, que não só o direito Civil, como todo o direito brasileiro, sofreu significativas mudanças com o advento da constitucionalização do Direito no Brasil, marcado historicamente pela promulgação da Constituição da República de 1988. A partir daí, se verifica a transformação do Direito – e, consequentemente, da sociedade – que, antes patrimonialista e negocial por influência do antigo Código, perde este caráter e muda seus valores com a centralização da Constituição da República no ordenamento jurídico.

A promulgação da Constituição da República de 1988 foi a grande travessia do Brasil para a democracia, estabilidade política e valorização da pessoa humana. Através dela, foram consagrados diversos direitos de cunho social, político, democrático e humano, tais como a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem de todos sem distinção de origem, raça, sexo, cor e idade e o direito à igualdade. O ordenamento jurídico perde, portanto, o seu anterior caráter negocial e patrimonialista, e assume uma postura mais social, onde o fundamento principal é a dignidade da pessoal humana.

Tamanhas transformações trazidas pela nova Constituição foram suficientes para remodelar, não só o Direito Constitucional, mas também todo o ordenamento jurídico que, a partir de então, passa a submeter-se ao filtro constitucional, de modo que nenhuma outra norma permanece em desacordo com a Carta Magna.

Verifica-se, a partir daí, uma efetiva mudança da sociedade que, com o advento da Constituição da República de 1988, passa a evoluir à luz de novos conceitos e valores, instituídos pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana, positivado pelo artigo 1º, III da nova Constituição da República. Perde-se, portanto, a característica patrimonialista e adota-se um comportamento mais social e humanitário, fazendo de todo o ordenamento jurídico um meio de promoção e proteção da dignidade do homem.  

Maria Helena Diniz ensina que “[…] Tal fenômeno provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do Direito” (DINIZ, 2005, p. 58)

Diferente não é o entendimento do Professor Luis Roberto Barroso ao lecionar que: 

O primeiro deles diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana na nova dogmática jurídica. […]  No tema específico aqui versado, o princípio promove uma despatrimonialização[74] e uma repersonalização[75] do direito civil com ênfase em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade, tanto em sua dimensão física quanto psíquica.(BARROSO, 2005, p.17) 

Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana passa a nortear todo o ordenamento jurídico e diferente não foi com o Direito Civil que, diante das normas específicas, inclusive sobre o Direito das Famílias, trazidas pela Constituição de 1988, também foi profundamente modificado. Tratam-se de normas absoltamente diferentes das, outrora, estabelecidas no Código de 1916, tais como a igualdade entre os cônjuges, entre os filhos e a própria valorização da pessoa humana.

Luís Roberto Barroso cita que: 

[…] A fase atual é marcada pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a atuar como filtro axiológico pelo qual deve ler o direito civil. Há regras específicas na Constituição, impondo o fim da supremacia do marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos, a função social da propriedade. E princípios que se difundem por todo o ordenamento, como a igualdade, a solidariedade social, a razoabilidade. […] (BARROSO, 2005, p.17) 

Ressalte-se ainda, a significativa influência da evolução da sociedade, gerada pelo novo ordenamento jurídico, no direito de família. Ocorre que a família, como elemento essencial da sociedade, sofre mutações e avanços de acordo com o surgimento de novos pensamentos, descobertas científicas e conquistas do homem. A família é o retrato dos valores da sociedade e, como tal, não se prende a um conceito imutável e vitalício, de modo que sempre estará em constante mudança, acompanhando e amoldando-se ao momento histórico vivido pela sociedade.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias discorrem que: 

[…] a família tem o seu quadro evolutivo atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade, mutável de acordo com as novas conquistas da humanidade e descobertas científicas, não sendo crível, nem admissível, que esteja submetida a ideias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto. É realidade viva, adaptada aos valores vigentes. (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p. 41) 

Assim, após o advento da Constituição da República de 1988, que gerou uma efetiva evolução da sociedade, a família deixa de ser uma entidade meramente representativa que visa tão somente o patrimônio e a força política, e se torna o instrumento através do qual será promovida e garantida a dignidade da pessoa humana. Ocorre a despatrimonialização e a personalização do direito, de modo que a pessoa humana se transforma no principal fim a ser tutelado.

Neste aspecto, a família deixa de ser um meio de sacrifício da pessoa humana na incessante busca por patrimônio e poder e se transforma no instrumento que promoverá a sua felicidade, bem estar e suporte emocional.

Citando Luis Edson Fachin e Cristiano Chaves de Faria, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery lecionam que: 

A família moderna elimina, assim, progressivamente, “a hierarquia, emergindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos. Começam a dominar as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Proclama-se então a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal em busca de sua aspiração à felicidade” (Luis Edson Fachin. Elementos críticos do direito de família, RJ: Renovar, 1999, PP. 289/291). Isto “permitiu entender a família como uma organização subjetiva fundamental para a construção individual da felicidade. E, nesse passo, forçoso é reconhecer que além da família tradicional, fundada no casamento, outros arranjos familiares cumprem a função que a sociedade contemporânea destinou à família: entidade de transmissão da cultura e formação da pessoa humana digna. Nesse novo ambiente, averbe-se que é necessário compreender a família como sistema democrático, substituindo a feição centralizadora e patriarcal por um espaço aberto ao diálogo entre os seus membros, onde é almejada a confiança recíproca” (Cristiano Chaves de Farias. Escritos de direito de família, RJ: Lumen Juris, 2007, p. 7) (JÚNIOR E NERY, 2011, p.1.125) 

A família passa a ser um dos mecanismos de promoção da dignidade da pessoa humana e, como tal, recebe a especial proteção do estado, garantida pela nova Constituição. Trata-se, na verdade, de claro reconhecimento por parte do ordenamento jurídico de que a proteção da família assegura a garantia à dignidade do homem.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias ressaltam que: 

(…) a família deixa de ser encarada sob a ótica patrimonialista e como núcleo de reprodução, passando a ser tratada como um instrumento para o desenvolvimento da pessoa humana, realçados seus componentes mais próximos à condição humana, tem-se, sem dúvida, uma redemocratização da estrutura familiar […] (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p. 44) 

E ainda que: 

(…) a proteção ao núcleo familiar tem como ponto de partida e de chegada a tutela da própria pessoa humana, sendo descabida (e inconstitucional!) toda e qualquer forma de violação da dignidade do homem, sob o pretexto de garantir proteção à família. Superam-se, em caráter definitivo, os lastimáveis argumentos históricos de que a tutela da lei se justificava pelo interesse da família, como se houvesse uma proteção para o núcleo familiar e si mesmo. O espaço da família, na ordem jurídica, se justifica como um núcleo privilegiado para o desenvolvimento da pessoa humana. (ROSENVALD E FARIAS 2013, p. 47) 

Conclui-se daí, a clara necessidade de uma compreensão contemporânea da família, de forma a abranger seus atuais conceitos e evoluções decorrentes da própria sociedade, sempre à luz da dignidade da pessoa humana.  

 

3 CONCEITO CONTEMPORÂNEO DE FAMÍLIA 

Em seu atual conceito, a família contemporânea, abandonando o seu anterior caráter meramente representativo e patrimonial, passa a considerar fenômenos culturais, emocionais e humanitários, tornando-se um meio através do qual o homem vivencia suas experiências de vida e promove sua realização pessoal e a sua felicidade. A família não mais se apresenta como um modelo único e uniforme, mas em suas diferentes estruturas baseadas, não só no cunho patrimonial e biológico, mas também sob um aspecto cultural, espiritual, afetivo e solidário.

Com a constitucionalização do direito, abandonou-se a ideia de família como instituição produtiva e reprodutiva, adotando-se uma visão da família como forma de promoção da felicidade e da dignidade da pessoa humana, atribuindo maior valor às relações íntimas, de confiança e afetivas. (BARROSO, 2005; ROSENVALD E FARIAS, 2013).

A família deixa de ser composta apenas por marido, mulher e seus filhos havidos exclusivamente no casamento. E a diferença entre os filhos deixa de existir. O casamento deixa de ser vitalício, tornando-se cada vez mais comum o divórcio e, posteriormente, a formação de uma nova sociedade conjugal. Cresce o número de pessoas que se unem, sob uma mesma residência sem contrair, oficialmente, o casamento, assim como aumentam os casos de abandono familiar e, consequentemente, de adoção.

Diante de tamanhas evoluções, o conceito de família sofre profunda mudança e passa a abranger, não só o homem e a mulher unidos exclusivamente pelo matrimônio e os filhos dele resultantes, mas também as relações contraídas sob o afeto, a solidariedade e a afinidade, incluindo-se aí, as mais variadas formas de relacionamento, como a união estável, o próprio casamento, as relações homoafetivas, a adoção, dentre inúmeras outras.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias observam que: 

Com o passar dos tempos, porém, o conceito de família mudou significativamente até que, nos dias de hoje, assume uma concepção múltipla, plural, podendo dizer respeito a um ou mais indivíduos, ligados por traços biológicos ou sócio-psico-afetivos, com intenção de estabelecer, eticamente, o desenvolvimento da personalidade de cada um. (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p. 45) 

Perceba, portanto, que, a partir de então, o conceito de família se estende e adota as relações de afeto, dedicação, reciprocidade de obrigações e interesses, solidariedade e dependência mútua. O afeto se torna um bem jurídico tutelável imprescindível à garantia da dignidade do homem e suscetível à criação de famílias.

Surgem assim, as famílias baseadas no afeto que, muitas vezes sem o vínculo biológico, são caracterizadas por solidariedade entre seus membros, como, por exemplo, o custeio de estudos e alimentação; o respeito, como é o caso de um dos membros que educa um menor transmitindo-lhe valores, experiências de vida e ensinamentos de caráter e comportamento; interesses comuns, verificado quando os membros se unem para o proveito comum de todos como, por exemplo, a compra de um imóvel, eletrodomésticos e utensílios domésticos; e o próprio afeto consistente na doação de carinho, amor, cuidado e presença em momentos importantes da vida humana.

Citam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias “[…] a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional“ (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p.70).

Assim, o conceito de família não pode mais ser visto através do olhar tradicional e restrito que antes lhe era atribuído, porquanto, o conceito contemporâneo abrange as mais diversas formas de relacionamento, sempre à luz dos princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana.

Citando Clóvis Bevilaqua, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery apresentam o conceito de família, afirmando que: 

Pode-se definir família como sendo o complexo das normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, e a dissolução desta, as relações entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e os institutos complementares da tutela e da curatela. Altos interesses da moral e do bem estar social imprimem a este complexo de normas um caráter particular, e exigem, do direito, especial cuidado no estabelecê-las (Bevilaqua. CC, v. II, art. 180, p. 6). Pode-se acrescentar à definição clássica de Clóvis que o direito de família também cuida de estabelecer bases de segurança jurídica para resguardar as relações de afeto entre pessoas não unidas pelos vínculos do casamento, cuidando das relações de filiação, de parentesco e de solidariedade sociofamiliar entre elas, cuidando de preservar o patrimônio dos que se veem envolvidos em situações jurídicas de interesse de família. Não é de hoje que a família percebe as curiosas transformações do sistema de direito de família, sempre atenta ao fato de que essas regras cuidam do que há de mais íntimo dentro do estado moral de uma nação e, também, do que há de mais variável no tempo e no espaço da regulação civil (Gaudemet. Théorie, p.10).(JÚNIOR E NERY, 2011, p. 1.121) 

E discorrem ainda: 

A doutrina caminha para um conceito plural de família. “A família contemporânea pode ser conceituada como um conjunto, formado por um ou mais indivíduos, ligados por laços biológicos ou sociopsicológicos, em geral morando sob o mesmo teto, e mantendo ou não a mesma residência (família nuclear). Pode ser formada por duas pessoas, casadas ou em união livre, de sexo diverso ou não, com ou sem filho ou filhos; um dos pais com um ou mais filhos (família monoparental); uma só pessoa morando só, solteira, viúva, separada ou divorciada ou mesmo casada e com residência diversa daquela de seu cônjuge (família unipessoal); pessoas ligadas pela relação de parentesco ou afinidade (ascendentes, descendentes e colaterais, estes até o quarto grau, no Brasil, mas de fato podendo estender-se). Neste último caso, temos a família acessória (é admitida a herança, sem limite aos ascendentes e descendentes, embora os mais próximos excluam os seguintes, mas na linha colateral, no direito brasileiro, ficam limitados os parentes sucessíveis aos primos, que são parentes do quarto grau). Num sentido mais restrito desta, temos a família alimentar, que no direito brasileiro, abrange os ascendentes e descendentes (sem limite) e colaterais até o segundo grau, isto é, irmãos” (Semy Glanz. A família mutante. Sociologia e direito comparado, RJ: Renovar, 2005, p. 30) (JÚNIOR E NERY, 2011, p. 1.125) 

Verifica-se, a partir daí, que, sob a ótica do atual ordenamento jurídico, a família não é somente criada pelos laços biológicos, mas também pelos laços de afeto e solidariedade. Significa dizer que é perfeitamente possível que aquele que, sem nenhum vínculo biológico, cria, educa, alimenta, auxilia, concede carinho e participa ativamente da vida de um individuo, seja reconhecido como seu pai. Assim como, dois indivíduos que partilham da mesma educação, são criados pela mesma pessoa e estabelecem convivência, podem ser tidos como irmãos, ainda que inexistente qualquer vínculo biológico. Grande exemplo é o instituto da adoção que dá a determinado indivíduo uma família sócio-afetiva completa sem, na maioria das vezes, nenhum vínculo biológico.

Conclui-se, portanto, que família é aquela que, havendo vínculo biológico ou não, estabeleça entre seus membros uma relação de solidariedade, convivência, presença, ensinamentos, transmissão de valores, educação, respeito e afeto.

 

4. CONCEITO DE PATERNIDADE

Com o surgimento de novos modelos de família, também se consolidaram novas formas de filiação oriundas da nova realidade vivida pela sociedade. Atualmente, o ordenamento jurídico conceitua três distintas formas de paternidade, quais sejam: a paternidade legal, a paternidade biológica e a paternidade presumida, que serão atribuídas a cada caso concreto a que melhor se aplicar.

A paternidade biológica é aquela identificada através do material genético de pai e filho mediante a realização do exame de DNA. É através dela que se verifica quem foi o sujeito responsável pela doação do material genético que gerou uma nova vida.

É de grande importância, porquanto, inerente à concepção da pessoa humana, isto é, representa a origem de tudo, inclusive do próprio homem, através da reprodução. Somente através do material genético fornecido pelo pai biológico é que se dá existência ao filho. Por esta razão, o conhecimento da paternidade biológica é muitas vezes almejado e, até mesmo, importante para o filho, por permitir o autoconhecimento de cada indivíduo no que se refere à sua história, à sua origem e à sua genética.

Ademais, também se verifica como modalidade de paternidade a chamada paternidade legalmente presumida que, conforme destacam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, é constituída mediante uma presunção criada pelo ordenamento jurídico, de que o bebê nascido de uma mulher casada é fruto do matrimônio, haja vista que considerada a fidelidade recíproca do casal, em razão do matrimônio. In verbis: 

[…] considerando que as pessoas casadas mantêm relações sexuais entre si, bem como admitindo a exclusividade (decorrente da fidelidade existente entre elas) dessas conjunções carnais entre o casal, infere-se que o filho nascido de uma mulher casada, na constância das núpcias, por presunção, é do seu marido.

É a máxima absorvida do Direito Romano pela expressão pater is est quaem justae nuptiae demonstrant (o pai é aquele indicado pelas núpcias, pelo casamento) (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p. 661) 

Maria Berenice Dias também cita que “(…) o critério jurídico, previsto no Código Civil e que estabelece a paternidade por presunção, independente da correspondência ou não com a realidade (1.597);” (DIAS, 2005, p. 331).

A relativização da paternidade legal se justifica no fato de que, embora tenha sido positivada no artigo 1.597 do Código Civil de 2002, diante dos inúmeros avanços tecnológicos, inclusive ligados à ciência, a presunção legal poderá ser facilmente desconstituída através o exame de DNA, ou seja, da verificação da paternidade biológica.  

Saliente-se, contudo, que não obstante a existência de método eficaz à confirmação da paternidade biológica, em razão do conceito de família contemporâneo, o ordenamento jurídico admite a figura da paternidade socioafetiva que, como o próprio nome sugere, refere-se ao vínculo de pai e filho criado através do afeto, respeito, obrigações mútuas e solidariedade.

Referida modalidade permite a que o vínculo de pai e filho seja formado por duas pessoas sem qualquer vínculo biológico, desde que, de fato, o papel do pai seja cumprido.  Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias explicam: 

O pai afetivo é aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai (a função). É uma espécie de adoção de fato

É aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amor… ao filho, expõe o foro íntimo da filiação, apresentando-se em todos os momentos, inclusive naqueles e que se toma a lição de casa ou verifica o boletim escolar. Enfim, é o pai das emoções, dos sentimentos e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos que sobre ele se projetam. (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p.691) 

Com efeito, a figura do pai não está atrelada unicamente a um laço consanguíneo, mas também, e principalmente, a uma função consistente no preenchimento de necessidades básicas de qualquer indivíduo, tais como educação, carinho, afeto, solidariedade, presença, companheirismo e ensinamentos, sendo, portanto, irrelevante a existência ou não de um vínculo biológico.

Significa dizer que é perfeitamente possível atribuir a paternidade a uma pessoa que, mesmo sem qualquer vínculo genético com o filho, é capaz de exercer a função de pai através da convivência, do respeito, da subsistência alimentar e emocional. Trata-se de um conceito que, assim como a atual concepção de família, é firmado com base no afeto, na solidariedade e respeito mútuo.

Atualmente, a paternidade socioafetiva é implicitamente reconhecida pela Constituição da República, na medida em que consiste em meio claro de garantia à dignidade da pessoa humana, não só através do reconhecimento jurídico de uma relação que, muitas vezes, já está consolidada na prática, mas também ao permitir que todo e qualquer indivíduo tenha um pai ou um filho, independentemente do vínculo biológico.

O reconhecimento da paternidade socioafetiva também está presente no Código Civil de 2002, ao permitir o parentesco resultante tanto da consanguinidade, como de qualquer outra origem. Verifica-se, ainda, que o enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil da CEJ também reconhece o afeto como forma de constituição de paternidade ao dispor “256 – Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

Assim, verifica-se que, atualmente, sob o atual ordenamento jurídico, o vínculo de paternidade pode se dar através de uma presunção legal, de um laço biológico e de um vínculo afetivo.

Destaca-se, que a existência de uma das formas de paternidade não exclui a existência de outra, sendo perfeitamente possível o estabelecimento de dois vínculos paterno-filiais ao mesmo tempo, com relação a uma mesma pessoa.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues afirmam que: 

Não se trata aqui de relações excludentes ou mutuamente impeditivas, mas complementares. O paradigma plural contemporâneo abandonou a perspectiva de exclusão; agora, trata-se da multiplicidade de papéis que são todos cabíveis em uma relação parental, mesmo que se trate de paternidade e/ou maternidade. […](TEIXEIRA E RODRIGUES, 2009, p.45) 

            Belmiro Pedro Welter também defende: 

[…] não ser correto afirmar, como faz a atual doutrina e jurisprudência do mundo ocidental, que “a paternidade socioafetiva se sobrepõe à paternidade biológica” ou que “a paternidade biológica se sobrepõe à paternidade socioafetiva”, isso porque ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas […](WELTER, 2009, p. 122) 

Diante dos novos comportamentos apresentados pela sociedade, tornou-se absolutamente comum a existência de dois indivíduos exercendo na vida de outrem a função de pai, havendo, muitas vezes, a figura do pai socioafetivo, contribuindo com a educação, carinho, afeto, respeito, solidariedade, presença, etc., e o pai biológico que, contribuindo ou não com tudo isto, foi o responsável por conceder o material genético e, portanto, é parte da origem do filho.

As possibilidades são inúmeras, tais como a história da mulher grávida que, sem qualquer vínculo com pai biológico de seu filho, vem a ter novo relacionamento afetivo, cujo companheiro assume e registra a criança como se seu filho fosse. Tempos depois este indivíduo, que já adquiriu um vínculo paterno-filial com o companheiro de sua mãe, vem a ter contato com seu pai biológico que, por ter contribuído com o material genético que lhe deu origem, assumiu inúmeras responsabilidades decorrentes da sua paternidade; ou ainda, uma situação hipotética em que o indivíduo mantém vínculo afetivo com seu pai biológico, contudo, este vem a falecer e, posteriormente, a mãe vem a ter novo relacionamento afetivo, em que o companheiro, movido pelo afeto, assume a condição de pai do indivíduo; pode-se destacar ainda, a frequente situação de um indivíduo criado por pai adotivo que, reencontra seu pai biológico; ou ainda, a própria paternidade presumida de um pai que, acreditando ter vínculo biológico com a criança gerada por sua esposa, em decorrência da fidelidade esperada na constância do matrimônio, descobre que o vínculo biológico advém de outro homem que, portanto, também possui responsabilidades como pai.

Corroborando com este entendimento, Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior discorrem que: 

 A mesma lógica da multiplicidade parental pode ser observada também quando a socioafetividade se instalou na inexistência de outro elo filial, cujo reconhecimento venha a ser solicitado posteriormente. Permitida a pluralidade de vínculos, mesmo que a emergência da filiação socioafetiva tenha se dado anteriormente à biológica, o reconhecimento desta última ainda será viável. Dessa forma, assegura-se ao filho, que assim pretender, o conhecimento de sua linha ascendente genética, sem prejuízo do pai ou da mãe socioafetivo conquistado.43 Em sentido inverso, também poderá providenciar tal reconhecimento o(a) genitor(a), preservando-se o seu direito de ser qualificado por pai ou mãe, mas também a relação parental do filho precedentemente estruturada. (ALMEIDA E JÚNIOR, 2010, p.382/383)   

Perceba que a dupla paternidade já se tornou uma realidade vivida pela sociedade que, cada vez mais, se impõe perante o ordenamento jurídico. Destaca-se que o Direito deve sempre evoluir de acordo com a mentalidade da sociedade, buscando sempre regulamentar, interpretar, acompanhar e tutelar os anseios sociais. Conforme bem afirma Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues “[…] tal fenômeno já é corriqueiro na prática. Cabe ao Direito, então, jurisdicizá-lo […]”(TEIXEIRA E RODRIGUES, 2009, p. 45).

Com efeito, inúmeras são as situações fáticas apresentadas pela sociedade passíveis – ou melhor dizendo – carecedoras do reconhecimento da dupla paternidade que, conforme amplamente demonstrado, é  perfeitamente possível à luz do atual ordenamento jurídico brasileiro.

Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior afirmam que “[…]Logo, se a ideia é de acréscimo, não parece haver obstáculo à defesa, nestes casos, do reconhecimento de uma segunda mãe ou de um segundo pai socioafetivo” (ALMEIDA E JÚNIOR, 2010, p. 381),.

O mesmo pensamento é compartilhado por Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues: 

Defendemos a multiparentalidade como alternativa de tutela jurídica para um fenômeno já existente em nossa sociedade, que é fruto, precipuamente, da liberdade de (des) constituição familiar e da consequente formação de famílias reconstituídas. (TEIXEIRA E RODRIGUES, 2009, p. 46) 

Por fim, concluem Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior: 

[…] parece permissível a duplicidade de vínculos materno e paterno-filiais, principalmente quando um deles for socioafetivo e surgir, ou em complementação ao elo biológico ou jurídico pré-estabelecido, ou antecipadamente ao reconhecimento de paternidade ou maternidade biológica. (ALMEIDA E JÚNIOR, 2010, p. 383) 

Com efeito, a duplicidade de paternidade, não só é possível à luz do atual ordenamento jurídico, como já se trata de um fato vivido pela sociedade, merecendo, portanto, a tutela estatal através da inclusão de ambos os pais no registro do filho.

 

5 LEI DE REGISTROS PÚBLICOS 

Devidamente demonstrado que o atual conceito de paternidade permite o seu exercício por mais de um indivíduo com relação a uma só pessoa, é necessário discorrer também acerca da Lei de Registros Públicos, de modo a demonstrar a legalidade da dupla paternidade.  

Necessário destacar, inicialmente, que a lei nº 6.015/73, que dispõe acerca dos registros públicos, por se tratar de legislação antiga, anterior inclusive à atual Constituição da República, carece de urgente reforma para se adequar às atuais exigências impostas pela sociedade e pelo ordenamento jurídico.

Registre-se, contudo, que foram realizadas algumas modificações na referida lei desde a sua entrada em vigor, mas que não foram suficientes para abarcar as evoluções sofridas no âmbito do direito de família.  

Assim, uma vez considerando que a matéria de registros públicos é regida por legislação remota, imprescindível se faz a atuação do intérprete para fins de alcançar a sua adequação social no tempo vigente.

Especificamente com relação à filiação, a lei 6.015/73 dispõe, em seu artigo 60, que “o registro conterá o nome do pai ou da mãe, ainda que ilegítimos, quando qualquer deles for o declarante”.

Perceba que, em sua redação, o artigo dispõe apenas que o pai constará no registro do filho, sem delimitar qualquer quantidade ou o conceito de pai.

 Dessa forma, deverá o intérprete aplicar a lei além da estrita legalidade, utilizando-se das demais normas existentes no ordenamento jurídico. Para tanto, deverá o julgador utilizar-se da hermenêutica constitucional, identificando a necessidade social (nesse caso, o reconhecimento da dupla paternidade) e utilizar a norma positivada juntamente com as demais existentes, tais como os princípios constitucionais, de modo a promover a decisão mais adequada ao caso concreto.

Conforme leciona Luis Roberto Barroso: 

As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contém termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como de ordem pública, interesse social e boa fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própria avaliação (BARROSO, 2005, p.7). 

            Destarte, uma vez sendo a lei de registros públicos abstrata, dispondo tão somente que o pai constará no registro, sem especificar o conceito de paternidade para os fins da lei ou delimitar qualquer quantidade, deverá o intérprete aplicá-la à luz da nova interpretação constitucional, atribuindo a ela uma valoração de abrangência e sentido.

Com efeito, a norma contida no Artigo 60 da lei nº 6.015/73 deverá ser aplicada, de modo a promover a junção da lei abstrata com o conceito de paternidade criado pela doutrina e jurisprudência, considerando-se ainda o direito de família contemporâneo.

Assim, se o conceito de paternidade e o atual direito de família permitem que a paternidade seja exercida por mais de um individuo com relação a uma mesma pessoa e a lei dispõe somente que o pai constará no registro sem apresentar qualquer outra delimitação, deverá esta ser interpretada de forma extensiva para permitir a dupla paternidade.

Registre-se, por fim, que o ordenamento jurídico já vem evoluindo no sentido reconhecer a inclusão de um segundo pai no registro do filho. Ocorre que a lei de registros públicos, sofreu recente modificação através da lei 11924/09, que incluiu o 8º parágrafo no artigo 57 da lei 6.015 para permitir que o (a) enteado (a) possa incluir em seu registro de nascimento o nome de família de seu padrasto.

Trata-se, na verdade, de claro reconhecimento do ordenamento jurídico de que, existindo ou não um vínculo com o genitor, poderá o filho estabelecer uma relação socioafetiva para com o padrasto, a ponto, inclusive, de acrescentar em seu nome, o sobrenome do padrasto.

Verifica-se, portanto, que, à luz do direito de família contemporâneo e do atual conceito de família atrelados à norma contida na lei 6.015/73, o instituto da dupla paternidade encontra total amparo no atual ordenamento jurídico. 

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A dupla paternidade corresponde a uma nova situação fática cada vez mais frequente na sociedade e, como tal, impõe a adequação do direito diante das necessidades sociais.

Com efeito, não se mostra plausível impor ao filho que escolha apenas um daqueles que exercem a função de pai, excluindo-se o outro que, igualmente, exerce papel fundamental em sua vida ou que, contribuindo com o material genético, lhe deu origem.

A medida que se impõe é que seja atribuído a ambos os pais, que exercem esta função, o efetivo reconhecimento através da inclusão de ambos no registro do filho.

Ora, se mais de uma pessoa preenche o conceito de paternidade, ambos deverão ser reconhecidos como pai, não sendo razoável admitir que um deles se sobreponha ao outro, quando na verdade possuem o mesmo lugar na vida do filho.

A figura da dupla paternidade, já é uma realidade na sociedade civil e, assim, merece a tutela estatal, de modo a promover e assegurar os princípios constitucionalmente previstos tais como o da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Destarte, analisada a evolução da sociedade e a atual concepção de família e de paternidade, se torna inevitável a conclusão de que a dupla paternidade está implicitamente amparada pelo ordenamento jurídico.

Conforme demonstrado, pai é aquele que cumpre com a função de educar, ensinar, estar presente, respeitar e ser respeitado, doar afeto, carinho e solidariedade e também aquele que, fornecendo ou não tudo isto, é o responsável pelo material genético que deu origem à vida.

Citando Rodrigo da Cunha Pereira, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias discorrem que: 

a filiação “constitui, segundo a Psicanálise, uma função. É essa função paterna exercida por um pai que é determinante e estruturante dos sujeitos. Portanto, o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção…, enfim, aquele que exerce uma função de pai. (ROSENVALD E FARIAS, 2013, p.691) 

Com efeito, a paternidade será constituída não só através da concessão de material genético, mas também através de uma função a ser cumprida.

Assim, havendo duas pessoas que preencham o conceito de paternidade na vida de um único filho, compete ao ordenamento jurídico reconhecer e tutelar ambas as relações, através da inclusão de ambos no registro do filho.

Com efeito, aplicar-se-á a lei de registros públicos utilizando-se dos novos métodos hermenêuticos constitucionais de interpretação, conjuntamente com a atual concepção de família e paternidade, permitindo assim, a figura da dupla paternidade. 

 

REFERÊNCIAS  

ALMEIDA, Renata Barbosa de; JÚNIOR, Walsir Edson Rodrigues. Direito Civil: Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 03 Mar. 2013.
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NOTA DE FIM

[1]Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton – E-mail: barbarafaria1@gmail.com