Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Wallace Santos Silva1

 

RESUMO: O presente trabalho visa analisar a vedação legal que impossibilita o instituto da usucapião em bens públicos, mesmo quando estes não estejam relacionados à prestação de serviço público ou não atendam ao princípio da função social da propriedade. 

 

PALAVRAS-CHAVE: função social da propriedade; usucapião; bens públicos.

 

Área de Interesse: Direito Civil. Direito Administrativo 

 

1 INTRODUÇÃO 

A usucapião está prevista na legislação brasileira no art.183 da Constituição da República in verbis: 

 Art 183 Aquele que possuir como sua área urbana até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (BRASIL, 1988)  

Também o Código Civil tratou do tema no art.1.238 in verbis: 

Art 1.238 Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe a propriedade, independentemente de título e boa fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de imóveis. (BRASIL, 2002)  

 A usucapião é forma originária de aquisição da propriedade de bens móveis e imóveis. Os pré-requisitos para a aquisição via usucapião são a posse mansa, pacífica e ininterrupta, durante determinado lapso temporal. As modalidades do mencionado instituto são: usucapião ordinária, usucapião extraordinária, usucapião especial urbana e usucapião especial rural.

O instituto da usucapião é vedado na legislação brasileira no que diz respeito aos bens públicos, conforme dispõe o art. 191, parágrafo único da Constituição da República de 1988, segundo o qual “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”, e ainda o art. 102 do Código Civil de 2002 que dispões que, “os bens públicos não estão sujeitos à usucapião”.

A justificativa para a proibição da aplicação do referido instituto é baseada no princípio da supremacia do interesse público, segundo o qual o interesse público deverá prevalecer sobre o interesse particular. Entretanto, esse princípio se choca com princípio constitucional da função social da propriedade, previsto no art. 5º da Constituição Federal que estabelece que “a propriedade atenderá sua função social”.

Assim, o choque de princípios instaura a dúvida acerca da aplicabilidade da função social da propriedade apenas aos bens particulares ou também aos bens públicos. O presente trabalho se destina a advogar a favor da tese de que, caso um bem público não cumpra sua função social, é possível usucapi-lo.

O argumento aqui sustentado é de que, apesar da vedação da usucapião de bens públicos, o Estado, guardião do interesse da coletividade, deve observar a função social da propriedade também no que se refere aos seus bens, e não somente os particulares.         

O presente trabalho foi desenvolvido sob o método dedutivo que tem suas proposições enfocadas na situação geral para explicar as particularidades e chegar à conclusão da afirmativa.

O método dedutivo-lógico foi utilizado para a análise dos textos, artigos, legislações e outro material doutrinário levantado, no intuito de verificar a aplicação dos conceitos e dispositivos legais à realidade fática da impossibilidade total de usucapir bens públicos.

 

2 CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS 

A classificação dos bens públicos se faz necessária, tendo em vista que a distinção entre eles implicam aplicação de diferentes regimes jurídicos. Na conceituação do professor José dos Santos Carvalho Filho são bens públicos: 

Todos aqueles que, de qualquer natureza e a qualquer título, pertençam ás pessoas jurídicas de direito público, sejam elas federativas, como a união, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da Administração descentralizada, como as autarquias, nestas incluindo-se as fundações de direito público e as associações públicas. (CARVALHO FILHO, 2005, p. 873). 

O Código Civil brasileiro de 2002 define os bens públicos no art. 98 in verbis:  

Art. 98 São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. (BRASIL, 2002) 

A classificação doutrinária dos bens públicos quanto à destinação, ou seja, o objetivo a que se destinam os divide em: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais. Em se tratando de bens de uso comum do povo, de acordo com o art.99 do Código Civil de 2002 in verbis: 

Art. 99 São bens públicos: I- os de uso comum do povo, tais como rios, mares, ruas e praças; II- os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias. III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. (BRASIL, 2002) 

Os mares, as praias, os rios, as estradas, as ruas, as praças e logradouros públicos, bem como os bens de uso especial, que visam à execução dos serviços administrativos e dos serviços públicos em geral, atendem perfeitamente ao interesse público e a função social da propriedade em virtude de sua própria natureza. Entretanto, o mesmo pode não ocorrer em relação aos bens dominicais. Neste caso, deve-se verificar se atendem ou não ao princípio da função social da propriedade. 

Os bens dominicais são os que não se situam nas categorias de uso comum do povo ou de uso especial, possuindo assim caráter residual. Portanto, se o bem serve ao uso público em geral, ou se presta à consecução das atividades administrativas, não será enquadrado como dominical, logo não será passível de usucapião.

Desse modo, são bens dominicais as terras sem destinação pública específica, as terras devolutas, os prédios públicos desativados. Esses bens são disponíveis, podendo inclusive ser alienados sob certas condições.

A doutrina e a jurisprudência majoritárias, a saber, José dos Santos Carvalho Filho (2005), César Fiuza (2003), Maria Silvia Zanella di Pietro (2008), entendem que todos os bens públicos são imprescritíveis, ou seja, não podem ser adquiridos por usucapião.  

A imprescritibilidade significa que os bens públicos são insuscetíveis de aquisição por usucapião, e isso independentemente da categoria a que pertençam. Houve, é bem verdade inúmeros questionamentos a respeito dessa característica especial dos bens públicos. Contudo, o Direito brasileiro sempre dispensou aos bens públicos essa proteção, evitando que por meio de usucapião, pudessem ser alienados como o são os bens privados, quando o possuidor mantém a posse por determinado período.

Atualmente, a constituição estabelece regra específica a respeito, dispondo, no art.183, parágrafo 3, que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião, norma aliás, respeitada no art. 191, relativas a imóveis públicos rurais.

Desse modo, mesmo que o interessado tenha a posse do bem público pelo tempo necessário à aquisição do bem por usucapião, tal como estabelecido no direito privado, não nascerá para ele o direito de propriedade, porque a posse não terá idoneidade de converter-se em domínio pela impossibilidade jurídica do usucapião.

O novo Código Civil espancou qualquer dúvida que ainda pudesse haver quanto à imprescritibilidade dos bens públicos, seja qual for sua natureza. Nele se dispõe expressamente que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião” (art. 102). Como a lei não distinguiu, não caberá ao intérprete distinguir, de modo que o usucapião não poderá atingir nem os bens imóveis nem os bens móveis. (CARVALHO FILHO, 2005, p.883-884)  

O domínio patrimonial está sujeito a regime administrativo especial, não se lhe aplicando as normas que regem a propriedade privada, a não ser supletivamente. Orienta-se o domínio patrimonial por quatro princípios basilares, a saber, a inalienabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e não oneração.

A regra geral é que a Administração pública não pode alienar seus bens. Tal só ocorrerá excepcionalmente, na dependência de lei que autorize a transação.

Pelo fato de serem inalienáveis, os bens públicos são também inadquiríveis, enquanto durar a inalienabilidade. Destarte, não serão afetados pela “prescrição aquisitiva” ou usucapião. (FIUZA, 2003, p. 643-644)       

Em sentido contrário ao da doutrina majoritária, segundo a qual não há possibilidade de aquisição de bem público por usucapião, entende-se que é uma visão extremamente positivista e não busca uma interpretação teleológica dos princípios constitucionais fundamentais.

A doutrina minoritária, contudo, encabeçada por, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, vê distinção entre os bens públicos os dividindo em material e formalmente públicos. Para essa doutrina:  

Os bens formalmente públicos seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social, sendo assim, se formalmente público, seria possível a usucapião, satisfeitos os demais requisitos; sendo materialmente público haveria óbice à usucapião. (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 267-268). 

Como visto, há entendimento doutrinário de que os bens públicos dividem-se em formalmente públicos e materialmente públicos e que, em se tratando de bens formalmente públicos, não haveria impedimento para aquisição por usucapião, haja vista estes não possuírem destinação pública de fato.

Em regra, os bens públicos são impenhoráveis, imprescritíveis e inalienáveis, mas o próprio Código Civil de 2002 excepciona a regra da inalienabilidade ao se tratar de bens dominicais como se verifica no Art.101 “os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei”. (BRASIL, 2002)

  

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O princípio da função social da propriedade, consagrado na Constituição da República de 1988 como garantia fundamental, traz uma limitação à utilização da propriedade.

O particular, para ser proprietário, deve respeitar a função social da propriedade, ou seja, deve efetivamente proporcionar uma utilização condizente com o Direito e com a realidade social, sob pena de perda da propriedade por desapropriação. De acordo com Kildare Gonçalves Carvalho in verbis: 

O princípio incide sobre a estrutura e o conteúdo da propriedade, sobre a própria configuração do direito, e constitui elemento que qualifica a situação jurídica considerada, condicionando os modos de aquisição, uso, gozo e disposição dos bens. Não envolve portanto apenas limitações do exercício das faculdades do proprietário inerentes ao domínio. A função social da propriedade introduz, na esfera endógena do direito, um interesse que poderá até mesmo não coincidir com o do proprietário, com o predomínio do social sobre o individual, fenômeno denominado de socialidade.

A função social da propriedade, que corresponde a uma concepção ativa e comissiva do uso da propriedade, faz com que o titular do direito seja obrigado a fazer, a valer-se de seus poderes e faculdades, no sentido do bem comum: enquanto as obrigações de não fazer impostas ao proprietário se acham ligadas ao poder de polícia, as obrigações de fazer decorrem da função social da propriedade. (KILDARE, 2009, p.801) 

A função social da propriedade foi alçada à condição de princípio constitucional pelo legislador constituinte, assim, por se tratar de um princípio fundamental, este remete a valores essenciais e superiores em um Estado democrático de direito, e tem como escopo direcionar a produção legislativa infraconstitucional, podendo servir como garantia direta e imediata para os cidadãos.

Tem ainda este princípio o papel de agir como critério de interpretação e integração da Constituição e do sistema jurídico como um todo, dando unidade e coerência a este sistema. Deve a função social da propriedade, na condição de princípio constitucional, ser obedecida por toda e qualquer espécie de propriedade pública ou privada, ideia esta corroborada pela autora Cristina Fortini in verbis: 

 A constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do proposito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insuscetível conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social. (FORTINI, 2004)  

Ao dispor a Constituição da República de 1988 que “a propriedade atenderá a sua função social”, a função social da propriedade tornou-se um princípio fundamental, e veio socializar a propriedade para que ela se harmonize com a coletividade, retirando o caráter individualista da propriedade de outrora, e observando determinas regras para fruição e gozo.     

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS    

Em relação à imprescritibilidade dos bens públicos, a doutrina majoritária, bem como a jurisprudência pátria, rechaçam a possibilidade de usucapir bens públicos, seja qual for a sua espécie, mesmo que não cumpram sua função social. Tanto para a doutrina quanto para a jurisprudência, o bem público é função social em si mesmo.

Entretanto a corrente minoritária divide os bens públicos em bens materialmente públicos e bens formalmente públicos, entendendo assim, que os bens formalmente públicos, destituídos de função social, são passíveis de serem alcançados pela prescrição aquisitiva.

Ainda que doutrina majoritária e jurisprudência tenham olvidado a sistemática interpretativa constitucional e ajam em sentido extremamente positivista, a Constituição da República de 1988 consagrou como basilares os direitos fundamentais. Dessa forma pode-se entender que a Constituição não retirou a obrigatoriedade do cumprimento da função social da propriedade dos bens públicos, e nada mais justo seria que, como forma de obrigar o poder público a efetuar uma administração eficiente dos seus bens, eles possam ser usucapidos, caso estejam ociosos ou destituídos de finalidade pública.

 

REFERÊNCIAS  

BRASIL. Código Civil (2002). Código Civil e legislação em vigor. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 

CARVALHO, Kildare Gonçalves.Teoria do Estado e da Constituição Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. 

CARVALHO FILHO, José dos santos. Manual de Direito Administrativo. 14 ª ed. rev.ampl. Rio de Janeiro: Lumem Juris.2005. 

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.2006. 

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. 7 ª ed. rev.ampl. Belo Horizonte: Lumem Juris.2005. 

FORTINI, Cristiana. A função social dos bens públicos e o mito da imprescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, v.5, n.12, p. 117, abr./jun 2004.  

LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de Metodologia Científica. 7ªed. rev.ampl. São Paulo: Atlas. 2010. 

 

 NOTA DE FIM

1 Acadêmico de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.