Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Bernardo Gomes Barbosa Nogueira

RESUMO: O texto que se apresenta é um ensaio que procura dialogar noções de direitos humanos com canções da banda O Rappa. Não se trata desde já de trabalho científico nos moldes tradicionais, ora conversa com fontes não muito convencionais aos ouvidos da academia atual. Nele estamos a reproduzir fielmente um encontro com O DJ da banda, e nesse encontro, nos propusemos a encontrar as fendas necessárias à construção de um jurista humano. É uma busca, uma mais, pelo humano da literatura. Aquele aberto à narrativa plural. Distante talvez de um formalismo que por assim dizer choca com os interesses de uma minoria que fala de maneira diferente e que por isso mesmo precisa de textos também diferentes.

PALAVRAS-CHAVE: O Rappa; Direitos Humanos; Negralha; Minorias; desconstrução

ABSTRACT: The text presented is an essay that seeks dialogue notions of human rights with songs from the band O Rappa. It is not about a scientific work in traditional ways, sometimes engage to not so conventional sources to the ears of the current academy. In it we are faithfully reproducing a meeting with the DJ’s band and in this dialogue and this meeting, we intended to find the cracks needed to build a human jurist. It is a search, one more, by the human of literature. The human opened to the plural narrative. Distant perhaps, of a formality that collides with the interests of a minority that speaks differently and therefore, also needs different texts.

KEYWORDS: O Rappa; Human Rights; Negralha; Minorities; deconstruction.

INTRODUÇÃO

É sempre interessante perceber o nascimento de novas subjetividades. Hoje ao falar de canções, arte, política e direitos humanos de alguma forma criamos uma nova subjetividade. Ora, é um tanto inédito um evento em que dentro de uma Faculdade de Direito o personagem principal não está de terno e gravata. Hoje a Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva pinta com cores inéditas uma parte da história do conhecimento jurídico em Belo Horizonte, Minas Gerais e no Brasil como um todo. Como disse, estamos a construir e ver nascer uma nova subjetividade. Pelo menos é assim que enxergo esse nosso encontro.

Hoje temos aqui um dos maiores DJ’s do Brasil, que integra talvez a maior banda de rock do país. Negralha, DJ, antes de tudo, e como quero lhe receber e tratar aqui hoje apenas como humano. Tocador de músicas, fazedor de arte, mas antes, humano, igual e diferente em sua diversidade e singularidade. Dou-lhe aqui boas vindas incondicionais cheio de amor pelo nosso encontro. Assim é o contorno que vejo nascer nesse encontro de canções com direitos humanos. Não pode ser outra a oferenda que lhe entrego, nossos olhares cheios de abertura à alteridade, seja bem vindo. Essa agora é e sempre foi e será, sua também.

Mas a prosa aqui não é entre eu e Negralha, tampouco com a Newton Paiva. O nosso papo é sobre o olhar do outro que clama por ser recebido e na maioria das vezes é mandado de volta para um lugar de onde uma minoria não queria que ele saísse: “era o rodo cotidiano.” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010) Quando fui inspirado a pensar a questão de direitos humanos a partir das canções d’ O Rappa, acabei por descobrir que antes de uma banda essas pessoas formam a aquilo que chamo de visionários de um tempo novo. Ora, em muitas das apresentações a banda fala de uma necessária mistura. De que a banda é multirracial, portanto, em um país em que a maioria ainda é relegada à periferia, não pude deixar de reconhecer ali o nascimento de um embrião dessa nova subjetividade.

O Rappa é uma banda filha de um momento interessante em nosso país, no qual o cinema vai deixando de ser irrelevante e ganha um cariz político, a música desce do banquinho e dos morros e ganha um timbre que muitas das vezes era calado, oprimido. Daí dizer: “sou quase um cara, não tenho cor nem padrinho, nasci no mundo eu sou sozinho (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Assim, começa um movimento que descortina um preconceito enraizado em nossa história e que o estado por intermédio do direito é a mais das vezes o cúmplice mais fiel. A diferença nunca foi uma pauta presente nas manobras estatais.

Falava então de nascimentos. Assim, assiste-se um país em que algumas questão não entravam na pauta, e esses movimentos periféricos, de canções, de filmes, de cores e de gritos, começam a entoar pelo país afora. Podemos pensar no Recife com a Nação Zumbi, no Rio de Janeiro mesmo com o Planet Hemp. Nascia ali uma realidade que há muito estava oprimida. Ninguém mais seria o mesmo depois de Chico Science, Marcelo D2, e tampouco, depois do Rappa. O recado estava dado, o Rappa era mundi. E os vários cristos agora seria ouvidos.

Assim, O Rappa se mostra como uma banda que reflete o que de fato seria o nosso país, ou seja, extremamente multirracial e ao mesmo tempo, paradoxal e incoerentemente, também um dos mais discriminatórios. Falaremos brevemente sobre algumas canções o que elas nos suscitam a pensar e quais os toques de Direitos Humanos que ouvimos nessas aulas de viver que são as letras.

Podemos ver que a banda tem uma pegada plural e que não se restringe à questão racial. O cristo do Rappa é diferente, “a sombra dele é sem cruz, no meio daquela luz” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). A radicalidade da diversidade religiosa fica estampada aqui. Ainda uma ideia de que a culpa cristã talvez não seja a única e a melhor saída, talvez uma delas. Mas ainda nessa canção, “Meu mundo é o barro” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), chama a atenção a luta pelo reconhecimento independentemente da classe, da cor, do local de nascimento: “sou quase um cara não tenho cor nem padrinho, nasci no mundo eu sou sozinho” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). Parece-nos um apelo ao valor singular do humano – uma aula de direitos humanos de primeira geração.

Quando ouvimos “Lado B Lado A” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, YUKA. 2010), já no título vê-se a critica mordaz há um modelo que quer guardar as conceituações por vezes maniqueístas entre certo e errado, preto e branco, rico e pobre, mulher e homem, homo e hétero. Parece que há ali uma resposta de um local de há muito esquecido, então, “se eles são Exu eu sou Iemanjá, se eles matam bicho eu tomo banho de mar” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). Importa perceber a pluralidade religiosa explicitada na canção, pois fala-se desde Exu e Iemanjá, tudo isso junto da mitologia e da palavra deus. Essa fé, que é além de deus, mas também na batalha, denota um existencialismo misturado com uma fé que é afeita àqueles que estão a todo tempo tentando defender uma existência que corre do “rodo”, o qual passa nem sempre do mesmo jeito em todos os lugares, sobretudo para aqueles que não estão colocados na posição majoritária, diante da religião da maioria e ante a cor e a posição social dita normal.

Quando em “Hóstia” (LOBATO; LOBATO. 2010) ouve-se os versos: “gatos humanos espreitam, choram mimados meu rango não dividira com qualquer animal meu prato de domingo a carne assada (…) Acuado em situação hiena não sou carne barata varejo imaginado pedaço do atacado” (LOBATO; LOBATO. 2010), é perceptível a miserabilidade estampada que a partir de uma ausência do estado em prestar as garantias constitucionais mais ínfimas, acaba por oferece à determinada parcela da população a sobra de uma vida ignóbil e que se assemelha à luta na selva. Assim, os humanos menos humanos de determinadas posições sociais sobrevivem de maneira a sempre estar a espreita do próximo prato de comida. Sempre correndo o risco de serem atacados pelo animal mais forte. A hiena espreita e come os restos de leão: teríamos leões e hienas em nossa cadeia alimentar social e humana?

A canção “Homem Amarelo” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010) é emblemática do clamor por diversidade que há na musicalidade da banda. Ora, temos ali a “salsa cubana do negro oriental” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), e tem um louro que estava descendo uma ladeira, era ali estrangeiro. Essa fala nos conduz ao pensamento da diversidade, a cidade habitada por humanos diferentes e não determináveis em conceitos, por isso fala-se ali também em jeito de abertura para o mundo de dentro de sua própria realidade. Essa música é a própria expressão de uma local que não tinha voz, mas que agora surge como possibilidade daquilo que chamamos nova subjetividade. Assim, lemos: “eu e minha tribo, brincando nos terreiros, eu e minha tribo nos terreiros do mundo” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), e isso é a clara percepção do que o final da música nos ensina, “só misturando pra ver o que vai dar” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). Esse verso mostra a que vem essa mistura de cores, ou seja, o terreiro pode ser de macumba, da casa da avó do playboy, ou o terreiro do mundo que desde Kant aprendemos a pensar como um terreiro comum de habitação de todos. Quando brinca-se no terreiro, sonha-se com o mundo. Esse sonho reflete-se no refrão final: “cor da pele? Foda-se!” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010) A mistura da necessidade de reconhecermos que não há cor que identifique um humano vem seguida de um palavrão que ao mesmo tempo em que assombra a linguagem escorreita e opressora mostra a voz, mais uma vez daqueles que um dia não podiam falar. Portanto, de foda-se me foda-se vamos misturando nossa existência. Com menos regras gramaticais e logo, menos violência, maior diversidade.

Quando escuto “Mar de gente” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), logo me vem nossas discriminações simbólicas praticadas com a linguagem. Desde sempre temos uma linguagem masculinizada, opressora do feminino que é sempre minoria e deve sempre se adequar ás regras dos machos. Assim, é importante perceber que essa luz dita na canção, “luz que nos cria e nos da juízo” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), talvez seja a luz que esta no próprio título da canção. Gente é palavra que não requer gênero. Gente é tudo que é humano. Sem rosto que o identifique. A palavra gente esta aliada á ideia do que fazemos de pessoa. Gente e pessoa no mesmo local. O mar é infinito, as “gentes” também são. Logo, aqui vimos a infinitude do humano sendo tratada como local onde deve-se atirar sem que antes avaliemos a cor, o gênero, a preferência sexual e a religiosidade. A verdade ali é de criança, portanto, inventada. Navegar é preciso, diria o Rappa em tom diferente de Fernando Pessoa. Aqui diz-se de preciso enquanto necessidade, ir ao mar e conhecer o infinito, deixar-se molhar por ele. Nascer e ser outro, sem fim, e sempre.

Quando a alma está armada e apontada para a cara do sossego(FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, YUKA. 2010). Bom, aqui quase todas as coisas ficam ditas. Em primeiro e metáfora quando a arma fica apontada. Assim como é apontado para a cara da maioria d população da periferia as armas de um estada que pune de maneira seletiva. Assim, é sutil, humano e triste perceber que a palavra paz ali comparece para dizer de uma paz imposta. Isso não é contraditória. Ora, é exatamente o que o nosso estado planeja em suas mesas de vidro que não enxergam além de táticas de guerra. Assim, quando a favela esta em paz o estado está bem. Quando há paz. Há opressão. A ausência de paz é ruim para o estado. Ela é revolução. Mas é apenas por meio desta que determinadas pessoas têm voz. Oferece-se então “drogas de aluguel”, há coação para que uma determinada parte da população esteja drogada, alienada em diversões pífias. Há aqui uma denúncia a respeito do que resta, ou seja, resta aceitar, calar acerca de mortes e invasões injustificadas e que que criam um clima de insegurança. Assim cumpre-se a realidade dita em outra canção “de geração em geração todos no bairro já conhecem essa lição” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO; YUKA. 2010). A paz ali é medo. O sossego é o aceite da opressão. Dessa maneira, enquanto convivemos nessas diferenças sociais, há cada vez mais grades, cada vez mais vontade de segurança, enquanto que o problema não esta nessa prisão inventada. A liberdade ali resta possível na medida em que haja condições para essa vida liberta. A prisão aqui é da ideologia estatal que impõe o centro e a periferia, e para esse último local resta apenas, calar, sossegar, para que o rodo não passe.

Quem é o “Monstro Invisível”(FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010)? Essa pergunta sempre me ressoava quando ouvia essa letra. Parece a mim que esse monstro simboliza o preconceito, a estrutura social excludente, que naturaliza a diferença e que não se identifica apenas pelos braços do estado que agem mantendo essa diferença. Assim, quando diz-se ali “eles já sabiam, mas deixaram a sina guiar a sorte” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Isso é tornar natural a tragédia nossa de cada dia. Mortes e exclusões como questões inerentes à sociedade. Isso não pode ser tratado como natural, simplesmente porque não o é. O mostro invisível continua “arrasando tudo como é de praxe” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), mas praxe é costume, não é algo natural, podemos mudar os costumes e não levar a vida pra baixo?

A versão do Rappa para “Hey Joe” (MEIRELLES; YUKA. 2010) traz uma visão bem peculiar dos guetos e da maneira como algumas pessoas têm suas escolhas restringidas pelas condições sócio-culturais do país. No Brasil a policia sobe o morro sozinha. Desacompanhada dos demais aparelhos constitucionais do estado. Assim, não há como dizermos do alto de nossos edifícios que há livre arbítrio. Ora, o aviso está dado: “esse não é o atalho pra sair dessa condição” (MEIRELLES; YUKA. 2010). Sim, concordamos todos nós, mas qual seria? Um adolescente para o qual não foi outra maneira de se portar perante o mundo. Aquele que escutou acordes não guitarra mas de metralhadoras, que vive em meio à uma guerra, “caçado e visto como um animal”. Realmente esse Joe não verá o “brilho intenso da manhã” (MEIRELLES; YUKA. 2010), mas como cobrar essa visão de quem vive um noite eterna. A moral ali é de uma ordem que os padrões burgueses convencionais. Não há perspectiva para a velhice, ela não é mesmo prevista. Sabe-se que, “também morre quem atira” (MEIRELLES; YUKA. 2010), mas e se a via de atirar for aquela oferecida de maneira mais fácil. Há na mesma canção um alerta àquilo que chama-se nomeação enquanto artifício ideológico, ora, “menos de 5% dos caras do local são dedicados a alguma atividade marginal” (MEIRELLES; YUKA. 2010), mas nem sempre é assim que olha-se para o negro e favelado. A palavra é por si só o local onde vive essa opressão ideológica, pois aprisionados nela, nomeados, parece que o seu ser singular nunca será acessado. Hey Joe, há um humano, por detrás do Joe. Isso não é dito. A “arte, honestidade e sacrifício” (MEIRELLES; YUKA. 2010) não seriam caracteres de pessoas que moram em favelas?

Já que estamos em uma Escola de direito, devemos falar de tribunais. E é flagrante como nós juristas repudiamos os tribunais de exceção, contudo, eles aí estão à luz e à noite de cada dia. Há na canção “Tribunal de rua” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; NEGRALHA; XANDÃO; YUKA. 2010), uma denúncia da falta de preparo de alguns policiais e de maneira geral do militarismo que ainda ecoa na formação e que sustenta parte de nossa segurança pública. Há tempos falamos da ideia de desmilitarização da policia. Não se trata aqui de pensar na hipótese platônica de vivermos sem policia, mas as insígnias militares não cabem em uma democracia, parece-me um non sense democracia e militarismo. Assim, quando ouvimos, “de geração em geração todos do bairro já conhecem essa lição” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; NEGRALHA; XANDÃO; YUKA. 2010), algumas questões precisam ser postas: uma a do destino coletivo a que as singularidade que habitam as periferias de uma maneira geral sofrem, ou seja, um “biotipo” que determina a posição do humano esta alia condenado desde sempre. Neste sentido, além disso, há a ingerência do estado que lima a subjetividade de quem convive com esse medo diário simplesmente pela condição social e racial. A face perversa disso resta quando percebemos que a armadura que é empunhada para a opressão muitas das vezes é vestida por alguém do próprio local, isso acaba por legitimar, ou endossar essa questão excludente. O estado com essa música mostra sua face covarde quando pune aqueles que não têm como reagir, ou o que é pior, não têm nada para dar como troco. Apenas para mencionar a relação com o cinema iniciada, os filmes Tropa de Elite deixam essa realidade estampada. E por isso resta ainda a pergunta: há no Brasil tribunais de exceção? Como o judiciário trata deles? Ou essa existência que não é computada em números oficiais não importa e por isso não seria excepcional tratar essas pessoas assim? Há humanos mais humanos que os outros? Quem pratica algum ilícito não merece o manto da constituição? E quem é pobre? E quem é negro?

E quando escutamos “todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (FALCÃO; MEIRELLES; MENEZES; YUKA. 2010) . Aqui reside um dos maiores males relatados pelo Rappa em suas canções. O preconceito que é chancelado pela ação do estado. Não é de se deixar de observar que a minoria dos presidiários seja negra, nem tampouco que a minoria dos estudantes em universidades também seja negra. Esse dado deve ser observado uma vez que somos um país multicor e se a cor da pele indica um tratamento diferenciado, isso deve ser discutido. A subjetividade do negro é afetada a todo momento, não apenas pelos camburões que simbolizam os navios negreiros, mas pior, são os camburões subjetivos dentro do qual se escondem a maravilha da diferença. Desde sempre nossa país traz uma pecha de discriminação racial e isso deve ser pensado quando estamos contra as políticas de cotas raciais. Não se trata apenas de pagar dívidas, trata-se de reconhecer que o plural soma, que a diferença é positiva e que ademais, apenas misturando pra ver o que vai dar. Não há como dizer que não temos nada a ver com o que fizeram em nosso passado, temos sim, pelo simples fato de sermos seres históricos, pelo simples fato de sermos humanos. Esse reclame da canção começa com uma conversa na esquina. Na esquina do tempo restam ainda muitas questões a serem resolvidas. Na esquina do preconceito mora a intolerância que tem muitas das vezes a aplicação das leis como seu aval discriminatório. Diria um autor: “la serpiente solo pica los pies descalzos” (ROMERO. In.: GALEANO, 1998). Ele não estava errado. Alguns tribunais só existem em determinados locais e para determinadas pessoas.

Denuncia-se debaixo do céu aquilo que sobra dele. Interessante que em “O que sobrou do céu” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), percebemos uma carga ideológica imposta, ou seja, há um local na periferia que é determinado, em que o chá que cura a azia é ciência de baixa tecnologia, menos tecnologia do que a ciência legítima, a ciência das prisões? Da cidade inacessível para a maioria? Seria essa canção reveladora de que uma parcela da sociedade tem uma parcela da cidade, que uma parte dela não estará nunca acessível? De novo a questão do destino coletivo. “pra gente ver o que sobrou do céu” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). A periferia constrói a cidade e ao mesmo tempo é excluída dela. Sobre apenas o que sobra do céu, e o que é pior, as cores, que seriam reveladoras da pluralidade, sevem apenas como rotina, escondidas nas nuvens, prestando os serviços que não requerem tecnologia, apenas rotina.

“O espaço é curto, quase um curral, na mochila amassada, uma vidinha abafada” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Seria talvez essa uma boa revelação da desigualdade de uma exclusão social que não enxerga a singularidade, desde o transporte público pífio, até o problema de perceber que apenas uma parte da cidade esta à disposição de uma maioria. Dai por ali “não se anda por onde gosta, mas por aqui não tem jeito, todo mundo se encosta” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), seria isso a reprodução do que diria Brecht falando que das águas revoltas do rio todos dizem, mas das margens que o oprimem não se ouve falar. Assim, a vidinha abafada, a quentinha abafada, são o que resta de uma polis com exclusões sociais que justificam dizer das existências de exceção em nosso país. O que resta é pouco, o troco é pouco, a comida também, assim, as mudanças sociais não poderiam de fato serem muitas. Enquanto a subjetividade não for alargada, sobrará poucas nuvens, pouco céu e muita fumaça a ser engolida diariamente.

Seriam 7 as nossas vidas? Teríamos novas chances? Bom, é fácil perceber que é sempre possível ir, vir, voltar e consertar possíveis erros. Mas e quando há uma pressão conceitual acerca do que é verdade, do que é certo, errado, qual o caminho certo e quais todos os que não podem ser percorridos. As portas nem sempre estarão abertas. Algumas vezes apenas algumas se abrem. Estariam todos em condições de enxergar essas portas? O certo é que algumas coisas não são discutidas: “castigo, será que é obrigatório?” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Um sistema penal que não enxerga a realidade, inverte os valores e trancafia quem precisa atenção. Estaria o estado chegando atrasado, depois das sete vezes? Dai aparece uma solução: estudar. Mas e os conhecimentos fora da escola. Fora do vocabulário. Fora dos nossos moldes militares de educar e punir. Estas voltas da canção “7 vezes” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; LOBATO; XANDÃO. 2010) estariam a dizer aquilo que Nietzsche diria acerca de uma existência como criança que se desprende das regras eternizadas e inventa a vida: “colorida de todo amor” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; LOBATO; XANDÃO. 2010) Sete vezes seriam as vidas que temos para perceber que “a estrada vai além do que se vê” (CAMELO. 2003) , ou seja, é invenção?

Três musicas do Rappa me deixam sempre embevecido. “Vapor barato” (MACALÉ; SALOMÃO. 2010), “Me deixa” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010) e “Pescador de ilusões” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO; YUKA. 2010), com elas caminho para o fim desses dizeres que me fizeram tão mais humano, mais uma vez obrigado ao Negralha por colorir nossos horizontes.

Bom há aqui um momento, como aliás em vários nas músicas da banda, um toque de esperança, de acreditar na vida, de valor dela. Há uma fala sobre não carecer muito dinheiro, outra sobre deus, mas apesar de cansado, há a crença, seja em um amor, seja em uma flor, seja no navio, que é velho, mas que via pro mar, e que já foi dito, é infinito. Vapor barato, parece uma ode à esperança, ao caminho que não acaba e que por isso precisa ser a cada dia escrito. Cansado, mas com crença ainda, indo e vindo, “um dia eu volto quem sabe” (MACALÉ; SALOMÃO. 2010. Quando escutamos “Me deixa” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), e que hoje estamos de bobeira, mais que a rima, há ali libertação. Há na canção uma nota de libertação das amarras, talvez todas estas que acima eu discorri. Parece que isso é um aviso, não procurem, “não verão mais pedaços por ai” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Haverá um novo enredo, um novo dia de folia, e ali renascemos outro, libertos, e longe daquele aprisionado. Esse encontro consigo mesmo, parece uma fase mais madura da banda em que os próprios artistas se veem realizados, talvez sensíveis por pequenas mudanças no país e percebem que mesmo pela internet podem mudar o mundo. “Desafiam o mundo sem sair de casa” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), essa relação com agora um homem que tem casa, que sabe quem é, que é mais sincero consigo, talvez mostre uma face aparecida daquele homem do gueto que agora tem voz, fala e quer habitar a polis sem se vender ou querer se esconder. “Não se trata de coragem, mas meus olhos estão distantes, me camuflam na paisagem dando um tempo pra cantar” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). É sim um nascimento, quiçá uma redenção!

Não poderia encerrar com outra canção senão aquela que nos faz exatamente estar aqui hoje. Nos faz reunir tanta diversidade, desafiar o ensino jurídico, desfiar nossos preconceitos, inventar um novo espaço de construção do saber, nos reinventarmos. Assim, mesmo tendo meus joelhos doendo, há ainda um motivo para estarmos aqui. Há ainda uma manhã de outono, e outra e nela livros sem fim, palavras a serem inventadas, uma nova subjetividade a ser inventada. Que saibamos pescar, que saibamos ter ilusões, que essas palavras de realidade, amor, tristeza e anunciação sejam adubo desse novo tempo plural, cheio de ilusões, cheio de fés diversas, cheio de dúvidas e menos certezas, cheio de ilusões.

REFERÊNCIAS

GALEANO, Eduardo. Patas arriba. La escuela del mundo al revés. Buenos Aires: Siglo, 1998.

RAPPA, O. Ao vivo – Vol. 1. Warner Music: 2010.

RAPPA, O. Ao vivo – Vol. 2. Warner Music: 2010.

NOTAS DE FIM

1 Texto origialmente apresentado no evento “Dire(i)to no ponto”, que integra o Projeto Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2 Graduação em Direito pela Faculdade de Conselheiro Lafaiete. Especialização em Filosofia pela UFOP. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutorando em Direto pela PUC/MG. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.