Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Carlos Magalhães

RESUMO: O presente artigo desenvolve algumas reflexões sobre o problema da ordem, tal como exposto por Talcott Parsons, levando em consideração a abordagem da etnometodologia. Analisa-se a relação problemática entre a ordem factual e a ordem normativa. Ao construir sua versão do funcionalismo, um dos primeiros movimentos de Parsons foi rejeitar como erro a equivalência entre sociedade e moralidade proposta por Durkheim. O paradigma funcionalista separa a sociedade da moralidade, pois de outra forma não seria possível afirmar a ordem factual (sociedade) como um resultado da adesão dos indivíduos à ordem normativa (moralidade), que seria por eles internalizada via socialização. Durkheim não faz essa distinção. Para Durkheim, moralidade e fatos sociais seriam coisas idênticas sujeitas em si mesmas à investigação científica. A etnometodologia abandona o modelo de “sociedade governada por regras” em favor de um novo tópico chamado de etnométodos. Ou seja, as práticas sociais empíricas por meio das quais os membros da sociedade produzem um sentido de ordem. Dessa forma, a atividade considerada desviante ou criminosa torna-se um campo muito propício para a análise etnometodológica, pois os atores envolvidos nessas atividades são desafiados o tempo todo a produzir relatos sobre o seu envolvimento e suas consequências em condições cognitivamente críticas, nas quais a moralidade e a confiança são elementos cruciais.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria social, sociedade, ordem, moralidade, desvio, etnometodologia. 

ABSTRACT: This article develops some reflections on the problem of order, as set out by Talcott Parsons, taking into account the approach of ethnomethodology. The article analyzes the problematic relationship between the factual and the normative order. When building his version of functionalism, one of the first movements of Parsons was rejected as error the equivalence between society and morality proposed by Durkheim. The functionalist paradigm separates society of morality, because otherwise it would not be possible to state the factual order (society) as a result of the active assumption of individuals to a normative order (morality), which would be internalized via socialization. Durkheim does not make this distinction. For Durkheim, morality and social facts would be identical things subject themselves to scientific research. Ethnomethodology abandon the model of “society governed by rules” in favor of a new topic called ethnomethods, namely, the empirical social practices through which members of society produce a sense of order. Thus, the activity considered deviant or criminal becomes a very interesting field for ethnomethodological analysis, because the actors involved in these activities are challenged all the time to produce reports about their criminal involvement (and their consequences) in a cognitively critical condition in which the morality and trust are crucial.

KEYWORDS: Social theory, society, order, morality, deviation, ethnomethodology. 

ÁREA DE INTERESSE: Criminologia; Sociologia Jurídica, Teoria Social.

1) INTRODUÇÃO

De acordo com Richard Hilbert (1992), Talcott Parsons formaliza o problema da ordem como a relação problemática entre a ordem factual e a ordem normativa. A ordem factual é a ordem empírica observável na realidade e que exige explicação. É ela que dá origem ao “quebra-cabeça” intelectual conhecido como “problema da ordem”. É o fenômeno objetivo da regularidade dos assuntos humanos, é uma ordem comportamental. A ordem factual é também estrutural na medida em que é observável independentemente de suas manifestações individuais e das ideias dos agentes sobre o seu próprio comportamento. A ordem factual é a própria sociedade. Seu oposto é o caos e o comportamento aleatório. Já que a ordem factual não pode ser negada, pois tem existência objetiva, é preciso explicá-la. Estabelece-se assim o problema da ordem.

A ordem normativa, por sua vez, se refere ao ponto de vista do ator e contém elementos de subjetividade e de agência ativa. Em Parsons, de acordo com Hilbert (1992), a ordem normativa é um sistema composto por normas, valores, papéis e status ao qual o ator adere. A ordem normativa é moral dado que os atores se submetem a ela de forma subjetivamente profunda. A ordem normativa é, também, prescritiva. Os atores, na medida em que se submetem, seguem as prescrições, o que, no final das contas, resulta em comportamento objetivo. Em larga escala o resultado é a ordem factual, ou seja, a sociedade.

A ordem normativa contém, portanto, regras – normas e valores – que estabilizam o comportamento. A ordem normativa é relativa à sociedade e sua impressão nos indivíduos se dá por meio dos processos de socialização e internalização. A ordem normativa é institucionalizada, ou seja, é imposta aos indivíduos de fora para dentro. Mas também é interna aos indivíduos de modo que se transforma em sua consciência. Na medida em que o conteúdo objetivo da ordem se torna subjetivamente presente, os atores compartilham uma base subjetiva. A ordem normativa é a base do entendimento compartilhado, isto é, da intersubjetividade. Como é também transmitida via socialização, passa de uma geração a outra.

Conclui-se que a ordem factual observável é causada por outra ordem mais difícil de conhecer: a ordem normativa. Parsons preserva a agência ativa do ator entendendo que os meios que apontam para a realização de um fim fazem parte da ordem normativa e são, até certo ponto, escolhidos pelos agentes. No entanto, a escolha dos meios é governada por normas. A escolha dos fins realizada pelos atores é governada por valores. Normas e valores não têm de ser racionais, na verdade os valores que governam os fins últimos da ação não podem ser racionais. Normas e valores são dados e internalizados pelos atores por meio do processo de socialização. De fato, normas e valores governam “de dentro para fora” as escolhas dos agentes.

De acordo Heritage (1984), o esquema parsoniano, embora mantenha a subjetividade do ator como um elemento analítico para o teórico, estabelece sua completa desconexão em relação à subjetividade concreta de atores concretos. Os fatos da personalidade do ator são equivalentes aos fatos da ordem normativa por obra dos mecanismos de socialização e internalização. Para Parsons, os padrões de valores culturais operam por trás dos indivíduos motivando-os. Os atores, no final das contas, são transformados em “judgemental dopes”, isto é, meros seguidores de regras incapazes de negociá-las e interpretá-las situacionalmente (GARFINKEL, 1967: 70).

2) A  CRÍTICA ETNOMETODOLÓGICA A PARSONS

Garfinkel procura avançar no estudo da ação institucionalizada chamando a atenção para os fenômenos residuais problemáticos da obra de Parsons. Dessa forma, dirige a sua análise para os seguintes aspectos: 1) Os atores fazem relatos sobre suas próprias ações, ou seja, eles têm suas próprias versões sobre o que estão fazendo e por que. 2) Os atores coordenam ações com base em pressuposições de entendimento compartilhado. 3) Atores frequentemente invocam teorias sobre comportamentos governados por normas para propósitos estratégicos e que nada têm a ver com uma descrição acurada ou com conformidade em relação a normas (cf. HILBERT, 1992: p. 22).

A principal tese de Hilbert é a de que Garfinkel recupera com seu programa de pesquisas temas chave da sociologia clássica que haviam sido anulados pela síntese funcionalista parsoniana. O trabalho de Hilbert nos permite tratar as questões relacionadas ao crime e ao desvio ligando-as a problemáticas clássicas, em especial as ideias de Durkheim sobre o status do crime como “definição social”.

A etnometodologia ataca o modelo de sociedade baseado na noção de comportamento governado por regras de duas formas: 1) o modelo não teria êxito nem mesmo em termos abstratos e, além disso, 2) não corresponde ao que se pode observar por meio de estudos empíricos sobre a vida social organizada. O ataque etnometodológico é devastador para o funcionalismo e seria também para Durkheim, escreve Hilbert, se a consciência coletiva durkheimiana, como queria Parsons, consistisse de normas e valores. Mas a ideia de uma sociedade governada por regras não faria parte da abordagem durkheimiana.

Ao construir sua versão do funcionalismo, um dos primeiros movimentos de Parsons foi rejeitar como erro a equivalência entre sociedade e moralidade proposta por Durkheim. Nos termos de Parsons, a sociedade apresenta uma ordem factual que é causada pela moralidade. Ou seja, por um tipo analiticamente distinto de ordem – a ordem normativa – que consiste de normas e valores respeitados pelas pessoas. Para Parsons, uma sociedade perfeitamente integrada supõe outro sistema perfeitamente integrado que poderia ser chamado de “corpo de regras” ou “corpo de regras normativas”. De acordo com Hilbert, Durkheim não faz essa distinção. Para Durkheim, moralidade e fatos sociais são coisas idênticas sujeitas em si mesmas à investigação científica. Poderíamos dizer que fatos sociais são também fatos morais e que não podem ser separados, nem mesmo analiticamente, como pertencentes a duas ordens distintas de fenômenos.

De acordo com Wilson (1970 apud HILBERT, 1992: p. 32), o modelo funcionalista pode ser caracterizado como um paradigma normativo. O tema unificador e não explícito do paradigma é a correspondência literal entre situações e comportamentos ligados por regras estabilizadoras que designam ações específicas como apropriadas para situações específicas. Isto requer um significado prescritivo sem ambiguidade para a regra em cada caso em que for aplicada, entendida ou seguida. O paradigma parte dessa premissa, pois de outra forma não seria possível aceitar a ordem factual como um resultado da adesão à ordem normativa. Se as normas estabilizam o comportamento, então as normas têm que ser estáveis.

Para Hilbert, a ideia de que as regras estabilizam o comportamento ou que o comportamento estável requer regras é uma suposição de senso comum particularmente difícil de abandonar. A etnometodologia questiona os fundamentos do modelo prescritivo de forma similar à crítica de Durkheim ao entendimento de que regras racionais poderiam promover a regulação social: regras não são capazes de regular sem moralidade.

Na realidade, o comportamento humano estável não depende de regras. O fato de que, algumas vezes, as regras sejam apresentadas como requisito para a ação estável não significa que elas sejam mesmo necessárias. Os atores nunca fazem a exigência analiticamente impossível de prescrição literal antes de agirem, pois seus interesses são, geralmente, práticos e não teóricos. Caso os atores ficassem esperando pelo esclarecimento teórico das prescrições, nunca agiriam. De acordo com Hilbert, as questões referentes à suposição, feita pelos próprios atores, de que regras são necessárias para o comportamento estável, ou seja, se os atores fazem essa suposição ou não, como fazem essa suposição, em que consiste tal suposição são, para a sociologia, problemas empíricos.

A premissa de Durkheim é de que a moralidade é empírica e não uma hipótese explanatória que estabelece uma ordem normativa abstrata. A regulação moral é parte do mundo natural e, portanto, factual para a sociologia (HILBERT, 1992: p. 38). Essa ideia estaria presente no comentário de Durkheim sobre a insuficiência dos contratos como estabilizadores das condutas. Os contratos dependem de uma solidariedade pré-contratual, de uma base de confiança, que não pode ser abstrata, mas empírica. Esse tema é central para Garfinkel, que entende a confiança como resultante da “conformidade de uma pessoa com as expectativas da atitude da vida cotidiana como uma moralidade” (Cf. PAIXÃO, 1983).

Os estudos concretos da etnometodologia mostram que moralidade não pode ser a mesma coisa que regras. Quando procuramos por regras em contextos de comportamentos estáveis e moralmente regulados, não as encontramos, escreve Hilbert (1992: p. 39). A etnometodologia abandona o modelo de “sociedade governada por regras” em favor de um novo tópico chamado de etnométodos. Ou seja, práticas sociais empíricas por meio das quais os membros da sociedade produzem um sentido de ordem. Atividades que retêm as características durkheimianas de exterioridade e constrangimento. Mas o fato de que as práticas são produtos da engenhosidade dos atores (“artful”) e não de prescrições seguidas irrefletidamente requer um novo entendimento de como é possível a ocorrência do desvio dentro da ordem social e como pode haver algo como a conformidade em relação a expectativas coletivamente estabelecidas.

Para Parsons, as regras são capazes de prescrever o comportamento. Para que os membros da sociedade respeitem voluntariamente as regras é preciso que eles sejam socializados e internalizem as prescrições normativas. De acordo com esse modelo, o crime pode ser resultado da socialização imperfeita ou mesmo da diversidade de pessoas e suas idiossincrasias. O crime seria inevitável porque nem todas as pessoas respeitam as normas e valores suficientemente.

Mas Durkheim fala de algo muito mais profundo quando apresenta a tese da inevitabilidade do crime. A concepção de Durkheim (1994) nada tem a ver com conformidade insuficiente com a moralidade. De acordo com a concepção durkheimiana, nenhum indivíduo pode se conformar com a moralidade. A moralidade é um aspecto da consciência coletiva e, portanto, algo que transcende a todos os indivíduos; algo que nenhum indivíduo pode incorporar, manifestar ou ser de forma completa. Qualquer comportamento individual será, um pouco mais ou um pouco menos, uma violação da moralidade coletiva. De acordo com Hilbert (1992: p. 47), o desenvolvimento dessa linha de raciocínio nos levaria à conclusão de que a consciência coletiva se reduz nas mentes individuais a alguma coisa fenomenicamente não existente. O tecido social seria, de acordo com essa conclusão, quase inexistente. Estaríamos diante daquilo que Durkheim chama de anomia.

No entanto, os membros da sociedade são chamados de volta para a moralidade coletiva, de modo que se previna a anomia, por meio da identificação ritual de alguém como o mais radical transgressor e do consequente julgamento do status do seu comportamento de acordo com os termos da consciência coletiva, que de outra forma seria um ideal inacessível ou mesmo intangível. É assim definida a cerimônia essencial para a constituição e manutenção da sociedade, ou da moralidade, como algo existente de fato. A prevenção ritual da anomia – que transforma a sociedade em algo tangível – é frequentemente colocada em prática em diferentes interações sociais. Consequentemente, os dois motivos pelos quais o crime é normal e não pode ser eliminado são: 1) Qualquer comportamento que seja eliminado pode dar lugar a outros que assumirão a posição de transgressão mais grave do ponto de vista da consciência coletiva. 2) O recrutamento dos “marginais” para o julgamento e punição é crucial para a manutenção da ordem social e para o afastamento da anomia (na medida em que torna tangível e acessível a consciência coletiva) e, assim, sempre deverá ocorrer (Cf. HILBERT, 1992: p. 48).

3) INDEXICALIDADE, REFLEXIVIDADE E MORALIDADE

De acordo com a interpretação realizada por Hilbert, os etnometodólogos, desafiando o funcionalismo parsoniano com base em suas descobertas empíricas, recuperaram uma teoria da conformidade muito próxima daquela originalmente desenvolvida por Durkheim. A teoria da conformidade que aproxima a etnometodologia da sociologia durkheimiana emerge quando Garfinkel introduz o conceito de “indexicalidade”.

Da forma mais simples, “indéxico” é o termo que Garfinkel (1967) usa para descrever uma propriedade de expressões semânticas que faz com que seu significado varie com o contexto e que seja, em um nível geral, dado a equívocos, imprecisões e questionamentos. O objetivo, perseguido por alguns sociólogos, por exemplo, de construir um vocabulário objetivo, capaz de produzir uma descrição literal de atos e eventos do mundo social de um modo cientificamente preciso e diferente da imprecisão do senso comum é fadado ao fracasso, pois todas as expressões são indéxicas, inclusive aquelas usadas para reduzir a indexicalidade de outras expressões.

A ideia correspondente ao constrangimento moral durkheimiano aparece quando se observa o fato de que, ao discutirem sobre o significado de alguma palavra ou expressão, as pessoas – comprometidas com aquilo que Heritage (1984) chama de moralidade da cognição – constrangem-se umas às outras para que cada uma mantenha um entendimento considerado adequado em um contexto específico. É esse constrangimento mútuo que produz a impressão de que existem maneiras certas e erradas de compreender alguma coisa. No entanto, os atores não sentem esse constrangimento como um mero constrangimento imposto por uma pessoa a outra. Os atores têm, na realidade, a sensação de que o seu comportamento ou uso de algum elemento linguístico se conforma ou falha em se conformar com algum “padrão subjacente” conhecido, ainda que não especificado. De um modo geral, escreve Hilbert, cada uso concreto de um recurso cultural (um argumento, uma descrição, uma norma ou um valor) é feito com base na presunção de que ele documenta um padrão subjacente de tal forma que esse padrão teria antecipado seu uso específico. Dessa forma, para os atores, cada situação documentada do padrão subjacente explicita algo mais sobre o padrão que os atores “conheciam desde o início”, mas nunca haviam explicado. Esse “método documental de interpretação” é, portanto, em um sentido prospectivo e retrospectivo, o método por meio do qual os membros da sociedade realizam na prática a conformidade ou a não conformidade a padrões (HILBERT, 1992: p. 51).

Segundo Hilbert (1992: p. 51) para os etnometodólogos, preocupados com eventos empíricos, tais padrões subjacentes são mitos na medida em que não podem ser encontrados fora de situações de uso concreto. De fato, a indexicalidade impede que eles sejam encontrados fora de um contexto, apesar de eles serem elementos de conhecimento comum profundo entre os membros da sociedade. Os padrões subjacentes podem ser encarados como idealizações conceptuais, mas, para o etnometodólogo, eles são empíricos e tornam-se observáveis apenas em situações de uso concreto. Tais expressões não se referem a nenhuma entidade semântica ou padrões lógicos de uso que definam antecipadamente o uso apropriado. Os recursos culturais usados para documentar algum padrão subjacente não têm um núcleo estável de significado, mas, ao contrário, têm um conjunto de significados aplicados, ou aplicáveis concretamente, que são abertos e expansivos e que somente serão definidos em contextos específicos de negociação e interação social.

A impressão de que os recursos culturais – seja um argumento, uma descrição, uma norma ou um valor – têm um núcleo de significado estável e literal é resultado do constrangimento relacionado a seu uso prático que as pessoas impõem reciprocamente umas às outras nas interações de que participam. Quando existe uma maneira considerada “certa” e outra “errada” de se usar uma expressão, necessariamente existe algo (uma moralidade da cognição) em relação a que o uso específico deve se conformar mais ou menos. Portanto, escreve Hilbert (1992: p. 52), vemos na administração criativa de expressões indéxicas um método coletivo de sustentação do mito dos padrões subjacentes – relativamente – fixos. Sem os constrangimentos morais-cognitivos, a impressão desapareceria. Se qualquer coisa pode passar por uso correto, ou se nada é reconhecido como uso incorreto, a própria ideia de “uso-em-conformidade” desapareceria e, assim também, noções de uso correto. A possibilidade de erro e correção propicia a impressão de que certos usos e não outros estão em conformidade com os padrões subjacentes. Vale destacar que as situações cotidianas em que as pessoas apontam os erros e apresentam as correções para certas afirmações ou descrições realizadas por alguém são fundamentalmente semelhantes aos rituais de prevenção da anomia de que tratava Durkheim. Nas duas situações, uma realidade a princípio intangível torna-se observável na medida em que se especifica o seu contrário.

Recursos conceptuais parecem transcender as ocasiões específicas de uso prático, no entanto eles são incapazes de prescrever seu próprio uso fora de um contexto delimitado. O conceito de “ter”, exemplifica Hilbert, não pode ser pré-especificado em termos de uso apropriado, nem é possível identificar o seu núcleo de significado válido para uma variedade de situações. Mas o constrangimento mutuamente exercido pelas pessoas e que define um uso específico e contextualizado do conceito reproduz continuamente a impressão de que existe um núcleo estável de significado (HILBERT, 1992: p. 52).

Da mesma forma, no caso de Durkheim, a consciência coletiva não pode ser exposta ou expressada em sua totalidade por nenhum comportamento concreto. Mas o seu status como moralidade transcendente é sustentado pelo recrutamento do comportamento designado como crime e pela comparação rigorosa entre o que seria certo e o que seria errado. Nos dois casos, escreve Hilbert (1992: p. 51), o constrangimento social é concreto e empírico e a redução ou ausência do constrangimento produziria uma “falta de significado”, no caso do conceito, e a anomia, no caso da consciência coletiva.

Resta uma questão importante tanto para a etnometodologia como para Durkheim. Como podem recursos culturais inerentemente indéxicos, incapazes de prescrever o seu próprio uso, produzirem a ordem social factual que observamos diante de nós? Como pode o respeito subjetivo pela consciência coletiva produzir ordem se a consciência coletiva não é capaz de dizer a ninguém o que fazer?

De acordo com Hilbert (1992: p. 56), Garfinkel não tem que responder a essa questão já que fala não apenas de expressões indéxicas, mas também de ações indéxicas. Da mesma forma que os recursos culturais, como expressões linguísticas, não significam nada fora de um uso particular específico, nenhum comportamento tem um significado intrínseco independente de sua colocação em categorias pelos usuários da cultura. Para Garfinkel os membros da sociedade usam expressões indéxicas para organizar ações indéxicas de forma a produzir, para si mesmos, uma impressão de ordem social estável. Esse é o fenômeno chamado de reflexividade.

De acordo com Hilbert (1992: p. 56), a concepção de Garfinkel não remove o “comportamento” da jurisdição dos estudos empíricos e mantém seu status factual para ciência, mas o comportamento, tal como compreendido por Garfinkel, passa a incluir as apresentações verbais produzidas pelos atores. Especialmente as falas e teorizações dos atores sobre o seu próprio comportamento. Por meio do uso de categorias culturais os atores organizam seu comportamento como “comportamento-de-tal-tipo”, estruturado, reconhecível, repetitivo e padronizado. É também o comportamento tal como é organizado que propicia o contexto para as expressões indéxicas usadas para organizá-lo, dessa forma a ambiguidade dos recursos culturais é reduzida para os propósitos práticos dos atores.

Portanto, para Garfinkel o problema da ordem social não pode ser solucionado sem o exame de como as pessoas realmente produzem a ordem sobre a qual elas falam e que é tomada como evidentemente factual. Esses métodos de produção de ordem, ou etnométodos, são observáveis naquilo que os membros de uma cena fazem e dizem. Esses métodos são, portanto, parte das próprias cenas que eles organizam como factual. De acordo com Garfinkel (1967: p. 8), a descrição da ordem social é ela própria parte da ordem social descrita.

Na produção das descrições, o constrangimento opera e é encontrado na atividade humana concreta. Os membros não permitem uns aos outros a produção de qualquer relato descritivo sobre um cenário específico. Eles regulam as atividades uns dos outros, com o resultado de que cada um tem que ficar atento a essa prática reguladora externa. Portanto, essa regulação externa é factual. Unificam-se assim os aspectos factuais e normativos da ordem sui generis durkheimiana (HILBERT, 1992: p. 58).

Vale repetir, que as regras invocadas, criadas ou interpretadas pelos membros da sociedade não podem fazer o trabalho prescritivo requerido pelo funcionalismo parsoniano. Elas são recursos culturais usados pelos membros na construção da ordem, mas elas não são capazes de prescrever a ordem. A norma é, portanto, duplamente constitutiva das circunstâncias que ela organiza. Ela proporciona tanto a inteligibilidade como a “acountabilidade” (a possibilidade de explicação) de uma situação como normal. A norma oferece os meios pelos quais se torna possível a descrição da situação.

Para Garfinkel, o que é importante em relação às descrições é que elas são usadas para tornar disponíveis, manter, transformar ou administrar atividades sociais organizadas de forma combinada. Nesse contexto, a questão sobre “se” ou “como” as descrições mundanas são avaliadas, interpretadas, aceitas ou contestadas (e sob quais critérios) é empírica. Questões teóricas estabelecidas a priori não são úteis nesse escrutínio. O objetivo não é validar ou invalidar as descrições apresentadas pelos membros, mas observar como elas organizam e são organizadas pelas circunstâncias empíricas em que ocorrem (HERITAGE, 1984: 141).

Esse posicionamento corresponde à política da “indiferença etnometodológica”, que, de acordo com Garfinkel (1967: p. viii), consiste no princípio de que os “ethnomethodological studies are not directed to formulating or arguing correctives. They are useless when they are done as ironies. […] They do not formulate a remedy for practical actions, as if it was being found about practical actions that they are better or worse than they are usually cracked up to be”.

A essência da análise etnometodológica envolve o “método documental de interpretação” no qual a descrição e seu contexto elaboram-se um ao outro. A descrição invoca um contexto que será levado em consideração e os resultados dessa consideração, por seu turno, elaboram o sentido específico da descrição (HERITAGE, 1984: 147). Heritage nos apresenta um exemplo de análise etnometodológica quando aborda o tratamento dado aos relatos na etnografia de Wieder (1974) sobre uma casa de albergados (half-way house) para infratores. Quando os cientistas sociais são apresentados a algum tipo de relato ou explicação sobre a ação, a primeira decisão diz respeito à credibilidade que poderá ou não ser dada a ele. Essa decisão é tomada de acordo com o objetivo de controlar o uso que poderá ser feito do relato.

Quando os relatos são tratados como merecedores de crédito, esforços são feitos para que sejam correlacionados de algum modo com ações ou então para construir os assuntos de que ele trata como uma análise da estrutura social. Nesse esquema, os relatos dos atores são sempre tratados como representativos dos motivos, ações e circunstâncias estruturais que pretendem descrever.

4) CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho de Wieder mostra que há uma alternativa de análise. Esse método alternativo envolve o tratamento de ambos, as ações dos atores e seus relatos, como partes da história natural do campo sob estudo, isto é, ambos são tratados como institucionalmente organizados por referência a algum conjunto de “accounting frameworks” em termos dos quais as exigências e considerações do campo são manipuladas. Dentro dessa atitude analítica, a questão crítica de pesquisa diz respeito ao modo “como” os relatos funcionam e são usados no interior do campo. As questões de verdade e falsidade dos relatos tornam-se significantes apenas como um problema a ser resolvido pelos próprios atores no interior do campo e não como uma questão a ser examinada pelo analista com base em critérios externos.

A análise de Wieder mostra também (Cf. HERITAGE, 1984: 208) que onde quer que os cientistas sociais encontrem campos institucionais nos quais recursos como valores, regras e máximas de comportamento são invocados abertamente, sua identificação não vai fornecer um “terminus” explicativo para a investigação. Essa identificação constitui o primeiro passo de um estudo dirigido à descoberta de como os recursos são perceptualmente exemplificados, usados, invocados e contestados. As regras e máximas tornam-se interessantes na medida em que são usadas de forma flexível e engenhosa na elaboração de explicações para a conduta.

Como resume Paixão (1983: p. 36), “para os etnometodólogos, o problema da ordem social não é a explicação de regularidades empíricas e observáveis, mas como os membros da sociedade descrevem e explicam a ordem no mundo de sua experiência, ou seja, como desenvolvem um ‘sentido’ de ordem e de estrutura que explica a ação social como estável”. Dessa forma, a atividade considerada desviante ou criminosa torna-se um campo muito propício para a análise etnometodológica, pois os atores envolvidos nessas atividades são desafiados o tempo todo a produzir relatos sobre o seu envolvimento e suas consequências em condições cognitivamente críticas. Situações em que o sentido de existência de uma ordem estável está sempre ameaçado.

REFERÊNCIAS 

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1990.

DURKHEIM, E. Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ícone, 1994.

GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1967.

HERITAGE, John. Garfinkel and ethnomethodology. Cambrige: Polity Press, 1984.

HILBERT, Richard A. Ethnomethodology. Chapel Hill: University of Carolina Press, 1992.

PAIXÃO, A. L. “Crime, desvio e sociologia”. 1983. mimeo.

WIEDER, D. L. Language and Social Reality, The Hague: Mouton, 1974.

WILSON, T. “Conceptions of interaction an forms of sociological explanation.” American Sociological Review 35:, 1970.