Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Daniel Guimarães Medrado de Castro

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo perpassar por algumas das teorias da racionalidade da decisão judicial. Inicialmente, analisaremos as principais escolas do Juspositivismo clássico, perpassando pela Escola da Exegese, pela Escola Histórica do Direito e pela Jurisprudência dos Conceitos. Em seguida, serão apreciados os principais aspectos do normativismo kelseniano, reconhecido como o principal expositor do positivismo jurídico no início do século XX. Ainda, teceremos algumas considerações sobre a escola do Pragmatismo americano, mormente acerca de algumas colocações de Richard A. Posner.

PALAVRAS CHAVES: Racionalidade; Positivismo; Pragmatismo; Decisões Judiciais.

ABSTRACT: This study aims to analyze some theories of rationality in judicial decisions. Initially, we will analyze the main schools of classical juspositivism, passing through the School of Exegesis, the Historical School of Law and the Jurisprudence of Concepts. Then it will be appreciated aspects of Kelsen’s normativism, recognized as the leading exhibitor of legal positivism in the early twentieth century. Then, we will weave some considerations about the school of American Pragmatism, especially about some placements of Richard A. Posner. 

KEYWORDS: Rationality, Positivism, Pragmatism, Judicial Decisions.

ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional

1. INTRODUÇÃO

A decisão judicial não é mero produto matemático da equação de um fato no qual se aplica uma norma, mas sim um processo de cognição do direito por meio do qual a racionalidade se apresenta como elemento fundante, capaz de desvelar o sentido adequado da norma.

Para realizar esse desvelamento emergiram diversas teorias que objetivaram desenvolver métodos capazes de explicar como se dá (ou deve se dar) o processo hermenêutico. Foram, assim, criados métodos que prometem encontrar a norma perfeita aplicável ao caso concreto.

Assim, o escopo do presente trabalho é realizar uma reconstrução acerca dos métodos de racionalidade da decisão judicial, abordando a sua evolução a partir da Revolução Científica, momento no qual há a cisão entre a filosofia/teologia e o conhecimento/ciência.

Antes, contudo, passaremos rapidamente pelas teorias do conhecimento desenvolvidas na Grécia Antiga, uma vez que estas subsidiam e alicerçam grande parte das teorias da decisão judicial aplicadas na sociedade contemporânea. 

 

2. TEORIA DO CONHECIMENTO EM SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES 

Sócrates, arquiteto da ontologia clássica, defendia a necessidade de se buscar o conhecimento verdadeiro, aquele incapaz de se curvar às necessidades momentâneas dos sofistas. Um saber cunhado na racionalidade reflexiva e com a aptidão de construir conceitos absolutos, infalíveis e imutáveis. Uma compreensão que transcendesse a visão ordinária que cada um tem do mundo, pautada na irracionalidade, no subjetivismo e no senso comum (doxa).

O filósofo pretende encontrar a verdade da coisa em si, isto é, um conceito que espelhe o que cada objeto é na sua essência. Com isso ele acreditava combater o relativismo retórico sofista, que manuseava a “verdade” em busca de um convencimento puramente argumentativo.

Nesse mister, Sócrates irá desenvolver o método dialógico maiêutico, acreditando ser possível encontrar a essência de um conhecimento a partir de habilidosos questionamentos. Em outras palavras, com afirmações e refutações alcançadas a partir de perguntas hábeis, seria factível encontrar a verdade, que já se localizava na mente humana.

A maiêutica, portanto, nada mais é que um chamado para a autorreflexão (conhece-te a ti mesmo) do homem na busca por uma verdade ontológica, caminho único para a prática do bem e da virtude.

Platão, discípulo de Sócrates, também desenvolveu a sua filosofia por uma busca pela verdade ontológica, expressando que o ser das coisas encontrava-se em um mundo metafísico, o mundo das ideias.

A realidade, assim, seria dividida dicotomicamente em um mundo sensível (das coisas) e um mundo inteligível (das ideias). O acesso ao primeiro dar-se-ia pelos sentidos do homem (olfato, paladar, tato, audição e visão), ao passo que o mundo inteligível estava em uma esfera supraceleste, que exigiria ir além dos sentidos, que exigiria o suprassensível, isto é, alcançável apenas pelo intelecto.

O mundo das ideias seria o espaço metafísico onde seria descoberto o verdadeiro conhecimento; onde seria possível apreender a essência de todas as coisas, aquela essência sem forma e impalpável. Nesse Hiperurânio estaria a existência do belo em si, do bom em si e das demais realidades em si. Enquanto verdade, esses conceitos eram essencialmente imutáveis e absolutos.

Por sua vez, o mundo sensível seria uma construção a partir da existência do mundo das ideias, ou seja, uma sombra do inteligível, verdadeira cópia. Como tal seria uma realidade flexível e não perene, cujo produto das inferências seria puramente doxático e não conduziria ao conhecimento.

Mas, se as coisas acessíveis pelos sentidos são sombras, como poderia o homem conhecer a verdade que o permitiria formular conceitos no mundo sensível? A Teoria das Ideias platônica compreendia que a alma era imortal e o fato do indivíduo encarnar como homem significava a sua passagem pelo mundo das ideias, o que lhe permitiu um contato, ainda que breve, com a verdade ontológica.

“[…] a alma, em sua situação originária, pode ser comparada a um carro puxado por dois cavalos alados, um dócil e de boa raça, o outro indócil (os instintos sensuais e as paixões), dirigido por um cocheiro (a razão) que se esforça por conduzi-lo bem. Esse carro, num lugar supraceleste, circula pelo mundo das ideias, que a alma assim contempla, mas não sem custo. As dificuldades para guiar a parelha de cavalos fazem com que a alma caia: os cavalos perdem as asas, e a alma fica encarnada num corpo. Se a alma viu as ideias, por pouco que seja, esse corpo será humano e não animal; conforme as tenham contemplado, mais ou menos, as almas estão numa hierarquia de nove graus, que vai do filósofo ao tirano. A origem do homem como tal é, portanto, a queda de uma alma de procedência celeste e que contemplou as ideias. Mas o homem encarnado não as recorda. De suas asas restam tão somente cotos doloridos, que se excitam quando o homem vê as coisas, porque estas lhe fazem recordar as ideias, vistas na existência anterior. É este o método do conhecimento: o homem parte das coisas, não para ficar nelas, para encontrar nelas um ser que não têm, mas para que lhes provoquem uma lembrança ou reminiscência (anámnesis) das ideias em outro tempo contempladas. Conhecer, portanto, não é ver o que está fora, mas, ao contrário, recordar o que está dentro de nós. As coisas são apenas um estímulo para nos afastarmos delas e nos elevarmos às ideias.” (MARÍAS, 2004. Pg 52/53)

Em outras palavras, quando se diz que algo é branco, para Platão, essa percepção somente seria factível porque a alma já tivera contato com a concepção do que é a brancura quando passou pelo mundo das ideias. Esse processo cognitivo exigiu a visitação da essência da brancura, que só é encontrada no mundo inteligível. A neve, a nuvem, a pétala da margarida ou mesmo o ovo, por ser uma cópia do existente no mundo das ideias, jamais alcançaria a plenitude da brancura.

O conhecimento para Platão, portanto, estava alocado na alma (psyché) do homem, que deveria rememorar o que fora visto no mundo das ideias. Por esse processo de reminiscência1 (anamnese2) o homem seria capaz de chegar ao ser do ente.

Aristóteles, por sua vez, não obstante ser discípulo de Platão, insurgira contra a universalidade como um alcance dedutivo da metafísica, compreendendo que o papel do filósofo é observar a realidade e identificar os elementos que compõem um objeto e, diante disso, descrever o mundo como ele é por natureza, ou seja, como é por essência. O filósofo, portanto, permeará a sua busca pela quididade de cada coisa.

“O cosmos era composto da individualidade, pois a substância primeira está presente em cada indivíduo, como Sócrates, Cálias, Alcebíades e, então, a observação de sua essência formaria os universais pela substância. Por conseguinte, somente da observação de um bom número de cavalos, o filósofo seria capaz de identificar suas características gerais, ou seja, extrairia sua quididade, sua essência, seu universal. Um atributo seria essencial pelo fato de que, caso não estivesse presente na sua “natureza”, a coisa não seria. Desse modo, uma vaca somente é mamífera porque seus filhotes de fato mamam. Ou, se a experiência define que ter seis patas é uma característica essencial para um inseto, uma aranha ou um escorpião não podem ser assim classificados. Em geral, os intérpretes clássicos veema essência como ousia, ou seja, “o que é por si mesmo”. (CRUZ, 2011)”

Além das características observáveis e da consequente extração da ousia de cada ser, o que o identificaria como ser por essência, havia a possibilidade do ser não deter uma específica característica imprescindível para a identificação da sua quididade e, mesmo assim, não perder a sua condição de ser.

Em exemplificação, um homem que mancasse com uma perna (característica não identificável na categoria “homens”) não deixaria de ser homem, mantendo a sua qualidade de ser. Para tanto, Aristóteles esposou que, neste caso, o homem manco seria um ser por acidente, o que diferenciaria do ser por essência.

Ao separar as coisas em categorias, Aristóteles defendeu que uma proposição, para ser verdadeira, deveria ser formada com elementos intracategoriais. Para tanto, dividiu a sentença em sujeito e predicado, criando o método analítico, que contrastava com a dialética.Assim, se o predicado atribuído ao sujeito estivesse na mesma categoria deste, poderia se dizer que a proposição estava correta.

Na formação da sua lógica (lógica apofântica), Aristóteles construiu o método dedutivo de aferição da verdade, por meio do qual a verdade seria extraída de uma equação silogística em que uma premissa menor se adequaria a premissa maior, chegando-se a uma conclusão. Em síntese esquemática:

Premissa Maior: Todos os homens são mortais.

Premissa Menor: Sócrates é homem.

Conclusão: Sócrates é mortal.

Essa organização silogística não seria hábil para se chegar a uma verdade a priori, uma vez que, mesmo tendo coerência na proposição, está poderia não indicar a realidade. Daí Aristóteles inferir que, além da coerência, a verdade somente seria atingida por meio da correspondência com a realidade, ou seja, não obstante a proposição “a porta está fechada” ser logicamente verdadeira, ela seria verdadeiramente verdadeira se (e somente se) a porta estiver fechada.

Essa estrutura do conhecimento, em alguma medida, apesar de terem sido desenvolvidas na antiguidade, ainda fazem parte de subsídio epistemológico de algumas das teorias da decisão aplicadas na atualidade, sendo este o motivo da sua exposição.

3. JUSPOSITIVISMO  

3.1 ESCOLA DA EXEGESE

A Revolução Científica3, iniciada pela teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, rompe com a perspectiva de que a razão e a fé possuem um imbricamento indissociável e que toda verdade somente é alcançável por uma adequação do intelecto humano com o divino, como sustentava a escolástica de Santo Tomás de Aquino.

A busca agora é por um conhecimento que seja empiricamente demonstrável, almejando o alcance de uma teoria que seja universalmente válida e manuseável pelo homem, que passa a ser o centro do processo intelectivo. A ciência é vista de forma mecanicista e matematizada.

Um dos principais expoentes da época é René Descartes, que na sua obra Discurso sobre o Método estabeleceu um processo metódico de decomposição dos elementos constitutivos de um objeto, criando um método dedutivo de cognição. Para ele, qualquer hipótese seria racionalmente demonstrável a partir de uma construção matemática.

(…) em vez desse grande número de preceitos de que a lógica é composta, acreditei que me bastariam os quatro seguintes: o primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que conhecesse evidentemente como tal; (…) O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las (operações matemáticas). O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer (método dedutivo). Em último, por fazer em tudo enumenrações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, apud CRUZ, 2007, PG 61)

O conhecimento, como produto da razão e alcançado por método mecanicista que admite chegar à “verdade”, permite a construção de leis objetivas e universais, sendo que o Direito passa a ter o papel de definir essas regras e métodos.

Sobre esse pilar se firmou no Século XIX a Escola da Exegese que, com fundamento no Código Napoleônico (1804), pretendia que a decisão judicial decorresse exclusivamente da extração de conceitos gramaticais contidos no texto da lei. Em outras palavras, o intérprete deveria realizar uma aplicação objetiva da norma, não lhe sendo permitido que se alocasse conceituações morais ou extralegais em sua decisão.

A decisão judicial deveria ser fruto de um processo silogístico de aplicação da norma ao caso concreto, inexistindo qualquer interferência pessoal do julgador (ou de fatos externos) no ato de decidir.

Um dos principais problemas enfrentados pela escola foi a existência de lacunas da legislação. Ora, diante da ausência de uma norma que permita a imediata subsunção com o fato material e da impossibilidade do magistrado “adequar” a norma subsuntiva, como deveria ser respondida a questão levada ao judiciário?

A resposta foi dada com fulcro na teoria da plenitude lógica do direito, que sustenta ser o ordenamento jurídico um sistema fechado e que não admite lacunas. Estas seriam apenas aparentes, uma vez que é possível extrair da própria legislação normas analogicamente aplicáveis, compreendendo que o legislador, se tivesse diante daquele caso, legislaria com uma correspondência lógica com o que já havia legislado. Assim, as lacunas deveriam ser solucionadas com o uso da analogia.

A grande maioria dos comentadores do Código de 1804 admite a utilização da analogia nas hipóteses de lacuna. Entre estes, alguns entendem que o emprego da analogia tem como fundamento a vontade fictícia do legislador, a partir da suposição de que se o seu pensamento se tivesse voltado para a hipótese não prevista na lei, teria sido a solução encontrada para o caso concreto a que ele logicamente iria querer. Outros acreditam que as lacunas da lei não são mais que aparentes, já que as normas aplicáveis ao caso concreto estão latentes no “fundo” da legislação, e a analogia só vai explicitá-las, captando-as e colocando-as a descoberto. Tais convicções têm como substrato a teoria da plenitude lógica do direito, no seu sentido restritivo e eminentemente legalista, segundo a qual é o sistema legislativo um conjunto fechado, que a si mesmo se basta, sendo alheio a todo e qualquer elemento estranho ao direito legislado. (LIMA, 2008)

Entretanto, a analogia contrariava a perspectiva da própria Escola, que pretendia apontar o intérprete como mero leitor do texto legal e a aplicação de um método integrativo do sistema jurídico concedia uma abertura interpretativa ao magistrado. Problemas esses que foram objeto de tentativa de solução pela Escola da Investigação Científica que, ao permitir a investigação livre do jurista quando a norma tivesse sentido dúbio ou lacunoso, aceitava a utilização de instrumentos extrajurídicos (como os costumes, princípios gerais do direito e a analogia) para a fundamentação racional da decisão judicial.

A Escola da Exegese também permitiu o afloramento de outras correntes de pensamento da teoria da decisão judicial, dentre elas a “Jurisprudência dos Conceitos” de Puchta e a Escola Histórica do Direito, de Savigny.

3.2 JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS

A Jurisprudência dos Conceitos vai tentar criar métodos capazes de extrair a “voluntas legis”, ou seja, qual o sentido que a lei pretende dar. Um dos expoentes é Georg Friedrich Puchta, fundador da “Jurisprudência dos Conceitos”.

Essa corrente de pensamento – considerada uma variável do positivismo clássico e denominada de positivismo conceitualista – pretendia fixar um sentido universal para os conceitos dos conceitos, partindo da perspectiva de que seria possível uma isomorfia entre signo/significante/significado.

Dessa forma, ao estabelecer o sentido unívoco de um conceito, o intérprete estaria apto a realizar uma leitura clara e exata do texto da lei, o que permitiria uma melhor subsunção. Como bem assevera CRUZ (2007), “o Direito passou a ser deduzido exclusivamente dos conceitos das regras de sua própria legilação”.

3.3 ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO

A Escola Histórica do Direito possui forte influência do historicismo, que figurava como movimento crítico à uma ideia de que tudo poderia ser reconstruído pelo homem por meio da razão4.

O historicismo funda-se na visão do homem como um produto da história, acreditando que os valores de uma sociedade são uma amálgama das experiências pretéritas e presentes.

Sob esse alicerce, a Escola Histórica do Direito alinha-se com cinco características basilares, que seria, como aponta Gomes (2008) ao citar Bobbio (1999) “a) individualidade e variedade do homem; b) irracionalidade das forças históricas; c) pessimismo antropológico; d) amor pelo passado; e e) sentido da tradição.”5

Segundo essa corrente de pensamento, capitaneada precipuamente por Savigny, o Direito deveria se firmar de acordo com a consciência coletiva do povo, manifestada por suas práticas culturais. Entretanto, como bem assevera Gomes (2008), o jurista alemão não retirava a cientificidade do Direito, compreendendo que somente seria um regramento válido aquele construído pelos cientistas do direito, ou, com maior precisão, dos professores de Direito.

Compreendia-se que o texto da lei era o resultado da vontade de uma determinada sociedade, carregando, assim, inúmeras questões históricas que subsidiaram a criação do regramento daquele povo. Assim, no momento da aplicação da lei o intérprete deveria extrair os elementos históricos aclamados pelo povo, vislumbrando um sentido da norma consoante os métodos hermenêuticos gramatical, lógico, histórico e sistemático do Direito.6

Dessa maneira, observa-se que, não obstante a Escola Histórica apontasse como uma corrente crítica ao racionalismo iluminista, a fixação de métodos que pudesse extrair o sentido da norma, que constitui uma visão absolutamente cartesiana da ciência jurídica, aproxima as duas correntes de pensamento.

3.4 NORMATIVISMO KELSENIANO 

Hans Kelsen, um dos maiores juristas do século XX, desenvolveu a sua teoria embebido pela concepção de uma racionalidade a priori transcendental de Kant, buscando trabalhar o objeto do Direito como um fenômeno independente, desvencilhado dos objetos estudados pela filosofia, sociologia, política, etc.

Para o austríaco, o cientista do direito deveria focar o seu trabalho na norma hipotética de dever ser, uma vez que os estudos sobre os fenômenos que justificam a criação da norma não integrariam a ciência do Direito.

Não obstante isso, vale destacar que ele não desacreditava que estes fatos influenciassem na construção normativa, apenas asseverava que não competia ao Direito analisá-los.

O objeto do Direito era a norma positivada, ou seja, a lei e, portanto, valores morais, éticos ou políticos não poderiam compor a interpretação e aplicação do direito.

Segundo Mata Machado (1995), a norma jurídica, na concepção kelseniana, se apresenta como uma proposição de natureza hipotético-condicional, através da qual se têm duas proposiçõesque se ligam entre si por uma partícula condicionante, típica da estrutura “Se A é, deve ser B), pouco importando conteúdo moral ou político que cada um possa encetar. (GOMES, 2008).

Mas se a norma não possui um conteúdo de direito natural ou moral, como pretendiam os jusnaturalistas, qual seria a sua condição de validade? Para solucionar essa questão, Kelsen alicerçou a sua teoria uma concepção de ordenamento jurídico hierárquico.

As normas jurídicas, assim, seriam estruturadas de forma que uma norma hierarquicamente superior justificaria validade da inferior, sendo que no topo do ordenamento encontra-se a constituição. Mas qual a norma que confere validade à constituição? A resposta foi a Grundnorm, que seria uma norma hipotética fundamental que daria validade a todo o ordenamento.

Assim, o jusfilósofo afirma que sua norma fundamental trata-se de uma hipótese puramente racional, uma dedução lógica e necessária, capaz de fechar o sistema jurídico sem que o jurista necessite lançar mão de nenhum critério extrajurídico132. Sendo assim, a norma fundamental apresenta-se como um dado, um conceito hipotético a priori, evidenciando-se a forte influência recebida de Kant. (FREITAS, 2013).

O jurista vienense compreende que o ordenamento jurídico é hermeticamente fechado, não havendo espaços para antinomias ou lacunas, uma vez que o sistema deveria conter respostas para todas as situações.

Diante disso, o legislador deveria construir uma norma que contivesse elementos sintáticos e semânticos que permitissem ao intérprete visualizar o seu conteúdo e aplicar o sentido que melhor se enquadrasse aos rumos da sociedade.

Note-se que Kelsen não visualizava a linguagem como espelhamento do mundo, reconhecendo que esta poderia ter múltiplos sentidos e que caberia ao intérprete alocar o sentido que melhor se adequasse ao caso concreto.

Nessa perspectiva, a norma jurídica era concebida como uma moldura, com diversas interpretações possíveis, mas que, pelo método silogístico, o intérprete pudesse alcançar o sentido que realmente identificasse e colaborasse para os rumos que a sociedade deveria seguir.

Em outras palavras, não obstante ele reconhecesse que a norma não possui um sentido único, ele acreditava que na moldura da norma havia todas as interpretações possíveis, e que o magistrado não poderia transbordar os limites interpretativos contidos no texto da lei7.

A análise das teorias da decisão judicial acima nos permite constatar que elas estão imersas no paradigma da filosofia da consciência, em que a linguagem possui um caráter meramente representativo do mundo, o que tornaria possível a obtenção de um sentido unívoco e de forma monádica, sendo que o papel do intérprete, ao aplicar a norma, é extrair o significado dos signos que compõem o texto legal.

4 – PRAGMATISMO 

O pragmatismo8 é uma escola de pensamento fundada nos Estados Unidos no final do século XIX e derivou dos pensamentos de um grupo de estudiosos que se encontravam para realizar críticas a metafísica clássica, denominando o grupo de Círculo da Metafísica (The Metaphysical Club). Esse grupo tinha como principais expoentes Charles Sanders Peirce, William James e Oliver Wendell Holmes. Mais tarde se juntou a ele John Dewey.

O Círculo da Metafísica era um nome jocoso, que pretendia desconstruir os seus pressupostos, asseverando que a metafísica nada mais é que especulação intelectiva e que não possui relevância quando não é possível a experimentação.

O enfoque dessa corrente de pensamento é o experimentalismo, observando que a criação de critério de validade e verificabilidade são inócuos quando a pragmática nos aponta para caminho diverso. Vejamos o que POSNER (2010) discorre sobre o assunto ao mencionar a teoria de Quine:

“Quine tirou a lógica de seu pedestal! Suponha que um cisne seja definido como sendo um pássaro que tenha várias características, inclusive a de ser branco. Então, um dia alguém vê um pássaro que tem todas as características, exceto a cor. Ou mudamos a definição de “cisne” para incluir esse novo pássaro ou podemos nos ater à definição antiga e chamá-lo de outra coisa. (…) Isso significa que verdades lógicas (necessárias) não estão imunes à refutação empírica, como as tautologias genuínas estariam. (…) Para Quine, uma verdade necessária é apenas uma afirmação tal que ninguém nos deu qualquer alternativa interessante que nos levasse a questioná-la.” (POSNER, 2010, pg29)

Em outras palavras, o pragmatismo se funda em uma perspectiva experimentalista, acreditando que através da experimentação é possível alcançar a verdade.

No âmbito da teoria da decisão judicial, os pragmatistas alicerçam-se em uma perspectiva consequencialista, avaliando no caso concreto quais as consequências que aquela decisão judicial terá e, diante disso, expressam qual deve ser o posicionamento do intérprete.

Os juízes pragmáticos, ao contrário dos formalistas, não realizam subsunções de normas aos fatos (ou não realizam simplesmente isso). Eles olham para frente, observando o resultado que será obtido com aquela decisão.

“O pragmatista valoriza a continuidade com promulgações e decisões passadas, mas porque tal continuidade é de fato um valor social, mas não porque tenha um senso de dever para com o passado. Ele está emancipado desse dever não apenas pelo caráter da análise pragmática, com sua insistência de que as conceitualizações sejam provadas como um resultado prático no aqui e agora, mas também pelo ceticismo sobre os métodos pelos quais os advogados constroem pontes do passado ao presente.” (POSNER, 2010, pg 56)

Dessa maneira, podemos dizer que a decisão judicial que é embasada no pragmatismo filosófico (ou ortodoxo) não realiza uma subsunção do texto da lei ao caso concreto por acreditar que esse método de verificabilidade da verdade jurídica não possui uma correção universal e que, diante disso, o intérprete deve valer-se de uma análise holística e consequencialista para tomar a melhor decisão.

5. CONCLUSÃO

As decisões prolatadas, sejam no âmbito do Judiciário ou da Administração Pública, possuem necessariamente um pano de fundo hermenêutico, sendo a atuação do intérprete determinante para a consecução do direito.

Nesse sentido, ainda que presente na Teoria Geral do Direito – ou até mesmo fora do Direito, como querem alguns – a hermenêutica é ponto inexorável até o caminho da aplicação da norma, sendo imprescindível o avanço dos seus estudos pelas escolas do direito.

Destarte, ainda que de uma forma perfunctória e inicial, o presente artigo teve por escopo identificar algumas das principais escolas e desenvolver as teorias por elas defendidas. Um aprofundamento, inclusive com a imersão em outras correntes de pensamento, mostra-se como imprescindível para uma melhor compreensão do Direito, o que auxiliará sobremaneira na construção de decisões mais legítimas e aceitas pela sociedade.

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NOTAS DE FIM

1 Ora sabes qual a reação que experimenta um amante quando avista uma lira, um manto ou qualquer objeto com que o seu amado habitualmente anda: ao mesmo tempo que apreende a lira, o seu espírito capta por igual a imagem do amado a quem a lira pertence; e aí temos, pois, uma reminiscência. O mesmo diríamos de alguém que, ao avistar Símias, se lembrasse de Cebes e, como este, milhares de exemplos poderiam apontar-se. (Fédon 73d.)

2 “anamnese são as recordações de verdades desde sempre conhecidas pela alma e que reemergem de vez em quando na experiência concreta” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149).

3 Termo utilizado pelo historiador Alexande Koyré em 1939.

4 “A Escola Histórica do Direito recebeu uma influência muito grande de dois movimentos intelectuais da época, quais sejam: o historicismo e o romantismo. De acordo com o primeiro – que mais se apresenta como um movimento de reação às ideias universalistas iluministas, que acreditava ser possível aos homens estabelecerem verdades universais simplesmente através do uso da razão -, a concepção racionalista iluminista deveria ceder lugar às manifestações espontâneas decorrentes da prática dos homens ao longo da história.” (GOMES, 2008, pg 95).

5 “Na primeira característica anteriormente apontada, tem-se por fundamentoa aidéia de que cada povo é um povo, que produzirá o seu Direito de acordo com suas particularidades e individualidades. Nega, portanto, a ideia jusracionalista de ser posssível a construção de um Direito único e universalmente válido através do simples uso da razão. Privilegia-se, portanto, a história e a tradição de cada um desses povos. A segunda, por seu turno, representa, também, uma crítica àquela postura racionalista/universalista dos jusnaturalistas. Na verdade, proclama que o Direito de cada um dos povos não resulta de uma atividade racional friamente calculada pela mente humana, mas que depende, justamente, de cada momento histórico e seu guia pelo sentimento de justiça que permeia toda comunidade. Por pessimismo antropológico, Bobbio (1999) estabelece que se deva ter cuidado com as inovações e com os ditos progressos legislativos, os quais, no mais das vezes, desrespeitamas tradições dos povos, não deixando que o seu Direito nasça e flua naturalmente, segundo as suas características históricas, não lhe permitindo alcançar a sua maturidade. Esse modo de pensar, certamente, influenciou sobremaneira a posição de parte dos representantes da Escola Histórica do Direito, em especial de Savigny, contra proposta codificadora. Com relação ao amor ao passado, é importante observar que a metodologia de trabalho dos cultores da Escola Histórica do Direito baseava-se na recepção, isto é, na tentativa de se reconstruir o Direito Romano e germânico, além do costumes, de forma sistemática, visando a estabelecer uma doutrina do Direito de cunho histórico. A esse trabalho realizado pelos juristas alemães de reconstrução do Direito Romano, germânico e consuetudinário deu-se o nome de pandectismo, o qual foi importante para o resgate, e mesmo a sistematização, de muitos institutos jurídicos antigos, mas de aplicação cotidiana. Assim, quando se fala em amor ao passado, tem-se em mente essa tentativa de resgatar, sistematizar e reviver o antigo Direito aplicado aos germanos. É claro que isso foi alvo de críticas, pois tal postura poderia ser vista como uma tentativa do ideal iluminista de se ter verdades absolutas e universalmente válidas. E, por fim, existe o sentido da tradição, que se caracteriza por valorizar os costumes produzidos pelos povos, pois, no sentir dos cultores da Escola Histórica do Direito, eles, os costumes, constituem-se de direitos que nascem diretamente do povo, exprimindo o seu sentimento eo próprio espírito desse povo (Volkeist).” (GOMES, 2008, p. 98.)

6 CRUZ, 2007, pg. 78.

7 Para alguns juristas, Kelsen teria modificado esse entendimento quando da publicação da última edição de “Teoria Pura do Direito”, na qual ele teria reconhecido a possibilidade do intérprete, em situações específicas, aplicar o direito fora dos limites expostos na moldura. Para uma leitura mais aprofundada, ler GOMES, 2007 e OLIVEIRA 2001.

8 Foi em uma das reuniões do Clube Metafísico, por volta de 1872, que um de seus integrantes mais ativos, Chales Peirce, expôs aos demais um rascunho com algumas anotações resultantes de suas discussões coletivas, as quais pretendia possivelmente agregar a um livro sobre lógica, que planejava um dia escrever. Às ideias e opiniões contidas neste rascunho que apresentou a seus colegas, Peirce chamou de pragmatismo. Tratava-se inicialmente de um “método de determinar os significados de palavras difíceis e conceitos abstratos”, dizia seu criador. Seus colegas lhe sugeriram denominar esta sua teoria de paticismo (practicism) ou praticalismo (praticalism), mas Peirce, que conhecia bem a distinção entre os termos kantianos praktisch e pragmatisch, sabia o que estava fazendo e não mudou de ideia. (POGREBINSCHI, 1977, p. 12)