Vivian do Carmo Bellezzia 1
RESUMO: O presente trabalho busca apresentar os contornos atuais da jurisdição constitucional brasileira, sobretudo aquela realizada sobre os atos normativos municipais, apontando os seus principais desafios e perspectivas. Trata-se de pesquisa jurídico-bibliográfica de caráter exploratório, fundamentada na revisão bibliográfica e na análise de decisões judiciais.
PALAVRAS-CHAVE: Controle de Constitucionalidade; Leis Municipais, Constituição Federal; Lei Orgânica Municipal.
ABSTRACT: This study aims to present the current format of the Brazilian constitutional jurisdiction, especially the one held on municipal normative acts, pointing its main challenges and prospects. It is legal and literature exploratory, based on literature review and analysis of judicial decisions.
KEYWORDS: Judicial Review; Municipal Laws.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional.
1. INTRODUÇÃO
O Estado brasileiro assume a forma federativa, e é composto pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, todos dotados de autonomia, conforme se depreende da leitura dos caputs dos artigos 1º e 18 da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88)2.
A Constituição Federal, ao estabelecer a divisão dos poderes, conferiu autonomia para cada ente federado criar suas leis, seja nos âmbitos federal, estadual e municipal. No tocante aos Municípios, estes receberam do texto constitucional autonomia e capacidade de auto-organização por meio da elaboração de Lei Orgânica própria (autonomia legislativa), capacidade de autogoverno (autonomia administrativo-funcional) e autonomia financeiro-orçamentária (autonomia legislativa e administrativa).
O principal fundamento tanto da autonomia quanto da competência municipal é o artigo 30, da CRFB/883, localizado no Título III, denominado “Da Organização do Estado”, que trata das competências legislativas e político-administrativas. Ocorre que o texto do artigo 30 é abrangente e exemplificativo ao prever as competências e delimitar as áreas de atuação da entidade local – o Município, deixando margens para discussão sobre tais questões. Assim, persistem questionamentos sobre em que áreas os Municípios devem agir e sobre qual seria a abrangência de seu poder decisório.
Portanto a chamada “autonomia municipal” está longe de ser tema pacífico na literatura jurídico-científica. José Nilo de Castro4 (1993) assevera que o Município, diferentemente de um ente federado, é entidade condômina de exercício de atribuições constitucionais. Para ele, o ente municipal possui dignidade constitucional; e, no que diz respeito à autonomia, é autônomo na Carta Magna de hoje tanto quanto nas anteriores, desde 1934 (antes, faltava-lhes apenas a auto-organização). Contudo, conforme o autor, o Município não detém autonomia federativa e sua autonomia é a medida constitucional da soberania, que é poder insubmetido.
Nesse sentido, a questão da “autonomia municipal”, que necessariamente perpassa pela discussão de grandes temas como federalismo, descentralização e democracia, se apoia no texto constitucional e este assume verdadeira função de delimitador do horizonte de possibilidades para elaboração de todo o arcabouço legislativo do Estado Constitucional Brasileiro.
Outrossim, é objetivo demasiadamente complexo diferenciar quais matérias devem ser entregues à União, aos Estados e aos Municípios. Nesse sentido, a tarefa de conformar os atos normativos municipais com a Constituição, por meio do chamado controle de constitucionalidade, mostra-se imprescindível ao bom funcionamento do sistema jurídico brasileiro.
Diante dessa complexidade, o estudo do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos municipais, que constitui-se no exame de compatibilidade entre a lei ou ato normativo editado pelos Poderes Legislativo ou Executivo Municipais e a Constituição Federal, adquire importância ímpar vez que o controle tem se apresentando como ferramenta para a garantia da supremacia da Constituição.
O presente trabalho busca apresentar os contornos atuais da jurisdição constitucional brasileira, sobretudo aquela realizada sobre os atos normativos municipais, apontando os seus principais desafios e perspectivas. Trata-se de pesquisa jurídico-bibliográfica de caráter exploratório, fundamentada na revisão bibliográfica e na análise de decisões judiciais.
2. O MUNICÍPIO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Os Municípios, antes da promulgação da CRFB/88, vivenciaram, ao longo da história do federalismo brasileiro, momentos de reduzida e até mesmo extinta autonomia e autogovernabilidade. Entretanto, após a promulgação da nova ordem constitucional e resguardadas opiniões divergentes, foram reconhecidos como entes federativos dotados de auto-organização, normatização própria e, ainda, autogoverno e autoadministração, tudo conforme os artigos 1º, 18, 29, 30 e 34, VII, “c” da CRFB/885.
A promoção dos Municípios a entes federativos integrou uma política cuja diretriz estava assentada na descentralização, que pressupõe que a gestão local, onde se revelam as carências e necessidades sociais e, efetivamente, são prestados os serviços públicos, será sempre mais adequada e eficiente que o planejamento e execução centralizados na União.
Segundo Santin e Flores (2006), a (1) autonomia administrativa diz respeito à capacidade do Município de administrar a si próprio e organizar todo o rol de serviços locais. A (2) autonomia financeira é, em suma, a “capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas” (2006, p.56-57). Já a (3) autonomia normativa refere-se à capacidade de elaboração de leis a respeito de matérias sob sua competência exclusiva e suplementar, ou seja, capacidade de autolegislação. Por último, a (4) autonomia política diz respeito à capacidade de auto-organização mediante elaboração de uma Lei Orgânica própria e autogoverno, mediante eletividade de prefeitos e vereadores.
Para Fernanda Dias Menezes (2000), o texto constitucional estruturou-se em um sistema complexo em que cada ente federativo possui sua própria competência. Nesse sentido, há as competências privativas, repartidas horizontalmente, como as da União, com previsão de matérias relativas à atuação política e administrativa, e discriminação de matérias de disciplina legislativa; as dos Estados, com competências residuais, além da criação de Municípios, da exploração dos serviços locais de gás canalizado e da instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.
As competências dos entes municipais estão catalogadas no art. 30 da CRFB/88, como as de ordem administrativa (incisos III, IV, V e VIII) e para legislar sobre o interesse local, conferida pelo inciso I. 6
O entendimento sobre a competência legislativa do Município pode ser facilitado utilizando-se quatro regras, a saber: 1ª) poderes municipais expressos e exclusivos, 2ª) poderes federais expressos e implícitos e poderes estaduais expressos, 3ª) poderes municipais implícitos e 4ª) poderes concorrentes.
A primeira regra afasta qualquer outra competência sobre o assunto, seja ela federal ou estadual, visto que é matéria de competência expressa e exclusiva do Município. A segunda regra significa que, quando a competência municipal for implícita, permanecem as competências expressa e implícita estadual e federal, respectivamente. A terceira regra estabelece, em conexidade com a anterior, que, com relação aos poderes remanescentes do Estado, prevalecem sempre as competências implícitas e explícitas do Município. Isso porque a CRFB/88 declara, em seu art. 25, § 1º, que aos Estados se reservam todas as competências que não lhes sejam vedadas. Ora, os poderes que a Constituição confere aos Municípios, de modo implícito ou explícito, estão vedados ao Estado. Logo a competência remanescente do Estado cede diante da do Município. A quarta e última regra dirige-se aos poderes concorrentes, em que as três esferas – federal, estadual e municipal – disputam a mesma competência. Nesse caso, e somente nesse, prevalece o princípio da primazia da União sobre os Estados e do Estado sobre o Município, com decorrência lógica de que os interesses nacionais devem prevalecer sobre os locais. 7
2.1 A questão do poder local
A CRFB/88, ao atribuir competências aos entes federativos, definiu as competências da União e dos Estados-Membros, estabelecendo, em seu artigo 30, I, que caberá ao Município legislar sobre matéria de interesse local. Nesse sentido, é a predominância do interesse o parâmetro delimitador na atribuição de competências dos entes federativos. Foram atribuídas à União as matérias e questões de interesse predominantemente geral e nacional. Aos Estados-membros, os assuntos de interesse regional e, por fim, aos Municípios foram atribuídas às questões de interesse local.
Não restam dúvidas de que hoje, resguardadas as opiniões divergentes, o Município está constitucionalmente consagrado como um partícipe do sistema federativo brasileiro, despontando-se este como um sistema federal único e genuíno.
Sobre isso, Marco (2002, p. 78) pontua que essa elevação do Município à parte integrante do pacto federativo brasileiro, “fez florescer em âmbito local a importância do poder local e da participação popular nas decisões do ente municipal”, estabelecendo uma via de mão dupla, na qual a população vai até o governante para discutir os seus direitos e as necessidades a serem sanadas e, da mesma forma, o poder público abre suas portas para ouvir e suprir tais necessidades.
O Estado Federal Brasileiro, ao delimitar a atuação de cada membro mediante atribuições expressamente prescritas, possibilitou, ainda maiores e melhores alternativas de participação política, primando pela descentralização e fortalecimento do poder local.
Nesse sentido, é a posição de José Luiz Quadros de Magalhães (1999). Segundo o autor, deve-se aplicar o princípio da subsidiariedade do federalismo brasileiro, remetendo-se o maior número de atribuições estatais possíveis aos entes federados menores. Para o doutrinador, a lógica de tal princípio potencializa o controle social da administração pública proporcionando maior agilidade e otimização na aplicação do dinheiro público. Assim, há uma ampliação da descentralização, restando aos Estados-membros e à União apenas as matérias mais complexas, de abrangência mais extensa e geral. (MAGALHÃES, 1999, p. 212).
Saliente-se que ponderações sobre as formas de participação popular local estão em debate em destacados núcleos de investigação política e acadêmica. O alargamento dos mecanismos de participação na gestão municipal visa não apenas ampliar as garantias dos direitos de cidadania como também tornar mais eficientes o combate à corrupção e à má aplicação das verbas públicas. Consequentemente, o tema vem ganhando cada dia mais importância, pois, após a Constituição de 1988, mercê da legitimação ativa de várias pessoas e entidades para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade e em função da conscientização popular, passou-se a questionar fortemente a legislação municipal.
Embora reconhecida a importância, em face da teoria democrática e do federalismo, do Município na ordem política brasileira, a existência de um ordenamento jurídico múltiplo, composto por normas editadas pelos diferentes entes federativos, apresenta diversos desafios. Não é tarefa simples delimitar quais sejam os interesses gerais, regionais ou locais, e os conflitos de competência frequentemente ocupam as agendas políticas e as pautas dos tribunais.
2.2 A reprodução de normas constitucionais e as Leis Orgânicas municipais
Os Estados-membros e Municípios, quando da elaboração de suas Constituições e Leis Orgânicas, estão obrigados, por imposição constitucional, aos princípios de delimitação previstos nos artigos 34, VII e 60, §4º da CRFB/88 8.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho9 (2000) ensina que os limites à auto-organização e autogoverno dos Estados são apenas princípios propriamente ditos já que a Constituição exige dos Estados a observância de normas precisas que preordenam a sua organização.
Certo é que, entre os doutrinadores, não se discute que os Estados-membros e Municípios não tenham autonomia para legislar sobre todos os temas explicitamente tratados nos citados artigos. Entretanto a controvérsia se dá quanto ao que se considera como sendo “interesse local”, pois o critério deixa de ser objetivo e explícito e passa a depender de aspectos subjetivos. A título de exemplo, são considerados assuntos de interesse local: transporte coletivo municipal, coleta seletiva de lixo, ordenação do solo, fiscalização sanitária de bares e restaurantes.
A norma constitucional prevê um rol taxativo de hipóteses que autorizam a União a intervir, excepcionalmente, no Estado-membro e no Município, sendo expressamente vedado que a legislação local disponha sobre a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Também não se discute que os Estados e Municípios são proibidos de legislar sobre tais temas, vez que essa vedação é expressa e taxativa. Não obstante, inúmeras discussões e posições antagônicas surgem quando a divergência se dá em torno da necessidade ou não da reprodução, nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, de princípios constitucionais implícitos. Em verdade, cada jurista elege sua própria relação de princípios, o que, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho10 (2000, p. 198) “acaba por enfraquecer sua respeitabilidade científica.
Assim, não existe um consenso entre os juristas e doutrinadores sobre quais normas devem obrigatoriamente constar nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais. Ademais, além dos chamados princípios implícitos, existem outras normas constitucionais que limitam a liberdade legiferante dos órgãos estaduais e municipais, regras essas denominadas por Ferreira Filho de “regras de preordenação institucional” (2000, p.163).
As Leis Orgânicas municipais são compostas por dois tipos legislativos distintos: as chamadas normas de reprodução e as normas de imitação. As de reprodução são inseridas na Lei Orgânica Municipal como consequência da subordinação à Constituição Estadual e desta para com a Constituição Federal. Ou seja, o legislador apenas “transporta” as normas de um ordenamento para ou outro, sendo, portanto, regras de caráter compulsório. Já as de imitação, embora sejam reproduções de técnicas ou institutos da Constituição Estadual, o são por mera opção do legislador. Ou seja, trata-se de “cópias” do modelo superior não por determinação legal, mas por escolha de quem legisla.
Ocorre que as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas muitas vezes se atêm à reprodução de regras constitucionais, apenas transferindo normas centrais, principalmente aquelas relacionados à organização e estrutura dos órgãos do governo. Contudo, como pontua Gabriel Ivo11 (1997), observar e obedecer a um princípio constitucional significa abster-se de criar regras que com ele sejam incompatíveis ou, de um modo positivo, produzir regras que venham a imprimir-lhe eficácia. Ou Seja, “não se cumpre um princípio repetindo no texto da Constituição Estadual o seu enunciado” (IVO, 1997, p. 141).
Assim, não é preciso que as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais sejam literalmente idênticas ao texto da norma constitucional federal. Para haver a repetição de normas, não é necessário existir a identidade dos textos legais pelos quais elas se exprimem, pois as regras jurídicas não podem ser confundidas com o texto legal por meio do qual se expressam.
Nesse sentido, a doutrina conclui pela falta de obrigatoriedade de o ente federado reproduzir a norma constitucional de observância da União quando a matéria sobre a qual se esteja legislando trate de questão relativa à auto-organização do Estado-membro ou do Município.
3. HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS MUNICIPAIS
Existem, no Brasil, duas espécies de controle de constitucionalidade: o chamado controle preventivo, que tem como objetivo barrar, mediante atuação do Poder Legislativo, o ingresso de lei ou ato normativo considerado inconstitucional, e o controle repressivo, que tem como objetivo retirar do escopo de leis normas inconstitucionais já incorporadas pelo ordenamento jurídico.
O controle preventivo, também conhecido como controle político, se faz pela atuação das chamadas Comissões de Constituição e Justiça ou mediante atuação do Poder Executivo, pelo do veto presidencial.
Alguns doutrinadores, como Bonavides (2009) e Canotilho (2003), consideram que cabe ainda ao Poder Legislativo exercer uma espécie de “controle repressivo” de constitucionalidade mediante a sustação, pelo Congresso Nacional, por meio da edição de um decreto legislativo, de atos normativos do Poder Executivo que exorbitarem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, conforme previsto no inciso V, do artigo 4912, da Constituição Federal. E também, deixando de converter em lei a Medida Provisória prevista no art. 62 da CRFB/8813 que seja considerada inconstitucional.
O controle repressivo, também denominado controle judicial, pode ser exercido de maneira difusa, pela exceção ou defesa, ou de forma concentrada, por via de ação. No Brasil, o controle de constitucionalidade repressivo, exercido pelo Poder Judiciário, é misto. Ou seja, pode ser exercido tanto de maneira difusa quanto concentrada.
O controle difuso, exercido por via de exceção ou defesa, é aquele que autoriza qualquer juiz ou tribunal a se manifestar, no caso concreto, sobre a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Assevere-se que esse tipo de declaração de inconstitucionalidade, que nunca fora objetivo principal da lide, isenta tão somente os jurisdicionados diretamente envolvidos no litígio de cumprirem a lei ou ato normativo tido como inconstitucional. Portanto a norma permanece válida no ordenamento jurídico.
Esse tipo de controle permite que qualquer lei ou ato normativo seja declarado inconstitucional não importando se tal norma é federal, estadual, municipal ou distrital.
O controle concentrado, ao contrário do difuso, objetiva especificamente declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo independentemente da existência de um caso concreto, assumindo eficácia erga omnes e gerando efeitos ex tunc. Esse controle abstrato de constitucionalidade pode ocorrer de duas formas: por ação ou omissão.
3.1 Controle de constitucionalidade da Lei Orgânica Municipal e de leis e atos normativos municipais em face da CRFB/88
De acordo com a alínea “a”, do inciso I, do artigo 102, da CRFB/8814, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. De igual forma, de acordo com o artigo 125, § 2°15, cabe aos Tribunais dos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual.
Como se observa, o texto constitucional estabeleceu a competência do STF para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e dos Tribunais de Justiça estaduais para a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual. Contudo foi silente sobre a definição de competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal. Assim, poder-se-ia concluir que, se uma lei ou ato normativo municipal contrariar a Constituição Federal, o Tribunal de Justiça não teria competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade.
Então, em se tratando de lei ou ato normativo municipal que contrarie dispositivo constitucional, o controle de constitucionalidade deveria ser realizado pela via difusa. De acordo com a alínea “c”, do inciso III, do artigo 102 16, da Constituição Federal, o STF somente se pronunciará se a questão for objeto de consulta por meio de Recurso Extraordinário e desde que presente o requisito de admissibilidade da repercussão geral (art. 103, § 3º da CRFB/88)17.
Nesse sentido destaque-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Recurso extraordinário. Arguição de inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica do Município de Boa Vista, Estado de Roraima, julgada improcedente. 2. Assentado o entendimento de que a fixação do número de vereadores da Câmara Municipal de Boa Vista, pelo art. 13 da Lei Orgânica em foco, então impugnado está dentro dos limites da regra constitucional Federal. 3. Juízo de validade de norma municipal, pelo Tribunal de Justiça do Estado, em face de regra da Constituição Federal. O art. 125, § 2º, da Lei Magna, prevê a hipótese de controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, tão-só, diante da Constituição estadual. 4. A norma da Carta de Roraima apontada como ofendida – o art. 15 – não constitui regra de repetição do art. 29, IV, a, da Lei Magna Federal, à vista do qual se proferiu a decisão. 5. Não dispunha a Corte local de competência para processar e julgar a constitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica do Município de Boa Vista, perante a Constituição Federal (art. 29, IV, a). 6. Extinção do processo sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido, eis que a Constituição não prevê a hipótese de ação direta em que se argüia a inconstitucionalidade de lei municipal em face da Constituição Federal. 7. Recurso extraordinário conhecido e provido para anular o acórdão, por incompetência do Tribunal local. (STF Recurso Extraordinário – RE n. 171819/RR – Relator(a): Min. Néri da Silveira – Julgamento em 08/04/2002 – Órgã Julgador: Segunda Turma – DJ 24-05-2002 PP-00069)
CONSTITUCIONAL. PENAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS OU ATOS NORMATIVOS MUNICIPAIS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO. VALIDADE DA NORMA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. HIPÓTESE DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. I – Os Tribunais de Justiça dos Estados, ao realizarem o controle abstrato de constitucionalidade, somente podem utilizar, como parâmetro, a Constituição do Estado. II – Em ação direta de inconstitucionalidade, aos Tribunais de Justiça, e até mesmo ao
Supremo Tribunal Federal, é defeso analisar leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal. III – Os arts. 74, I, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo não constituem regra de repetição do art. 22 da Constituição Federal. Não há, portanto, que se admitir o controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Justiça local, com base nas referidas normas, sob a alegação de se constituírem normas de reprodução obrigatória da Constituição Federal. IV –
Recurso extraordinário conhecido e provido, para anular o acórdão, devendo outro ser proferido, se for o caso, limitando-se a aferir a constitucionalidade das leis e atos normativos municipais em face da Constituição Estadual. (STF – Recurso
Extraordinário – RE n. 421256/SP – Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski – Julgamento em 26/09/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma – DJ 24-11-2006 PP-00076).
Não obstante a ausência, na CRFB/88, de previsão expressa do controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal, o §1°, do artigo 102 da CRFB/8818, regulamentado pela lei n° 9.882, de 3 dezembro de 1999, trouxe uma alternativa para o exercício de tal controle. Trata-se da chamada ação de Arguição do Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, que deverá ser proposta perante o STF, quando se pretenda evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, ou, ainda, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, aí incluídos os anteriores à Constituição. Portanto, por meio de ADPF, efetiva-se o controle concentrado de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal.
Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes:
A Arguição do Descumprimento de Preceito Fundamental é uma solução que vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam resolvidas pelo Supremo Tribunal Federal, com eficácia geral e efeito vinculante. (MENDES, 2001, p.134)
Como se observa, a ADPF19 só pode ser proposta quando se pretenda evitar ou reparar lesão a preceito fundamental. O conceito de preceito fundamental foi esculpido pelo STF e, nas palavras do professor Cássio Juvenal Faria, citado por Lanza (2003), diz respeito a
Normas qualificadas, que veiculam princípios e servem de vetores de interpretação das demais normas constitucionais, como por exemplo, os princípios fundamentais do Título I (arts. 1° ao 4°); os integrantes das cláusulas pétreas (art. 60, §4o.); os chamados princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII); os que integram a enunciação dos direitos e garantias fundamentais (Título II); os princípios gerais da atividade econômica (art. 170); etc. (FARIA apud LENZA, 2003, p. 118)
No mesmo sentido, o professor Uadi Lammêgo Bulos (2007) prescreve que “classificam-se de fundamentais os grandes preceitos que informam o sistema constitucional, que estabelecem comandos basilares e imprescindíveis à defesa dos pilares da manifestação constituinte originária.” (BULOS, 2007, p. 57)
Depreende-se, portanto, que preceito fundamental é aquele dos quais se extraem valores de soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valorização social do trabalho e todos mais relacionados aos princípios da igualdade, democracia, federalismo e qualquer outro relacionado às garantias fundamentais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como consequência do pacto federativo adotado no país e da supremacia da Constituição Federal, tem-se que a criação de qualquer jurisdição constitucional afeta aos demais entes da federação deve ser expressamente autorizada pelo texto constitucional.
O bom funcionamento do sistema jurídico brasileiro na forma como hoje se apresenta depende da conformação dos atos normativos municipais com a Constituição por meio do controle de constitucionalidade.
Sendo assim, as posições minoritárias contrárias à fiscalização das leis municipais ante a Constituição Federal não merecem guarida tendo-se em vista a importância, abrangência e, principalmente, a especificidade das leis municipais.
Nesse sentido, pode-se concluir ser plenamente possível o controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos municipais, e aí se inclui a Lei Orgânica Municipal, em face da Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000
BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009.
BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo. Malheiros, 2009.
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 23/04/2014.
BRASIL. Lei no 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, 06 dez. 1999. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm. Acesso em 24/04/2014.
BRASIL. STF Recurso Extraordinário – RE n. 171819/RR – Relator(a): Min. Néri da Silveira – Julgamento em 08/04/2002 – Órgã Julgador: Segunda Turma – Diário de Justiça de 24-05-2002 PP-00069.Disponível em http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/774872/recurso-extraordinario-re-171819-rr. Acesso em 23/04/2014
BRASIL. RE n. 421256/SP – Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski – Julgamento em 26/09/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma – Diário de Justiça de 24-11-2006 PP-00076. Disponível em RE n. 421256/SP – Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski – Julgamento em 26/09/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma – DJ 24-11-2006 PP-00076. Acesso em 23/04/2014.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
FERREIRAFILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. 1, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
IVO, Gabriel. Constituição Estadual competência para elaboração da Constituição do Estado-membro, São Paulo, Max Limonad, 1997.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 6 ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Método, 2003.
MARCO, Chisthian Magnus de. Evolução constitucional do município brasileiro. Revista Jurídica, Joaçaba, v.3, n.3, p. 69-102, jan. dez. 2002.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Poder municipal: paradigmas para o estado constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 14. ed. atual. por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. p 133.
MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001.
SANTIN, Janaína Rigo; FLORES, Deborah Hartmann. A evolução histórica do município no federalismo brasileiro, o poder local e o estatuto da cidade. Justiça do Direito. Passo Fundo, v. 20, n. 1, 2006, p. 56-57.
NOTAS DE FIM
1 E Advogada, Especialista em Filosofia pela UFOP, Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC- PUC MINAS, Professora Assistente da FUPAC – Nova Lima, Assessora de Gestão das Áreas Técnicas da Associação Mineira de Municípios.
2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 1988)
3 Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental;
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
4 CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.60/61
5 Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (…)
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:(…)
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:(…)
- c) autonomia municipal; (BRASIL, 1988)
6 Cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 74-75.
7 LEAL, 1954 apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 14. ed. atual. por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 133.
8 Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000.
Art. 60 […] § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988)
9 FERREIRAFILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. 1, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p.197
10 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. 1, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p.198
11 IVO, Gabriel, Constituição Estadual competência para elaboração da Constituição do Estado-membro, São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 141.
12 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:(…)
V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
13 Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (BRASIL, 1988)
14 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
- a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (BRASIL, 1988)
15 Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.(…)
- 2º – Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão. (BRASIL, 1988)
16 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:(…)
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:(…)
- c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
17 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:(…)
- 3º – Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
18 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
- 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (BRASIL, 1988)
19 Os legitimados para propor Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental se encontram definidos, em numerus clausus, no art. 103 da Constituição da República, nos termos do disposto no art. 2º, I, da Lei nº 9.882/99, sendo que esse rol não poderá ser ampliado, conforme já decidiu o STF.