Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

 Ana Luiza Gomes de Araujo[1]
Luciana Moraes Raso Sardinha Pinto[2]
Maria Isabel Araújo Rodrigues[3]

 

RESUMO: A questão atinente aos limites impostos ao controle jurisdicional de políticas públicas é a tônica deste estudo. As políticas públicas são de grande relevo por sua capacidade de dar efetividade aos direitos fundamentais. Por ser instituto ainda novo para o Direito, elas, ora vêm sendo consideradas atividade política do Estado e, conseqüentemente, não passíveis de controle, ora submetem-se a controle que excede seus limites, definindo a alocação de recursos e as prioridades a serem adotadas. O presente artigo propõe-se a demonstrar a viabilidade do controle jurisdicional, delimitando especificamente os princípios expressos e implícitos aplicáveis a ele. Sobreleva, assim, o papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário em matéria de políticas públicas, de modo a garantir a efetividade dos direitos fundamentais, sem extrapolar os limites constitucionais impostos à sua atuação. 

 

PALAVRAS-CHAVES: Controle; políticas públicas; princípios. 

 

Área de interesse: Direito Administrativo e Direito Constitucional 

 

1 INTRODUÇÃO

 O presente artigo propõe a discussão a respeito da incidência do controle jurisdicional sobre as políticas públicas e dos princípios informadores desse controle. Constitui característica do Estado Democrático de Direito a ampliação dos mecanismos de controle sobre a atuação estatal, sendo as políticas públicas manifestações de tal atuação limitadas pelo ordenamento jurídico.

É preciso considerar que o debate a ser empreendido acerca da possibilidade de existência de controle jurisdicional sobre as políticas públicas não exclui a aplicação de outras formas de controle, tais como o controle interno, o controle social e o controle externo exercido pelo Legislativo com o auxílio do Tribunal de Contas. Tais controles, todavia, não são objeto deste estudo.

Luiz Werneck Vianna (1999, p. 22) vislumbra a criação no Poder Judiciário, de uma nova arena pública, na qual os “procedimentos políticos de mediação cedem lugar aos judiciais”, o que, a princípio, não seria propício à formação de homens livres e de uma democracia de cidadãos ativos.

Se, por um lado, a expansão do controle jurisdicional pode gerar certo abandono à opção pelas formas de participação social, por outro, no controle da atuação pública, indubitavelmente, esse enfraquecimento no controle social não pode ser inteiramente atribuído à expansão do controle jurisdicional, mas, sim, à pouca efetividade do controle social, pela carência de mecanismos coercitivos que levem os poderes a respeitar as decisões adotadas em instâncias de deliberação social.

Visto sob outra ótica, o controle jurisdicional apresenta as vantagens de consistir em mais uma arena de controle, relevante em um país como o Brasil, em que as práticas de vida associativa ainda são incipientes, visto que foram reprimidas por muito tempo, além de possibilitar a tutela das minorias sociais pelo amplo acesso a uma Corte imparcial. Ademais, a opção de controle jurisdicional promove a cidadania ativa se atrelada à democratização do acesso ao Poder Judiciário. Nesse sentido é o magistério de Luiz Werneck Vianna (1999, p. 44): “Importa também que a democratização do acesso à Justiça possa ser vivida como arena de aquisição de direitos, de credenciamento à cidadania e de animação para uma cultura cívica que dê vida à República”.  

 

2 CONCEITO DE CONTROLE E FINALIDADE

Do ponto de vista etimológico, associa-se o controle à idéia de conferência, decorrente de termo de origem francesa. Controle, segundo ensinamentos em aula proferida por Júlio César dos Santos Esteves, citado por Pires e Nogueira (2004, p. 89), deriva de rôle, significando listagem contida em longos pergaminhos, nos quais constavam registros de nomes, atos, inventários. O contre-rôle era a lista em que se efetuava o confronto com o registro original e servia para verificar os dados. Abrange também as noções de vigilância, orientação e correção, conforme lições de Hely Lopes Meirelles (2002, p. 632).

Desse modo, mais que simplesmente fiscalizar e corrigir, a função de controle também se destina a orientar a atuação dos órgãos públicos, sentido esse relevante para o trabalho que se está a erigir.

A idéia de controle jurisdicional mudou consideravelmente ao longo dos paradigmas modernos do Estado. Pode-se afirmar que, no Estado de Direito, o controle se limitava meramente à observação da conferência com a lei, exercendo o Poder Judiciário o mero papel de ser a boca que balbucia as palavras da lei.

No Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário assume papel mais atuante: aplica todo o ordenamento jurídico diante do caso concreto, utilizando de maneira construtiva os princípios e regras, de modo a buscar a adequabilidade da decisão às nuances do caso concreto. Nesse sentido, a decisão tomada consiste em um processo intersubjetiva e racionalmente formado, e não mais na mera aplicação “fria” e isenta da lei.

Por se considerar o controle jurisdicional a partir de seu caráter de definitividade e, ainda, tendo em vista que a jurisdição inclui-se entre as formas de se realizar os fins do Estado, visando à promoção de justiça social e à realização dos direitos fundamentais (PAULA, 2002, p. 88), faz-se, neste trabalho, a opção metodológica por estudar o controle jurisdicional de políticas públicas.

 

2.1. DISCUSSÕES ACERCA DO CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A efetivação das políticas públicas destina-se à concretização dos direitos fundamentais, submetendo-se ao sistema do Direito. A jurisdicização da política é fato não somente no que se refere ao Direito Administrativo, mas também em outras áreas do conhecimento científico, por exemplo, o Direito do Trabalho. A cada dia, matérias que eram consideradas políticas passam a se submeter ao código do Direito. E, por conseqüência lógica, tais matérias passam a se sujeitar também às diversas modalidades de controle, dentre eles o controle jurisdicional, configurando-se o que alguns denominam “judicialização da política”.

Nesse sentido, afirma-se que a Constituição da República permite e promove a judicialização da política, especialmente a partir da universalização dos direitos e da definição das matrizes de atuação do Poder Público, de modo a realizá-los.

Gilberto Bercovici, citado por Jônatas Luiz Moreira de Paula (2002, p. 61), ao defender o controle de constitucionalidade de políticas públicas, argumenta:

a ideologia constitucional não é neutra, é política, e vincula o intérprete. Os princípios constitucionais fundamentais, como o art. 3º da Constituição de 1988, são a expressão das opções ideológicas essenciais sobre as finalidades sociais e econômicas do Estado, cuja realização é obrigatória para os órgãos e agentes estatais e para a sociedade […].

Assim sendo, conclui-se que ao Estado cabe garantir a efetividade dos direitos fundamentais e a concretização dos fins previstos no art. 3º da Constituição, de modo que “ante a falha do Poder Executivo (ausência de ação) e a falha do Poder Legislativo (ausência de legislação), resta a atividade do Poder Judiciário para conferir eficácia forçada à política social determinada no art. 3º, da CF”. (PAULA, 2002, p. 62)

Nesse sentido, o Poder Judiciário assume o importante papel de primar pela realização da justiça social, estando legitimado por força do princípio do acesso a justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, a apreciar as ocorrências de lesão aos direitos fundamentais, envolvendo políticas públicas a ele submetidas. Não há que se conceber que estaria, assim, o Poder Judiciário substituindo o administrador público, uma vez que aquele atuará em prol da tutela aos direitos fundamentais, em razão de alguma ofensa a eles, e limitadamente aos princípios decorrentes do ordenamento jurídico.

A esse propósito, lembra Clèmerson Merlin Clève (2003, p. 25) que há forte debate a respeito da legitimidade do Poder Judiciário para apreciar políticas públicas, sob o argumento de que os juízes não são eleitos pelo sufrágio popular, em razão da escolha da maioria, por isso, não poderiam substituir o administrador ou o legislador, por força do princípio da separação dos poderes. Respondendo a esses argumentos, afirma o autor:

A democracia não significa simplesmente governo da maioria. […] Demais disso, zelar pela observância dos direitos fundamentais significa, para o Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional proteger a maioria permanente (Constituinte) contra a atuação desconforme da maioria eventual, conjuntural e temporária (legislatura).

Nesse sentido, convém questionar a quem interessa a neutralidade e a omissão do Judiciário no que se refere às políticas públicas. Se o princípio da separação dos poderes foi inicialmente idealizado com a finalidade de conter o arbítrio estatal, pode-se afirmar que, atualmente, a remissão a ele de modo a justificar a impossibilidade do controle jurisdicional sobre as políticas públicas visa tutelar a manutenção do status quo, dando caráter de “juridicidade” à omissão estatal em seus deveres de realizar os direitos fundamentais, por meio das políticas públicas. Se, o princípio da separação dos poderes foi criado com a finalidade de coibir os abusos estatais, não se pode remeter a ele para respaldar semelhante abuso estatal que consiste na omissão em efetivar os direitos fundamentais. 

Também assim é o entendimento de Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 38): “Constatamos […] ser um arrematado absurdo apontar o princípio da separação dos poderes como entrave à efetivação de direitos fundamentais, uma vez que tal interpretação aniquila a efetividade (correta aplicação) da separação dos poderes”. O autor sugere que o princípio da separação dos poderes seja revisitado, de modo a se redimensionar a função judicial na materialização da Constituição.

Por outro lado, a substituição da Administração Pública pelo Poder Judiciário, que em determinadas circunstâncias chega a formular políticas públicas, face à alegada omissão, também constitui abuso estatal, que merece ser rechaçado.

Nesse sentido, mostra-se inegável a subversão da ordem relativa à supremacia do interesse público sobre o privado, que se dá no âmbito das decisões individuais. Uma decisão que ordene o gasto de um terço do orçamento de um município com a aquisição de medicamentos para um único indivíduo compromete o direito à saúde de toda a população local. Em casos como esse quem acaba por alocar os recursos é o Poder Judiciário, o que sem dúvidas, é uma grande distorção do modelo.

Situações como essas denotam “o discurso dos direitos fundamentais se voltando contra os direitos fundamentais”, na expressão de Daniel Sarmento (2000). As perspectivas da supremacia do interesse público e da proporcionalidade são fundamentais. A judicialização da política pode conduzir, assim, à assunção de um papel assistencialista pelo Poder Judiciário em face de um Executivo que enfrenta crises de financiamento e legitimidade. Convém considerar assim, que tão temerosa quanto a instabilidade legislativa e administrativa casuística é a presença de tal vício na prestação da tutela jurisdicional. 

Ademais, conforme alerta Vanice do Valle, a solicitação judicial por uma prestação permite tão-somente presumir que quem demanda não dispõe daquilo que pede. O que importa é saber se esse não dispor decorre de omissão estatal, de ação existente mas defeituosa, ou antes de uma escolha legítima que não priorize o atendimento daquele tipo específico de necessidade em favor daquele segmento de pessoas – e que, portanto, não deva desafiar revisão judicial. Contudo, o Judiciário ao exercer o controle de políticas públicas, na grande maioria das vezes, não faz essa reflexão, partindo do pressuposto de que a situação constitui omissão indevida do poder público, que implica no descumprimento dos direitos fundamentais, tutelados pela Carta Constitucional.

O discurso do Estado insensível aos deveres de proteção à dignidade da pessoa humana é sempre mais fácil – e evita o enfrentamento de questões tormentosas sobre a formulação de escolhas trágicas (Wanderley Guilherme dos Santos 1987) por uma sociedade que não dispõe de recursos (financeiros, humanos, naturais, de toda ordem) infinitos para atender à pluralidade de necessidades decorrentes de condição humana.

É preciso avaliar, portanto, com olhar crítico se é real a suposta aptidão transformadora da judicialização das políticas públicas, ou se ela acaba por reproduzir em maior escala, a diferenciação social vivenciada, aumentando ainda mais o fosso da distinção por comprometer a prestação de políticas publicas, a quem mais depende delas, e que, por razões variadas, não teve acesso ao Judiciário. Não se pode negar que a esmagadora maioria das demandas envolve a solução de casos singulares que, por isso mesmo, tendem a não se revelar significativos no seu potencial de promover efetivamente as desejadas transformações sociais. Cria-se assim, uma seletividade dos direitos fundamentais, o que não é contemplado pela teoria de tais direitos. A título de exemplo, pode-se imaginar o direito à saúde, assegurado no texto constitucional sob o signo da universalidade, culmina por ser tutelado tão-somente àqueles que têm acesso ao Poder Judiciário.

Ademais, não se pode olvidar que o juiz no âmbito de sua decisão judicial não tem conhecimento de quantas outras sentenças já foram proferidas em face do ente público, assegurando determinado direito, de modo que, no limite, pode vir a proferir uma decisão judicial impossível de ser cumprida, pela impossibilidade material do objeto (por exemplo, assegurar a internação compulsória de um paciente, em um hospital psiquiátrico, no qual todos os leitos já estão cheios, ocupados por pacientes que adquiriram provimento judicial). 

Sinaliza ainda, Vanice do Valle que a formação exclusivamente jurídica limita a capacidade de compreensão da realidade controlada (especialmente das políticas públicas correspondentes). “Há um distanciamento entre a lógica de quem julga e a realidade de quem executa”.

É tarefa do Poder Judiciário a tutela à Constituição e a garantia de sua efetividade, não podendo, portanto, encontrar guarida no princípio da separação dos poderes, a omissão estatal desarrazoada no cumprimento desse dever. Apontam-se as vantagens de se admitir o controle jurisdicional, que configura como mais uma arena de controle, permitindo a expansão do pluralismo, sendo necessário, é claro, a observância de limites a atuação do Judiciário no controle, sob pena de o controlador se tornar, ele próprio, sem controle. Contudo, a matéria exige cautela de modo que “não seja o texto fundamental, principal pilar da isonomia, o pretexto para a consagração – em seu nome – da prática judicial da desigualdade.” (Vanice Valle)  

Feitas essas observações e considerando, ainda, que o controle jurisdicional de políticas públicas, quando apropriado à questão submetida à análise deve sofrer limitações em razão de condicionantes decorrentes do ordenamento jurídico, é que se procederá a um esforço, semelhantemente ao que já foi feito pela doutrina em matéria de licitações e serviços públicos, de tentar delimitar princípios a serem observados no controle jurisdicional de políticas públicas.

 

2.2 PRINCÍPIOS INFORMADORES DO CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Neste tópico, tentou-se delimitar princípios implícitos e explícitos, decorrentes da aplicação do ordenamento jurídico, que servirão de limites à atuação do Poder Judiciário no controle do planejamento, execução e avaliação de políticas públicas, bem como nos casos de omissão.

2.2.1 Princípio da universalidade

As políticas públicas se concretizam visando garantir a efetividade aos direitos fundamentais sociais previstos na Constituição da República. Tais direitos se destinam a todos, indistintamente, não sendo cabível discriminações de qualquer natureza, exceto se para realizar o princípio da igualdade, como vem ocorrendo nas ações afirmativas. Esse é o entendimento de Clèmerson Merlin Clève (2003, p. 23), segundo o qual “a exigência é de que os serviços sejam colocados à disposição de todos os brasileiros (idéia de universalidade) implicando para o particular o poder de reivindicar junto ao Judiciário tratamento idêntico”.

Assim, o Poder Judiciário deve adotar como baliza no exercício do controle sobre as políticas públicas a idéia de que estas devem se destinar a toda a coletividade, atendendo a todos aqueles que se encontrem em situação semelhante, só sendo cabíveis as exclusões de atendimento que decorram de limites razoáveis, genéricos e objetivos.

Mostra-se necessário orientar-se na busca da plena universalização e efetividade dos direitos fundamentais, pois, nas palavras de Clèmerson Merlin Clève (2003, p. 22), “deve-se partir do princípio que tudo que está na Constituição Federal obriga”.

Por outro lado, não se pode desconsiderar que, no Brasil, as carências pela efetivação de direitos fundamentais são inúmeras e a sua realização condiciona-se a critérios variáveis de região para região, tais como a capacidade financeiro-orçamentária, o que fez com que, de modo geral, ganhasse relevância o princípio oriundo do direito alemão da reserva do possível, segundo o qual os direitos subjetivos à prestação material do Estado encontram-se condicionados a disponibilidade de seus recursos financeiros.

Alerta Andreas Krell (2002, p. 53) que no Brasil, assim como em outros países periféricos, questão que assume grande relevo na aplicação do princípio da reserva do possível diz respeito à delimitação de quem terá a legitimidade para definir o que seja “o possível na área de prestações sociais básicas face à composição distorcida dos orçamentos do diferentes entes federativos”. Ao que parece, a delimitação do “possível” deverá ser adotada em cada caso, com a participação de todos os interessados e prováveis afetados, não se limitando à análise do Poder Judiciário.

A aplicação desse princípio ao caso brasileiro apresenta inúmeras limitações, dado que não se pode buscar transferir a discussão dos limites do Estado Social europeu e sua redução no que diz respeito à prestação de determinados direitos para um país como o Brasil, que sequer chegou a vivenciar, de fato, o Estado de Bem-Estar Social.

No caso brasileiro, “o condicionamento da realização de direitos econômicos, sociais e culturais à existência de ‘caixas cheios’ do Estado significa reduzir a sua eficácia a zero” (KRELL, 2002, p. 54). Desse modo, no controle de políticas públicas devem ser consideradas as variáveis financeiras orçamentárias, mas sem desconsiderar a necessidade do atendimento ao “mínimo existencial”, idéia oriunda do direito alemão.

A noção de mínimo existencial está intimamente relacionada à garantia de condições materiais de existência digna, e para que ela seja usada sem que gere uma minimização dos direitos fundamentais é indispensável que seja conjugada com o princípio da progressividade do atendimento que será tratado em seguida.

Pode-se concluir, portanto, que a extensão do mínimo existencial em países em desenvolvimento como o Brasil é muito maior do que nas nações européias onde surgiu tal princípio, dado que no Brasil as necessidades mais básicas dos cidadãos ainda não foram satisfeitas.

Sendo assim, compete ao Poder Judiciário, no exercício do controle sobre as políticas públicas concretizadas, firmar, diante do caso concreto e com a ampla participação das partes, o que deve ser considerado como o mínimo existencial, em uma situação de “reserva do possível”, em prol da universalização da prestação social.

2.2.2 Princípio da progressividade do atendimento

Como afirmado, o princípio da progressividade do atendimento pode ser adotado juntamente com o princípio do mínimo existencial, de maneira a garantir o mínimo de satisfação de direitos sociais fundamentais necessários à dignidade da pessoa humana, e que a esse mínimo vá acrescendo sucessivamente, outros direitos fundamentais, de forma progressiva. 

Clèmerson Merlin Clève (2003, p. 21) ao tratar dos direitos sociais fundamentais, assevera que seu cumprimento implica uma caminhada progressiva sempre dependente do ambiente social no qual se inserem, do grau de riqueza da sociedade e da eficiência e elasticidade dos mecanismos de expropriação (da sociedade, pelo Estado) e de alocação (justiça distributiva) de recursos. A caminhada a que Clève se refere, que dependerá da expropriação e da alocação de recursos, sugere a idéia de se tratar do planejamento orçamentário. De modo que a prestação de direitos sociais decorrerá da capacidade orçamentária do Estado, sempre de maneira progressiva.

O princípio da progressividade do atendimento apresenta como conseqüência lógica a impossibilidade de retrocesso. Cumpre considerar que ocorre aceitação geral à não-efetivação de todos os direitos sociais tais como previstos na Constituição em razão de questões orçamentárias, e limitações de ordem financeira e econômica. Logo, por essas questões financeiras se aceita a prestação do “mínimo existencial” para a realização da dignidade da pessoa humana, quando, na realidade, a Constituição da República consagra muito mais que o mínimo. Todavia, contenta-se com o mínimo sob a justificativa da progressividade do atendimento, ou seja, de que no longo prazo todos os direitos sociais serão efetivamente prestados à coletividade. Destarte, sob esse raciocínio, seria contraditória a idéia do retrocesso, no princípio da progressividade de atendimento.

Vedado o retrocesso, compete ao Judiciário barrar políticas públicas que venham a ser executadas, de modo a revogar programas prestacionais anteriores, sem criar nova forma de tutela no que concerne aos direitos que vinham sendo prestados. Importante, ainda, considerar que as prioridades a serem progressivamente satisfeitas não podem ser eleitas a priori, posto que apenas diante do caso concreto, com a participação e o embate dos interessados, será possível apontar os focos mais carentes da atuação estatal.

Destarte, os recursos públicos devem ser bem alocados e tal alocação não compete ao Poder Judiciário. Segundo Clèmerson Melin Clève (2003, p. 26), “o cuidado com a escassez permitirá, dentro dos limites oferecidos pela riqueza nacional, implementar políticas públicas realistas”.

 

2.2.3 Princípio da eficiência

O princípio da eficiência possui status constitucional, estando previsto no caput do art. 37 da Constituição da República, por força da Emenda Constitucional n° 19/98. Tal princípio, nas palavras de Juarez Freitas (2004, p. 73) preceitua, em síntese, que “o administrador público está obrigado a trabalhar tendo como parâmetro a busca da melhor atuação (fundamentável como tal)”, tendo o compromisso indeclinável de buscar a “solução mais adequada economicamente ao gerir a coisa pública”.

Aplicando-se esse princípio às políticas públicas, afirma-se que estas devem buscar sempre a solução que melhor atenda aos interesses coletivos com o menor custo. Todavia, entende-se que o princípio da eficiência não se limita apenas a essa abordagem econômica, envolvendo as variáveis de custo e benefício. Além disso, há que se abordar também a eficiência social que leva muitas vezes à adoção de comportamentos que, embora ofereçam custo nominal mais alto, apresentam externalidades positivas, em virtude dos benefícios sociais gerados. Por exemplo, é eficiente, sob o aspecto social, comprar determinada mercadoria por valor superior ao valor de mercado, se o produto em questão é fabricado por crianças carentes, auxiliadas por programas assistenciais que se mantêm economicamente pelo dinheiro arrecadado nas vendas. Essa mesma lógica deve ser aplicada às políticas públicas, que devem buscar não só a eficiência do ponto de vista econômico, como também sob o aspecto social.

Segundo Juarez Freitas (2004, p. 75), a necessidade premente da observância do princípio da eficiência se deve ao fato de que nosso país insiste em praticar, em todas as searas, desperdícios ignominiosos dos escassos recursos públicos. Não raro, prioridades não são cumpridas. Outras tantas vezes, obras restam inconclusas, enquanto se principiam outras altamente questionáveis. Traçados de estradas são feitos em desacordo com técnicas básicas de engenharia. Decisões de obras são tomadas em rompantes conducentes a erros amazônicos. Mais: escolas são abandonadas e, ao lado, inauguram-se novas. Hospitais são sucateados, enquanto se iniciam outros. Materiais são desperdiçados acintosamente. Obras apresentam projetos básicos que discrepam completamente dos custos finais em face de erros elementares.

Por essas razões, apresenta-se a eficiência como princípio de grande relevância no exercício do controle jurisdicional de políticas públicas, de modo a coibir que sejam formuladas políticas destituídas de preocupações relevantes de cunho social em áreas que, muitas vezes, não são prioritárias, meramente com intuitos secundários, ou eleitoreiros. 

2.2.4 Princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana constitui fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, conforme preceitua o art. 1º, III, da Constituição da República. Para o autor português Paulo Ferreira da Cunha, citado por Andreas Krell (2002, p. 62), não haverá direito à vida sem direito à vida digna. Donde, se é lícito daí deduzir direitos de defesa contra o arbítrio e mesmo direitos políticos […], a fortiori, ou, ao menos a pari se poderá reclamar a exigência de meios materiais de sobrevivência mínimos: uma certa propriedade […] e alguns direitos sociais, assistenciais.

Tal princípio encontra-se diretamente relacionado ao princípio do mínimo existencial, uma vez que o principal parâmetro à configuração desse “mínimo” é a realização da dignidade da pessoa humana. Entretanto, a generalidade da concepção de dignidade da pessoa humana, de acordo com Ana Paula de Barcellos (2000, p. 159), chega até mesmo a contemplar concepções diversas, eventualmente contraditórias, por se tratar de um princípio vago e de conteúdo indeterminado.

Salienta a autora (2000, p. 175) que a Constituição da República, em alguns de seus dispositivos, prescreve direitos mínimos que compõem a noção de dignidade da pessoa humana, como o são, por exemplo, o acesso ao ensino fundamental, o direito à saúde mínima e a assistência aos desamparados.

Nos outros casos, diante da situação apresentada, caberá ao Poder Judiciário sopesar o que se faz necessário para realizar a dignidade da pessoa humana e, ainda, que tipo de comportamento atenta contra tal princípio, considerando em seu julgamento que “uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu conteúdo mais essencial, está contido naquela esfera do consenso mínimo assegurada pela Constituição e transformada em terreno jurídico” (BARCELLOS, 2000, p. 178).

De sorte que, o controle jurisdicional a ser exercido sobre as políticas públicas, com a finalidade de realizar o princípio da dignidade da pessoa humana, não se dá de maneira livre, uma vez que o próprio conteúdo da dignidade da pessoa humana, embora amplo, comporta seu conteúdo mais essencial, diretamente relacionado ao mínimo existencial tutelado pela Carta Constitucional. De outro modo, a dignidade da pessoa humana, não é um conceito indeterminado, exceto se considerar que tais conceitos comportam interpretação, e nunca discricionariedade em sua aplicação, como o faz Eros Grau (1995, p. 317).

2.2.5 Princípio da instrumentalização dos direitos fundamentais

Andreas Krell (2002, p. 18) apresenta, com grande propriedade, a situação paradoxal brasileira, em que, a despeito de a Constituição da República estipular uma série de direitos fundamentais sociais, para a maioria da população essa aparenta ser uma “categoria referencial bem distante”. Nas palavras do autor, encontram-se em contradição flagrante a pretensão normativa dos Direitos Fundamentais Sociais e o evidente fracasso do Estado brasileiro como provedor dos serviços essenciais para a maioria da sua população. 

Discute-se, cada vez mais, a complexidade do processo de transformação dos preceitos do sistema constitucional mediante realização de programas e políticas governamentais. Agravando essa situação de distanciamento entre a Constituição e a realidade, ressalta-se o disposto no art. 5º, § 1º, mediante o qual “as normas definidoras dos direito e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Mostra-se, assim, que nem mesmo tal dispositivo constitucional conseguiu dar a concretude necessária aos direitos sociais fundamentais, o que é grave, dado que “a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos” (KRELL, 2002, p. 23).

Nesse contexto, o planejamento e a execução de políticas públicas apresentam o relevante papel de instrumentalizar os direitos fundamentais, dando-lhes efetividade. Pode-se afirmar, assim, que o planejamento e a execução de políticas públicas são instrumentos utilizados para dar concretude aos direitos fundamentais.

Nesse prisma, o Judiciário, ao exercer o controle sobre o planejamento e a execução de políticas públicas, além de observar o respeito aos princípios previstos no art. 37, da Constituição da República, a universalidade e a progressividade do atendimento, de modo a garantir a dignidade da pessoa humana, deverá analisar também se eles destinam à efetivação dos direitos fundamentais.

2.2.6 Princípio da construção discursiva das políticas públicas

Além de apresentarem o caráter instrumental, uma vez que se destinam à efetivação dos direitos fundamentais, as políticas públicas, no paradigma do Estado Democrático de Direito, devem ser construídas de maneira discursiva.

Tal paradigma envolve a idéia de construção emparceirada das decisões públicas, ou seja, a sociedade civil é convidada a participar da formação da vontade estatal e da Administração Pública. “Essa nova conformação da esfera pública é dada no intuito de substituir a autonomia privada do indivíduo pela autonomia social dos participantes no procedimento” (DIAS, 2003, p. 151)

Para tanto, faz-se necessária a ampliação dos canais de participação, conferindo a todos os interessados a possibilidade de vocalização de suas demandas e participação nas decisões, no procedimento de formação do direito e das políticas públicas.

A idéia de procedimentalidade e a de discursividade apropriadas à formação de políticas públicas conferem-lhe legitimidade, uma vez que pressupõem que os destinatários da política pública participaram na sua elaboração, mediante deliberação coletiva. Além do caráter discursivo, as políticas públicas possuem também caráter emancipatório. 

Nesse sentido, afirma-se que a verdadeira cidadania é emancipada. Sob essa máxima, as políticas públicas devem se prestar à integração dos cidadãos, e não à mera inclusão deles. A noção de integração carrega em seu bojo a idéia de emancipação, pois parte do pressuposto de que, uma vez assegurado aos cidadãos o acesso igualitário a bens e serviços, eles estão capacitados para enfrentar as dificuldades sociais sem necessidade de recorrer às políticas assistencialistas. Desse modo, é necessário integrar para emancipar.

Sendo assim, ao Poder Judiciário, em observância a esse princípio, compete, no controle sobre as políticas públicas, examinar a igualdade de condições e a autonomia dos interessados na participação nos processos de deliberação de políticas públicas, visto que, segundo Habermas, citado por Maria Tereza Fonseca Dias (2003, p. 153), no paradigma procedimental do direito “pressupõe-se a institucionalização de procedimentos comunicativos para uma formação de vontade e de opinião discursivas que, por sua vez, habilita o exercício da autonomia política dos indivíduos”.

Uma vez discutido o controle jurisdicional sobre as políticas públicas, tomando como parâmetro, para tanto, os princípios explícitos e implícitos condicionadores da atuação do Poder Judiciário, faz-se, a seguir uma abordagem a respeito da aplicação do princípio da reserva do possível, pelo Poder Judiciário, em matéria de políticas públicas, à luz da teoria da ponderação de interesses.

 

3 A ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 45 E A RESERVA DO POSSÍVEL

O princípio da reserva do possível foi tratado pelo Supremo Tribunal Federal, entre outras ocasiões, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 45, ajuizada no Supremo Tribunal Federal, pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no dia 15/10/2003, contra ato do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que consistiu no veto sobre o § 2º do art. 55, posteriormente renumerado para art. 59, da proposição legislativa que se converteu na Lei n. 10.707/2003 – Lei de Diretrizes Orçamentárias. Confira-se o dispositivo vetado: 

§ 2º Para efeito do inciso II do caput deste artigo, consideram-se ações e serviços públicos de saúde a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza.

O autor ingressou com a ADPF por entender que o veto presidencial consistiu em afronta a preceito fundamental consubstanciado na Emenda Constitucional n° 29/2000, que foi promulgada com o fito de garantir o repasse de recursos mínimos destinados à aplicação nas ações e serviços públicos de saúde.

O Presidente da República, após ter emitido o veto ao dispositivo citado, remeteu ao Congresso Nacional projeto de lei que se converteu na Lei n° 10.777/2003, cujo art. 1º restaurou integralmente o mandamento do citado § 2º que havia sido vetado. Desse modo, deu-se a perda do objeto da ADPF 45.

Não obstante a perda de objeto, o Ministro Relator Celso de Mello não se limitou a declarar o arquivamento dos autos, mas tratou a respeito da tarefa da concretização de políticas públicas, a qual, segundo ele, evidencia, de forma expressiva, a dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao STF, que não pode se esquivar do encargo de “tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais […] sob pena de o Poder Público por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional”.

Afirma o relator que, apesar de não se incluírem entre as funções do Judiciário a formulação e a implementação de políticas públicas, que competem ao Executivo e ao Legislativo, tais incumbências, excepcionalmente, poderão caber ao Judiciário, quando os órgãos estatais competentes “vierem a comprometer […] a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático”.

Complementa o Ministro Celso de Mello a respeito das normas programáticas:

O caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política não pode converte-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

A despeito de entender que as normas, ainda que de caráter programático, devem ser efetivadas, o Ministro Celso de Mello relativiza a aplicação das normas delimitadoras de direitos fundamentais sob a alegação de que serão implementadas no “limite do possível”, o que leva à concepção de que seriam valores e, não normas, passíveis, portanto, de ser aplicados em diversos graus, como afirma Marcelo Galuppo (1999, p. 196). Desse modo, apresenta o relator justificativa para o descumprimento dos direitos fundamentais pelo Poder Público, mediante a retirada de normatividade de tais direitos.

Tal possibilidade de realização dos direitos fundamentais na medida do possível denota o caráter axiológico com o qual são tratados pelo Supremo Tribunal Federal. Como afirma Marcelo Galuppo (1999, p. 196), “se é possível uma aplicação gradual dos princípios, eles não podem ser caracterizados como normas jurídicas”, as quais se situam no âmbito deontológico (do dever ser) e, portanto, possuem um código binário e não gradual de aplicação.

Nesse sentido, segundo o autor, a possibilidade de gradação de aplicação de princípios em confronto, diante do caso concreto, retiraria deles a normatividade, denotando serem eles valores.

A par dessas considerações doutrinárias a respeito de se a hierarquização entre princípios diante do caso concreto, mediante a técnica de ponderação (Alexy), denotaria ou não caráter axiológico, ou se, diante do caso concreto, apenas um princípio poderia ser aplicado (Dworkim), a preocupação que surge, na realidade, quanto ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à validade dos direitos fundamentais, condicionada aos limites impostos da reserva do possível, situa-se na possibilidade de que o fato da (in)existência de recursos públicos sirva como limite à aplicação dos direitos fundamentais.

Não se ignora a limitação de recursos e o impacto que ela apresenta na atividade prestacional estatal. Mas o princípio da reserva do possível não pode ser considerado aprioristicamente como o critério definidor da solução para a situação contenciosa, sob pena de, mediante simplificação da prestação da tutela jurisdicional, distanciar-se do ideal de justiça, pela desconsideração da complexidade que envolve o ordenamento jurídico, da concorrência de outras normas aplicáveis, que, no atual paradigma, devem ser observados diante do caso concreto.

A adoção exclusivamente da reserva do possível parece inadequada no Estado Democrático de Direito, considerando-se, de antemão, que o fato relacionado à disponibilidade financeira do Estado é o limite à aplicação das normas. Há vários outros princípios que devem ser observados diante do caso concreto, como o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, e que não devem ser obstados pela limitação financeira estatal. Nesse mesmo sentido é o magistério de Daniel Sarmento (2000, p. 74) segundo o qual

a dignidade da pessoa humana afirma-se como o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses constitucionais. Ao deparar-se com uma colisão concreta entre princípios constitucionais, tem o operador do direito de, observada a proporcionalidade, adotar a situação mais consentânea com os valores humanitários que este princípio promove.

É o que se sugere seja considerado na atuação do Poder Judiciário que nem deve se exceder, criando políticas públicas, nos casos de omissão do Executivo e Legislativo, exercendo atividade que compete à órbita das decisões políticas que envolvem a escolha de prioridades e alocação de recursos em matéria de políticas públicas, nem deve se omitir sob o fácil argumento da reserva do possível.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tese da incidência do controle jurisdicional sobre políticas públicas encontra, na doutrina administrativista, focos de resistência, seja por uma compreensão restritiva do princípio da separação dos poderes, seja pela disseminação da noção de que atos políticos não se sujeitam ao controle pelo Poder Judiciário.

Contudo, pode-se afirmar que, se o princípio da separação dos poderes foi inicialmente idealizado com a finalidade de conter o arbítrio estatal, atualmente, a remissão a ele de modo a justificar a impossibilidade do controle jurisdicional sobre as políticas públicas visa garantir a manutenção do status quo, dando um caráter de pretensa “juridicidade” à omissão do Estado quanto aos seus deveres de realizar os direitos fundamentais, por meio das políticas públicas. Nesse sentido, entende-se competir ao Poder Judiciário, à luz do princípio da separação dos poderes, a tarefa de tutelar a Constituição, de modo que os preceitos nela contemplados tenham efetividade, não podendo, portanto, encontrar guarida na doutrina da separação dos poderes, a omissão estatal desarrazoada no cumprimento desse dever.

Por outro lado, a idéia de que as políticas públicas não são passíveis de controle pelo Poder Judiciário, ao argumento de que seriam atos políticos também não merece prosperar, uma vez que na Constituição brasileira, a previsão do controle jurisdicional é  garantia dos cidadãos, não havendo, assim, exceção a permitir a crença em atos não sujeitos ao controle jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV).

Além disso, experimenta-se uma aproximação cada vez maior da política em relação ao sistema do direito, o que se dá, notavelmente, por meio da Constituição, podendo-se falar atualmente em políticas públicas jurisdicizadas já no plano constitucional.

Desse modo, o controle jurisdicional apresenta-se como aplicável às políticas públicas em suas várias fases, planejamento, execução e avaliação, as quais sofrem diferentes limites impostos pelo ordenamento jurídico.

Se, por um lado, a expansão do controle jurisdicional pode gerar certo abandono à opção pelas formas de participação social no controle da atuação pública, indubitavelmente, esse enfraquecimento no controle social não pode ser inteiramente atribuído à expansão do controle jurisdicional, mas, sim, à pouca efetividade do controle social, pela carência de mecanismos coercitivos que levem os poderes a respeitar as decisões adotadas em instâncias de deliberação social.

Visto sob outra óptica, o controle jurisdicional apresenta as vantagens de consistir em arena especial de controle, relevante em um país como o Brasil, em que as práticas de vida associativa ainda são incipientes, uma vez que foram reprimidas por muito tempo, além de possibilitar a expansão do pluralismo, garantindo que minorias e grupos de pequena expressão possam questionar e influir nas decisões estatais, mediante o acesso a uma Corte imparcial, que não pode se eximir de julgar os casos que lhe sejam apresentados.

Para que isso realmente ocorra, necessária se faz a criação de instrumentos de garantia de democratização do acesso ao Poder Judiciário, além da demarcação de princípios limitadores à atuação jurisdicional, no controle sobre políticas públicas, sob pena de o controlador se tornar, ele próprio, sem controle. Nesse sentido, o objetivo maior com este trabalho foi identificar tais princípios aplicáveis à atuação do Poder Judiciário, em sua atividade de controle sobre políticas públicas.

Em termos práticos, diante da omissão na implementação de políticas públicas que não tenham suas matrizes de planejamento positivadas, não poderá o Judiciário, substituindo o administrador público, formulá-las de modo a sanar a omissão. Havendo, contudo, matrizes do planejamento da política positivadas, o Poder Judiciário atuará cuidando para que elas sejam executadas, o que se dará por mero controle de legalidade.

Diante das políticas públicas já concretizadas, o Poder Judiciário poderá analisar a observância aos princípios constitucionais, situação na qual tal órgão atuará em observância aos princípios da progressividade de atendimento, da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, entre outros.

Finalmente, em sua atuação de controle às políticas públicas, o Poder Judiciário deverá estar atento ao seu papel preponderante de tutela à ordem constitucional e efetividade aos direitos fundamentais, de modo a não se eximir de tão relevante função, por meio de alegações evasivas referentes à separação dos poderes ou à reserva do possível. Tais limitações à atuação judicial existem, de fato, mas não devem ser consideradas aprioristicamente, e, sim, diante de todas as nuances e circunstâncias envolvidas no caso concreto. 

 

REFERÊNCIAS

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VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

 


NOTAS DE FIM

[1] Mestre em Direito Administrativo pela UFMG, especialista em Direito Público pela PUC/MG. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Lato Sensu da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho. Gerente do Núcleo de Referência da Memória do Professor Paulo Neves de Carvalho. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Áreas de interesse: Direito Administrativo e Administração Pública. Endereço para correspondência: Alameda das Acácias, 70, 2º andar, São Luís, CEP 31275-150, Belo Horizonte/MG. Email: ana.araujo@fjp.mg.gov.br; tel. 3448.9636 

[2] Mestre e Doutora em Direito Administrativo pela UFMG, especialista em Auditoria e Controle Externo pela PUC/MG. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Lato e Stricto Sensu da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho. Diretora-Geral da Escola de Governo/FJP. Servidora de carreira do TCE/MG. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Administração Pública, Auditoria e Controle. Endereço para correspondência: Alameda das Acácias, 70, 2º andar, São Luís, CEP 31275-150, Belo Horizonte/MG. Email: luciana.raso@fjp.mg.gov.br; tel. 3448.9712 

[3] Mestre em Administração Pública pela Escola de Governo/FJP, especialista em Auditoria e Controle Externo pela PUC/MG.. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Lato Sensu da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho. Coordenadora do Curso de Administração Pública da Escola de Governo. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Áreas de interesse: Direito Administrativo e Administração Pública. Endereço para correspondência: Alameda das Acácias, 70, 2º andar, São Luís, CEP 31275-150, Belo Horizonte/MG. Email: isabel.rodrigues@fjp.mg.gov.br; tel. 3448.9592