Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Letícia Silva de Oliveira[1]

 

RESUMO: O presente artigo visa apresentar uma visão crítica da atual postura ativista do Supremo Tribunal Federal em face do Princípio da Tripartição dos Poderes. Para isso, faremos um breve histórico da separação das funções estatais, passando por Aristóteles até a Teoria dos Freios e Contrapesos ( Checks and Balances), formulada por Montesquieu. Analisaremos o modelo brasileiro de separação das funções Legislativa, Executiva e Judiciária, traçado pela Constituição de 1988, bem como das suas atribuições típicas e atípicas (esta última como viabilização do sistema dos Pesos e Contrapesos). Por fim, passaremos pela origem do “ativismo judicial”, alguns exemplos dessa atuação no STF, e do perigo aplaudirmos de modo temerário essa tendência (mundial), tendo em vista o risco de invasão de competência da esfera de atuação tanto do Legislativo quanto do Executivo, configurando violação do artigo 2º, CR/88; e, em última análise, risco à democracia brasileira. 

 

PALAVRAS-CHAVE: Judiciário, ativismo, Constituição da República, democracia, invasão.

 

Área de Interesse: Direito Constitucional

 

1 INTRODUÇÃO

Há algum tempo, temos observado uma proeminência do Poder Judiciário no cenário brasileiro. Trata-se de decisões inovadoras, onde os magistrados, sobretudo os da Corte do Supremo Tribunal Federal, tem se manifestado de modo proativo na concretização de direitos. Porém, atuam em situações que, ora a lei é omissa, ora tais direitos não estão devidamente regulamentados por lei.

Diante dessas decisões, é necessário questionar: quais são os pontos positivos e negativos desse fenômeno chamado ativismo judicial? Essa tendência (mundial) é saudável para o chamado princípio da “Tripartição dos Poderes”? Tal ingerência tem ferido esfera de competência do Legislativo? Devemos apoiar tais decisões ou ter um olhar cauteloso sobre estas mudanças? Não seria um indicativo de que algo não está funcionando bem?

É o que se pretende com o presente trabalho. Demonstrar as funções de cada esfera de poder, traçar os limites de suas atuações típicas e atípicas, esclarecer a origem do ativismo judicial, contrapor este fenômeno com o princípio de Montesquieu da “Tripartição dos Poderes” e apontar caminhos saudáveis a uma verdadeira harmonia e independência dos poderes do Estado Brasileiro, conforme determina o artigo 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.   

 

2 A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES

2.1 Do Ajuste Terminológico  

O poder (para uns; para outros, governo ou soberania) é um dos elementos constitutivos essenciais do Estado, juntamente com os conhecidos “povo” e “território”.

Deixando de lado a análise do “povo” e “território”, teceremos breves comentários sobre o poder.

Parafraseando Bonavides(2007), há somente um titular do poder, que para alguns é o povo, para outros é do Estado (pessoa jurídica). Destarte, a manifestação dessa titularidade se dá através de órgãos. Então, teremos o exercício (do poder) através das funções legislativas, judiciária e executiva, dadas a pessoas distintas.[2]Conclui o autor, que são características do elemento “poder”, a sua unidade e indivisibilidade. Assim descreve Bonavides[3]:

O poder do Estado na pessoa de seu titular é indivisível: a divisão só se faz quanto ao exercício do poder, quanto às formas básicas de atividade estatal. 

Dallari [4], ao disciplinar a questão da separação dos poderes, adverte: 

Embora seja clássica a expressão separação de poderes, que alguns autores desvirtuaram para divisão de poderes, é ponto pacífico que o poder do Estado é uno e indivisível. É normal e necessário que haja muitos órgãos exercendo o poder soberano do Estado, mas a unidade do poder não se quebra por tal circunstância. Outro aspecto importante a considerar é que existe uma relação muito estreita entre as ideias de poder e de função do Estado, havendo mesmo quem sustente que é totalmente inadequado falar-se numa separação de poderes, quando o que existe de fato é apenas uma distribuição de funções

Para Maluf (2007), o “governo”/ poder “(…) é o conjunto das funções necessárias à manutenção da ordem jurídica e da administração pública” [5].

De acordo com o mesmo autor [6],

sobre a divisão do poder do Estado em três órgãos distintos, esclarece que o “(…) objeto deste ponto é o princípio da divisão funcional do poder de soberania em três órgãos, pelos quais ela se manifesta na sua plenitude(…)”. Esclarece ainda que o mais adequado seria falar em separação de funções. Isso tendo em vista que o poder de soberania é uno e indivisível. O que existe é a tripartição do seu exercício.

Dessas divisões de funções, há o exercício pleno do poder, da soberania do Estado.

Ainda, sobre a unidade e indivisibilidade do poder, segundo Spitzcovsky[7], temos que: 

Na verdade, o poder não se triparte. É ínsito à sua natureza ser uno e indivisível. Assim, a expressão mais própria para esse título é tripartição das funções nas quais se divide o exercício do poder estatal. Em outro dizer, a subdivisão não se refere ao poder propriamente dito, mas às suas diversas formas de manifestação. 

Compartilhamos deste entendimento, no sentido de que não há divisão do poder, mas de tarefas e atribuições, assuntos do Estado. Permanece uno e indivisível o poder. Então, apesar de ser comumente usada a expressão “separação dos poderes”, “divisão dos poderes”, ou, até, “tripartição dos poderes”, entendemos da impropriedade técnica desta terminologia, devendo ser chamado corretamente de separação, divisão ou, até mesmo, tripartição de funções/atribuições/competências.

 

2.2 BREVE HISTÓRICO DA SEPARAÇÃO DAS FUNÇÕES ESTATAIS

Aristóteles é, segundo Dallari[8], “o antecedente mais remoto da separação de poderes”. Em sua obra “A Política”, já havia vislumbrado as três funções estatais e advertiu do perigo e injustiça que é atribuir o poder a um indivíduo.

Assim, ao ressaltar a importância e acerto da lei e o perigo do julgamento de um, dispôs[9] 

É preciso que haja magistratura; mas assegura-se que não é justo que um só homem exerça uma magistratura suprema quando todos os outros são iguais. Aliás, crendo-se que a lei não possa tudo especificar, poderá um homem fazê-lo com precisão? Quando a lei tem assentado com zelo as regras gerais, ela abandona os detalhes à inteligência e à apreciação mais justa dos magistrados, para que eles julguem e decidam.

Desta forma, fica em evidência além do receio à restrição do poder a poucos, certa desconfiança do acerto da decisão proferida por este poderoso, uma vez que ele teria que solucionar algo que nem a lei teria previsto.

Ao concluir, Aristóteles[10], diz que: “ fica provado, em consequência, não ser justo que o poder fique nas mãos de um só.”

 No século XVII, na Inglaterra, John Locke (1632-1704), filósofo vanguardista do liberalismo inglês e precursor da teoria da tripartição de funções estatais, fez uma sistematização doutrinária da separação dos poderes.

Locke identificou quatro funções fundamentais exercidas por dois órgãos do poder: o parlamento e o rei. Este primeiro ficava com a função legislativa, enquanto o rei possuía a função executiva e a chamada “prerrogativa de poder discricionário”. A função executiva se subdividia em duas, uma federativa (hoje conhecemos por chefe de estado) e outra de chefe de governo.

Já previa também a necessidade da distribuição das funções em mãos diversas, para evitar que aqueles que fizessem as leis não as fizessem em prol de seus próprios interesses e também que não se submetessem ao seu cumprimento.

 Assim entendia:[11]

(…) E como pode ser tentação demasiado grande para a fraqueza humana, capaz de tomar conta do poder, para que as mesmas pessoas que têm a missão de elaborar as leis também tenham nas mãos a faculdade de pô-las em prática, ficando dessa maneira isentas de obediência às leis que fazem, e podendo amoldar a lei, não só quando a elaboram como quando a põem em prática, a favor delas mesmas, e assim passarem a ter interesse distinto do resto da comunidade contrário ao fim da sociedade e do governo; em comunidades bem ordenadas, nas quais o bem de todos se leva em conta como é devido, o poder legislativo vem às mãos de diversas pessoas que, convenientemente reunidas, têm em si, ou juntamente com outras, o poder de elaborar leis; depois de assim fazerem, novamente separadas, ficam sujeitas às leis que fizeram, o que representa obrigação nova e mais próxima para que as façam tendo em vista o bem geral.

 

2.3 Montesquieu – Sistema de Freios e Contrapesos 

Como vimos, a inovação do Barão de Brède e de Montesquieu foi a visualização da necessidade de um sistema onde um poder não sobrepusesse ao outro, mas houvesse um equilíbrio.

Montesquieu advertiu que a liberdade política só existiria nos “Governos Moderados”, onde não houvesse abuso do poder. Isso por que, segundo ele, o homem tende abusar do poder. Então, salientou que: “para que não possam abusar do poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.”[12]. Tal sistema foi consagrado “Sistema de Freios e Contrapesos” (Checks and Balances). Nele, podemos visualizar um “poder” freando o outro, ao passo que este outro faz um contrapeso àquele.

Assim disciplinou Montesquieu[13]: 

Para formar um Governo Moderado, precisa combinar os Poderes, regrá-los, temperá-los, fazê-los agir; dar a um Poder, por assim dizer, um lastro, para pô-lo em condições de resistir a um outro. É uma obra – prima de legislação, que raramente o acaso produz, e raramente se deixa a prudência produzir. 

Desta forma, relata a necessidade de manter este sistema que naturalmente não seria possível, já que, aquele que detém o poder, tende dele abusar, conforme nos ensinou o próprio Montesquieu. Conforme o mesmo autor, com esta divisão de atribuições, os “poderes divididos”, caminhariam em concerto. Daí viria então, sua harmonia.

Segundo Soares[14], sobre a obra de Montesquieu:

A sua criatividade está na inserção do sistema de freios e contrapesos às funções legislativas, executivas e judiciais, ensejando que estas sejam distribuídas a instâncias organicamente distintas e aptas a exercer legitimamente o poder, no sentido de cooperação e controle mútuo entre as funções desempenhadas, buscando-se o equilíbrio das instâncias governamentais e a concretização dos princípios da liberdade política. 

Hoje, este sistema norteia quase todas as constituições modernas. Dallari[15]assim explicou a teoria:

O sistema de separação de poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à ideia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos. Segundo esta teoria os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar ou prejudicar a uma pessoa ou a um grupo em particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio de atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos de agir, mas está igualmente impossibilitado de atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência. 

Desta forma, a distribuição das funções em diferentes mãos gera um sistema (forçado) de equilíbrio, onde uma função não exorbita sua esfera de competência por ter suas mãos e pés amarrados pelas outras duas. Mais adiante, veremos que entre nós, quem faz estas “amarras” é a Constituição.

 

3 FUNÇÕES ESTATAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 

A nossa Constituição da República adotou o princípio da separação das funções estatais. Em seu artigo 2º, previu expressamente: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”[16]

Este princípio é tão importante que é tido como “cláusula pétrea”, conforme art.60, §4º, III, da CR/88; não podendo nem por emenda constitucional ser abolido (ou que tenda à abolição).

Assim, dentro do Estado brasileiro, pela divisão das três funções haverá o exercício de atribuições que são suas por essência, próprias da natureza, mas também, com escopo de fortalecer a harmonia e independência entre as esferas, outras que apesar de não ser “naturalmente” sua, também serão exercidas com o objetivo de assegurar o equilíbrio e a manutenção da ordem democrática estatal.

Parafraseando Spitzcovsky e Mota,[17] são funções típicas do Legislativo: a edição de atos genéricos e abstratos que, provenientes do Legislativo, Executivo ou Judiciário, inovam na ordem jurídica.

Atipicamente, exerce função administrativa, ao dispor sobre sua organização interna, como da Câmara dos Deputados e Senado Federal (conforme art.51, IV; art.52,XIII, da CR/88). Também atua fiscalizando o Executivo, art.49, X, CR/88; art.70, CR/88. Exerce ainda, de modo atípico, função jurisdicional ao julgar autoridades elencadas no art.52, I, II, CR/88, que trata dos crimes de responsabilidade.

O Executivo possui como função que lhe é típica, a chefia de Estado (art. 84, VII, VIII, XIX, XX, XXI, e XXII, CR/88); chefia de Governo (art. 84, I, III, IV, V, IX, XII, XIII,XXIII e XXIV, CR/88); e chefia da administração (art.84, II, VI, e XXV, CR/88).

De modo não típico, possui função Legislativa ao editar Medidas Provisórias (art.62, CR/88) e Leis Delegadas (art.68, CR/88). Ainda, atua julgando o contencioso administrativo.

Quanto ao Judiciário, tipicamente sua função é a jurisdicional. Porém, como as funções já faladas, possui atribuições atípicas. Administrativamente, podemos citar a concessão de férias a seus membros ou serventuários, ou quando provê cargos de juiz de carreira (art.96, I, “f” e “c”, CR/88). Também exerce a função legislativa, ao editar seus regimentos internos (art.96, I, “a”, CR/88).

Com isso, podemos perceber que nossa Constituição adotou a teoria dos Checks and Balances, de Montesquieu.

Porém, este balanceamento, por se tratar de interferência de uma função na outra, deve ter previsão expressa na Constituição (e não por lei). Caso contrário, estaríamos diante de clara invasão de competências e consequente “ferimento ao princípio da separação de Poderes”, conforme adverte Lenza[18]. Para este mesmo autor, isto somente não ocorre uma vez que mesmo exercendo função atípica (que não é ínsita à sua natureza), o órgão exerce função que é sua, e assim o é uma vez que assim determinou o constituinte originário.

 

4 ATIVISMO JUDICIAL

Ativismo judicial é uma tendência mundial de atuação do Judiciário, sobretudo das Cortes Constitucionais, que agem de modo proativo. Tem origem no leading case Marbury x Madison-1803, que inaugurou o Judicial Review (“ao Judiciário compete dizer o que a lei é”[19], iniciando neste precedente o controle de constitucionalidade).

Na ocasião, várias questões foram discutidas, dentre elas se a Suprema Corte dos Estados Unidos possuía competência para analisar o remédio constitucional acionado por Marbury ou não. Isso por que a lei determinava que existia tal competência mas a Constituição não tinha fixado como competência originária. Ficou decidido pelo Chief Justice John Marshall que a lei (ainda que posterior) era nula uma vez que em conflito entre ela e norma constitucional, deveria prevalecer esta última, por ser hierarquicamente superior.

 Entre nós, através dessa atuação, o STF tem feito um trabalho hermenêutico de modo a expandir o alcance dos preceitos constitucionais, sobretudo dos direitos e garantias fundamentais, por meio de uma interpretação que, muitas vezes é baseada nos princípios (importante lembrar que não se discute a legitimidade de tal interpretação, uma vez que princípio é espécie do gênero norma, juntamente com as regras).

Tamanha proeminência do Judiciário no cenário brasileiro decorre também do movimento do neoconstitucionalismo, que atribui às normas da Carta Política uma aplicabilidade imediata, sem a necessidade que normas (infraconstitucionais) venham garantir o já disposto na Carta Magna.

Conforme Lima[20],

A carta magna passou a ser reconhecida como dotada de força normativa, ou seja, aplicabilidade e eficácia de todas as palavras nelas contidas e não uma mera carta de intenções, superando a ideia advinda do iluminismo da centralidade da lei no ordenamento jurídico. Consolidou-se uma teoria dos direitos fundamentais veiculados na constituição, com regras próprias de interpretação e aplicação, bem como se expandiu a jurisdição constitucional, dotando a sociedade de métodos efetivos de controle dos atos da sociedade em desconformidade com a Carta Maior. 

Importante lição nos traz Silva[21] sobre o “protagonismo” que tem tido o Judiciário:

Na doutrina constitucionalista o protagonismo de que desfruta o Poder Judiciário no sec.XXI é inconteste. Nenhum registro histórico anterior dá conta de acervo semelhante entregue à jurisdição, pois vieram somar-se às funções usuais desse Poder competências inovadoras que lhe são atribuídas em uma nova engenharia institucional, que significa um espécie de outorga aos membros desse Poder de função ativa na afirmação da cidadania. Enfeixa, então, o Judiciário em seu poder o controle da constitucionalidade e do caráter democrático das regulações sociais, de garantir políticas públicas, de impedir o desvirtuamento privatista das ações estatais, de enfrentar o processo de desinstitucionalização dos conflitos, dentre outros. 

Ao falar exatamente sobre isto, Barroso[22] nos traz esta ideia com outro nome: “judicialização”. Ele elenca três causas para esse destaque do qual o Judiciário tem usufruído: a redemocratização do país, com o advento da CR/88; a constitucionalização abrangente, onde diversas matérias (que outrora não eram tratadas na Constituição) foram incorporadas à Carta; e, por fim, o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade que, sendo misto, permite a qualquer juiz ou tribunal a análise da constitucionalidade e, por outro lado, o rol (amplo) dos legitimados à propositura das ações no controle concentrado.

Porém, ao fazer um paralelo com o ativismo, determina que:

A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. 

Por fim, sobre ativismo, Barroso[23]:

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. 

O movimento atualmente tem sido justificado pela inércia ou mora do Legislativo (ou Executivo) em editar e regulamentar lei (sentido amplo) ou, no caso do Executivo, quando este não viabiliza o que está elencado no rol de direitos e garantias constitucionalmente previstos. Como exemplo, temos a conhecida “reserva do possível”, muito alegada pelo Executivo.

O mesmo autor dispõe como que de alguns requisitos autorizadores da intervenção do judiciário de modo ativista ao dizer que:

Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face de outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, segurança jurídica, isonomia e eficiência do sistema. 

Porém, devemos ter reservas ao analisar o movimento. Segundo o que foi dito acima, praticamente damos um “cheque em branco” para o Judiciário dizer o que são “escolhas letígimas” do legislador e “discricionariedade técnica” do administrador. O autor ainda afirma que a “atuação contramajoritária” (uma vez que é feita pelos membros de órgão que não é composto através de eleições) será a favor da democracia. Será!?

Segundo Teixeira[24], são críticas ao “ativismo judicial”:

•Juízes não eleitos vs. leis democraticamente aprovadas;

• Decisões orientadas politicamente vs. decisões orientadas juridicamente;

• Uso criativo do precedente vs. uso estrito do precedente;

• Supremacia da vontade popular vs. direitos humanos;

• Política vs. Direito. 

Além do disposto acima, nos traz diversas modalidades (nocivas) do movimento, dentre elas, a atuação do juiz como legislador:

Mesmo tendo a legitimidade para atuar apenas como “legislador negativo”, isto é, para remover do ordenamento jurídico normas inconstitucionais, outra prática nociva é a de proferir decisões que se constituem em verdadeiras criações legislativas, pois vão além das competências jurisdicionais, costumam ser extra petita, geram instabilidade institucional e culminam na produção de insegurança jurídica. Trata-se de algo por completo diverso de uma inovação jurisprudencial: o fundamento decisório está na própria decisão ou em uma interpretação torpe de legislação não aplicável ao caso, como, por exemplo, mediante analogia entre casos que não possuem a mínima identidade entre si. 

Outro aspecto importante levantado pelo autor é o proferir decisões políticas, de modo a fugir da “racionalidade jurídica”. Isso é mais um problema do ativismo, tendo em vista que o raciocínio jurídico é formado de modo muito diferente do político, onde há grande discricionariedade nas escolhas.

Por fim, defende existir o “ativismo judicial positivo” e sua prática “nociva”, assim:

Desse modo, vamos denominar aqui ativismo judicial positivo aquele que se enquadra no padrão de racionalidade jurídica vigente no ordenamento em questão e busca, em última instância, assegurar direitos fundamentais ou garantir a supremacia da Constituição, enquanto denominaremos nociva toda prática ativista que fuja desse quadro ou busque, sobretudo, fazer preponderar um padrão de racionalidade eminentemente político. 

Atento aos riscos, Baracho critica a postura “ativista” do Poder Judiciário (no caso, o STF) na decisão acerca da fidelidade partidária, onde criou a possibilidade de perda do mandato eletivo o candidato que, eleito pelo sistema proporcional, saísse do partido pelo qual foi eleito. Para o autor citado[25],

Não podemos conceber uma autoridade magnânime, que esteja acima das limitações próprias das instituições. A atividade do Poder Judiciário tem também suas contradições e limites. Nem sempre será possível saber exatamente quando o processo político falhou para justificar uma decisão política do Supremo Tribunal Federal. 

Esta crítica nos traz importante reflexão acerca do perigo que representa um aplauso temerário desta atitude proativa do judiciário, a saber, do ativismo. Ele não deve (e nem pode!) inovar na ordem jurídica. E muitas vezes, é o que acontece.

Neste caso especificamente, o STF passou claramente de sua competência e arvorou-se em papel do Legislativo criando nova hipótese de perda do mandato. E isto fica mais claro quando lembramos que ao se tratar de restrição de direitos, não se permite ao intérprete fazer um trabalho hermenêutico extraindo da norma no sentido de lhe ampliar, dar maior extensão. Importante ressaltar que a CR/88 dispõe (num rol obviamente taxativo, não exemplificativo!) os casos em que haverá a perda do mandato.

O mesmo autor sugere que, diante do caso da fidelidade partidária:

Talvez a melhor maneira de o Poder Judiciário oferecer a sua contribuição para a melhoria do quadro político brasileiro seja exercer de forma mais aprimorada seu mister, qual seja, julgar processos que envolvam diversos aspectos do exercício da atividade política que são vedados pelo ordenamento jurídico, em especial as prescritas em normas penais e cíveis. 

Barroso, apesar de ferrenho defensor da postura ativista (dentro dos moldes por ele traçado), previu que tal atitude é perigosa. Vejamos:

Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura.

Ao final, reconhece que o ativismo esconde, maquia sérios problemas:

A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de uma reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Importa nos terminar pelo início, com o parâmetro sobre o qual repousa e de onde emana todo o nosso sistema jurídico. A Constituição da República, que em seu artigo2º prevê a independência e harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário.

Por mais que possamos estabelecer critérios de um “ativismo judicial” legítimo, “positivo”, não podemos perder de vista que a necessidade de tal postura revela que algo não está bem ajustado. Na verdade, há um enorme descompasso que não pode nem deve ser resolvido por um dos “poderes” da República.

Não poderia por nenhum dos outros, mas legitimar ou apoiar decisões que muitas vezes inovam na ordem jurídica (por quem não detém tal competência e, consequentemente desobedecendo todo o processo legislativo para elaboração de lei), por um judiciário não eleito e, muitas vezes com decisões políticas, é mais que perigoso!

Podemos apontar, assim como os autores citados, para as causas desse ativismo. Seja a crise de representatividade ou demora no processo legislativo, não serão estes ou outros problemas solucionados pelo Judiciário.

Imperioso lembrar que o Judiciário é composto da mesma matéria que o Legislativo e o Executivo: seres humanos. Sendo assim, não podemos nos iludir pensando que os “super juízes” resolverão os problemas que devem ser por todos nós (cidadãos brasileiros) (re) pensados e (re) discutidos.

Acreditamos por fim, que o Judiciário já detém ferramentas suficientes para dizer o direito no caso concreto (sem ser mera “boca da lei”) e efetivar o que temos constitucionalmente previsto. Por fim, a harmonia e independência entre os poderes (tão cara aos filósofos e doutrinadores antigos, sobretudo Montesquieu), essencial a uma democracia saudável, será concretizada quando os limites (constitucionais) da atuação dos “poderes” forem respeitados, inclusive pelo Judiciário. Parafraseando Barroso, não queremos “morrer da cura”.

 

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NOTAS DE FIM

[1]Estudante do 10º período do Centro Universitário Newton Paiva.

[2]BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.P. 118; 119.

[3] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.P. 119.

[4] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.P.214; 215.

[5] MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27 ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. Revista e atualizada pelo prof. Miguel Alfredo Malufe Neto.P.27. 

[6]MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27 ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. Revista e atualizada pelo prof. Miguel Alfredo Malufe Neto.P.209.

[7]SPITZCOVSKY, Celso; MOTA, Leda Pereira da. Direito Constitucional. 9 ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2009.P. 147.

[8] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.P.215.

[9] ARISTÓTELES. A política. 15.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.P. 71. 

[10] ARISTÓTELES. A política. 15.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.P. 72.

[11]LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.P.91.

[12] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis: As formas de governo, a Federação, a divisão dos Poderes. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.Montesquieu; introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota.P. 167.

[13]MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis: As formas de governo, a Federação, a divisão dos Poderes. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.Montesquieu; introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota.P. 26.

[14]SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: Novos Paradigmas em face da Globalização. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2008.P.66.

[15]DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.P.218.

[16]BRASIL. CRFB/88, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 11 de abril de 2013. 

[17] SPITZCOVSKY, Celso; MOTA, Leda Pereira da. Direito Constitucional. 9 ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2009.P.149. 

[18]LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

[19] SILVEIRA, Paulo Fernando. Freios e Contrapesos (Checks and balances). Belo Horizonte: Del Rey, 1999.P.90. 

[20] LIMA, Isan Almeida. Neoconstitucionalismo e a nova hermenêutica dos princípios e direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2503, 9 maio 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/14737>.Acesso em :23 abr.2013.

[21] SILVA, Maria Coeli Nobre da. O intervencionismo judiciário: protagonismo/ativismo e legitimaçãodemocrática.Disponívelem:<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=2bc8ae25856bc2a6> acesso em: 12 jun.2013. 

[22]BARROSO, LUÍS ROBERTO. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em : <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> 

[23] BARROSO, LUÍS ROBERTO. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em : <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> 

[24] TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão política.Rev. direito GV,  São Paulo ,  v. 8,  n. 1, June  2012 .   Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180824322012000100002&lng=en&nrm=iso. 

[25] BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Fidelidade Partidária e a decisão do Supremo Tribunal Federal. In: BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira (Coord.). Constituição e democracia aplicações. Belo Horizonte. Fórum, 2009. p. 125-134. ISBN 978-85-7700-267-2.