Leandro Henrique Simões Goulart[1]
Joseane Soares Lapa[2]
RESUMO: O novo instituto da usucapião familiar, inserido no ano de 2011, no ordenamento jurídico brasileiro, trouxe inúmeras dúvidas em relação aos requisitos que devem ser preenchidos, principalmente no que tange ao abandono do lar, objetivo desse artigo, que pode restaurar a culpa pelo fim do relacionamento, sanado em 2010, pela emenda de número 66.
PALAVRAS CHAVES: usucapião familiar; requisitos; culpa; abandono do lar; retrocesso.
Áreas de Interesse: Direito Civil
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem por objetivo abordar um dos pontos polêmicos a cerca da nova modalidade da usucapião que adentrou em nosso ordenamento jurídico no ano de 2011, a usucapião familiar. Esta nova modalidade está regulamentada no artigo 1240-A do Código Civil Brasileiro de 2002, inserido pela lei 12.424/2011 que trabalha o “Programa Minha Casa, Minha Vida”.
O ponto polêmico a ser relatado diz respeito há um dos requisitos enumerados no artigo mencionado anteriormente, qual seja, o abandono do lar.
Este tema foi escolhido, tendo em vista que, esta nova modalidade é algo recente em nosso ordenamento, e que trouxe além do ponto polêmico abordado no presente artigo, vários outros questionamentos como o da sua constitucionalidade, da sua eficácia no ordenamento jurídico, da vara competente, dentre outras situações.
2 DA USUCAPIÃO
Conforme Venosa (2012, p. 199),”denomina-se usucapião o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficiente prolongada sob determinadas condições.”
Tendo como base este conceito, podemos entender que a usucapião é a forma originária de adquirir a propriedade, por um período de tempo, estabelecido em lei, e por preencher os demais requisitos inerentes a cada modalidade.
Diante disso, para que haja o direito de usucapir determinado bem, é necessário que além de preencher o tempo necessário estabelecido em lei, que tenha a propriedade como se dono fosse.
A usucapião teve sua origem no direito romano, por meio da Lei das Doze Tábuas, e nessa época só quem tinha esse direito era os cidadãos romanos, além disso, o tempo estabelecido era bem diferente do que temos em nosso ordenamento.
No ordenamento jurídico brasileiro, além da usucapião familiar, há previsão de mais cinco modalidades, quais sejam: a usucapião ordinária, a usucapião extraordinária, a usucapião especial rural, a usucapião especial urbana e a usucapião indígena. Insta ressaltar, que para cada espécie de usucapião mencionada, há requisitos específicos a serem preenchidos para que seja adquirida a propriedade do bem requerido.
3 DA USUCAPIÃO FAMILIAR
A nova modalidade foi inserida ao Código Civil de 2002, pela lei 12.424 de 16 de Junho de 2011, mediante a Medida Provisória 514/2010 que diz:
Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Há de se ressaltar que a referida lei tinha como um dos principais objetivos a alteração da lei que regulamenta o projeto federal “Minha casa Minha Vida”, principalmente na segunda etapa do referido programa, tal projeto tem a finalidade de ajudar pessoas de baixa renda.
Conforme descrição do artigo mencionado, podemos observar alguns requisitos essenciais para que possa ter o direito da usucapião familiar.
Insta salientar, que a nova modalidade inserida se equipara em alguns requisitos com a modalidade da usucapião especial urbana, descrita no artigo 1240 , caput, do CC/02, que dispõe:
Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e se oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Podemos observar que as duas modalidade possuem a mesma área do imóvel a ser usucapido, qual seja, 250m²(duzentos e cinquenta metros quadrados), o uso de tal imóvel deve ser para moradia própria ou da sua família, bem como aquele que irá usucapir, o usucapiente, não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Além disso, no §2º do art 1240 e o §1º do art 1240-A, ambos do CC/02, informar que o direito de usucapir do imóvel, não pode ser reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Ocorre que essa nova modalidade só engloba os imóveis da zona urbana, não tendo abrangência as famílias de baixa renda da área rural, ocasionando conforme Siqueira (2012) descreve a, “(…) distinção desarrazoada das pessoas em relação a localização do seu domicílio.”
Ademais, essa nova modalidade, tem um lapso temporal pequeno em relação as demais, sendo apenas de 2(dois) anos.
Há de enfatizar que a usucapião familiar deve ser sobre bem comum do casal. Diante disso Silva[3] (2011, apud MARTINS, 2012)
(…) o imóvel pode ser fruto dos regimes de comunhão total ou parcial, bem como do regime de participação final de aquestos em havendo no pacto previsão de imóvel comum e, ainda, no de separação legal, consoante Súmula nº 377 do STF, que dispõe que os bens adquiridos na constância do casamento se comunicam. Quanto ao regime de separação convencional de bens, resta afastada a possibilidade de utilização do instituto uma vezque nesse regime não há perspectiva de comunicação de patrimônio entre cônjuges e companheiros.
Salienta-se que a posse nesse período de 2(dois) anos, após o abandono do lar do ex-cônjuge ou ex- companheiro, deve ser exclusiva daquele cônjuge ou companheiro que ficou no lar, não podendo ser posse comum.
Outrossim, insta informar que quando se refere a ex-cônjuge e ex- companheiro , não abrange somente aquele casal, em que houve o divorciou ou a dissolução da união estável judicialmente, mas aqueles que se encontram em separação de fato, conforme reforçado por Siqueira (2012):
(..)as expressões “ex-cônjuge” e “ex-companheiro refere-se ao fim do casamento ou união estável, seja de fato (simples saída do lar) ou de direito (sentença ou escritura pública de divórcio ou dissolução de união estável ou medida cautelar de separação de corpos).
Além desses requisitos mencionados , há de destacar o “abandono do lar”, objeto de discussão do presente artigo.
4 DO ABANDONO DO LAR
O requisito, abandono do lar, da nova modalidade da usucapião, a usucapião familiar, vem sendo alvo de grande discussão. Pois o que, já foi discutido e consolidado em nosso ordenamento jurídico no ano de 2010, estaria regressando, com o mesmo, a volta da culpa pelo fim da sociedade conjugal.
Existem alguns entendimentos, que tal requisito, não estaria retornando a discursão da culpa, pois, a expressão abandono do lar utilizada na modalidade da usucapião, não possui o mesmo sentido encontrado no direito de família, que era uma das possibilidades enumeradas, no art 1573 do CC/02, para que ocorre-se a impossibilidade da vida conjugal.
Insta informar, que no direito de família moderno a dissolução do casamento e da união estável se dá por vontade de um dos cônjuges, o que é pacifico doutrinariamente e no âmbito jurisprudencial.
4.1 Abandono do lar como separação de fato
Para aqueles que entendem que a expressão abandono do lar não enseja a volta da discussão em relação a culpa, informam que tal requisito se refere a separação de fato, logo não há este retrocesso, uma vez que a Emenda Constitucional 66/2010, colocou fim a separação de fato, bem como, encerrou a discussão de culpa pela separação mencionada. Seguindo esta interpretação Freitas(2011) relata:
(…) entendo que houve a técnica na dicção da legislação na expressão “abandonou o lar”, que, sem dúvidas, remete o leitor ao instituto do “abandono familiar”. Porém, para efeitos de aplicação eficaz da norma dever ser lida como “separação de fato” e “abandono patrimonial” e os efeitos decorrentes destes institutos, onde, no primeiro, impõem-se o fim da comunicação patrimonial, e, no segundo, da perda do patrimonial, ambas situações previstas na lei.
Diante disso, muitos entendem que o abandono do lar que se refere a usucapião familiar, não é o mesmo abandono do lar que existia no Direito de Família brasileiro, antes da Emenda Constitucional mencionada anteriormente.
4.2 Abandono do Lar e a volta da culpa
4.2.1 Culpa no direito de família
Antes da Emenda Constitucional 66/2010, os institutos da separação judicial e do divórcio, tinham finalidades diferentes, conforme relato de Pretel (2010) :
Enquanto separação judicial promove a dissolução da sociedade conjugal, o divórcio se caracteriza como uma forma de dissolução do casamento válido e que permite aos cônjuges contrair novas núpcias. A diferença substancial entre a separação judicial e o divórcio seria que os divorciados poderiam se casar novamente e os separados, não. Ademais, seria facultado aos separados judicialmente, a qualquer tempo, restabelecer a sociedade conjugal, nos termos em que era constituída, como se não tivesse existido qualquer separação.
Entretanto para que o divórcio ocorresse o casal deveria está separado de fato há 2(dois) anos, ou deveria passar inicialmente pelo o processo da separação judicial. Contudo, para que houvesse a separação, um dos cônjuges deveria informar de quem era a culpa pelo o fim do casamento, conforme salienta Barros(2012):
atribuir ao outro a culpa pelo fim da união ou comprovar a ruptura da vida em comum há mais de um ano, conforme o artigo 1.572 do Código Civil. A imputação ao outro de conduta desonrosa ou prática de ato que importasse grave violação dos deveres matrimoniais (art. 1.566, CC), deveria demonstrar que tais posturas tornaram insuportável a vida em comum (art. 1.572, CC)
Com a aprovação da Emenda Constitucional 66/2010, alterou ao art 226,§6º da Constituição Federal de 1988, tendo como uma da consequência o fato do divórcio ser realizado de forma imediata, e conforme Barros(2010) ,“ não sendo mais necessário o processo prévio de separação ou a comprovação da separação de fato”. Tendo como consequência, a finalização do debate a respeito da culpa, sendo superada tal discussão em nosso ordenamento.
4.2.2 Retrocesso ao questionamento da culpa
Como foco principal deste artigo ao inserir a nova modalidade da usucapião no ano de 2011, o quesito abandono do lar acarretou novamente a discussão da culpa pelo fim do relacionamento, imputando a responsabilidade ao cônjuge ou ao companheiro.
Porque o termo abandono do lar tem um sentido subjetivo, que pode ser ensejado por inúmeras situações, tanto por ordem judicial ou por um relacionamento conturbado, dentre outras, conforme frisado por Dias (2011):
O que significa mesmo abandonar? Será que fugir do lar em face da prática de violência doméstica pode configurar abandono? E se um foi expulso pelo outro? Afastar-se para que o grau de animosidade não afete a prole vai acarretar a perda do domínio do bem? Ao depois, como o genitor não vai ser tachado de mau pelos filhos caso manifeste oposição a que eles continuem ocupando o imóvel?
Diante disso, quando for discutida a usucapião no judiciário, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar irá justificar a sua saída atribuindo o motivo àquele que ficou, ou seja, culpará o outro pela não permanência no lar, conforme exemplifica Donizetti (2011):
(..) para não perder parte do imóvel, o homem vai ter que provar que saiu de casa porque não mais aguentava as ranzinzices da mulher e esta, por sua vez, vai ter que demonstrar que, cansada de sofrer agressões físicas e psicológicas, resolveu deixar o traste para trás.
O fato é que essa esdrúxula modalidade de usucapião vai ensejar o revolvimento de antigas e dolorosas feridas, tudo no afã de demonstrar que o “meu inferno é o outro”. Estamos assistindo ao retorno do ingrediente denominado culpa, o qual foi abolido da indigesta receita das separações conjugais pela recente EC 66/2010.
Assim, aquilo que já tinha sido sanado no Direito Brasileiro, por ter este acompanhado mudanças relacionados ao Direito de Família, e que já tinha sido compreendido pelo legislador acerca da não interferência do Estado de forma exagerada na vida privada das pessoas, sendo concretizado pela promulgação da Emenda de nº66 no ano de 2010, é restaurado pelo requisito descrito no artigo 1240-A do CC/02, ou seja, a retomada da discussão da culpa, como ressalta Dias (2011):
De forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identificação da causa do fim do relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela Emenda Constitucional 66/2010 que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. A medida foi das mais salutares, pois evita que mágoas e ressentimentos – que sempre sobram quando o amor acaba – sejam trazidas para o Judiciário. Afinal, a ninguém interessa os motivos que ensejaram a ruptura do vínculo que nasceu para ser eterno e feneceu. De forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identificação da causa do fim do relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela Emenda Constitucional 66/2010 que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. A medida foi das mais salutares, pois evita que mágoas e ressentimentos – que sempre sobram quando o amor acaba – sejam trazidas para o Judiciário. Afinal, a ninguém interessa os motivos que ensejaram a ruptura do vínculo que nasceu para ser eterno e feneceu.
Mesmo que o objetivo do legislador ao criar essa norma, foi a de amparar aquele cônjuge ou companheiro, que após o fim do casamento ou da união estável permaneceu no imóvel, acarretou ao que abandou o lar uma sanção patrimonial. Ademais, motivou o casal a suportarem um ao outro, para não perder o bem, para o seu ex-companheiro ou ex-cônjuge, como ressalta Pena(2013):
Uma norma não pode e nem deve ter esse condão de pressionar as pessoas, que não mais possuam condições de convivência mútua, a viver sob o mesmo teto apenas para preservar um direito seu, patrimonial. Este direito tem de ser assegurado sob outras perspectivas.
Diante disso, a volta da discussão de culpa pelo requisito abandono do lar, em tal modalidade de usucapião, enseja o retrocesso da norma no ordenamento jurídico, o que não é permitido.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo relatou a nova modalidade da usucapião que adentrou em nosso ordenamento jurídico, pela lei 12.424/2011, que tinha como principal função trazer mudanças em um projeto governamental. Informa ainda o que venha a ser a usucapião, informando as modalidades já existentes em nosso ordenamento.
Mencionou os requisitos necessários para adquirir essa nova modalidade, expondo suscintamente alguns pontos que tem gerado discussão no meio acadêmico.
Tendo como foco o requisito do abandono do lar, que tem um significado subjetivo. Ocorre que tal expressão pode restaurar o que já foi sanado e o que já não era mais discutido nas ações de divórcio ou de dissolução da união estável, qual seja a culpa.
Ocorrendo tal discussão, a norma que foi criada para proteger aquele que permanece no lar, pune aquele que deixou o imóvel, de forma patrimonial, além de violar o principio do retrocesso, principio que é implícito em nosso ordenamento.
Podemos ressaltar que a nova modalidade da usucapião, com o requisito abandono do lar, se torna algo inexequível em nosso ordenamento jurídico, vez que está infringindo a nossa norma suprema, a Constituição Federal de 1988. Tendo em vista que, a norma apresentada retrocede a um fato, que já não é mais discutido no novo Direito de Família, que acompanha as mudanças da sociedade, qual seja a culpa, e a nossa Lei Suprema veda o retrocesso de leis Ademais, um bem adquirido pelo casal durante a constância do casamento deverá ser partilhado, e não ser de exclusividade de um dos cônjuges ou companheiro, coforme tal artigo propõem.
REFERÊNCIAS
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DIAS, Maria Berenice. Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa? Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/usucapi%E3o_e_abandono_do_lar.pdf. Acesso em 31/07/2013
DONIZETTI, Elpídio. Usucapião do lar serve de consolo para o abandonado. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-set-20/consolo-abandonado-usucapiao-lar-desfeito. Acesso em 01/08/2013.
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JÚNIOR, Roberto Paulino de Albuquerque. FILHO, Roberto P. Campos Gouveia.Primeiras anotações sobre os pressupostos e a Processualização da usucapião familiar. Disponível em: http://professorhoffmann.files.wordpress.com/2012/07/primeiras-anotac3a7c3b5es-sobre-os-pressupostos-e-a-processualizac3a7c3a3o-da-usucapic3a3o-familiar-roberto-paulino-de-albuquerque-2011.pdf. Acesso em 31/07/2013.
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PINHEIRO, Raphael Fernando. Usucapião por abando de lar: a volta da culpa? Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12261 . Acesso em 30/07/2013.
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NOTAS DE FIM
[1]Mestre em Direito pela FUMEC, Especialista em Processo Civil Pela UNI-BH, Professor do Centro Universitário Newton Paiva das Disciplinas Processo Civil, Ética e Teoria Geral do Direito Privado, Coordenador do CEJU – Centro de Exercícios Jurídico e Advogado.
[2]Estudante do curso de direito do 10º período do Centro Universitário Newton Paiva,
[3] SILVA Luciana Santos . Uma nova afronta à Carta Constitucional: usucapião pró-família. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/752.