Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Cândice Lisbôa Alves[1]

Resumo: O presente artigo visa a analisar os conflitos ou as colisões entre os direitos fundamentais e a forma adequada a solucioná-los. Parte-se do estudo proposto pelas -se críticas às mencionadas teorias e sugere-se uma análise discursiva dos direitos fundamentais, que se baseie na reviravolta linguística, na teoria discursiva de Habermas e no código binário do Direito. Adverte-se sobre a necessidade de cuidados quanto às pré-compreensões dos mateorias interna e externa sobre a aplicação dos direitos fundamentais, bem como pela análise da diferenciação entre regras e princípios proposta por Alexy, perpassando também pela análise da ponderação de valores, presente na teoria externa dos direitos fundamentais. Analisa-se o caráter prima facie atribuído aos direitos fundamentais. Apresentamgistrados quando da decisão judicial.

 

Palavras-chave: direitos fundamentais; teoria interna dos direitos fundamentais; teoria externa dos direitos fundamentais; discurso; reviravolta linguística

 

Área de interesse: Direito Constitucional, Filosofia do Direito.

 

  1.  Introdução

 O tema atinente aos direitos fundamentais é sobremaneira interessante e instigante, não havendo consenso sobre sua proteção ou forma de delimitação. É um tema atual, recorrente na academia e candente nos Tribunais. A bem da verdade, quase todas as demandas judiciais buscam sua justificação ou fundamentação em um direito fundamental, mormente em um contexto em que grande parte dos ramos do direito apregoam sua constitucionalização. Assim, ter o respaldo de um direito fundamental seria um trunfo para uma possível vitória judicial.

Com relação aos conflitos de interesse atinentes aos direitos fundamentais, deve-se mencionar certa preponderância dos posicionamentos de autores cariocas, com expoentes como Jane Pereira (2006) e Ana Paula Barcellos (2006) que trabalham o tema partindo de duas teorias, quais sejam, a interna e a externa.

Na teoria interna defende-se que os direitos fundamentais são absolutos e portanto não podem ser restringidos, mas sofrem limites imanentes expressos no Texto Constitucional. Já a teoria externa admite a restrição aos direitos fundamentais. Para a teoria externa, essa limitação acontece em dois momentos: em um primeiro, se reconheceriam as normas jurídicas que poderiam ser aplicadas no caso em apreço; e num segundo onde há a ponderação de interesses.

A ponderação de interesses é uma técnica de julgamento que vem sendo aplicada com certa insistência pelos Tribunais pátrios, inclusive no órgão máximo, qual seja, no Supremo Tribunal Federal. Para muitos autores cariocas[2], essa ponderação é técnica válida e adequada para solução dos conflitos, alguns[3] defendendo sua utilização no caso dos ‘hard cases’. Não obstante tal posicionamento, devido à falta de segurança jurídica que decorre da ponderação propriamente dita, ou escolha de um direito sobre o outro a ser reconhecido na sentença judicial, tal técnica sofre críticas severas, principalmente no sentido de poder ser utilizada para justificar um decisionismo judicial. Nesse sentido, buscando evitar a perversidade que poderia decorrer da sentença a que assim se chega, Ana Paula Barcellos (2006) propõe argumentos normativos para a ponderação, que segundo ela, tornariam a decisão mais racional e assim filtrariam o decisionismo judicial. Sarmento (2010), por seu turno, propõe advertências quanto às pré-compreensões do aplicador do direito, visando a, da mesma forma, reduzir a discricionariedade dos juízes no momento da sentença judicial. O autor afirma que em uma sociedade plural não se pode tomar como premissas ou pontos-chave para a decisão judicial o mundo da vida do magistrado, já que esse nem sempre coincide com as expectativas ou realidade de vida do jurisdicionado. Assim, dentro da ponderação de interesses, em termos de direitos fundamentais, há a necessidade de um redobrado cuidado do aplicador do direito para que a sua valoração pessoal não macule a pretensão de justiça que o Direito traz consigo.

Entretanto, na linha da teoria discursiva do direito, o que se propõe neste artigo é um alargamento das premissas das teorias interna e externa acerca dos direitos fundamentais. Defende-se a relatividade dos direitos fundamentais e, portanto, assume-se que em uma realidade de colisão ou confronto de normas jurídicas, deve-se considerar que os direitos são linguagem e necessitam de interpretação para serem aplicados. Assim, o discurso torna-se essencial para sua delimitação, e apenas se poderia falar em decisão correta se essa é construída dentro de uma perspectiva de diálogo entre os contendores, e de sentença que realmente vincule-se ao produzido em termos procedimentais, superando-se um axiologismo prima facie.

 

2.  Direitos Fundamentais: origens e fundamentos teóricos

 Por direitos fundamentais entende-se a proteção positivada de direitos essenciais à existência humana, dentro de uma perspectiva de vida digna. Configuram-se como proteção a aspectos essenciais da personalidade humana, e às condições materiais e morais indispensáveis à vida de um indivíduo.

Corriqueiramente constata-se que as expressões ‘direitos fundamentais’, ‘direitos do homem’ e ‘direitos humanos’ são utilizadas como expressões sinônimas. Sarlet (2011), entretanto, aponta a diferença entre elas afirmando que ‘direitos do homem’ remete aos “direitos naturais não, ou ainda não positivados” (SARLET, 2011, p.30). ‘Direitos humanos’, por seu turno, estariam “positivados na esfera do direito internacional” (SARLET, 2011, p.30). Por fim, ‘direitos fundamentais’ seriam aqueles “reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado”. (SARLET, 2011, p.30).

Alexy (2009) afirma que a origem dos direitos fundamentais remonta há tempos distantes antes mesmo do nascimento do Jesus, e que na Bíblia Sagrada já se percebe referência a tais direitos, através de Gênesis[4] (1,27) e Paulo[5], (3,28). Posterior a estes eventos, ele elenca alguns outros momentos decisivos para o fortalecimento dos direitos fundamentais. Sarlet (2011), entretanto, defende que os direitos fundamentais não têm sua origem na antiguidade, mas que tal período pode ser considerado como a pré-história dos mesmos, destacando a importância da filosofia e da religião para a sua configuração, principalmente através das propostas do jusnaturalismo.

Sarlet (2011) defende ainda que os direitos naturais, dentre eles a proteção à vida, à propriedade, e à liberdade, entre outros, podem “ser considerados os antecedentes dos direitos fundamentais” (SARLET, 2011, p.41), que ao longo dos tempos foram positivados nos respectivos instrumentos jurídicos. Nesse sentido, importante mencionar a Magna Charta do Rei João-Sem-Terra, de 1215, mesmo com a observação feita por Sarlet (2011) de que tal instrumento não estendeu os direitos nele inscritos (em especial os habeas corpus, devido processo legal e garantia de propriedade) a todos os cidadãos, mas, ao contrário, resguardou algumas prerrogativas a pessoas seletas, o que significa afirmar que ela possibilitou se “garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais” (SARLET, 2011, p.41).

Outro momento importante para a consolidação dos direitos fundamentais seria a reforma protestante no século XVII. Ela representa a luta pela possibilidade de aplicação do princípio da igualdade, na medida em que defendeu que todas as pessoas seriam igualmente aptas a entender e interpretar as palavras de Deus inscritas na Bíblia, não se justificando que essa interpretação fosse missão exclusiva do Papa. Por outra vista, serviu como elemento para fundamentar a separação entre o Estado e a religião, o que foi indispensável para a laicização do Estado e a secularização dos direitos naturais.

Segundo Sarlet (2011, p.43), quando se pensa em um marco específico para o nascimento dos direitos fundamentais, há uma disputa entre a Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que decorreu da Revolução Francesa (1789). O autor defende que ambos os instrumentos se influenciaram e, juntos, fundaram os direitos fundamentais, através da positivação dos direitos naturais. Através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de forma expressa, externalizaram-se as condições mínimas para a existência de uma pessoa, bem como delimitou-se o papel do Estado e sua responsabilidade para a consecução da vida digna em sociedade. Posteriormente a estes marcos, foram ocorrendo eventos históricos que desembocaram em positivações acerca dos direitos fundamentais.

De toda sorte, pode-se afirmar que os direitos fundamentais guardam relação íntima com o momento histórico. Tentando sistematizar esse elo entre a história e o conteúdo dos direitos fundamentais, convencionou-se estudá-los sob a ótica das gerações dos direitos fundamentais, dividindo-os em primeira, segunda e terceira geração. Esse termo geração, já não tem sido considerado apropriado, porque poderia denotar uma superação dos direitos das gerações anteriores. Ao contrário, deve-se entender que “o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância” (SARLET, 2011, p.45), assim, ao invés do uso da expressão geração se usará o termo dimensão.

Frise-se que Sampaio (2010, p. 241) assevera que a divisão do direito em gerações teve sua origem em trabalho realizado por Karel Vasak, em 1979 que

 apresentou no Instituto Internacional de Direitos do Homem em Estrangurbo uma classificação baseada nas fases de reconhecimento dos direitos humanos, divididas por ele em três gerações, conforme a marca predominante dos eventos históricos e das inspirações axiológicas que a elas deram identidade: a primeira surgida com as revoluções burguesas dos Séculos XVII e XVIII, valorizava a liberdade; a segunda, decorrente dos movimentos sociais democratas e da Revolução Russa, dava ênfase à igualdade e, finalmente, a terceira geração, nutrida nas duras experiências passadas pela humanidade durante a Segunda Guerra Mundial e da onda de descolonização que a seguiu, refletirá os valores de liberdade. (SAMPAIO, 2010, p.241)

A primeira dimensão tem como pano de fundo o Estado Liberal, e, apregoa os direitos de liberdade. Fundou-se na separação entre o Estado e a sociedade e inspira-se nas teorias contratualistas do século XVIII e XIX (SAMPAIO, 2010). Nesse momento histórico, o Estado assumiu papel abstencionista, permitindo que o mercado se autorregulasse. Naquela época, o que se pretendia em termos de direitos, era que eles não limitassem a possibilidade de participação do cidadão[6].

 A segunda dimensão, por sua vez, abarca uma tríade de proteção: direitos denominados sociais, econômicos e culturais. Sua origem decorre da percepção de que a falta de participação/regulação efetiva do Estado na economia e no mercado, havia permitido uma exploração exacerbada daqueles que tinham os meios de produção sobre aqueles que vendiam sua força de trabalho. Nos dizeres de Sampaio, tal período guarda relação com a “crise das relações sociais decorrentes dos modos liberais de produção, acelerada pelas novas formas trazidas pela Revolução Industrial” (SAMPAIO, 2010, p.243) e prossegue o autor afirmando que essas transformações desembocaram no movimento operário, que se inspirou nas idéias de Marx, e culminou na Revolução Russa. Todo esse contexto requereu a releitura do princípio da igualdade e a necessidade de ampliação de serviços públicos. Não se podia mais anuir com o caráter legal ou formal da igualdade, já que o momento histórico, e principalmente a realidade social, exigiu uma feição material ou substancial dessa liberdade. Oportuno rever as palavras de Sarlet que afirma que “não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado e sim de liberdade por intermédio do Estado” (SARLET, 2011, p.47). Nesse sentido, a segunda dimensão buscou amparar os direitos de igualdade, como educação, trabalho e moradia, entre diversos outros. Aqui no Brasil, tais direitos já se apresentaram desde a Constituição de 1824, explicitando-se melhor na Constituição de 1934. Nos outros Estados, destaca-se sua feição na Constituição francesa de 1971, também na de 1824, na Constituição do México de 1917 e na de Weimar de 1919, bem como na Declaração de Direitos russa de 1918 (SAMPAIO, 2010, p. 243).

Por fim, os direitos da terceira dimensão almejam a um tratamento mais abrangente com relação a realidades que passam a ser dimensionadas como coletivas ou difusas. Os direitos por eles abarcados transcendem a proteção individual, alargando-se sobre uma diversidade que em alguns casos pode ser determinada ou determinável (direitos coletivos) e em outros momentos não, referindo-se a uma realidade que não pode ser cingida ou destacada (direitos difusos). Tais direitos vem em resposta à realidade de exploração do mundo desenvolvido/industrializado àqueles países considerados subdesenvolvidos/em desenvolvimento, relacionando-se, ainda às lutas de descolonização ocorridas após a Segunda Guerra (SAMPAIO, 2010).  SARLET (2011, p.48) afirma que entre os mais citados encontram-se “os direitos à paz, a autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação”. O que se mostra marcante é o fato de que eles têm como titularidade não mais o indivíduo, mas a coletividade. Por outro giro, apresenta-se a forte influência do direito internacional em sua delimitação, inclusive trazendo novas perspectivas a serem protegidas. Tanto é assim que Sarlet (2011, p.49) chega a afirmar que nem todos estão positivados no texto constitucional, estando, entretanto, em fase de “consagração no direito internacional”, através de tratados e demais documentos transnacionais.

 Há autores como Bonavides (2009), que propõe a quarta geração, consentânea ao direito à democracia e a informação, em um ambiente que ultrapassaria as dimensões do Estado nacional e se aproximariam de um contexto globalizado quanto aos direitos fundamentais. Outros doutrinadores ainda sugerem uma quinta geração de direitos fundamentais, incumbida da proteção ao amor, à compaixão e a todas as formas de vida, partindo-se da premissa de que “a segurança humana não pode ser plenamente realizada se não começarmos a ver o indivíduo como parte do cosmos e carente do sentimento de amor e cuidado, todas definidas como prévias condições de ‘segurança ontológica’” (SAMPAIO, 2010, p. 282). Ressalte-se que tanto a quarta quanto a quinta dimensão apenas são discutidas, não havendo consenso quanto à essência de cada uma delas, e tampouco positivação acerca das respectivas proteções.

De toda sorte, a carta de direitos fundamentais tem um caráter aglutinativo, na medida em que cumula sua amplitude, e não admite uma leitura restritiva. Ao contrário, a cada nova geração, os direitos protegidos pela anterior são reafirmados e relidos acrescentando-se uma proteção a mais a outro setor, antes não acobertado.

 

 3. As teorias sobre os direitos fundamentais: a teoria interna e a teoria externa

Pereira (2006) desenvolve uma diferenciação entre as possibilidades de restrição ou delimitação dos direitos fundamentais a partir das premissas de duas teorias distintas, a interna e a externa.

Afirma a autora que, muito embora tenham os direitos fundamentais pretensão à universalidade, a complexidade da vida moderna imprime confronto entre estes direitos e, neste sentido, há a necessidade de se compatibilizarem, visando à pacificação social. Tal compatibilização implica, por momentos, na restrição a determinados direitos fundamentais.

Deontologicamente, se poderia pensar ou defender a sobreposição de tais direitos[7], com isso se quer dizer que algum dos direitos fundamentais iria ser aplicado como se fosse mais relevante que o outro. Lembra-se que, teoricamente, um direito fundamental não deveria ceder a nenhum outro. Porém, ontologicamente, direitos fundamentais confrontam-se, e diante de tal realidade, algum deles deverá ceder (se se pensa apenas sob o enfoque da validade) ou deverá ser relativizado (quando se analisa tal direito como um mandato de otimização).

Para entender a proposta de análise dos direitos fundamentais segundo as teorias interna e externa, há a necessidade de se retomar a diferenciação entre regras e princípios feita por Dworkin e Alexy,  para, posteriormente se proceder às críticas a tais teorias e à proposta discursiva, objetivo deste artigo.

 

3.1  Normas, regras e princípios

Alexy (2008) assevera a importância em se estabelecer uma diferenciação entre princípios e regras para que se possa construir uma teoria sobre os direitos fundamentais, bem como uma doutrina satisfatória sobre suas restrições ou colisões. Nas palavras do autor: “essa distinção é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2008, p.85). O referido autor vai além, afirmando que essa diferenciação seria a base de uma teoria ‘normativo-material’ acerca dos direitos fundamentais, ou seja, “a distinção entre regras e princípios é uma das colunas-mestras do edifício da teoria dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2008, p.85).

Inicialmente, na esteira dos ensinamentos de Alexy (2008), deve-se ressaltar que regras e princípios são espécies de ‘normas’. Tanto as regras quanto os princípios apresentam caráter deôntico, ou seja, são manifestações do dever-ser, de comportamentos ideais, que se exteriorizam através de deveres, proibições ou permissões. Alexy (2008) afirma que há vários critérios para diferenciar tais espécies normativas, e, para ele, o critério qualitativo seria o correto, portanto, se passará a analisá-lo a seguir.

Princípios, nesta esteira, seriam:

normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. (ALEXY, 2008, p.90)

 Por seu turno, as regras seriam “sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos” (ALEXY, 2008, p.91). Prossegue o autor afirmando que as regras são determinações.

Para Alexy (2008) pode ocorrer ‘colisão’ entre princípios e ‘conflitos’ entre regras. O obstáculo relacionado ao confronto de direitos fundamentais implica no fato de que “duas normas, se isoladamente aplicadas, levariam a resultados inconciliáveis entre si, ou seja, a dois juízos concretos de dever-ser jurídico contraditórios” (ALEXY, 2008, p.92), portanto há a necessidade de se entender a diferenciação entre regras e princípios para se chegar a um bom termo no momento em que o conflito se estabeleça.

No caso de conflitos entre regras, o mesmo deverá ser solucionado através de uma cláusula de exceção[8] à aplicação de uma das regras conflitantes ou, não sendo isso possível, através da análise da validade das respectivas normas. Quando se analisa a validade, urge considerar que se a norma for tida por válida, deverá ser aplicada em sua totalidade, não comportando qualquer espécie de gradação quanto à sua aplicação, o que se convencionou denominar de aplicação “tudo ou nada”.

Já no caso de colisão entre princípios, um deles deverá ceder ao outro. Não se cogita da validade dos princípios, na verdade se presume que ambos sejam válidos. O ponto nefrálgico aqui é a precedência de um sobre o outro, o que se verifica através da análise de seu peso para a solução do caso concreto. Importante mencionar que a solução acerca da colisão de princípios diz respeito ao caso em específico, situação que pode ser modificada em outro caso diverso, porque o sopesamento é feito em situações em concreto, e se modifica tendo em vista a especificidade do conflito. Mais ainda, o ponto chave para a aplicação dos princípios é a consideração sobre seu caráter prima facie que varia em situações antagônicas. Sobre eles incide, de forma direta, a proporcionalidade, que será tratada mais adiante.

 

3.2  A teoria interna dos Direitos Fundamentais

A teoria interna dos Direitos Fundamentais parte do pressuposto de que tais direitos não podem ser restringidos por outros direitos, ainda que da mesma natureza, não se admitindo que eles sofram limitações cuja origem seja externa a eles mesmos. Na verdade, todas as possibilidades de restrição/delimitação aos direitos fundamentais estariam presentes na própria Constituição, já expressos no Texto Constitucional. Segundo SILVA (2010, p.128), “o processo de definição dos limites de cada direito é algo interno a ele”.

Os direitos fundamentais, dessa forma, assumem o contorno de regras, ou seja, seriam normas jurídicas que delimitam de forma definitiva determinada situação jurídica (SILVA, 2010, p.45) e apenas seriam aplicadas em sua totalidade, já que o esteio da análise seria o critério da validade da(s) norma(s) jurídica(s). Nas palavras de Dworkin[9], sobre a aplicação de tais regras deve-se proceder à sua aplicação da forma tudo-ou-nada. Isto significa que, havendo suposto conflito entre regras, uma delas deverá ser declarada inválida e aplicada a outra regra, na sua totalidade.

Segundo a teoria interna, configurada uma situação hipotética de conflito entre o conteúdo das normas, se deveria buscar a solução para o caso concreto dentro do Texto Constitucional, que revelaria os limites imanentes a este direito. Por limites imanentes entendem-se as restrições ou impedimentos lógicos aos direitos, presentes no Texto Constitucional.

A análise do direito na teoria interna, segundo Pereira (2005, p.142), deve ser feita de uma só vez, de forma dogmática, o que significa dizer que os limites imanentes ao direito são projetados sobre este no exato instante em que ele é analisado, não se falando em uma abordagem posterior. Assim, não se admite ponderação de valores em tal teoria. Também não se trabalha com a ideia de direitos “prima facie” para, posteriormente ao seu reconhecimento, se afirmar o “direito definitivo”, como ocorre na teoria externa dos direitos fundamentais. O direito, para a teoria interna, se manifesta de uma só vez, com seu conteúdo e suas limitações imanentes.

Para Pereira (2005, p.142), a teoria interna foca na “determinação dos confins do direito, ou seja, em sua esfera normativa ou âmbito de proteção, que decorre da adequação do fato à norma”. Em tal hipótese, encontram-se inseridos os limites imanentes a estes mesmos direitos, de forma que a análise passará pela sondagem que aborda se o fato é ou não protegido pelo direito.

Segundo SILVA (2010, p. 131), essa teoria não afirma que os direitos sejam absolutos, condição que dificilmente poderia sustentar-se. Ao contrário, defende a possibilidade de declaração de um direito que protege ou não-protege a situação concreta. A incidência do direito relaciona-se à análise das “limitações previamente existentes”, que nada mais representa que não os próprios limites imanentes aos direitos.

Então, para se analisar um conflito entre direitos fundamentais, e neste caso qual deles será aplicado, deve-se buscar a essência da proteção constitucional, e, via de consequência, a sua não-proteção. Por exemplo[10], no caso de uma pessoa querer pintar em cruzamento de via de grande circulação de pessoas, haveria o conflito de dois direitos fundamentais: o que garante a expressão artística de um cidadão e o que se refere ao direito de ir e vir de outros cidadãos. Segundo a teoria interna, neste caso em apreço, não se poderia permitir que o pintor desenvolvesse sua atividade artística em tal local, haja vista que o direito a expressão artística não inclui o cerceamento ao direito de ir e vir das demais pessoas (limite imanente). Neste sentido, quando da proteção ao casamento, por exemplo, não haveria proteção ao adultério; no caso da proteção da propriedade, não haveria previsão de proteção a terras improdutivas. Ou seja, os direitos protegidos não podem ultrapassar a sua fundamentação de proteção. Há limites imanentes nos próprios direitos e nas demais normas constitucionais.

Essa teoria adota o critério da subsunção para a aplicação da norma ao caso concreto. Ela almeja o afastamento da ponderação, e, por consequência, o mínimo de subjetividade nas decisões judiciais, que deveriam se pautar no texto normativo constitucional. Nas palavras de Pereira (2005, p.159), os adeptos da teoria interna almejam “eliminar o caráter extratextual da interpretação, buscando a solução para o problema dos limites dos direitos diretamente no texto constitucional.” Para essa teoria, agindo de tal maneira, haveria um afastamento do decisionismo judicial, ou grande propensão a isso ocorrer.

Sobre a teoria interna pairam várias críticas, dentre as quais se destaca, na visão de Pereira (2005, p.160) o fato de que, justamente pela abertura semântica conferida aos direitos fundamentais, aliado aos problemas concretos, tornar-se-ia difícil “de se precisar os contornos dos direitos de forma inequívoca, mediante mero recurso à subsunção”. Ou seja, há aqui também certa discricionariedade do aplicador do direito, ou, um “decisionismo” judicial na configuração dos direitos em análise.

 

3.3  A teoria externa dos Direitos Fundamentais

A teoria externa dos direitos fundamentais parte do pressuposto de que diante da ocorrência de conflitos entre normas de direito fundamental deve-se partir para um procedimento bifásico: em um primeiro momento há a necessidade de se identificar os direitos prima facie (categorização). Em um segundo momento, estes direitos deverão ser ponderados e sopesados, para se identificar qual a solução adequada para o caso concreto apresentado, o que corresponde à “proteção definitiva do direito” (PEREIRA, 2005, p.162).

O segundo momento é delineado pela ponderação. A doutrina[11], até certo tempo atrás, ressalvava que essa teoria era cabível apenas para princípios, que são mandados de otimização, podendo ser aplicados segundo graus diferenciados, de forma a se adequarem, ou melhor, solucionarem o caso concreto em apreço. Atualmente, a adoção da ponderação já alcança outras espécies normativas (BARCELLOS, 2006, p.57). Nas palavras de Barroso, “é possível cogitar, também, embora em caráter mais excepcional, da ponderação de regras” (BARROSO, 2006, p.528).

Retomando ao raciocínio anterior, tem-se que após a identificação dos direitos “prima facie” se passaria à fase seguinte, que é a ponderação de interesses.

 

3.3.1 A ponderação

A ponderação seria a técnica de decisão judicial para solucionar casos difíceis, segundo Barcellos (2006, p.55), cabível a casos em que a mera subsunção não seria suficiente para a promoção da pacificação social. Barroso (2006) acrescenta que a ponderação seria o instrumento adequado para a solução de conflitos que envolvem normas constitucionais originárias, porque nestes casos a mera subsunção (adequação do fato à norma) se vê insuficiente para a solução da controvérsia. Assim a ponderação apresenta-se como instrumento para a hermenêutica jurídica, que hoje é muito empregada pelo Judiciário brasileiro.

Segundo Barcellos (2006), a ponderação passa por três fases: a primeira diz respeito a identificação, o mais ampla possível, de todos os textos normativos que poderiam ser aplicados na espécie; a segunda, atine à verificação de todos os dados do mundo a vida inseridos na disputa, ou seja, à verificação do caso concreto; já a terceira e última fase é relativa à análise judicial, que parte do conflitos das normas dentro das necessidades do caso concreto. É na terceira fase que ocorre a densificação das normas, através da atribuição de pesos a elas, de forma que o magistrado se posicione em relação a todos os fatos normativos e reais do caso concreto para enfim lançar sua decisão.

a) Parâmetros normativos para a ponderação

Ana Paula de Barcellos (2005) propõe alguns critérios normativos para a ponderação, na tentativa de tentar tornar essa técnica menos subjetiva, ou, nas palavras da autora, tais parâmetros  “ são capazes de controlar em alguma medida as possibilidades quase ilimitadas que a ponderação oferece” (BARCELLOS, 2005, p.69). Nesse sentido ela propõe que a magistratura se atenha à dois parâmetros preferencias para a ponderação: o primeiro assevera que as regras tem preferência sobre os princípios constitucionais. O segundo, afirma que os direitos fundamentais têm preferência sobre as demais disposições normativas. Esse segundo parâmetro pode sofrer exceções de três naturezas: pela equidade, pela imprevisão ou pela invalidade de incidência específica da regra. Serão trabalhadas cada uma dessas possibilidades a seguir.

O primeiro parâmetro, de que regras tem preferência sobre os princípios constitucionais, é justificado pelo fato de que as regras, em sua essência, não se sujeitam à ponderação. Elas (regras) na clássica lição de Dworkin e Alexy são analisadas segundo a sua validade, e, uma vez válidas, devem ser aplicadas em sua inteireza. Por isso, aplicá-las em partes causa uma certa dificuldade para a ponderação. Havendo assim a possibilidade da aplicação da regra, quando esta estiver em colisão com princípio, aquela deverá ser aplicada e este deverá ser comprimido (BARCELLOS, 2005, p. 83). [12]

O segundo parâmetro, os direitos fundamentais têm preferência sobre as demais disposições normativas constitucionais, defende a premissa de que, não obstante o princípio da unidade constitucional, que apregoa que todas as normas constitucionais tem a mesma hierarquia, resta indubitável a diferenciação quanto a importância da dignidade da pessoa humana, bem como dos princípios transcritos pelos direitos fundamentais. Defendendo esta argumentação, a autora ensina que “o fato é que todos, de alguma forma, justificam a centralidade e a fundamentalidade de determinadas normas constitucionais, relacionadas com a dignidade humana e com os direitos fundamentais, quando comparadas com outras, justificando teoricamente o parâmetro que se acaba de propor.” (BARCELLOS, 2005, p.111).

Esse segundo parâmetro sofre exceção, entretanto, pela possibilidade de aplicação da equidade, da imprevisão e da invalidade da norma diante do caso concreto.

A equidade seria a aplicação da solução mais justa diante do caso concreto, uma aproximação que seria feita pelo magistrado entre o fundamento da norma e seu cabimento no caso concreto, o que, em tese, é sempre possível, e até desejável. Pressupõe, por seu turno, um distanciamento entre o teor da norma e sua aplicação ante o caso concreto. Leva em consideração, tal posicionamento, o princípio da interpretação conforme à Constituição, na medida em que considera os princípios constitucionais que almejam a aplicação da justiça ao caso concreto. Na realidade essa possibilidade impõe a busca pela justiça diante de um caso concreto. Nessa primeira situação afirma a autora que “a injustiça da incidência da regra pode ser superada dentro dos limites semânticos do enunciado por meio do uso da equidade”(BARCELLOS, 2005, p.107).

Uma situação também possível seria a ocorrência da imprevisão, que se daria em duas circunstâncias: a primeira relaciona-se ao fato de que o legislador quando confeccionou a regra não previu a situação que no momento se apresenta, portanto, o fundamento da regra mostra-se desconectado com a realidade social; a segunda hipótese refere-se ao fato de que o caso concreto em análise não se mostra com todas as características que geralmente apresentam-se para a incidência da norma. Haveria, neste segundo caso, uma disparidade entre a linguística normativa e o caso em análise, o que levaria a desconsideração da regra e aplicação de um princípio que amparasse a situação. Em ambos os casos, afirma a autora que “a injustiça aparentemente produzida pela aplicação da regra não foi realmente pretendida nem pela mens legislatoris nem pela men legis” (BARCELLOS, 2005, p.107). Trata-se de uma coincidência linguística que deve ser desconsiderada por conta da imprevisão legislativa.

A última hipótese de afastamento dos direitos fundamentais seria o caso em que a aplicação da regra ao caso concreto provocasse uma inconstitucionalidade. A autora (BARCELLOS, 2005) afirma que é possível que determinada regra ao ser aplicada a um caso específico provoque algum tipo de inconstitucionalidade. Segundo Barcellos (2005, p.107), seria “a hipótese na qual o legislador de fato proveu para a hipótese, mas a solução por ele concebida, em determinado caso, torna-se incompatível com a constituição”. Afirma a doutrinadora que a inconstitucionalidade é uma exceção e deve ser tratada como tal, e que se aplica, neste caso excepcional, às normas atinentes ao controle de constitucionalidade das leis e atos normativos

b) A proporcionalidade

O cerne da ponderação de valores é o princípio da proporcionalidade, que se subdivide em três subprincípios: a necessidade, a adequação e a ponderação estrito senso.

O subprincípio da necessidade, também referido como o da exigibilidade[13], assevera que se deve analisar diante do caso concreto a menor lesividade possível diante da aplicação da norma jurídica. Silva (2010, p.172) afirma que “se deve dar sempre preferência à medida que restrinja menos direitos”. Já Pereira (2006, p.337), afirma que há uma certa aproximação com o princípio da proibição do excesso, analisando-se os meios que podem auxiliar na resolução do caso e escolhendo-se o menos gravoso.

O subprincípio da adequação, também referido como idoneidade[14], apregoa uma relação positiva entre os meios empregados e o resultado prático pretendido. Significa dizer que o magistrado deve verificar “se as estratégias de ação previstas na norma são adequadas a seu fim” (CRUZ, 2004, p.239). Segundo Pereira (2006), deve-se proceder a dois passos para tal aferição: no primeiro deles, analisa-se se o fim almejado é constitucionalmente legítimo; no segundo momento, confere-se se o meio empregado ao alcance do fim colimado é realmente adequado ao alcance desse fim. A autora ainda propõe uma diferenciação entre conceito débil e conceito forte de idoneidade. De acordo com o conceito débil, o meio empregado deve ser considerado adequado ainda que não possua condições totais de atingir o fim colimado, bastando que se identifique uma possibilidade de colaboração a seu propósito, ou, nas palavras da autora, seriam débeis apenas quando se “entender como inidôneos apenas aqueles meios que se revelam completamente inócuos ou ineficientes para obter o fim pretendido” (PEREIRA, 2006, p.330). Já o conceito forte de idoneidade apenas se satisfaz se “constituir um meio totalmente eficaz para atingir o fim pretendido, ou seja, se for apto a realizá-lo plenamente” (PEREIRA, 2006, p.329). A autora afirma que o caráter débil da necessidade já é suficiente para suprir tal subprincípio. 

O último subprincípio, o da proporcionalidade em sentido estrito “pressupõe efetivar uma comparação entre o grau de afetação do direito fundamental e a importância da realização do principio que a ele antagoniza e que serve de fundamento à restrição” (PEREIRA, 2006, p.346). Aqui se faz um juízo argumentativo sobre a procedência dos princípios em conflitos, visando-se a analisar qual deles deve ser aplicado, considerando-se que este tem peso maior que o daquele que será rechaçado no caso em comento.

 

3.4     Críticas às teorias interna e externa.

a)     Críticas à teoria interna

A principal crítica à teoria interna diz respeito ao essencialismo que se atribui a institutos jurídicos, bem como a ficção de que todas as restrições aos direitos fundamentais encontrariam abrigo na Carta Constitucional e seriam determinados no momento exato da aplicação do direito.

Não haveria como, ao mesmo tempo, reconhecer as normas jurídicas cabíveis a espécie e também relativizá-las, ou dar-lhes contorno. Teoricamente essa possibilidade é rechaçada pelo pragmatismo da decisão. Os contornos ou restrições dos direitos apenas justificam-se por uma necessidade prática, que nasce do confronto das regras ou das colisões dos princípios. Esse embate normativo implica em um juízo de valor, que busca nas normas jurídicas o seu desfecho. Mas, claro, apenas ocorre partindo de fases diferenciadas: a primeira, a identificação das normas cabíveis; e a segunda, a valoração dessas normas para perceber qual deverá ser aplicada e em qual intensidade.

Como se pode perceber, não há aqui nada que se distancie tanto de uma análise utilitarista ou mesmo teleológica do direito.

Sarmento afirma que esse caráter absoluto conferido aos direitos pela teoria absoluta, impediria sua relativização o que pode desembocar no non liquet, isto porque o juiz teria que “optar por um deles em detrimento do outro” (SARMENTO, 2001, p.61).

b)    Críticas à teoria externa

A teoria externa, ao contrário da interna, parte da possibilidade de delimitação dos direitos fundamentais bem como de sua restrição, o que ocorre em dois momentos diferentes: no primeiro através da identificação das normas e em um segundo, através da proporcionalidade.

Como assevera Pereira (2005), ambas as teorias chegam a um mesmo resultado prático no momento dos julgamentos, muito embora cada uma apresente uma fundamentação diversa para a aplicação do direito. A bem da verdade, ambas as teorias partem de uma concepção utilitarista, ou de uma interpretação teleológica do resultado apresentado ao caso concreto em análise.

Ambas as teorias justificam sua decisão pelas utilidades práticas que a sentença judicial irá ofertar aos contendores. E isso inevitavelmente beira ao casuísmo ou ao subjetivismo exacerbado conferido ao Poder Judiciário. E, claro, o perigo que tal fato traz consigo diz respeito à possibilidade de as decisões judiciais em determinado momento, ou configuração histórica, vincularem-se às correntes majoritárias e acabarem, de forma expressa, com a possibilidade de participação políticas das correntes contra-majoritárias. Ou, com a oportunidade de o Estado institucionalizar a extinção da democracia, que ainda que apresente mazelas, ainda assim é o sistema mais aproximado de possibilidades reais de participação popular e proteção à cidadania.

Muitas críticas são aventadas sobre a ponderação de interesses, principalmente no que diz respeito à redução da segurança jurídica, uma vez que a escolha sobre qual direito será aplicado será feito pelo juiz segundo aqueles critérios que considerar os mais relevantes, o que pode reduzir a “objetividade e a previsibilidade da interpretação” (BARROSO, 2005, p. 534).  Nessa mesma linha, parece que a ponderação é apenas uma forma de justificar uma decisão já tomada anteriormente. Com ela, se corre o risco “decisionista do operador simplesmente se limitar a buscar a fundamentação daquilo que ele desde já julga ser a resposta correta para o caso” (CRUZ, 2007, p. 355).

O próprio Sarmento (2001), expoente da escola carioca, aponta que cuidados devem ser tomados quando da ponderação. Em suas palavras:

Porém, cumpre agir com prudência. A discricionariedade judicial, pressuposta no método de ponderação, convola-se em pura arbitrariedade quando o julgador, sob o pretexto de ponderar, aniquila direitos e interesses que a sua ideologia pessoal não favoreça. Afinal, é preciso não esquecer que, no vernáculo, a ponderação é sinônimo de equilíbrio e bom-senso. Entre a anarquia da criatividade judicial ilimitada e o imobilismo conservador do positivismo c formalista, a virtude, como sói acontecer, está no meio. (SARMENTO, 2001, p.91)

Barroso (2005, p. 534) afirma que a segurança jurídica não é um valor absoluto, e que em tempos modernos, de “complexidade dos problemas a resolver e do refinamento da dogmática jurídica” não há opção diversa, devendo-se investir na construção da justiça material.

Ponto relevante que deve ser destacado é o fato de que para Habermas, a proporcionalidade pode perfeitamente ser aplicada, desde que no discurso de fundamentação. Cruz (2007) trabalhando essa perspectiva, afirma que os jogos de linguagem e os discursos também se fazem sentir na seara legislativa, e que ali seria a arena para a “sociedade regrar condutas públicas/privadas diante das inúmeras e crescentes aspirações da população em geral” (CRUZ, 2007, p.211). Ou seja, a política, ou a valoração dos axiomas não deveria ser tarefa para o discurso de aplicação.  Prossegue o autor afirmando que:

Entretanto, o sistema jurídico possui mecanismos para evitar sua desnaturação pelo predomínio do agir estratégico dos grupos de pressão no parlamento. Se ele pretende efetividade, o discurso de fundamentação precisa de legitimidade. E, nos dias de hoje, essa legitimidade só pode ser extraída de sua racionalidade. É assim que o legislador político precisa observar o binário o direito, a moralidade pós-convencional e o princípio da democracia como instrumentos de controle dessa racionalidade. Contudo, esse “filtro” não se dá apenas durante a fundamentação, mas se torna ainda mais exigente e seletivo nos discursos de aplicação. E, parte desse “endurecimento” consiste justamente na inaptidão do emprego do princípio/regra da proporcionalidade na jurisdição (CRUZ, 2007, p. 212) 

Toda a proposta aqui veiculada parte da análise da aplicação e delimitação/restrição dos direitos fundamentais no discurso de aplicação, isto porque já se parte do fato conflito social que descamba em uma detecção de um conflito normativo, e da necessidade de uma resposta por parte do Poder judiciário sobre tal situação. Assim, ainda que não seja “ideal” o Poder Judiciário ponderar valores, parte-se da premissa que esse mesmo Judiciário terá que inevitavelmente tocar esta problemática, uma vez que se considera a inafastabilidade jurisdicional, e, ao mesmo tempo, o princípio da unidade da Constituição. Se as normas, então, são iguais, e estão em conflito, o Poder Judiciário deverá decidir sobre os pontos controvertidos! O Judiciário não pode se negar a sua função institucional, muito embora isso possa ser percebido quando o Supremo Tribunal Federal nega-se a enfrentar questões centrais e encerra o processo em formalismos processuais…

 

4. Nova proposta de abordagem sobre os direitos fundamentais: pressuposto discursivo.

Tomando-se como referência as teorias internas e externas sobre os direitos fundamentais, percebe-se um certo dualismo, antagonismo ou estancamento de possibilidades, como se os direitos fundamentais apenas pudessem ser percebidos ou aplicados conforme os referenciais teóricos da mencionadas teorias. Nada mais. Nada menos. Nada diferente do que elas apregoam. Essa é a maior fragilidade de ambas: acreditar que apenas dentro de si mesmas, ou da forma como expõem os seus argumentos, se poderia pensar ou discutir acerca dos direitos fundamentais.

O que agora se propõe é um alargamento das convicções defendidas pelas teorias interna e externa. Busca-se analisar os direitos fundamentais por eles mesmos, tratamento que deve se assemelhar com a análise dos demais direitos, muito embora não se questione a importância principiológica dos direitos fundamentais no Ordenamento Jurídico.

Lança-se aqui a proposta de percepção dos direitos fundamentais alicerçada nas seguintes premissas: 1. Os direitos fundamentais devem ser analisados a partir da reviravolta linguístico pragmática; 2. Os direitos fundamentais devem ser aplicados levando-se em consideração a argumentação jurídica e o código binário do Direito, dentro de uma perspectiva procedimentalista.

Passa-se, agora, a explanação sobre a nova proposta aduzida.

 

4.1. Dos Direitos Fundamentais: concepção à partir da reviravolta linguística pragmática

Ambas as teorias (interna e externa) baseiam o entendimento acerca dos direitos fundamentais à partir de uma filosofia da mentalidade. A proposta que aqui se faz é uma análise dos direitos fundamentais a partir da reviravolta linguística-pragmática.

Não se duvida da importância da classificação das normas jurídicas entre regras e princípios. Não obstante tal fato, considera-se que tal classificação não é absoluta e não pode ser mantida como inicialmente o foi, tanto assim que Dworkin (2010) já modificou seu entendimento, e no plano nacional, autores como Barcellos (2006) e Barroso (2008), além de Cruz (2007) já manifestam expressamente a superação da dicotomia entre regras e princípios.

Assim, os direitos fundamentais sejam expressos por regras, ou por princípios, devem ser analisados, em si mesmos, para sua correta aplicação junto ao caso concreto. Mais que a classificação em regra/princípio, deve-se sopesar as características e fundamentos dos direitos discutidos, assim como as características do caso que ensejou a demanda judicial.

Toda restrição aos direitos fundamentais, bem como sua delimitação, prende-se de forma indissolúvel à natureza do direito, seu fundamento. Mas esse caráter axiológico dos direitos não pode ser considerado absoluto ou imutável. Segundo Habermas: “a maneira de avaliar nossos valores e a maneira de decidir ‘o que é bom para nós’ e o que ‘há de melhor’ caso a caso, tudo isso se altera de um dia para outro”.  (HABERMAS, 2007, p.368). Para além dessa relatividade, considerando-se a modernidade e complexidade da vida hodierna, como considerar que os axiomas porventura empregados pelo magistrado correspondem à vivência das partes? Diante das inúmeras possibilidades valorativas, Cruz (2007, p.360) lança a pergunta: “como encontrar um padrão axiológico para que então possamos definir a virtude para um juiz?”. Parece não haver resposta… tampouco parece haver a resposta correta, mas apenas a possibilidade de uma adequação da sentença em termos de ser a resposta adequada para o caso em concreto,  ou seja, mostra-se  o “ ‘que-se-tem-por-verdadeiro’ e,  jamais, à verdade.” (CRUZ, 2007, p.358).

Diante de tais dúvidas, não é adequado analisar os conflitos entre os direitos fundamentais à partir do subjetivismo exacerbado da magistratura, tampouco de uma valoração ‘a priori’ dos direitos, como se eles pudessem ser absolutos ou ontologizados. Nesse sentido, revela-se a importância da linguagem como instrumento de veiculação dos direitos, e a necessidade de o caso concreto ser apresentado argumentativamente.  Nesta esteira, o magistrado deverá decidir baseado em um procedimento formal, que resguarde às partes a possibilidade de participação real no discurso e na produção de provas. Estas provas, juntamente com o discurso produzido, deverão conduzir à resposta almejada.

 

4.2   Os direitos fundamentais devem ser aplicados levando-se em consideração a argumentação jurídica e o código binário do Direito.

Todo o Direito necessita da linguagem para se exteriorizar. É no jogo da linguagem, na diferenciação entre signo e significado que reside a definição e a interpretação do Direito em si. A norma jurídica, enquanto signo, não pode ser entendida como um ato essencialista ou ontológico. A norma não é o Direito. O direito se extrai da norma, que é apenas um signo de onde o intérprete busca o significado, ou um dos significados possíveis, com relação ao seu alcance e proteção.

Assim, antes de mais nada, deve-se advertir sobre a impossibilidade de delimitação dos direitos fundamentais prima facie, já que para serem compreendidos, tais direitos necessitam ser interpretados, e isto, por si, e em si, já traz uma configuração que parte de conceitos pessoais do intérprete (seu mundo da vida, sua pré-compreensão), e exterioriza-se na configuração argumentativa, e posteriormente concretizadora do direito.

Segundo Habermas (2007, p.339), para possibilitar a transposição da linguagem para o Direito deve-se atravessar os discursos de argumentação, que são instrumentos na busca de uma decisão racional. Essa decisão passa necessariamente por um procedimento que traz duas acepções: uma formal (a construção do sistema jurídico em si, enquanto normatização “consensual”, e traz uma pseudo neutralidade de conteúdo do direito) e outra judicial (o processo).

Partindo-se da premissa de que os direitos fundamentais não são absolutos, e considerando-se que em um caso concreto eles estejam em conflito, o que definirá a forma de deslinde da controvérsia será a construção argumentativa das posições (agir estratégico) e a racionalidade da decisão. Tal decisão não deve se basear em critérios de resolução de conflitos abstratos, tampouco em valorações axiológicas também abstratas, mas na análise do discurso, que passa pelo agir comunicativo e pelos critérios de racionalidade do discurso. A sentença, nesse sentido, partirá da norma jurídica (seja princípio, seja regra, seja o conflito entre ambas as espécies) e não fugirá ao seu papel de pacificação social, dentro de uma ótica de racionalidade do discurso. A legitimidade do Direito prende-se a esta racionalidade, que segundo Cruz baseia-se no procedimentalismo e em outras técnicas necessárias ao discurso, nos seus dizeres:

o procedimentalismo fornece indicativos concretos para o balizamento dessa legitimidade, que podem ser encontrados ao longo desse trabalho, tais como o senso de adequabilidade, a exigência de coerência/racionalidade dos argumentos, o respeito ao código binário do Direito, a integridade dworkiana face às decisões passadas (precedentes) e suas consequências futuras, o emprego da moralidade pós-convencional, o respeito ao agir comunicativo e, (…) a compreensão do procedimento como mecanismo depurados do agir estratégico das partes litigantes. (CRUZ, 2008, p.159) 

A sentença, como de resto todo o Direito, deverá estar umbilicalmente atrelada ao código binário do Direito, ou seja, à diferenciação lícito/ilícito, que não pode estar vinculada a questões econômicas para a preservação do Estado. Ao contrário, o Poder Judiciário deve se distanciar de preocupações excessivamente pragmáticas para aplicar os valores morais[15] necessários ao caso contrário. Moralidade que confere legitimidade ao Direito, mas, obviamente, tem sua condição de possibilidade vinculada às regras presentes no Ordenamento Jurídico. E nele encontra sua essencialidade e importância.

Visando a essa sentença adequada, o discurso apresenta-se como instrumento que assegura ao cidadão “a aceitabilidade racional das decisões tomadas em conformidade com os procedimentos” (HABERMAS, 2007, p.343).

Habermas parte da premissa que os cidadãos participam do discurso, em um ambiente de moralidade pós convencional[16]. Ou seja, de que os cidadãos conhecem as normas jurídicas e têm capacidade de avaliar esse conjunto normativo, partindo da premissa de eticidade e reciprocidade. Nessa esteira Cruz afirma que “para Habermas (1997), a moralidade deve transcender as diversas visões de mundo, com enunciados derivados de um diálogo/discurso público e racional, incluindo tanto concepções individuais e coletivas sobre a noção de vida digna” (CRUZ, 2004, p.213).

Ou seja, os conflitos de direitos fundamentais devem ser solucionados partindo-se das argumentações trazidas à lume e de como os argumentos apresentados podem ser interpretados, considerando-se o pressuposto de que a reciprocidade e a eticidade devem ser parâmetros a solucionar os conflitos de interesses, já que a moralidade pós-convencional apregoa a  necessidade de reavaliação das normas já existentes tendo em vista a noção de bem comum.

Por fim, importante uma vez mais ressaltar que os direitos fundamentais não podem ser ontologizados ou essencializados. Nas palavras de Cruz, “os direitos fundamentais, como condição de procedimento discursivo, são pressupostos de comunicação e, portanto, despidos de conteúdo substantivo” (CRUZ, 2008, p.183), mesmo assim o autor considera que eles estejam “repletos de substância”.  Tal substância estaria vinculada ao caso concreto, e na interpretação do direito é que ela será alcançada.

 

4.3  Da hermenêutica constitucional, das pré-compreensões e do romantismo sobre o papel dos magistrados.

Sarmento (2010) traz um capítulo específico em seu livro “Por um constitucionalismo inclusivo” para discorrer sobre o cuidado que se deve ter com a pré-compreensão por parte dos membros da magistratura na hermenêutica constitucional, bem como com o romantismo que a população percebe o Poder Judiciário. Tal enfoque merece ser trabalhado, e considerado, na nova proposta aqui discutida.

Sarmento (2010) assevera a grande importância do Judiciário na atualidade, e a crença sobre sua preponderância hodierna em relação aos demais poderes. O Poder Judiciário, enquanto órgão com competência para decidir, através da sentença, coloca fim às controvérsias sociais. Nesse ato de sentenciar, o mundo da vida, do ser-lançado-no-mundo, que compõe a personalidade do magistrado, estará inserida na sua produção (sentença). Ou seja, a pré-compreensão do juiz, que passa pela sua história de vida, estará dialogando ou mesmo ditando o caminho do texto decisional. E, exatamente aí, mora a temeridade que Sarmento (2010) indica: como em um mundo plural, com valores tão diversificados, que se atrelam à realidade de vida de cada cidadão, ou grupo social, poder-se-ia considerar a pré-compreensão do juiz o alicerce seguro de uma hermenêutica constitucional? Em suas próprias palavras:

Se o poder e a opressão estão instalados nas entranhas da pré-compreensão, onde têm a sua morada, por exemplo, a hierarquização social, a estigmatização do diferente, o racismo, o sexismo e a homofobia, dentre todas as patologias, tomar a pré-compreensão como norte da hermenêutica jurídica, sem submetê-la ao crivo de uma razão crítica e desconfiada é chancelar o status quo cultural e legitimar a injustiça, em nome do Direito e da Constituição.  (SARMENTO, 2010, p.222) 

Com tais colocações, o autor mostra que não se poderia adotar uma tábua de valores, que parte da subjetividade do juiz, das suas concepções pessoais, da sua pré-compreensão do mundo. Ao contrário, o magistrado deveria manter um certo afastamento dos seus valores particulares. Obviamente a história de vida do magistrado irá aparecer, mas deverá assumir uma função complementar à argumentação produzida, ou seja, ocupar espaços vazios, ou estabelecer contornos, mas nunca assumir um papel principal. Nesse sentido, Sarmento afirma que “o intérprete da Constituição deve avaliar criticamente as suas pré-compreensões, e não tornar-se um refém delas” (SARMENTO, 2010, p.230). Esse intérprete deve ser capaz de uma análise crítica de seus valores e de adaptá-los ao problema que se esteja discutindo. E mais, as fragilidades institucionais da magistratura deverão ser consideradas.

Com relação a tais fragilidades institucionais, Sarmento (2010) relembra que se deve considerar tanto a sobrecarga de trabalho dos magistrados, quanto a falta de um conhecimento técnico atilado em áreas diversas, e a lógica do processo judicial em si.

O excesso de procedimentos sob análise do Judiciário é fato notório, de conhecimento popular, e que, por decorrência natural, impe que o magistrado dedique-se intensamente ao processo sob análise. Da mesma forma, impede que o magistrado faça um estudo aprimorado ou específico sobre o tema.

A segunda fragilidade apontada, que o autor descreve como um “déficit de expertise dos juízes” (2010, p.227), refere-se às complexidades que chegam ao Judiciário para que ele decida e sobre os quais, em muitos casos, o juiz não possui conhecimento específico para embasar sua decisão. Sarmento cita, a todo momento, os direitos sociais como exemplo de conflitos complexos que exigem do magistrado uma gama de aspectos e conhecimentos que fogem, no geral, do seu mundo da vida. De fato, a magistratura não possui, em muitos casos, conhecimentos técnicos para opiniar/decidir sobre as questões de saúde, educação, moradia, entre outros direitos. Então, a magistratura, para se instruir, necessita oportunizar uma deferência a órgãos técnicos especializados, para que enganos não sejam constantes. Entretanto, há aí toda uma discussão sobre a vinculação do Judiciário[17] a tais órgãos que faticamente ainda não foram incorporados ou criados pelo Poder Judiciário, e que seriam o centro de competência encarregado de, de certa forma, ditar a resposta ao caso concreto, na medida em que seria o órgão que teria conhecimento técnico sobre a questão abordada no caso concreto.

 

Considerações finais

O estudo que se fez até aqui não teve a pretensão de fazer uma análise definitiva sobre restrições ou conflitos entre os direitos fundamentais, até porque parte-se do pressuposto de que todo o direito é linguagem, e, portanto, não é, mas torna-se, está, diante da contextualização política, histórica e instrumental. Assim, não há verdade definitiva, tampouco posicionamento encerrado. Ao contrário, se acredita na construção de argumentos e que a definição do direito fundamental a ser aplicado deverá estar vinculada ao discurso mais racional e coerente apresentado.

É certo que os direitos fundamentais possuem em sua essência um caráter valorativo relevado, isto porque buscam proteger características humanas subjetivas por sua natureza. Estas características são as mais relevantes e fundamentais à pessoa humana, e se sobrelevam à maior parte dos demais direitos. Nem por isso, se pode falar em delimitação fixa quanto aos contornos de tais direitos sob uma ótica prima facie, pois se assim o fosse estar-se-ia tomando como padrão alguma classe ou categoria de pessoas, e, via de consequência, obstando o direito à diferença, ou a necessária individualização dos contendores em detrimento de uma padronização ou standart de comportamento humano.

Como as pessoas não são iguais materialmente, os direitos a que elas almejam também não podem ser considerados idênticos. Nesse sentido, com certa constância, direitos fundamentais apresentam ambivalência ou mesmo antagonismos, ou confrontos. Mas, diante desse choque de disposições normativas não se pode dizer, prima facie, qual direito deveria ser aplicado, valendo-se da proposta classificatória de normas jurídicas em regras e princípios e da proposta de solução do confronto entre as regras pelas categorias relacionadas à sua hierarquia, especialidade ou cronologia, como se só isso bastasse, ou como se esses critérios sempre solucionassem a questão. Tampouco haverá como aceitar de forma inconteste que ‘colisão de princípios’ se resolve pela perspectiva de que serão aplicados na medida em que afrontem da menor forma possível os diretos em contento e garanta-se o maior proveito. Essa consideração expande-se para além dos denominados ‘princípios’. O fim do Direito, de forma ampla, é realmente a concretude de uma menor lesividade diante de uma maior possibilidade de proteção, seja para resolver confronto entre regras ou entre princípios, já que o Direito tem a pretensão de possibilitar, tanto quanto seja possível, a pacificação social.

Pensar em Direito, hoje, ultrapassa o que já se conheceu, o que já se construiu. Rompe premissas, e teorias. Só não se pode esquecer da deontologia que fundamenta a essência normativa. O certo/lícito não pode ser considerado errado/ilícito por uma questão de conveniência política ou econômica, tampouco por um excesso de pudor ou pré-compreensão do mundo da vida do magistrado. O Direito, incluindo aqui os direitos fundamentais de forma específica, deve ser considerado um texto em construção, que necessita de leitura para se chegar à sua interpretação. É nas entrelinhas do caso concreto, dos seus contornos, que está a resposta correta, e não na categorização acerca da proteção dos direitos em análise.

Em uma Era em que as diferenças e a proteção a elas, no sentido de inclusão social, se tornam o objetivo do Estado Democrático de Direito, não há fundamento para a proteção ou para se repelir, abstratamente, a escolha sexual de um cidadão, ou a deliberação acerca de um aborto, por exemplo. Não há como pensar ou escolher direitos de forma tão abstrata, tão positivista, que se esqueça dos meandros do caso apresentado. Essa estreiteza quanto à norma, rompe, inclusive, com a visão da unidade do Direito. Se, por exemplo, a vida fosse um fim em si mesmo, que se sobrepusesse a todos os demais direitos de forma absoluta, pelo seu sobrelevado valor axiológico, não se poderia pensar em aborto, nem nos casos expressos pelo Código Penal como excludentes de ilicitude. Também não se poderia conferir legitimidade à norma constitucional acerca da possibilidade de pena de morte para os casos de guerra declarada.

Com todas as colocações acima, se quer reafirmar que a vida moderna traz consigo situações que nem sempre são previstas pela norma jurídica, até porque o fato social e o conflito dele decorrente, antecede a norma, o que já foi desenhado pela clássica Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale. Então, não há que se falar, válida ou seriamente, em hierarquia de valores para solução do caso concreto. Uma aparente justificação de um caso, não tem o condão de solucionar caso diverso, não de forma automática. Nesse mesmo sentido a justificativa de Barcellos (2006) no sentido de considerar que, por alguns momentos, a previsão normativa a qual poderia ser subsumido o caso concreto, não guarda relação específica com todos os casos possíveis, ao contrário, o fundamento para a construção da norma abstrata pode se afastar do episódio analisado, ou pode chegar a romper mesmo o fundamento da norma analisada. Há, nas palavras da autora, uma ‘imprevisão’ que afasta a norma, ou justifica a não-aplicação desta. Assim, a mera existência válida da norma não é suficiente para a subsunção. Deve-se, novamente, se proceder a uma interpretação.

Portanto, aspirando-se à justiça da sentença e sua legitimidade, defende-se a necessidade de o direito ser produzido discursivamente, caso a caso, processo a processo. Neste diapasão, a sentença deve refletir a dialética dos problemas apresentados, reproduzindo a análise argumentativa trazida à baila, em um espiral hermenêutico que visa a melhor solução para aquilo que chega ao Poder Judiciário.

Direito não é regra ou compasso. Direito é ato em construção constante. É uma obra que deve ser vista e revista, vez que incidentes inesperados acontecem, e apenas poderão ser superados se pensados individualmente, tomando-se como referência o que já foi produzido (romance em cadeia, de Dworkin[18]), mas não se olvidando das características individuais presentes no momento.   O Direito justo não se contenta com um texto positivado. Parte dele, mas não se limita a ele. Não se trata, então, de aceitação ou aplicação da teoria interna ou externa dos direitos fundamentais, mas da apreensão de que os direitos fundamentais, como os demais, são direitos relativos e em construção, necessitando de interpretação, o que perpassa por um discurso coerente, que deverá ser analisado pelo magistrado, em detrimento de respostas pré-concebidas.

 

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______. Por um constitucionalismo inclusivo: História constitucional brasileira, Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia.2.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 

 


[1]Advogada. Especialista em Direito Público pela Unec-Caratinga. Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa. Doutoranda em Direito Público pela Puc-Minas. Professora no Curso de Direito da Fadivale-GV, Curso de Direito da Newton Paiva, instrutora de polícia do Curso Superior em Tecnólogo em Segurança Pública Ostensiva da Polícia Militar de Minas Gerais e de Cursos de Pós-Graduação 

[2] Neste sentido ver Barroso (2008), Barcellos (2006), Pereira (2006), citando-se aqui apenas o trabalhados nesta obra.

[3]  Ver BARROSO, Luís Roberto. Direitos fundamentais, colisão e ponderação de valores. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, Tomo III, p.519-535; E BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (org). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovas, 2006, p.49-118.

[4] “Deus criou o homem a sua imagem, a imagem de Deus o criou”. 

[5] “Não há judeu nem negro, não há homem ou mulher, pois todos nós somos um em Cristo Jesus.” 

[6] Cidadania naquele momento histórico tem denotação bastante diversa da atual, não abrangendo a possibilidade de participação de todos na esfera política.  

[7] Neste ponto, essa sobreposição seria apenas em um sentido axiológico “fraco”, haja vista que não se pode negar a força normativa da Constituição, tampouco sua unidade, o que implica na afirmação de que entre normas constitucionais não existe hierarquia.

[8] O exemplo clássico de Alexy é o da regra de que há “a proibição de sair da sala de aula antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio” (2008, p. 92). Esse dever de deixar a sala seria a cláusula de exceção para a aplicação da regra, muito embora ela permaneça válida. 

[9]DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. Tradução Jefferson Luiz Camargo. Revisão Fernando dos Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.  

[10]Este exemplo é inspirado no citado por Friederich Muller, em PEREIRA (2005, p.143). 

[11]Nesse sentido ver PEREIRA, ob.cit, p. 151, que assim afirma: “A teoria externa é correlativa do princípio da ponderação e da teoria dos princípios”.

[12] Mesmo com tais considerações, como já se mencionou em item anterior neste mesmo artigo, não vigora o posicionamento de que não pode haver ponderação entre regras. Como já se falou, a dinamicidade da vida com a complexidade dos problemas acabou por relativizar a premissa de que regras não poderiam ser ponderadas.

[13]Esse uso de sinônimos pode ser constatado em SILVA, p.170. 

[14]Nesse sentido ver PEREIRA, op.cit, p.324. 

[15] Moralidade aqui empregada no sentido da moralidade pós-convencional abaixo delimitada.

[16] Segundo Habermas (2003, p.153), a moralidade pós convencional apregoa que “as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios com que concordam (ou podem concordar) todos os indivíduos compondo ou criando uma sociedade destinada a ter práticas leais ou benéficas” 

[17] Aqui coloco em evidência o conflito que existe entre a prerrogativa da livre decisão motivada dos magistrados e a sua obrigatoriedade de ouvir órgãos técnicos especializados para a solução de alguns conflitos de interesse. A grande dúvida diz respeito á forma como isso deveria acontecer e qual a vinculação decorreria desta relação.  

[18] DWORKIN (2007).