“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”
Artigo 1º Declaração universal dos Direitos Humanos“
Os direitos dos homossexuais se constituem na última fronteira dos direitos civis” Michael Moore
Maurílio Santiago[1]
Resumo. O texto pretende discutir no âmbito da ética e da filosofia do direito a importância da tipificação da homofobia no Brasil. O eixo de análise é a necessidade de declarar direitos na sociedade moderna, bem como a homofobia como prática de violência contra a alteridade. Discute-se também a descontração da ideia de gênero, tendo por base as reflexões da filósofa Judith Butler. Com efeito, seguem-se os momentos desse texto: o motivo de declarar esse direito, fundamentado na ideia do medo; o que se entende por homofobia; exemplos e conseqüências da homofobia;a importância antropológica da desconstrução da ideia de gênero no combate a homofobia e conclusão.
Palavras-Chave: Declaração de Direitos; Ética; Gênero; Homofobia, Tipificação.
Área de Interesse: Filosofia do Direito
1. Introdução
Encontra-se em trâmite no Congresso Nacional um projeto de lei que considera a homofobia um crime e prevê penas para os indivíduos com comportamentos homofóbicos. Regra geral a intenção é criminalizar as pessoas que agem com preconceito em relação à orientação sexual de outrem. Nossa pretensão neste texto é pensar a homofobia no campo dos direitos, explicitar o que vem a ser a homofobia, a necessidade de sua tipificação e a importância disso no que se refere à alteridade e ao despertar ético da sociedade brasileira. Não se trata de um texto jurídico, mas de uma reflexão ética.
2. A Importância Da Declaraçâo Dos Direitos
Inicialmente perguntamos por que reconhecer esse direito às homossexualidades e a necessidade de tipificar a homofobia? É próprio da sociedade moderna declarar direitos para garanti-los. Diz o filósofo Hobbes, “minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Ao cotejar essa frase de Hobbes com um texto da Marilena Chauí (2006), podemos dizer que o motivo da declaração dos direitos – direitos humanos – baseia-se no fato de que na sociedade moderna os homens são marcados pelo medo recíproco e pelo medo da arbitrariedade da lei. Se na aristocracia o medo se opunha a areté do guerreiro, “o medo vicio dos covardes, aparece como excepcional e vergonhoso entre os aristocratas” (CHAUÍ, 2006), com o advento da sociedade burguesa o campo das virtudes, valores e representações é ressignificado, e o medo passa a ser “um sentimento comum a todos os homens” (CHAUÍ, 2006).
A universalização do sentimento do medo é marca de um de uma sociedade que se baseia na ideia de igualdade de direitos, não de uma sociedade garantida pelo poder divino, no qual o poder emana do alto e o governante, seu representante na terra, numa espécie de 4º poder, faz com que o poder divino que detém atenda sua própria vontade, ou “como diziam os juristas medievais: ’o que apraz ao rei tem força de lei’” (CHAUÍ, 2006).
Na sociedade burguesa a ordem divina desaparece e as relações hierárquicas e estáticas medievais tornam-se relações entre indivíduos, sem a mediação divina e baseadas na lógica das teorias do contrato social. Se no período medieval os homens temiam a Deus e ao diabo, agora, com a perda dessa ordem divina e a consciência hobesiana de que “o homem é lobo do homem”, a vida social, política e histórica passam a ser entendidas como obra do próprio homem. Nessa sociedade marcada pelo medo recíproco entre os homens torna-se necessário um medium entre as relações humanas e acima delas, que garanta direitos e deveres na vida gregária, com poder para o uso legal da força (WEBER) e esse ente é o Estado. Assim,
Na versão moderna dos direitos do homem, os homens são ditos portadores de direitos por natureza (direito natural) e por efeito da lei positiva (direito civil) instituída pelos próprios homens. Essa diferença é de grande envergadura porque nos permite compreender uma prática política inexistente antes da modernidade e que explicita, significativamente, em ocasiões muito precisas: trata-se da prática da declaração dos diretos. (CHAUÍ, pág.94, 2006).
Em sociedades marcadas pelo poder divino não havia necessidade de declarar direitos, pois isso só surge quando deixa de ser evidente para todos os homens que eles são portadores de direitos e de deveres e deixa também de ser evidente o fato de todos os homens reconhecerem os direitos. Os direitos precisam ser declarados para que a alteridade se preserve do lobo que pretende devorá-la. Revela Chauí:
a existência da divisão social (por exemplo, os grandes e o povo em Maquiavel, as classes sociais em Marx) permite supor que alguns possuem direitos outros não. A declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político de todos. Esse reconhecimento e esse consentimento dão aos direitos a condição e a dimensão de direitos universais. (CHAUÍ, pág.95, 2006).
Afinal, não é por acaso que os direitos foram declarados em épocas onde a barbárie da intolerância se instaurou, haja vista, por exemplo, que a Declaração Universal dos Direitos humanos de 1948, foi após a segunda guerra mundial, após a Alemanha nazista, após o medo desse cenário desumano.
Dirão muitos que um regime político é livre ou republicano quando nele os cidadãos agem em conformidade com a lei porque se reconhecem como origem ou como atores das leis segundo seus direitos; e será tirânico o regime político no qual os cidadãos obedecem às leis por medo dos castigos, sendo por isso tomados como escravos, uma vez que, perante o direito, é escravo aquele que vive sob o poder de outro homem e realiza os desejos de outrem como se fossem os seus próprios. (CHAUÍ, pag. 97, 2006).
Onde há medo há injustiça, ilegalidade, tirania, mas também há capacidade de uma contra-resposta grávida de transformação social, a partir dos direitos. A homofobia e todas as formas de violência e de medo que ela produz ao gerar intolerância, violência, ilegalidade e tirania heteronormativa, fere um dos pilares dos direitos humanos, isto é, a razão, garantidora do esclarecimento e dissipadora dos preconceitos, da ideologia, da dominação, da ignorância e das fantasias imaginárias, que destroem a alteridade.
Uma vez declarados, os direitos precisam ser reconhecidos e respeitados. Além disso, o fato do Estado não ter declarados certos direitos novos, não implica dizer que eles não existam, pois há direitos para além do Estado e até mesmo contra o Estado, até que o Estado, através do despertar ético de seus membros, passa a reconhecer e declarar esses novos direitos, como é o caso da tipificação da homofobia no Brasil.
De um lado a liberdade e a dignidade da pessoa humana (Direitos Humanos de primeira geração) universalmente dadas – o direito dos homossexuais são universalmente dados – e do outro o Estado com o dever de garanti-los em suas universalidades e não submetê-los ao arbítrio e ao totalitarismo homofóbico. Cabe ao Estado de Direitos a garantia dos direitos individuais, sociais, econômicos, políticos, culturais em sua universalidade, haja vista que a cidadania implica em garantir direitos e liberdades, contra toda forma de opressão e de supressão dos direitos da pessoa humana em sua totalidade física, psíquica, moral, sexual e cultural. Caso isso não ocorra, corremos o risco de experimentarmos o que nos mostra Marilena Chauí:
As declarações de direitos afirmam mais do que a ordem estabelecida permite e afirmam menos do que os direitos exigem, e essa discrepância abre uma brecha para pensarmos a dimensão democrática dos direitos. Nessa brecha, poderemos também ver a nova relação entre medo e direitos humanos. (CHAUÍ, pag. 104, 2006).
3. Reflexões Sobre A Homofobia
De acordo com os estudos de Daniel Borrillo (2010), a homofobia a uma atitude de preconceito, aversão e hostilidade contra as homossexualidades. Essa atitude é caracterizada por um somatório de sentimentos negativos, tais como medo, ódio, desprezo, agressividade, desdém em relação aos que não se enquadram no modelo heteronormativo. Concatena-se a essa dimensão individual a dimensão social desse preconceito, na medida em que se sabe hoje que é pouco limitar esse preconceito a esfera individual das fobias, haja vista que esse termo foi ganhando ao longo dos tempos, novos sentidos semânticos, políticos e ideológicos, que o insere também em uma estratégia de controle social, na qual se soma as tentativas de estabelecerem limites claros e bem definidos sobre a idéia de gênero. A complexidade dos fatores intrínsecos a homofobia faz com que esse preconceito ultrapasse as fronteiras das dimensões psíquico-individuais e se estenda as formas de homofobia institucional, jurídica e social ( PRADO, 2010, p.7-8 in BORRILLO, 2010).
A homofobia é um preconceito resistente, do qual deriva ideologias e atitudes discriminatórias, com claro intuito de destruir a alteridade, de negar e de eliminar o outro, visto como uma ameaça ao próprio ser do homofóbico, que como melhor defesa utiliza-se de várias formas de ataque e de violência que visam em última instância à morte do outro, a eliminação da diversidade sexual e da alteridade. Como toda forma de preconceito, a homofobia reconhece a diferença, mas não faz dessa percepção um comportamento de indiferença, mas de discursos e práticas que resultam níveis diversos de estigmas e de agressões, que vão das formas de violência física as formas de violência simbólicas. A homofobia universaliza os direitos heteronormativo e transforma as homossexualidades em escravas desse poder homofóbico, que determina um único padrão a ser seguido.
Lugar-comum nos insultos, nas piadas, nas diversas formas de sarcasmos e caricaturas, bem como na linguagem do senso comum, a homofobia sempre representa as homossexualidades como algo ridículo, asqueroso e motivo de escárnio.
Sobre a injuria, explicita Borrillo, ao citar a seguinte passagem de D. Éribon:
[…] as expressões ‘veado nojento’ (‘sapatão sem vergonha’) estão longe de serem simples palavras lançadas ao vento, mas agressões verbais que deixam marcas na consciência, traumas que se inscrevem na memória e no corpo (de fato a timidez, o constrangimento e a vergonha são atitudes corporais resultantes da hostilidade do mundo exterior). E uma das conseqüências da injúria consiste em modelar a personalidade, a subjetividade e o próprio ser de um indivíduo. (ÉRIBON, apud BORRILLO, pág. 25, 2010).
A homofobia a todo o momento monta guarda na cancela para vigiar, controlar e disciplinar as fronteiras de uma hierarquia sexual na qual a heterossexualidade lidera soberana, bem como para punir as homossexualidades, devido ao medo e a angústia de dissolução do modelo heteronormativo. “Aceita na esfera íntima da vida privada (vale lembrar que nem sempre aceita), a homossexualidade torna-se insuportável ao reivindicar, publicamente, sua equivalência à heterossexualidade” (BORRILLO, pág.17, 2010).
Enquanto preconceito específico a homofobia carrega alguns traços próprios, como na família, os pais ao perceberem a orientação sexual diferente de seu filho ou de sua filha, ficam incomodados, inquietos, o que demonstra que “se existem reações virulentas contra gays e lésbicas, a homofobia cotidiana assume, sobretudo, a forma de uma violência do tipo simbólica” (Bourdieu, 1988, apud Borrillo, p. 22, 2010). Grifo nosso. Há inclusive diante disso um déficit em relação às experiências afetivas entre o desenvolvimento do adolescente com orientação heterossexual e o adolescente com orientação homossexual.
A tentativa de construção de uma “normalidade sexual” permite interpretar que a homofobia de fato ultrapassa as fronteiras dos preconceitos em relação às homossexualidades e tenta também manter o controle da idéia dos gêneros, através da ideologia do sexismo:
O sexismo define-se, desde então, como a ideologia organizadora das relações entre os sexos, no âmago da qual o masculino caracteriza-se por sua vinculação ao universo exterior e político, enquanto o feminino reenvia à intimidade e a tudo o que se refere à vida doméstica. A dominação masculina identifica-se com essa forma específica de violência simbólica que se exerce, de maneira sutil e invisível, precisamente porque ela é apresentada pelo dominador como natural, inevitável e necessária. O sexismo caracteriza-se por uma constante objetificação da mulher. Como sublinha P. Bourdieu. (Borrillo, pág.30, 2010).
Na medida em que o sexismo naturaliza e hierarquiza as sexualidades, ele define o fundamento da homofobia e justifica sua existência (Cf. Borrillo, 2010). Ao colocar quase que em condições de sinonímia o sexo e o gênero, o sexismo “perpetua o que a poeta e crítica feminista Adrienne Rich chamou de ‘heterossexualidade compulsória’ – a ordem dominante pela qual os homens e as mulheres se vêem solicitados ou forçados a ser heterossexuais” (SALIH, pág. 71, 2012). A “heterossexualidade compulsória” será recorrente nas análises da antropóloga e filósofa Judith Butler (BUTLER, 2012).
Cria-se assim uma estratégia política estruturada sob a ideologia de uma normalidade sexual em que sexo e gênero ficam harmonizados no padrão binário masculino/feminino e ancorados na superioridade biológica dos comportamentos heterossexuais. Explicita Borrillo:
A heterossexualidade aparece, assim, como o padrão para avaliar as outras sexualidades. Essa qualidade normativa – e o Ideal que ela encarna – é constitutiva de uma forma específica de dominação, chamada heterossexismo, que se define como a crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a heterossexualidade ocupa a posição superior. Todas as outras formas de sexualidade são consideradas, na melhor das hipóteses, incompletas, acidentais e perversas e, na pior, patológicas, criminosas, imorais e destruidoras da civilização. (BORRILLO, pág.31, 2010).
A homofobia, bem como suas bases ideológicas do sexismo e do heterossexismo – ambos com várias máscaras – recorrem, de forma mais sofisticada, ao discurso das diferenças, onde buscam delinear as diferenças entre heterossexualidade e homossexualidade. Abandonando a lógica biologizante e hierárquica, a versão mais “evoluída” do heterossexismo apóia-se na idéia das diferenças, “reconhece” a pluralidade das sexualidades, para assim fazer valer ainda mais a lógica heterossexista.
Do mesmo modo que em relação às novas formas de racismo (Taguieff,1990;1997), o heterossexismo diferencialista parece descartar o princípio do superioridade heterossexual em benefício do princípio da diversidade das sexualidades. Em razão da diferença, e não de qualquer vontade normalizadora, é que foi possível justificar um tratamento diferenciado de gays e lésbicas, privando-os, em particular, do direito ao casamento, à adoção ou às técnicas de reprodução assistidas (BORRILLO, pág.31, 2010).
É em face dessa realidade e mais que isso, percebendo o caráter ideológico, controlador, punitivo, preconceituoso e nada explicativo do heterossexismo, que autores como Judith Bulter propõe a suspensão da idéia de gênero, tema atual da antropologia jurídica. É necessário reforçar que, segundo Borrillo, o heterossexismo diferencialista é uma forma de homofobia, que agora se veste de maior sutileza, numa espécie de tecnologia do poder da homofobia. A lógica diferencialista distingue com rigor e assim produz argumentos homofóbicos. Explicita Borrillo que, “(…) a argumentação diferencialista – utilizada outrora, a fim de privar as mulheres de seus direitos cívicos – foi evocada, igualmente, pela Suprema Corte dos EUA, até meados da década de 1950, para homologar a inferiorização dos negros com base na diferença racial (Brown, 1954)”. (BORRILLO, pág. 32, 2010).
A homofobia alimenta-se também do discurso das diferenças, da periculosidade, elaborada a partir da construção de seres e “realidades” imaginárias (OTONI in MAGALHÃES; MATOS), por exemplo, o risco da não propagação da espécie – se assim fosse, deveria ser proibida a vida celibatária, casais estéreis sem tratamento ou sem adoção, obrigatoriedade da reprodução assistida, proibir métodos contraceptivos, bem como proibir qualquer forma de aborto (BORRILLO, 2010) – e alimenta-se da humilhação social, que é recorrente para as formas de organização social e política, “a humilhação vale como uma modalidade de angústia e, nesta medida, assume internamente – como um impulso mórbido – o corpo, o gesto, a imaginação e a voz do humilhado” (GONÇALVES FILHO in PRADO e JUNQUEIRA, pág.65, 2011). Explicitam esses autores que:
a homofobia pensada com base na humilhação, pode ser mais bem compreendida em suas varias facetas, pois se institui como um regime de coerção às normas de gênero e de interiorização, dado seu aspecto de internalização e angústia individual. Fenômenos como esse cumprem o ditame ideal da opressão, pois garantem não só uma exclusão social, mas também confirmam e legitimam a exclusão por meio da angústia e da humilhação. [PRADO e JUNQUEIRA in VENTURIi, BOKANY (organizadores), pág.65, 2011].
Percebe-se que o problema não é a diversidade sexual ou as homossexualidades, mas a homofobia. Mas qual é a origem da homofobia? O elemento ideológico de sexo não-natural formulado pelo pensamento judaico-cristão será ponto chave da ideologia homofóbica. “As fontes do heterossexismo e da homofobia encontram-se, sem qualquer dúvida, na concepção sexual do pensamento judaico-cristão”. (BORRILLO, pág. 44, 2010). A vivência da sexualidade sem fins reprodutivos e formas sexuais estéreis como a homossexualidade passa a ser considerada, dentro da lógica cristã, como expressão do pecado contra a natureza.
Ao apoiar-se em uma leitura incompleta e preconceituosa dos textos bíblicos, o cristianismo – desde os Padres da Igreja até a teologia moderna, passando pela Escolástica e pela tradição canônica – não deixou de transformar o homossexual em um pária suscetível de comprometer os próprios alicerces da sociedade (Foucault, 1999). (BORRILLO, pág. 44-45, 2010).
O discurso religioso passa a condenar as homossexualidades e a dissimular qualquer sinal das mesmas no texto bíblico, como por exemplo, se por uma lado é “obrigatório lembrar o castigo impiedoso infligido a Sodoma e Gomorra, (por outro) conviria silenciar as intensas relações – sinal de uma homofilia latente – entre figuras bíblicas, tais como Davi e Jônatas (Primeiro Livro de Samuel 18, 20:41; Segundo livro de Samuel 1,23 e1,26), Rute e Noemi (Livro de Rute 1, 16-17)…” (BORRILLO, pág. 45, 2010).
Embora houvesse preconceitos sexistas nas sociedades gregas e romanas, sabe-se que “elas nunca caíram no heterossexismo peculiar da tradição judaico-cristã” (BORRILLO, pág. 46, 2012). Havia nessas civilizações ocidentais até mesmo certa função social em relação às experiências homoafetivas, que são expressas inclusive nos textos literários, “de Safo a Anacreonte, de Téognis a Píndaro, as paixões entre pessoas do mesmo sexo inspiraram belíssimas páginas da literatura na antiguidade” (BORRILLO, pág. 47, 2010).
Todavia, com a moral judaico-cristã as relações homoeróticas passam a ganhar uma nova conotação, sobretudo porque a heterossexualidade passará a ser a única reconhecida e vista como natural e consequentemente normal. Diante dessa nova lógica, vemos com Borrillo que se iniciam as condições para a construção da ideologia da homofobia. “Ao outorgar esse caráter natural, em conformidade com a lei divina, às relações sexuais entre pessoas de sexo diferente, o cristianismo inaugurou, no Ocidente, uma época de homofobia, totalmente nova, que ainda não havia sido praticada por outra civilização” (BORRILLO, pág. 48, 2010).
Doravante a influência do pensamento judaico-cristão, desde o Império Romano tem-se a caça as pessoas do mesmo sexo, pois as homossexualidades passam a ser vistas como nocivas ao homem. As justificativas baseiam-se sempre no texto bíblico, que vão desde a história de Sodoma no livro de Gênesis até os textos paulinos.No livro de Levítico 18,22 encontra-se a seguinte passagem: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher, é abominação”, somam-se a essa passagem do Antigo Testamento outras como Gênesis 19, 4-6; Isaías 1,9;3,9; Ezequiel 16, 46-51; Jeremias 23;14. Explicta Borrillo que “a história terrificante de Sodoma no livro do Gênesis, assim como as prescrições lapidares do Levítico, constitui a prova incontestável do ódio manifestado na bíblia contra os homossexuais masculinos e femininos” (BORRILLO, pág. 48, 2010).
Há uma explicação para a postura do povo de Israel em relação às homossexualidades, segundo os estudos de Borrillo, que mais tarde, embora não mais dentro das mesmas preocupações do povo de Israel, persistirá como um forte argumento para justificar a homofobia. Para o povo do Antigo Testamento há duas preocupações, primeiro em relação à sobrevivência da comunidade dos eleitos e segundo a conservação da sua cultura, o que justificaria a intolerância a qualquer sexualidade que não tivesse por escopo a procriação, não só a homossexualidade, mas também a masturbação e as relações heterossexuais sem fins reprodutivos.
Em estados não laicos e fundamentalistas a homofobia agrava-se numa lógica de total violência. Vejamos o discurso recente do aiatolá Musava Ardelsili na Universidade do Teerã (muito próximo do “Martelo das Bruxas” ocidental):
Para os homossexuais, o Islã prescreve as mais severas punições… Depois de ter sido estabelecida a prova em conformidade com a charia, convirá prender a pessoa, segurá-la de pé, dividi-la ao meio com uma espada e corta-lhe a cabeça ou rachá-la ao meio de cima para baixo. Ele (ou ela) vai desabar no chão…Depois de verificar sua morte, convirá fazer uma pira, em cima da qual deve ser colocado o cadáver para ser queimado, ou, então, transportá-lo para um monte e lançá-lo no precipício. Em seguida, os pedaços do cadáver deverão ser reunidos e queimados. Ou, então, convirá escavar um buraco, ascender uma fogueira e lançá-lo (a) vivo (a) dentro desse buraco. Não existem tais punições para outros crimes. (AMNESTY INTERNATIONAL, 1988, P.32-33 APUD BORRILLO, PÁG. 108, 2012).
No Brasil práticas homofóbicas se estendem aos discursos religiosos de determinados lideres, que dão publicidade midiática aos seus discursos homofóbicos, bem como situações graves de grupos organizados.
“Em São Paulo, praticada por grupo de valentões conhecidos como ‘carecas do ABC’ ou skinheads. Em geral procedentes da classe média baixa, sua hostilidade dirige-se contra nordestinos, negros, judeus e homossexuais e chega a provocar agressões. Entre elas a de maior repercussão foi a que vitimou o adestrados de cães Edson Néris da Silva, atacado na praça da República (centro de São Paulo), na madrugada de 6 de fevereiro de 2000. Edson passeava de mãos dadas com Dario Pereira Neto, quando foram vistos e cercados pelos skinheads. Dario conseguiu fugir, mas Edson sofreu espancamento mortal…mais recentemente…um bando de skinheads implicou com as jaquetas e os penteados de dois rapazes e os intimou, com ameaças de morte, a saltar do trem em movimento, em Mogi das Cruzes…” (GORENDER, págs.125-126, 2004).
Mais recentemente, destacamos a pesquisa sobre homofobia no Brasil, divulgada em “Diversidade sexual e homofobia no Brasil” organizado por Gustavo Venturi e Vilma Bokany, publicado em 2011 pela Fundação Perseu Abramo e a Fundação alemã Rosa de Luxemburgo Stiftung. Esse livro é o resultado de uma grande pesquisa, patrocinada pelas editoras citadas, que também o publicaram no Brasil e revela que 90% dos entrevistados são homofóbicos. A princípio a pesquisa contou com o seguinte recorte:
… uma mostra do survey nacional – probabilística nos primeiros estágios (sorteios de municípios, dos setores censitários, dos quarteirões e dos domicílios), combinada com controle de cotas de sexo e idade (Censo 2000, Estimativa 2005, IBGE) para a seleção dos indivíduos (estágio final) contou com 2014 entrevistas dispersas em 150 municípios (estratificados em tercis regionais – municípios pequenos, médios e grandes) representativos das cinco macroregiões do país (sudeste, Nordeste, Sul, Norte e Centro-Oeste). (VENTURI; BOKANY, pág.13, 2011).
É muito significativo um dos dados da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, citada anteriormente, na qual é revelada que as instituições de maior destaque no exercício da homofobia são a escola e a família. Vejamos o comentário desse resultado por Marco Aurélio M. Prado e Rogério Diniz Junqueira:
Quando pensamos a difusão de representações homofóbicas, a igreja é a primeira instituição que nos costuma vir a mente, pois há razões de sobra para isso. No entanto, entre as diversas instituições, um dos locus privilegiados de (re)produção e disseminação e, ao mesmo tempo, de enfrentamento e desestabilização da homofobia é a escola … A pesquisa da FPA mostra que a família e a escola figuram como os piores espaços de discriminação homofóbica…São dados que reiteram outras pesquisas realizadas em diversas capitais brasileiras durante a parada LGBT, nas quais família e escola se revezam como o primeiro e o segundo pior espaço de discriminação homofóbica. (PRADO; JUNQUEIRA, pág. 59 in VENTURI; BOKANY, 2011).
Não por acaso Bourdieu demonstra a alta capacidade moralizante de estruturas formais que são a escola e a família (ALMEIDA, 2012, pág.48). Fica claro que a instituição escola e os seus modelos de educação é um espaço homofóbico, de discriminações, violências e intolerância às diversidades sexuais. Dentro dessa perspectiva e relacionado-a com o bullyng merece também destaque a especificidade do bullyng homofóbico.
Se por um lado o bullyng refere-se a uma situação de privilégio e de poder, “que se manifesta com comportamentos violentos e formas de prevaricação que intimidam as pessoas mais fracas (…) bem como a vontade decidida de causar dano, a assimetria de relação (na qual uma das duas partes é marcadamente mais fraca que a outra) e a persistência no tempo das prevaricações” (MURATORI, 2007, pág.72-73), O bullyng homofóbico “não é a mesma coisa que as outras espécies de bullyng. Ele se baseia no desvio percebido das normas de gênero e sexuais, e na superioridade percebida da heterossexualidade” (LOUTZENHEISTER;MOORE, pág.181 apud APLE, AU E GANDIM, 2011).
Nesse sentido percebe-se que no campo da educação há um ambiente escolar hostil as homossexualidades, marcado por uma ideologia heteronormativa (=pressuposto da heterossexualidade como norma), homofóbica e geradora de assédios, violências e agressões oriundos da não conformidade ao gênero ou a orientação sexual (LOUTZENHEISTER;MOORE APUD APLE, AU E GANDIM, 2011).
Essa realidade demonstra que no âmbito educacional há o predomínio do poder da heterossexualidade como dominante e privilegiada, criando-se assim um padrão heteronormativo, no qual a homofobia é alimentada por múltiplos atores que incluem, entre outros, a construção do currículo, os livros didáticos, a pedagogia institucional, os administradores escolares, alunos, alunas, professores, professoras, familiares e a própria comunidade, incluindo a política, o Estado, bem como os recursos governamentais.
A homofobia faz com que a comunidade LGBT tenha maior índice de desistência escolar, além de depressão, infecções por HIV/AIDS, suicídio. Diante de uma sociedade homofóbica torna-se necessário esclarecer que ninguém se define por sua orientação sexual, haja vista que a questão antropológica fundamental na qual fundamenta-se todo ser humano, diferentemente dos animais, é sempre abertura, possibilidade, enfim liberdade.
4. A Desconstruçãoda Ideia De Gênero Em Judith Butler
Lembremos a filósofa Butler, que questiona o que de fato é subversivo e o que consolida o poder, embora opte por colocar sob suspeita qualquer tentativa de resposta pronta e acabada. Butler empenha seu pensamento em discutir as formas pelas quais o sujeito é descrito e constituído, investigando por que o sujeito é como se apresenta e sugere que é possível “fazer com que modos alternativos de descrição estejam disponíveis dentro das estruturas de poder” (SALIH, pág.13, 2012).
Sua obra esforça-se por desestabilizar a categoria sujeito, o que denomina de “uma genealogia crítica das ontologias de gênero”. Butler discute a formação do sujeito dentro dos parâmetros das estruturas de poder sexuadas e generificadas (SALIH, pág.18, 2012). Na esteira de Foucault, Butler rejeita a ideia de que o sexo e o gênero são biologicamente determinados, mas desmonta a concepção de que gênero é essência, substância. O sexo e o gênero são construções do discurso, elaboradas no tempo e nas culturas. Nesse percurso Butler irá investigar a questão da “normalidade” sexual, mais que isso, “em vez de supor que as identidades são autoevidentes e fixas como fazem os essencialistas, o trabalho de Butler descreve os processos pelos quais a identidade é construída no interior da linguagem e do discurso” (SALIH, pág.21, 2012).
Para isso, Butler caracteriza sua análise como genealógica – na esteira de Foucault – e diz: a genealogia não é a história dos eventos, mas a investigação das condições de emergência (Entstehung) daquilo que é considerado como história: um momento de emergência não passa, em última análise, de uma fabricação” (BUTLER apud SALIH, pág.21, 2012).A investigação genealógica de Butler sobre a constituição do sujeito argumenta que o sexo e o gênero são efeitos – não causas – “de instituições, discursos e práticas; em outras palavras, nós, como sujeitos, não criamos ou causamos as instituições, os discursos e as práticas, mas eles nos criam ou causam, ao determinar nosso sexo, nossa sexualidade, nosso gênero” (SALIH, pág.21, 2012).
Se Simone de Beauvoir havia dito que “ninguém nasce mulher: torna-se uma mulher”, Butler acolhe a intuição inicial da filósofa francesa e propõe a desconstrução da ideia de gênero, entendido como performatividade. Para Butler, “não há nada em sua explicação (Beauvoir) que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (BUTLER, pág.27, 2012). Gênero é performatividade, a identidade de gênero não é uma performance, pois essa pressuporia, como na representação teatral, um ator consciente por detrás da personagem, uma performance. (BUTLER, 2012). Isso nos permite afirmar que “a personalidade homossexual não existe” (BORRILLO, pág.120, 2012). Discursos de caracterização são falsos, pois negam a liberdade de todo ser humano, além de serem perversos. Nesse sentido,
A via da não discriminação e da repressão das violências contra os gays e lésbicas constitui uma salvaguarda não só para as vítimas, mas também contra qualquer tentação identitária: o dever de proteção relativamente a gays e lésbicas não se baseia, de modo algum, em qualquer filiação a uma ‘natureza’, ‘essência’ ou ‘grupo’. Por conseguinte, a homofobia do ‘verdugo’ – e não a homossexualidade da vítima – é que deve tornar-se o objeto de qualificações jurídicas (BORRILLO, pág.120, 2012).
5. Conclusão
Diante do medo gerado pela homofobia e de suas implicações, vale a luta pelos direitos e a tipificação desse preconceito como crime no Brasil. Com a criminalização da homofobia poder-se-á delegar ao Estado o poder do “uso legal da força”, para falar como Weber, nas práticas homofóbicas. Essa mudança é urgente e fundamental na história da democracia brasileira. Quem sabe assim o Brasil não poderá deixar no campo da memória (para não esquecer) e da história (porque passado) a frase de Michael Moore, que diz que “Os direitos dos homossexuais se constituem na última fronteira dos direitos civis” (MOORE apud RODRIGUES apud VENTURI; BOKANY, 201). Há motivos para reconhecer avanços na cidadania LGBT no Brasil, como no histórico 5 de maio de 2011quando os ministros do Supremo Tribunal Federal –STF, em unanimidade, reconheceram a união estável entre casais do mesmo sexo no Brasil. Doravante, os casais homossexuais passaram a constituir-se famílias, em condições paritárias de direitos em relação aos casais heterossexuais com união estáveis. A graduação histórica da conquista brasileira contra a homofobia passa necessariamente pela tipificação dessa violência.
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[1] Doutorando em Educação pela FAI/UFMG e Mestre em Literatura pela PUC/MG, Graduado em Filosofia pela UFMG, Professor do Centro Universitário Newton Paiva.