Gustavo Henrique Carvalho da Mata[1]
RESUMO: O positivismo jurídico e o pós-positivismo compreendem teorias filosóficas acerca do direito, especialmente no que tange à sua validade e à sua interpretação, assim como aos seus fins. A inclusão da moral, tida como valores sociais, e dos princípios como normas vinculantes que servem como base do ordenamento jurídico, consiste, resumidamente, no ponto central destas discussões teóricas. Nos dias atuais, o pós-positivismo vem influenciando doutrinadores e a jurisprudência na interpretação e aplicação do direito, superando, assim, a idéia de que a segurança jurídica seria vulnerada ao se admitir uma leitura do direito embasada nos valores e nos princípios. Também no campo da tributação, os valores e os princípios não só residem na criação e validação das regras postas, como também na sua interpretação, o que demonstra uma crescente adoção dos pensamentos pós-positivistas no direito tributário, orientando a jurisprudência que vem se formando.
PALAVRAS-CHAVE: Positivismo; pós-positivismo; filosofia do direito; validade; interpretação; aplicação; moral; valores sociais; princípios; normaa; regras; direito tributário; tributação.
ÁREAS DE INTERESSE: Direito público; Direito Tributário.
I – INTRODUÇÃO
O direito tributário se caracteriza por uma vasta normatização, com a existência de inúmeras regras tributárias editadas diuturnamente, que vão de leis a portarias administrativas, passando por decretos, convenções e acordos internacionais, instruções normativas, dentre outros atos com força regulamentar.
Este complexo normativo-regulamentar visa colocar em prática a necessidade arrecadatória bem como garantir ao contribuinte o respeito aos seus direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.
Para que se efetive a arrecadação, faz-se necessário analisar a validade das regras postas bem como interpretá-las. Neste ponto, as teorias do direito, em especial o positivismo jurídico clássico e o pós-positivismo, apresentarão abordagens distintas acerca da validação e interpretação do direito, o que pode se dar de forma afastada dos valores sociais quando não inseridos na norma positivada, ou de forma a se incluir, em tal análise, estes valores sociais. Neste mesmo contexto o papel dos princípios também é variável, os quais, numa primeira perspectiva (positivista), podem ser tidos como integradores do sistema jurídico, e numa segunda perspectiva (pós-positivista), podem ser tidos como normas vinculantes necessárias para a concretização da justiça, orientadores das regras escritas. Assim, o próprio conceito de direito, e a necessidade de se buscar a justiça, variam conforme tais correntes filosóficas.
Este artigo visa, com isto, demonstrar, através de uma rápida abordagem, as características básicas do positivismo jurídico e do pós-positivismo, defendendo-se a adoção da teoria pós-positivista como necessária nos dias atuais, sobretudo nas questões ligadas à tributação.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Uma rápida aobrdagem sobre o positivismo e o pós-positivismo
Temporalmente, o positivismo jurídico clássico orientou o pensamento jurídico-filosófico desde meados do século XIX até o final da 2ª guerra mundial. Surgiu em contraponto ao anterior jusnaturalismo e vem, após a 2ª guerra mundial, passando por transformações em vista do surgimento da teoria pós-positivista do direito, indicando o que vem se denominando como neoconstitucionalismo.
Em suma, o jusnaturalismo, ou direito natural, se baseava em valores atinentes à natureza humana, objetivando um direito ideal não posto pelos homens, mas advindo de circunstâncias naturais e divinas (o divino assegurando o exercício do poder estatal e embasando o direito) de forma que os valores, a morale a justiça são os pilares deste pensamento jurídico-filosófico.
Diante da insegurança e instabilidade causadas por concepções tão abertas do direito, e face à complexidade da vida humana a partir da segunda metade do século XIX, tornou-se premente o surgimento de nova corrente teórica capaz de proporcionar aos homens e às corporações (sujeitos de direito) uma segurança e estabilidade que proporcionassem o exercício de suas atividades, evitando-se surpresas e variações naturais.
Neste contexto, visando garantir maior objetividade do direito, este passa a ser posto pelo Estado (pelo homem), através de regramentos positivados que se aplicam de forma desvinculada da moral e dos valores próprios do jusnaturalismo. Surge então o positivismo como teoria do direito, através do qual a norma é posta e deve ser seguida, independente na análise moral acerca da aplicabilidade desta norma. Assim, o fato que a ela se subsume (à norma posta) deve ser por ela regido. O Direito passa a ser o “resultado da ação da vontade humana (direito posto e positivo), não decorrendo, portanto, da imposição de Deus, da natureza ou da razão” (CARNEIRO, 2011). Tem-se, então, uma concepção avalorativa do direito.
Afirmando este pensamento positivista, Hans Kelsen afirma que “a validade de uma ordem jurídica positivista é independente de sua concordância ou discordância com qualquer sistema moral” (KELSEN, 1995). Assim, o direito posto é formal e, independentemente de seu conteúdo ser justo ou não, deve ser observado e seguido.
Para o positivista clássico ou tradicional, não pode haver flexibilizações e relativizações da lei face aos princípios, à moral e ao senso de justiça (equidade). Assim, o consequencialismo não pode justificar uma decisão judicial. Em suma, não se discute se o que fora definido pelo direito é justo, posto que o direito definido é jurídico e deve ser aplicado (FERRAZ JR., 1981).Como se percebe, diante deste pensamento positivista, fechado e formalista, o direito passa a ser um fim em si mesmo, sendo estudado de forma apartada de outras áreas do conhecimento, bem como de conceitos metafísicos.
O positivismo foi de grande importância no momento histórico em que se buscava maior segurança e estabilidade. Contudo, nos tempos atuais, as relações travadas pelos homens e pelo Estado são extremamente complexas e variáveis, o que demonstra, muitas vezes, a impossibilidade de se aplicar o direito posto (positivado) aos casos concretos que surgem de forma a se atender aos anseios sociais, mesmo utilizando-se dos inúmeros métodos de preenchimento de lacunas criados pelo positivismo. Assim, a distância entre o direito posto e os sensos de moral (valores sociais)e justiça vem se alargando de forma crescente. Fora isto, vive-se uma crise de legitimidade dos representantes do povo, os quais elaboram as normas postas, pois, ainda que competentes do ponto de vista democrático (considerando-se somente a representatividade), nem sempre demonstram características éticas e aptidões técnicas para estabelecer regras que regularão as complexas relações do mundo atual. Assim, é crescente o pensamento de que o direito posto, positivado, não pode estabelecer uma única solução correta, já que várias soluções podem surgir ao se aplicar a norma ao caso concreto. Para tanto, devem entrar em análise os preceitos morais, valorativos e principiológicos, o que representa um afastamento do pensamento positivista tradicional ou clássico.
Consequentemente, surgem teorias filosóficas embasadas na moral (valores sociais), na equidade (senso de justiça) e nos princípios (tidos como normas, especialmente quando garantidores de direitos fundamentais). O direito válido não é mais, para esta corrente de pensamento, aquele formalmente posto, mas sim aquele formalmente posto que se encaixe nos preceitos morais. O direito deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um instrumento utilizado para atendimento dos anseios da sociedade, que são variáveis, o que praticamente impossibilita uma solução única advinda da norma, mas sim admite a existência de várias interpretações e soluções variáveis conforme o caso concreto.
Diversos pensadores contribuíram para este desenvolvimento do positivismo ao pós-positivismo, ora ainda sendo classificados como positivistas, mas abrindo caminho para o pós-positivismo, como é o caso de Herbert Lionel Adolphus Hart,[2], ora estabelecendo conceitos mais abertos acerca da validade e interpretação do direito, como é o caso de LonFuller e Ronald Dwoarkin (pós-positivistas).
Apenas para conceituar (embora dela discorde), DimitriDimoulis explica que:
A abordagem que defende a aplicação dos princípios constitucionais pelo julgador para encontrar – com ou sem ponderação – a solução correta é conhecida como neoconstitucionalista ou, especificamente no debate brasileiro, como pós-positivista. Tais termos indicam uma nova forma de ´viver` o direito e resumem-se à opção que definimos e criticamos como moralista.(DIMOULIS, 2011)
Tratando do positivismo clássico, NorbertoBobbio explica que para esta corrente de pensamento “poderá existir direito válido que é injusto e direito justo que é inválido”, sendo que o juízo de valor do direito deve ser afastado do campo da ciência jurídica(BOBBIO, 1995). Já para os pensamentos mais abertos, surgidos após a 2ª guerra mundial, a análise do valor do direito, da moral e a busca da justiça devem orientar a interpretação do direito e sua aplicação ao caso concreto, sendo requisitos de validade do direito posto.
Kelsen trata do pressuposto fundamental da norma demonstrando que a validade jurídica material de uma norma depende de um fundamento que lhe é dado por outra hierarquicamente superior, o que se caracteriza como constitucionalidade material. Embora Kelsen seja um positivista,este seu ensinamento é inegável e ainda pode ser adotado mesmo diante de pensamentos pós-positivistas. Mas a fundamentação de validade advinda de outra norma não pode ser, na visão pós-positivista do direito, o único requisito de validação a ser observado, devendo-se aplicar, também, a análise do valor da norma face aos anseios sociais (já que a norma existe para atendimento dos anseios sociais), bem como sua compatibilidade com os princípios, estando estes constitucionalmente positivados ou não. Portanto, não pode ser válido um direito injusto.
Nesta linha pós-positivista de relativização do direito, de forma a adequá-lo aos casos concretos, os princípios e a moral exercem importante papel na valoração e aplicação da norma, o que é exposto por importantes jus filósofos como o norte-americano Ronald Dworkin.
É de se ver que, inegavelmente, o pós-positivismo não desvaloriza segurança jurídica pretendida pelo positivismo, nem abandona a positivação. Muito pelo contrário, os novos pensadores do direito demonstram, com o que concordamos, que a segurança jurídica é alcançada quando se interpreta a norma escrita diante do caso concreto, fazendo com que, diante de análises valorativas e de sopesamentos se alcance a justiça. Em suma, a verdadeira segurança é alcançada pela aplicação da justiça, a qual se alcança quando a norma é posta e interpretada diante de seu contexto histórico, teleológico e sistemático analisado com base em conteúdos morais e sociais, os quais, por vezes, se demonstram através de princípios (que têm força normativa). A moral pode e deve ser aplicada, sendo introduzida no ordenamento jurídico, seja por atos normativos formais, seja por princípios.
Demonstrando que a segurança jurídica não é alcançada exclusivamente pela certeza do direito pretendida pelo positivismo, Heleno Taveira Torres, tratando das considerações de Dworkin, expõe que[3]:
A segurança jurídica não dependeria estritamente da certeza do direito, como conteúdo de legalidade, pois deve igualmente satisfazer aos princípios da moral que fundam direitos que estão vigentes na sociedade. Esses princípios revelar-se-iam pelo emprego da argumentação e na interpretação do direito, em uma busca do chamado ‘direito vivo’, identificado a partir da opinião pública, e que seria vinculante para o juiz, precedentes, as regras legais e até para a solução dos casos difíceis, o que justifica a busca pela resposta correta. Essa possibilidade seria suficiente para reduzir a insegurança da discricionariedade judicial e a ausência de valoração. (TORRES, 2011)
Neste contexto, o pós-positivista admite a adoção da moral e dos princípios na interpretação e aplicação do direito, de forma que as regras postas devem ser norteadas por tais normas (já que a moral e os princípios são tidos como integrantes do sistema jurídico, ainda que não positivadas).
Dworkin chega a indicar a inaplicabilidade de uma norma posta quando contrária aos princípios e à moral, ainda que os princípios e a moral não estejam inseridos em um texto positivado (CARNEIRO, 2007). Em suma, quando causa uma injustiça (que entendemos ser necessária uma grande injustiça), poderá haver o chamado julgamento “contra legem”, posto que a lei posta contraria uma norma principiológica que deve prevalecer. Cabe sustentar este entendimento lembrando que as regras postas são resultado de uma política dominante em dado momento, e não necessariamente da intenção da sociedade (e quanto mais intenção permanente). Assim sendo, quando uma regra posta se afasta dos anseios sociais, deve ser tida por ilegítima, ou, ao menos, não deve ser aplicada a um determinado caso concreto em que o resultado de sua aplicação causa grande e insustentável injustiça. Entendemos, contudo, que isto não pode levar à retirada da norma do ordenamento jurídico de forma definitiva, mas sim à sua inaplicabilidade em um determinado caso concreto. E havendo colisão entre os princípios orientadores de direitos fundamentais (ainda que não positivados na constituição), esta colisão deve ser solucionada pela técnica do sopesamento de valores aplicada ao caso concreto, como ensina Robert Alexy.
Seguindo este sentido, o neoconstitucionalismo, como explica Daniel Dix Carneiro, viabiliza “a adoção de métodos ou estilos mais abertos e flexíveis de hermenêutica jurídica, dentre os quais podemos destacar a ponderação e a abertura da argumentação jurídica à moral, sem que haja, contudo, o retorno às categorias metafísicas do jusnaturalismo” (CARNEIRO, 2011).
Assim, hoje, entendemos que para fins de hermenêutica, os métodos literal, histórico, teleológico e sistemático de interpretação devem ser conjuntamente analisados dentro de um pensamento pós-positivista do direito, embasando-se na moral, como valores sociais, e nos princípios, sempre tendo por fim os anseios da sociedade, o que faz com que o direito seja interpretado caso a caso, ainda que soluções diferentes surjam diante de cada caso concreto (considerando-se casos distintos na complexidade da vida moderna). Para tanto, deve-se ter em vista que a obediência de uma regra se baseia na aceitação desta regra pelos atores sociais (BILLIER, 2005). Assim, o paradigma pragmático de interpretação encontra lugar na medida em que expõe a interpretação como círculo hermenêutico que não afasta a segurança jurídica, mas considera a integridade e coerência do texto interpretado.
2.2. A aplicabilidade da teoria pós-positivista na validação e interpretação das normas tributárias
Pela leitura dos arts. 107 a 112 do Código Tributário Nacional não se percebe a impossibilidade de se adotar o pós-positivismo na interpretação das normas tributárias, até porque esta corrente teórica se aplica sobre o direito como um todo, não excluindo um ramo específico. É de se lembrar que o direito, inclusive o tributário, não existe por si só, e sim em função da sociedade, visando o atendimento dos anseios desta sociedade. Assim, uma visão mais “aberta” do direito tributário não é vedada.
Ademais, percebemos esta possibilidade de abertura no art. 108, que indica a possibilidade de utilização de princípios gerais e da equidade na interpretação e aplicação da norma tributária.
Entendemos que a definição da exação tributária, no que tange aos aspectos da hipótese de incidência[4], exige a adoção da literalidade legal, sem juízo de valores e de moral, até em respeito ao próprio princípio da legalidade que figura no texto constitucional como garantia fundamental do contribuinte. Aliás, os parágrafos do art. 108 estabelecem que a analogia não pode ensejar em tributação de fato não previsto em lei, e a equidade não pode ensejar em dispensa de recolhimento de tributo claramente previsto em lei. Contudo, isto não impede que em outras questões atinentes à norma tributária haja interpretação baseada em teorias mais abertas do direito, pós-positivistas, inclusivistas da moral e da equidade. Neste sentido, Ricardo Lobo Torres ensina que “a teoria de Dworkin tem extraordinária repercussão no campo tributário, o qual cita Paulo de Barros Carvalho dizendo que “os princípios são normas jurídicas carregadas de forte conotação axiológica” (TORRES, 2007).
Assim, salvo no que tange à definição dos aspectos da hipótese de incidência tributária, será possível uma interpretação da norma tributária embasada na teoria pós-positivista do direito. Para tanto, deve-se fazer uma interpretação com base nos valores sociais, considerando os objetivos históricos da elaboração da norma interpretada e contrapondo-os aos dias atuais, bem como observando a inserção desta norma em todo o sistema jurídico.
Corroborando com o entendimento acerca da adoção da teoria pós-positivista do direito no âmbito tributário está o inconteste fato de que os princípios, tidos por base do direito segundo esta teoria, orientam a constante elaboração de regras tributárias, estando muitos inclusive inseridos do texto constitucional como limitadores do poder estatal de tributar. Neste sentido, de forma mais ampla, o que abrange também o direito tributário, J. J. Gomes Canotilho ensina que:
Os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na ideia de direito (Larenz)… os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenéticafundamentante. (CANOTILHO: 2003)
A principal crítica à adoção da teoria pós-positivista, sobretudo no que tange às normas tributárias, seria a ventilada insegurança jurídica causada pela adoção de pensamentos mais abertos, embasados nos valores, especialmente no que tange ao atingimento das garantias patrimoniais. Contudo, a idéia de segurança jurídica, atrelada ao modelo liberal de Estado de Direito burguês, não é obtida somente através da análise positivista do direito. Por outro lado, numa abordagem positivista também há possibilidade insegurança jurídica (ANDRADE, 2006).
Como sugere Arruda de Andrade, no positivismo a insegurança decorre de tensões funcionais e metodológicas, como a inaplicabilidade da norma à complexidade da vida, “a incapacidade de analisar soluções diferenciadas para casos semelhantes”, a “dificuldade de explicar lacunas”, a “existência de conceitos indefinidos” e a “injustiça de normas regularmente produzidas”. Assim, o positivismo não é garantidor absoluto da segurança jurídica. Ademais, lembre-se, por oportuno, que a injustiça de uma lei causa mais insegurança (sistêmica) do que a relativização desta lei.
Por outro lado, em um contexto de Estado Social, no qual se diminui a separação entre Estado e sociedade, a atuação do judiciário, no que diz respeito à justiça na aplicação do direito, torna-se mais aberta, sujeitando-se à interferência da moral. Isto para que a cidadania social seja realizada. Como diz Ferraz Jr., “a responsabilidade do juiz alcança agora a responsabilidade pelo sucesso político das finalidades impostas aos demais poderes pelas exigências do estado social” (FERRAZ Jr., 1995). Assim, é na busca destas finalidades que se alcança a segurança jurídica, e se a norma posta não coaduna com tal finalidade em um determinado caso, esta norma deve ser afastada, ou aplicada de forma diferente, modulada, conforme o caso concreto. Isto vale também para as regras tributárias. “A segurança jurídica, nesses termos, passa a ser buscada antes na tentativa de se evitar a arbitrariedade da falta de regras, da ausência de possibilidade de discussão…” (ANDRADE, 2006). Assim, o engessamento do direito tributário não causa segurança jurídica, sendo esta obtida através da sua aplicação conforme os objetivos sociais e o senso de justiça, o que é variável conforme cada caso.
Cabe aqui relembrar que, como considera Dworkin, a segurança não depende estritamente da certeza do direito escrito, mas sim da satisfação da moral que é fundamento do direito. Ademais, a legislação tributária é marcada pela vasta gama de regras editadas e alteradas diuturnamente, o que, na visão da sociedade, acaba gerando insegurança, até porque muitas destas regras não se adequam ao sistema e/ou são incompreensíveis. Portanto, também por isto pode-se afirmar que o legalismo puro não garante segurança, podendo, em algumas situações, causar insegurança, a qual acaba por ser sanada através da adoção de valores e de princípios na interpretação deste confuso emaranhado normativo (leis, decretos, portarias, resoluções, instruções normativas, dentre outros). Assim, o pós-positivismo atua nestes casos de difícil solução.
Ora, um sistema jurídico, inclusive tributário, que não se baseia nos valores sociais (moral) e nos princípios não é um sistema jurídico lógico, capaz de ordenar a vida social. Esta moral do dever, chamada por Heleno Taveira Torres de moral básica da sociedade, é integrante peculiar do próprio direito.
Por diversas vezes encontramos em julgados do Supremo Tribunal Federal – STF e do Superior Tribunal de Justiça – STJ, decisões em casos tributários embasadas nos valores sociais, nos princípios (positivados ou não no texto constitucional, mas que integrantes do sistema como normas básicas) e na coerência e consequencialismo da decisão. Assim, por diversas vezes, estes tribunais deram à legislação tributária uma interpretação mais aberta, tendente a atender aos anseios sociais. Apenas para exemplificar, diversas são as decisões no sentido de que o conceito de “serviço hospitalar” contido na lei 9.249/95 em seu art. 15, inciso III, alínea “a”, não está restrito àquele prestado em hospitais, dentro destes nosocômios, mas abrangendo também aqueles que embora prestados por “não hospitais” ou fora de hospitais, exteriorizam natureza de serviço hospitalar (que não compreende mera consulta ambulatorial). Com isso, assegurou-se, através destas decisões, uma redução da carga tributária a qualquer pessoa jurídica que preste tais serviços (desde que cumpridos outros requisitos), não se limitando assim aos hospitais propriamente ditos. E qual fora a principal razão destas decisões? Fora o intuito de contribuir, através da redução tributária, com a redução dos custos destes importantes serviços de saúde prestados à sociedade brasileira, não distinguindo quem os presta, ou onde são prestados, mas sim pela sua natureza. A intenção da decisão fora, principalmente, facilitar o acesso ao serviços de atendimento à saúde humana. Assim, resta demonstrada, na nossa visão, a utilização da moral (dos valores sociais) como instrumento de interpretação da norma posta.
A norma tributária deve corresponder à vontade social, de forma que se a lei, friamente considerada, não atende a esta vontade, não é ela legítima.
Acerca da aplicação dos princípios no campo do direito tributário, é de se ver, como já exposto, que estes se apresentam como forma de limitação ao poder de tributar exercido pelo Estado, o que demonstra sua importância e predominância sobre as leis, corroborando, assim, com o pensamento pós-positivista do direito neste ramo tão marcado por atos normativos.Também no direito tributário os princípios devem ser vistos como normas jurídicas obrigatórias e vinculantes, orientadoras da elaboração legislativa, já que exteriorizam os valores da sociedade.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tradição positivista formalista sempre marcou a interpretação do direito tributário brasileiro. Não obstante a isto, a teoria pós-positivista do direito, que admite a moral e os princípios como base do ordenamento jurídico, utilizados não só para interpretar, mas também para validar o direito, vem ganhando força doutrinária e jurisprudencial, como procuramos demonstrar. O próprio texto constitucional, ao estabelecer os princípios como limitadores do poder de tributar estatal, e o CTN, permitem este entendimento.
Desta forma, devem os aplicadores do direito, notadamente os magistrados, preferir, sempre, uma interpretação garantidora de direitos fundamentais dos contribuintes, embasada na equidade e nos valores sociais, posto que, fora de uma perspectiva positivista clássica, o direito existe em função da sociedade, para esta e em proveito desta, devendo ser interpretado embenefício da sociedade, conforme os valores por ela aceitos.
Neste diapasão, a lei não pode ser a última norma, mas sim a sociedade. A lei não pode ser intransponível quando injusta, pois não é isto que a sociedade espera. Se a lei não é razoável, e se não atende aos anseios sociais, esta lei perde sua razão, não devendo ser aplicada, seja de forma geral, o que deve levar à sua retirada do ordenamento jurídico pelo legislativo ou judiciário, ou à sua adaptação, seja a um caso concreto. Isto vale para qualquer ramo do direito, inclusive para o tributário.
Finalizando, e visando demonstrar que a lei tributária não pode se sobrepor aos anseios sociais para garantir a eficiência e majoração da arrecadação, vale afirmar que “admitir que se criem presunções absolutas em nome da ‘eficiência’ da arrecadação, significa, na prática, sobrepor a finalidade arrecadatória sobre as demais finalidades consagradas no texto constitucional” (SAMPAIO: 2007).
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros, 2011.
ANDRADE, José Maria Arruda de. Legalidade tributária, segurança jurídica, pós-positivismo e a difícil relação entre política e direito. São Paulo: Thesis, ano III, v. 5, 2006.
BILLIER, Jean-Cassien. História da filosofia do direito; tradução de Maurício de Andrade. Barueri: Editora Manoele, 2005.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Editora Ícone, 1995.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional – 6ª Edição. Coimbra: Editora Almedina, 2003.
CARNEIRO, Daniel Dix. Artigo intitulado “O positivismo jurídico e sua evolução como pensamento: um histórico de sucesso ou de fracasso?”. Vitória: Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, 2011.
DIMOULIS, Dimitri. Artigo intitulado “A relevância prática do positivismo jurídico”. Revista Brasileira de Estudos Políticos n. 102. Belo Horizonte: 2011.
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. “Segurança Jurídica e Normas Gerais Tributárias”. Revista de Direito Tributário, n. 17/18. São Paulo: 1981.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1995.
SAMPAIO, Júnia Roberta Gouveia. O financiamento da seguridade social. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007.
TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
TORRES, Ricardo Lobo. Artigo intitulado “A jurisprudência dos valores”. Rio de Janeiro: 2007
WEISS, Fernando Lemme. Princípios Tributários e Financeiros. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.
[1]Advogado, especialista em Direito Tributário, mestrando em Direito Público, professor de Direito Tributário no Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
[2]Alguns destes pensadores positivistas, que não afastam por completo a moral da definição do direito, são classificados como positivistas inclusivistas ou includentes , ou até mesmo como positivistas moderados. Estes se diferem dos positivistas exclusivos ou excludentes, para os quis o direito não pode se valer de recursos externos ao ordenamento posto. Hart pode ser classificado como positivista inclusivista.
[3] Ressalte-se, no entanto, que Heleno Taveira Torres entende que estes ensinamentos de Dworkin “parecem corroborar os critérios de legitimidade do Common Law, ou legislação produzida para países com essa matriz sistêmica”, não se adequando à tradição do Direito Brasileiro. Contudo, este mesmo autor expõe que: “distintas correntes possam conhecer a Constituição e o Sistema Tributário mediante distintos métodos”.
[4] Os aspectos referidos são: aspecto pessoal (sujeitos da obrigação tributária), aspecto temporal (momento de nascimento da obrigação tributária), aspecto espacial (local de nascimento da obrigação tributária), aspecto material (o fato tributável) e aspecto quantitativo (definidor da quantia devida)