Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Marco Flávio de Sá[1]

RESUMO: O presente trabalho tem como escopo traçar um panorama acerca do conceito atual de contrato, partindo de uma análise histórica de tal instituto. Por meio da consideração das principais alterações ocorridas no conceito de contrato e seus respectivos momentos históricos, objetiva-se a compreensão das atuais características que o permeiam e da importância de tal instrumento jurídico para a manutenção da hodierna ordem social.

 

PALAVRAS-CHAVES: Contrato; conceito; evolução; função; social.

 

ÁREAS DE INTERESSE: Direito Civil

 

1. INTRODUÇÃO

A concepção de contrato remonta ao mais primitivo das sociedades. Com efeito, é praticamente impossível pensar o homem como ser social, sem que, de assalto, sobrevenha a idéia de um necessário e prévio ajuste de condutas, passível de viabilizar o estabelecimento de inter-relações entre os indivíduos que compõem a espécie humana.

Se a idéia de mútua cooperação pode ser creditada a outras espécies como fruto de um instinto comum de sobrevivência, para o homem, ser dotado de razão, ela não é cabível, dado que sua racionalidade possibilitou-lhe a compreensão do conceito de benefício.

As sociedades humanas sempre estiveram estruturadas em torno da idéia basilar de benefício. O homem passou do estágio da mera coexistência para a convivência por entender que seu semelhante, dotado das mesmas necessidades, e justamente por isso, dos mesmos objetivos, poderia se traduzir na solução para alcançar benefícios de maior relevância.

Da noção de benefício chegou-se à ideia de bem, que seria a materialização daquele, e da ideia de bem à concepção de patrimônio, como o conjunto ou acúmulo de bens da vida adquiridos, inicialmente, pelo somatório de esforços individuais em prol do bem comum. As sociedades em estágios primitivos de desenvolvimento sempre foram e ainda são essencialmente comunitárias.

Todavia, a despeito de sua racionalidade, o homem também é instinto. E se a razão o empurra para a mútua cooperação, o instinto pende sempre ao individualismo, a mais leve ameaça de privação de qualquer dos bens da vida.

Nesse contexto embrionário de um pacto social, a ideia de contrato como fruto do ajuste de vontades em prol da regulação de uma conduta futura, com o escopo de evitar o conflito e garantir a profusão dos bens da vida, soa como a alternativa natural.

Contudo, a tendência do homem para o individualismo ocasionou a mudança de foco do olhar lançado originalmente sobre os contratos, que abandonou a concepção de acordo natural para o bem comum, em prol da ideia de “comum-acordo” para a garantia do bem-estar individual.

O contrato é concebido como o resultado do consentimento negociado livremente entre duas partes iguais que fazem promessas recíprocas de comportamentos futuros. Este modelo está tão incorporado na cultura jurídica que é considerado “clássico”, assumido acriticamente e até considera o contrato como uma “coisa” existente fora das regras que o permitem. [2]

A ideia do contrato como fruto da sobreposição de vontades autônomas, destinadas ao estabelecimento de um senso comum – ou consenso – muito embora apenas tenha sido estruturada em bases científicas na Idade Média[3], amoldou-se de tal forma às vicissitudes da convivência social que, mesmo hodiernamente, é extremamente difícil estabelecer uma concepção de contrato que nela não se funde.

E é justamente esse o desafio que ora se apresenta àqueles que se ocupam de pensar o Direito: conceber uma nova idéia de contrato, centrada não exclusivamente no vínculo obrigacional que o teria ocasionado, mas também e principalmente, voltada para o bem comum que de todo e qualquer ajuste de condutas possa advir.

Seria, portanto, a primazia da função social do contrato, ou em outras palavras, a tentativa de retomada da essência do contrato, voltada para a obtenção do bem comum, por meio da consagração da contemporânea concepção de função solidária do contrato[4].

(…) o princípio da função social também encontra o seu fundamento constitucional no princípio da solidariedade, de acordo com o qual se exige dos contratantes e dos terceiros que colaborem entre si e respeitem as situações jurídicas anteriormente constituídas, (…).[5]

Não se confunda, porém, a primazia da função social do contrato com um precedente para a intervenção desmedida do Estado nos contratos. O Intervencionismo puro mostrou-se ineficaz aos anseios de uma sociedade globalizada e está praticamente abolido no mundo atual.

Sem dúvida, atualmente o Estado interfere no processo econômico, e por óbvio, nos contratos. Mas sua intervenção dá-se – ou ao menos deveria – tão-somente no intuito de coibir abusos, mediante o estabelecimento de regras que propiciem o desenvolvimento econômico e social, sem afetar de maneira injustificada, a liberdade de iniciativa entre os particulares.

 

2. DESENVOLVIMENTO

 

2.1. A evolução do conceito de contrato

O conceito de contrato, assim como a própria sociedade, sofreu inúmeras modificações através dos tempos. Por tal motivo, a consideração deste instituto, via de regra, passa pela análise de suas diversas nuances, nos diferentes períodos da evolução humana.

Contudo, a consideração eminentemente histórica dos contratos, não responderia a questões atuais, que exigem dos estudiosos abordagem específica, destinada à compreensão das diversas concepções contemporâneas de contrato.

O estudo dos contratos a partir desses dois critérios é proposto por Lorenzetti, ao estabelecer uma crítica ao modo pelo qual usualmente costumam ser abordados pela doutrina, que não leva em consideração as constantes mutações e os diferentes contextos em que o contrato é aplicado.

[…] A teoria contratual está estreitamente vinculada às idéias acerca de como a sociedade e o mercado devem ser organizados, e nesse sentido se pode falar de concepção do contrato. Nosso propósito é mostrar que estamos ante um conceito normativo mutável segundo os costumes e que denota vários pressupostos de fato diferentes. Desta perspectiva, estudaremos as concepções do contrato em diferentes períodos históricos (perspectiva diacrônica), e as distintas concepções atuais (perspectiva sincrônica).[6]

Seguindo a forma de consideração dos contratos proposta por Lorenzetti, cumpre de início abordá-los sob seu aspecto histórico. Para tanto, o ponto de partida é necessariamente o Direito Romano.

César Fiúza colaciona interessante observação sobre a origem da expressão contrato, termo que no Direito Romano arcaico, equivalia ao ato pelo qual o credor submetia o devedor a seu poder, em virtude do inadimplemento de uma obrigação. Seria o ato de contrair (contrahere), no sentido de restringir, apertar.[7]

O contrato no Direito Romano compreendia duas formas básicas, ambas provenientes de um mesmo gênero denominado conventio, que por sua vez, subdividia-se em contractus e pactum.[8]

Os pactos, no sentido românico da expressão, indicavam qualquer ajuste desprovido de sanção.[9] Já por contrato, eram entendidas as convenções que não podiam existir sem uma exteriorização de forma, comportando três categorias: litteris, re e verbis.[10]

Os contratos litteris exigiam, para sua validade, a inscrição num livro de contabilidade doméstica do credor, denominado codex accepti et expensi. Os contratos re (ou datio rei) caracterizavam-se pela necessidade de observância da tradição da coisa, como pressuposto de sua validade, ao passo que por verbis, eram entendidos aqueles cuja formação válida estava ligada ao ritual de proferir determinadas palavras que os identificassem e servissem de pressuposto para a instauração da obrigação correspondente.[11]

A obrigação em tais tipos de contratação surgia sempre em decorrência da observância da formalidade. Era, pois, o elemento vinculativo entre direitos e deveres surgidos a partir de uma contratação. Lacruz Berdejo destaca que, durante algum tempo, ditas formas de contrato atenderam a sociedade romana, mais precisamente, enquanto foram reduzidas as operações jurídicas em suas cidades.[12]

Nesse período, a maioria das cidades romanas ainda não havia ultrapassado o status de pequena aglomeração populacional, sendo comum apenas a prática de atividades econômicas ligadas à agricultura, exercidas por grupos essencialmente familiares.[13]

Porém, a partir do desenvolvimento de Roma e sua conseqüente transformação em uma grande cidade, com a prática intensa de atividades comerciais, verificou-se a necessidade de criação de novas formas de contrato, capazes de responder à demanda social que então se apresentava.

Mas para a grande cidade comercial que Roma chega a ser com o tempo, o antigo sistema se revela insuficiente, e para responder as novas necessidades se introduzem contratos que já não precisam de nenhuma formalidade. Não se trata, agora, de formas contratuais hábeis para qualquer conteúdo, mas sim de conteúdos contratuais aos quais, em vista de sua utilidade social, é concedida – somente a eles – força vinculante: a compra e venda, o arrendamento de coisas e serviços, o mandato e a sociedade.[14]

Porém, não tardou a que a demanda social exigisse novo avanço no sistema contratual romano, o que ocorre mediante a ampliação do conceito inicialmente utilizado para a criação dos contratos vinculativos, a todos as relações dotadas de caráter obrigacional recíproco.

Tal resultado foi alcançado mediante a atribuição de valor jurídico a qualquer intercâmbio de prestações, desde o momento em que uma das partes executasse a obrigação que lhe incumbiria no contrato, nascendo desse ato – o cumprimento prévio da obrigação acordada – o direito de exigir ao pretor que lhe conferisse “ação” para obter a contraprestação correspondente.[15]

Esse entendimento deu ensejo ao surgimento dos contratos inominados, todos sinalagmáticos, pertencentes às categorias do ut des; facio ut facias; do ut facias; facio ut des[16], sobre os quais assevera Lorenzetti:

Nesses últimos casos deve notar-se que mais que ao “acordo” se aludia à relação que era causa do vínculo obrigatório; por ele se distinguia entre a causa e o consenso ou convenção. Para que nascesse a obrigação contratual era necessária uma razão, uma dada causa: se entregou uma coisa, se cumpriu uma prestação e, então, deveria ser cumprida a contraprestação. Essa relação foi se desdobrando ao longo do tempo até simplificar-se, na Idade Média, na regra “somente o consenso obriga”, ainda que não exista causa.[17]

Estabelecidos os princípios da Autonomia da Vontade e do Consensualismo na Idade Média, o contrato estava consolidado como o instituto clássico destinado à regulação dos diversos negócios jurídicos existentes, independentemente da sua natureza ou classificação. O período da Idade Média, contudo, não foi profícuo no que concerne a outros significativos avanços na concepção de contrato, além do estabelecimento dos princípios acima referidos.

A mudança de maior relevância após o estabelecimento da Autonomia da Vontade e do Consensualismo, viria a ocorrer na Idade Moderna, com o aparecimento do Liberalismo Econômico, que instaurou uma nova concepção de contrato.

O contexto econômico-social em que se difundiram os ideais liberais carecia de um instrumento jurídico capaz de conferir segurança às relações de caráter privado, então em franca ebulição. O contrato, que passara tantos anos no ostracismo jurídico em decorrência da implantação do Feudalismo como sistema econômico característico da Idade Média, ressurge revigorado pela retomada dos ideais clássicos ou romanos, cuja difusão deu-se a partir do movimento das universidades.[18]

Princípios como o do pacta sunt servanda, foram transformados em verdadeiros dogmas em nome da capacitação operacional de um mercado aberto à livre concorrência e alheio a qualquer forma de intervenção estatal.

Com o estado alijado da regulamentação isolada do processo econômico-produtivo instaurou-se uma nova ordem mundial. A máxima do ideal liberal “laissez-faire, laissez-passer”[19], passou a traduzir o preceito mais caro de tal ideologia, qual seja, o estabelecimento da livre concorrência entre os diversos mercados, internos e externos.

Durante o Liberalismo retomou-se o apego à forma como elemento caracterizador da validade do contrato. A interpretação das disposições contratuais dava-se em regra de maneira literal. A verificação do consenso, alheia à consideração da condição sócio-econômico-cultural daqueles de quem teriam partido as respectivas declarações de vontade, levou à concepção de contrato “como uma categoria que serve a todos os tipos de relações entre sujeitos de direito e a qualquer pessoa independentemente de sua posição ou condição social”.[20]

Obviamente que a generalização na consideração da figura dos contratantes acentuou as diferenças sociais já existentes em uma sociedade nitidamente estratificada, gerando imensa inquietação social.

O jugo dos economicamente mais fortes sobre a massa empobrecida e ansiosa por uma participação mais efetiva na distribuição de riquezas fez com que surgissem os conflitos entre capital e trabalho, cuja intensificação e o agravamento terminaram por gerar a necessidade da retomada de um modelo intervencionista.

Embora a intervenção do Estado na economia tenha se dado em diferentes níveis nos diversos países, gerando a divisão característica do século XX entre países participantes dos blocos Capitalista e Socialista, finda após o término da Guerra Fria, é certo que, em todos eles, foi marcada pela retomada por parte do Estado das rédeas condutoras da regulamentação do processo econômico-produtivo.

A concepção “liberal” do contrato sofreu duros embates no século XX, devido ao modelo Keynesiano[21] da economia, que levou à planificação estatal e às regulamentações do contrato, embasadas na ordem pública. Ele afetou os princípios básicos existentes no período anteriormente descrito.[22]

Os principais reflexos dessa alteração sobre os princípios contratuais são: a relativização do princípio da Autonomia da Vontade, que passa a sofrer limitação por parte das leis e dos costumes (normas cogentes); a limitação do Consensualismo, ante a imposição normativa de uma série de condutas aos particulares; a relativização do princípio da Força Obrigatória, mediante a aceitação da revisão contratual pelo Judiciário; e a diminuição da informalidade sobre os contratos, primando-se pela elaboração das formas contratuais, a fim de conferir maior segurança ao estabelecimento do negócio jurídico.[23]

No final do século XX, a ideologia sofre grande revés, em parte creditado ao fracasso econômico dos países do Bloco Socialista, onde era mais arraigada, em parte devido à estagnação econômica gerada pela excessiva intervenção do Estado sobre o processo econômico. A conseqüência foi a retomada, parcial, dos ideais liberais, principalmente no que respeita à liberdade e à iniciativa privada, ocasionando um processo de desregulamentação da excessiva interferência estatal na economia.[24]

Novamente ícones como a liberdade ampla; respeito à autonomia privada; restrição da atividade dos juízes na revisão e modificação do contrato; limitação das indenizações e o descrédito a institutos como a lesão e o abuso de direito, dentre outros, voltam à tona.[25]

O fenômeno da globalização, a seu turno, contribuiu também, substancialmente, para a sedimentação do panorama característico do neoliberalismo no cenário econômico mundial, intensificando, de forma considerável, seus efeitos sobre o contrato.

Esta tendência (globalização) representa uma nova “concepção” de contrato, no sentido de que trata de harmonizar concepções nacionais diferentes mediante um processo de abstração das regras e de conciliação das diferenças.[26]

Traço marcante do contrato globalizado é que em geral se opera estritamente no que concerne às praxes de negociação entre pessoas alienígenas, limitando seus efeitos a relações de natureza privada, com escopo nitidamente comercial (lex mercatoria).[27]

Visa, pois, a uma espécie de regulação transnacional, obtida essencialmente a partir do costume, e acaba ocasionando a difusão de tipos novos de contrato, no âmbito dos sistemas jurídicos dos diversos países, sem que haja propriamente uma construção legislativa nacional a respeito. Por óbvio, não se presta a dispor sobre questões de ordem pública.[28]

Todavia, a despeito da tendência de uniformização das praxes contratuais, derivada do fenômeno da globalização, é certo que cada país continua mantendo internamente princípios e conceitos subjetivos os quais, por diferentes razões, de ordem econômica ou cultural, geram interpretações e concepções bastante peculiares acerca de cada tipo contratual.

Em um tom descontraído, poder-se-ia dizer que seria o “contrato com sotaque”! Tal assertiva remete-nos à perspectiva sincrônica do contrato que, por uma questão de manutenção de foco, abordaremos apenas em relação a alguns dos países latino-americanos, integrantes do Mercado Comum do Sul: Brasil; Argentina; Paraguai e Uruguai.

O processo de globalização da noção de contrato não elimina as particularidades nacionais, nem os bloqueios culturais regionais. Neste aspecto, é possível indagar acerca da existência de uma “concepção” do contrato própria do subsistema jurídico latino-americano.[29]

Mesmo constituindo os países da América Latina sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, há diversas diferenças no que tange às respectivas concepções de contrato, ocasionando interpretações não uniformes, acerca do referido instituto.

Apenas a título de exemplificação, posto não ser o estabelecimento de tais diferenças o objetivo deste artigo, tem-se como relevante a consideração da formação do contrato, segundo a concepção de cada um desses países.

Quando se trata da formação de contratos entre presentes, existe pleno consenso entre os entendimentos defendidos em cada um dos países acima referidos. Porém, basta considerar a formação do contrato entre ausentes para que as diferenças de concepção acerca da teoria geral dos contratos sejam verificadas.

Assim, enquanto Brasil, Argentina e Paraguai, admitem que o contrato por telefone equipara-se a modalidade de contratação havida entre presentes, no Uruguai, tal forma de proposição é tida como proposta a ausente.[30]

Da mesma forma, enquanto o Uruguai adota a teoria da Informação[31]para efeito de apuração do momento de formação do contrato, Brasil, Argentina e Paraguai concebem como a mais correta a teoria da Expedição[32].

Por fim, cumpre ressaltar o elenco de características comuns da concepção latino-americana de contrato, elaborado por Lorenzetti, entre as quais merecem destaque: a crescente integração entre contrato e Constituição, com destaque para a proteção aos direitos fundamentais; a utilização de cláusulas gerais como forma de manutenção da legalidade das praxes contratuais e a ampliação dos mecanismos contratuais, para atender aos setores excluídos do mercado, por razões econômicas e culturais.[33]

 

2.2. O conceito contemporâneo de contrato – a proposta de uma visão multifacetada da teoria geral dos contratos

 São inúmeros os conceitos de contrato disponíveis atualmente nas doutrinas pátria e alienígena. Contudo, não raro, continuam presos à concepção clássica do ajuste de vontades válidas e autônomas, formativas do consenso, que por sua vez, é fonte imediata de direitos e obrigações, recíprocos ou não.

Contudo, após as profundas alterações pelas quais passou a sociedade no decorrer do século XX, tal conceito de contrato, com berço longínquo na Idade Média, passou a enfrentar sérias dificuldades, por não mais abrigar, a contento, as novas e complexas variantes das relações obrigacionais contemporâneas.

O surgimento de novas técnicas de contratação; a intensificação do processo legislativo sobre matéria contratual; a proteção às partes consideradas hipossuficientes; o emprego de novas tecnologias a serviço dos contratos; o surgimento dos contratos de massa e das condições gerais de contratação foram fatores os quais, aliados ao fenômeno da globalização, provocaram uma profunda modificação na concepção tradicional de contrato.

Chegou-se a alardear o fenômeno conhecido como a crise ou “morte do contrato” – assim entendido aquele modelo próprio da teoria clássica – em prol de uma teoria sociológica,[34]tamanha a perplexidade gerada pela contraposição dos princípios e regras clássicas de contratação aos novos paradigmas negociais apresentados por uma sociedade em constante desenvolvimento e mutação.

Porém, ultrapassada a fase da perplexidade inicial, viu-se que não se estava propriamente diante de uma crise do contrato, mas sim, “do modelo de consentimento baseado na negociação e do modelo de troca”.[35]

Atualmente as relações que requerem a regulação contratual são muitas e distintas. Não há mais espaço para uma única teoria geral dos contratos que reine absoluta, nem tampouco para condições gerais de contratação que não comportem abertura para exceções. Os contratos são celebrados em âmbitos diferentes, por classes diferentes de pessoas, sujeitas a diferentes tratamentos legislativos, conforme variem suas características e a posição que ocupem na relação contratual.

Assim, mesmo que se trate de uma pessoa jurídica, dotada de expressivo patrimônio e de significativa influência no mercado, pode ser considerada parte hipossuficiente caso, em uma relação de consumo, venha sofrer qualquer arbitrariedade, imposta por um fornecedor ou prestador de serviços, que lhe tenham entregado mercadoria ou prestado serviços considerados defeituosos.

Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.[36]

Logo, não se trata mais de simplesmente abrigar eventuais exceções fáticas ao manto uníssono da teoria geral dos contratos, como quem amolda o pé maior a uma bota apertada, mas sim, de conceber diferentes concepções de contrato, para cada uma das substanciais variantes que hoje compõem a sua dogmática.

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão e como prenúncio de novos tempos, oportuna a colação do conceito de contrato apresentado por César Fiúza, elaborado em parceria com os alunos do 4º período do curso de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no segundo semestre letivo do ano de 2005, que prima por conceber o contrato como um ajuste regulador de interesses particulares dos contratantes, que, todavia, transcende o âmbito de tais interesses para se revelar como um instrumento destinado à manutenção da própria ordem social, possuindo, em razão disso, repercussão não apenas pessoal, mas também sócio-econômica.

Contrato é ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e sócio-econômica, que cria, modifica ou extingue relações convencionais dinâmicas, de caráter patrimonial, entre duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender necessidades individuais ou coletivas, em busca da satisfação pessoal, assim promovendo a dignidade humana.[37]

Seria, pois, adequado considerar que assim como os princípios da Autonomia da Vontade e do Consensualismo, no passado, foram divisores de águas na consolidação da noção de contrato, atualmente a tendência aponta para a primazia da Função Social como princípio norteador da concepção desse instituto, que constitui pedra fundamental para a manutenção da ordem social.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo Civil. Yussef Said Cahali (Org.). Obra coletiva de autoria da Editora Revista dos Tribunais – 8a ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 

CARNEIRO, José Julian. Et. al. Caracterización de los contratos en los países del MERCOSUR. In: Contratos: homenaje a Marco Aurelio Risolía. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997. 324p.  

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. V. 3. São Paulo: Saraiva, 1998. 869 p. 

FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Rev. atua. e amp. elo Horizonte: Del Rey, 2006. 1083p.

GOMES, Orlando. Contratos. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, 523 p. 

LACRUZ, José Luis Berdejo. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. Teoría general del contrato. V. 1, 3ª ed. Madrid: Dykinson, 2003. 578p.  

LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. 1a ed. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 2004, 803p.    

NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 544 p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 227 p 

________, Instituições de direito civil: contratos. V. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 604p.

________, Cláusula Rebus Sic Stantibus. In: Revista Forense. V. XCII. Rio de Janeiro: Dezembro, 1942.

 


[1] Mestre em Direito Empresarial; advogado; professor no Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

[2] “El contrato es concebido como el resultado del consentimiento negociado libremente entre dos partes iguales que se hacen promesas recíprocas de comportamientos futuros. Este modelo está tan incorporado en la cultura jurídica que se lo considera “clásico”, se lo asume acríticamente, y hasta se considera al contrato como una “cosa” existente fuera de las reglas que lo permiten”. In: LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. 1. ed. Santa Fé: Bubinzal – Culzoni Editores, 2004, p. 9. (Tradução nossa) 

[3] Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. V. 3 Rio de Janeiro: Forense. 2004. p. 17-18. 

[4] O princípio da solidariedade não constitui propriamente uma ideia nova ou própria do atual regime civil. Já em 1942, Caio Mário da Silva Pereira atestava a penetração dos ideais solidaristas na legislação pátria, como fruto de um amadurecimento das normas civis, na égide do Código Civil de 1916. “Entretanto, discretamente, a autonomia da vontade, do Código Civil, começou a sofrer um abalo com a ‘lei do inquilinato’, de 1921, que afetou o princípio da igualdade das partes, sem que se tivesse coragem, naquela época, de dizer que o que vale, e deve ser consagrado, é o princípio da igualdade das prestações. Foi nos últimos dez anos que tomou incremento a legislação mais avançada, dia a dia mais solidarista, menos contratualista, menos individualista, e por isso mesmo mais equitativa. Já existe hoje uma legislação intervencionista, já se pode afirmar a existência de um princípio da intervenção, que se vem consolidando pouco a pouco no nosso direito. A chamada ‘lei de usura’, a de ‘luvas’ a do ‘reajustamento econômico’, a da ‘economia popular’ – nada mais são do que a intromissão do Estado nas obrigações contratuais, pela substituição da ‘vontade legal’ à de uma das partes, e, tantas vezes se repetiu este fenômeno, que já não encontra ambiente inteiramente adverso, embora não possa ser normalmente aceitável a idéia da intervenção. É que houve necessidade dela …”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Cláusula Rebus Sic Stantibus. In Revista Forense. V. XCII. Rio de Janeiro: Dezembro, 1942. p. 174.

[5] MORAES, Maria Cecília Bodin de, a prefaciar NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[6] […] La teoría contractual está estrechamente vinculada a las ideas acerca de cómo la sociedad y el mercado deben ser organizados, y en este sentido se puede hablar de concepciones del contrato. Nuestro propósito es mostrar que estamos ante un concepto normativo cambiante según las costumbres y que denota varios supuestos de hecho diferentes. Desde esta perspectiva, estudiaremos las concepciones del contrato en diferentes períodos históricos (perspectiva diacrónica), y las disímiles concepciones actuales (perspectiva sincrónica). In: LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 20. (Tradução nossa). 

[7] FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. , Rev., atua. e amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 390. 

[8] Cf. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. , Rev., atua. e amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 390.

[9] “No direito moderno, o termo pacto significa a cláusula aposta em certos contratos para lhes emprestar feitio especial. Pacto não é mais, como no Direito Romano, a convenção desprovida de sanção.”in: GOMES, Orlando. Contratos. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 9. 

[10] Cf. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. P. 390. Lorenzetti, elenca, juntamente com tais categorias o dos contratos sollo consensu. Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 21-22. Todavia, inclinamo-nos mais para o posicionamento de Lacruz Berdejo que distingue tais categorias citando os contratos consensuais como um avanço jurídico, creditado a uma resposta legal às novas necessidades da sociedade romana, que atingira níveis mais elevados de desenvolvimento econômico. Cf. LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato.  V. 1. 3 ed. Madrid: Dykinson, 2003. p. 326. 

[11] Cf. LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato.  V. 1. 3 ed. Madrid: Dykinson, 2003. p. 326. 

[12] Cf. LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato.  p. 326.

[13]  Cf. LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al.. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato.  p. 326 

[14] “Pero para la gran ciudad comercial que Roma llega a ser con el tiempo, el antiguo sistema se revela insuficiente, y para responder a las nuevas necesidades se introducen unos contratos que ya no precisan de ninguna formalidad. No se trata, ahora, de formas contractuales hábiles para cualquier contenido, sino de unos contenidos contractuales a los que, en vista de su utilidad social, se les concede – sólo a ellos – fuerza vinculante: la compraventa, el arrendamiento de cosas y servicios, el mandato y la sociedad”. In: LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato.  p. 326

[15] Cf. LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato.  p. 326. 

[16] Cf. LACRUZ BERDEJO, José Luis. Et. al. Elementos de derecho civil II: derecho de obligaciones: parte general. teoría general del contrato. p. 326.

[17] “En estos últimos casos debe notarse que más que al “acuerdo” se aludia a la relacion que era causa del vínculo obligatorio; por ello se distinguió entre la causa y el consenso o convención. Para que naciera la obligación contractual era necesario una razón, una causa data: se entregó una cosa, se cumplió una prestación, y entonces debía cumplirse la contraprestación. Esta relación fue desdibujándose a lo largo del tiempo hasta simplificarse, en el medioevo, en la regla ‘sólo el consenso obliga”, aunque no exista causa”. In: LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 22-23.

[18] Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 38.

[19] Deixe fazer, deixe passar. Tradução livre. 

[20] GOMES, Orlando. Contratos. p. 6. 

[21]“Teoria econômica criada por John Maynard Keynes, propugnando a necessidade de colaboração econômica e a intervenção estatal nas situações de subemprego, sem prejuízo da liberdade individual. Visava suprimir o desemprego, realizando o pleno emprego”. DINIZ, Maria Helena Diniz. Dicionário jurídico. V. 3. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 44.

[22] “La concepción ‘liberal’ del contrato sufrió duros embates en el siglo XX, debido al modelo Keynesiano de la economía, que llevó a la planificación estatal y a las regulaciones del contrato basadas en el orden público. Ello afectó los principios básicos existentes en el período anteriormente descripto.” LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 26. (Tradução nossa).

[23] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 26. 

[24] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 27. 

[25] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 28.

[26] “Esta tendencia  representa una nueva “concepción” del contrato, en el sentido de que trata de armonizar concepciones nacionales diferentes mediante un proceso  de abstracción de las reglas y de conciliación de las diferencias.” LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 28-29. 

[27] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 29.

[28] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 29.

[29] “El proceso de globalización de la noción de contrato no elimina las particularidades nacionales, ni los bloques culturales regionales. En este aspecto, es posible indagar acerca de la existencia de una “concepción” del contrato propia del subsistema jurídico latinoamericano.”In: LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 32-33. 

[30] Cf. CARNEIRO, José Julian. Et. al Caracterización de los contratos en los países del MERCOSUR. In Contratos: homenaje a Marco Aurelio Risolía. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997. p. 67.

[31] Por teoria da Informação entende-se aquela segundo a qual, o momento de formação do contrato celebrado mediante o envio de proposta a ausente é presumido como o da ciência pelo proponente, acerca da notícia da aceitação da proposta, encaminhada pelo oblato.

[32] Por teoria da Expedição, entende-se aquela segundo a qual, o momento de formação do contrato celebrado mediante o envio de proposta a ausente, é presumido como o da expedição pelo oblato da notícia da aceitação da proposta. Cf. CARNEIRO, José Julian. Et. al. Caracterización de los contratos en los países del MERCOSUR. In Contratos: homenaje a Marco Aurelio Risolía. p. 67. 

[33] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. p. 34. 

[34] Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte general. 1. ed. Santa Fé: Bubinzal – Culzoni Editores, 2004, p. 13

[35] In: LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contrato. Parte general. p. 13. 

[36] Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.In: BRASIL. Código civil / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 53 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 281.

[37] FIUZA, César. Direito civil: curso completo. p. 388.