Maria Isabel Fernandes Silva[1]
Frederico Barbosa Gomes[2]
Resumo: Com o desenvolvimento da ciência, principalmente o da medicina, surgiram técnicas e medicamentos capazes de prolongar a vida de uma pessoa acometida por uma doença tida como incurável. Assim a tecnologia médica aliada à obstinação terapêutica têm feito com que, cada vez menos, as pessoas estejam preparadas para encarar a morte, fazendo com que muitas vezes indivíduos sejam mantidos vivos apenas em virtude dos aparelhos aos quais se encontram ligados. Desta forma os indivíduos têm vivido a própria morte, uma vez que o prolongamento indeterminado da vida de pacientes terminais, cuja sobrevivência depende de inúmeros aparelhos tem como conseqüência o sofrimento e a perda da dignidade destes. A opção de não terminar a vida em semelhante estado é direito do indivíduo. A capacidade de autodeterminação e a liberdade, resguardadas pela Constituição Federal, dão ensejo à prerrogativa de um indivíduo plenamente capaz escolher as condições do final de sua vida. Considerando tais circunstâncias, então, é que se propõe a possibilidade de inclusão do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, documento no qual um indivíduo, gozando de suas plenas faculdades mentais, dispõe antecipadamente acerca das escolhas terapêuticas a serem adotadas na fase terminal de sua vida, podendo inclusive, recusar-se a receber tratamento que prolongue inútil e indefinidamente a sua vida. Documento que deverá ser respeitado caso o paciente não possa mais decidir pessoalmente sobre a continuidade dos tratamentos por não estar em pleno gozo de suas capacidades mentais.
Palavras-Chave: Autonomia. Ciência. Dignidade da Pessoa Humana. Testamento Vital.
Área de Interesse: Direito Constitucional; Direito Civil.
1 INTRODUÇÃO
Até meados do século XX, havia a figura do médico da família, que atendia o paciente em casa e que muitas vezes era membro do círculo de amizades dessa.
As decisões médicas eram tomadas exclusivamente pelo médico, em decorrência da autoridade moral e científica atribuída a esse profissional: A sociedade atribuía ao médico a tarefa de indicar o melhor para o paciente e este detinha autoridade para impor sua decisão.
Segundo Clemente e Pimenta (2006, p.3),
o papel tradicional do médico para tomar decisões excluindo as preferências do paciente tinha um fundamento ético-sociológico e um fundamento ético: o fundamento ético-sociológico estava no paternalismo, e o fundamento lógico estava no determinismo monocausal linear.
Aos poucos, devido ao crescimento das cidades e da demanda, aliadas ao desenvolvimento da tecnologia houve o distanciamento entre o médico e o paciente, e a tecnologia inseriu o tecnicismo em detrimento do humanismo.
Com o desenvolvimento da ciência, principalmente o da medicina, surgiram técnicas e medicamentos capazes de prolongar a vida de uma pessoa acometida por uma doença tida como incurável, ainda que artificialmente e por uma infinidade de aparelhos.
Antes a vida tinha um ciclo natural, devendo o médico apenas cuidar para que este não fosse interrompido de forma precoce. Atualmente, a tecnologia médica aliada à obstinação terapêutica mantém vivos indivíduos que já não querem ou não podem mais viver.
Atualmente, os indivíduos têm vivido a própria morte, uma vez que o prolongamento indeterminado da vida de pacientes terminais, cuja sobrevivência depende de inúmeros aparelhos tem como consequência o sofrimento e a perda da dignidade destes. Ao contrário do ideal de busca pelo prolongamento da vida com qualidade, o que se vê é a busca pela quantidade de vida, distanciando-se dos direitos à vida e à morte dignas.
É necessário, como bem elenca Maria Helena Diniz (2006, p.20),
a imposição de limites à moderna medicina, reconhecendo-se que o respeito ao ser humano em todas as suas fases evolutivas (antes de nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer) só é alcançado caso se esteja atento à dignidade da pessoa humana.
Diante de tais avanços e das condições nas quais estes indivíduos são submetidos faz-se necessário discutir a possibilidade de um indivíduo, gozando de suas plenas faculdades mentais, dispor antecipadamente acerca das escolhas terapêuticas adotadas na fase terminal de sua vida, por meio de um documento chamado testamento vital, podendo, inclusive, recusar-se a receber tratamento que prolongue inútil e indefinidamente a sua existência.
Assim, através de um instrumento de manifestação de vontade com a indicação negativa ou positiva de tratamentos e assistência médica a serem ou não realizados em determinadas situações, o paciente terá seu desejo de se submeter ou não a determinado tratamento respeitado.
Questionar-se-á acerca da autonomia da vontade do indivíduo para se autodeterminar associada à idéia de dignidade da pessoa humana como proteção das circunstâncias indispensáveis para uma existência plena de sentido. Ideia que traduz o estado do homem enquanto indivíduo, não podendo este ser tido como objeto à disposição de interesses alheios, impondo limites às ações que não consideram a pessoa como um fim em si mesma.
O médico, dentro das suas atribuições, indica e recomenda o tratamento adequado. O paciente, dentro da autonomia que lhe é assegurada, aceita ou não a recomendação, exercendo poder de escolha para tomar decisões sobre si. O que se justifica pelo art. 5º, III, CF que preceitua que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”, ou seja, elenca a autonomia de vontade como direito e garantia fundamental. (BRASIL, 1988, p.22)
O testamento vital considera o paciente como sujeito central do processo clínico ao invés da tecnologia médica e da obstinação terapêutica. O médico também necessita que lhe sejam respeitadas sua autonomia, crença e a própria adstrição às normas deontológicas-profissionais.
As decisões médicas devem estar centradas no paciente e não na família deste ou no médico. Deve haver um consenso sobre o objetivo e os meios diagnósticos e terapêuticos, e há que se argumentar explicitamente com a possibilidade de persuasão mútua.
A tomada de decisões deve ser participativa, tomadas em conjunto, entre o médico e o paciente. Em caso de conflito, deve-se conceder maior peso às preferências do paciente, ainda que não de modo absoluto, devendo respeitar restrições legais.
E, ainda, não se pode ignorar a situação do indivíduo acometido por uma doença grave e incurável, em que o prolongamento de sua vida contribui apenas para a sua degradação e sofrimento, o que fere a dignidade da pessoa humana, consagrada no art.1º, III, CF, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. (BRASIL, 1988, p.21)
Desta forma, ao demonstrar que não há hierarquia entre princípios e sim limitações de uns sobre os outros, sendo possível que o direito a vida, em alguns casos, se submeta aos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade restará comprovada a possibilidade de inclusão do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro.
2 TESTAMENTO VITAL
A expressão testamento vital está além do sentido atribuído ao testamento comum, no qual se dispõe, via de regra, a respeito do patrimônio de uma pessoa após sua morte. O significado desta expressão está intimamente ligado ao atual estado das ciências biomédicas, do elevado grau de desenvolvimento das tecnologias empregadas no cotidiano de tais ciências e dos princípios fundamentais eleitos pela Constituição Federal.
Com o desenvolvimento dessas ciências mesmo quando não há chances de efetiva recuperação dos indivíduos doentes, estes permanecem vivos, ainda que artificialmente e mantidos por uma infinidade de aparelhos. O que faz com que esses indivíduos vivam a própria morte, uma vez que o prolongamento indeterminado da vida de pacientes terminais, cuja sobrevivência depende de inúmeros aparelhos tem como conseqüência o sofrimento e a perda da dignidade destes.
Diante de tais avanços e das condições nas quais estes indivíduos doentes, sem chances de efetiva recuperação, permanecem “vivos”, faz-se necessário discutir acerca de questões como: a validade da manutenção da vida a qualquer custo, ainda que isso cause ao paciente dores infindáveis, senão físicas, certamente mentais; o prejuízo causado à qualidade de vida em beneficio de sua quantidade; a faculdade dos indivíduos de morrer da forma que lhes pareça menos sofrível, mais dignamente; a capacidade de autodeterminação do indivíduo para optar pela morte quando sua vida não mais lhe pareça viável na situação em que se encontra; o que de fato a medicina esta prolongando, a vida ou a vivência da morte; é dever da medicina sustentar indefinidamente a vida ou interromper o tratamento dos indivíduos que já não querem ou não podem mais viver.
É nesse contexto que deve ser entendido o testamento vital: diante dos avanços da medicina e tecnologia que permitem o prolongamento indeterminado da vida de pacientes terminais, como doentes em estado vegetativo ou acometidos de males degenerativos, que só se encontram vivos em virtude dos aparelhos aos quais se encontram ligados. E, ainda, à luz dos princípios resguardados pela Constituição Federal de respeito à dignidade e autonomia do paciente, é que se deve analisar a adoção de tal documento no ordenamento jurídico brasileiro.
Magalhães (2010, p.28) assevera que
em geral, estes testamentos aplicam-se nos casos de condições terminais, sob um estado permanente de inconsciência ou um dano cerebral irreversível que não possibilite a capacidade de a pessoa se recuperar e tomar decisões ou expressar seus desejos futuros. Nesse contexto, entra a aplicação do testamento vital, a fim de que sejam tomadas medidas necessárias para manter o conforto, a lucidez e aliviar a dor, inclusive com a suspensão ou interrupção de tratamento.
Podendo citar-se como exemplos de aplicabilidade do testamento vital para pacientes terminais nos seguintes casos: um religioso que deseja assegurar que seja respeitada sua recusa à transfusão de sangue, ou, ainda, um indivíduo que requer a não adoção de medidas de reanimação, somente por ocasião de uma parada cardiorrespiratória, sem condição de sobrevida.
2.1 Breve Histórico
Em 1967, a Sociedade Americana para Eutanásia propôs o testamento vital (living will) como documento de cuidados antecipados, por meio do qual os indivíduos poderiam registrar sua vontade quanto às intervenções médicas para manutenção da vida. (CLEMENTE; PIMENTA, 2006, p.4)
Segundo Clemente e Pimenta (2006, p.4)
em 1969, Luis Kutner, sugeriu um modelo de documento no qual o próprio indivíduo declarava que, se entrasse em estado vegetativo, com impossibilidade segura de recuperar suas capacidades físicas e mentais, deveriam ser suspensos os tratamentos médicos. Kutner sugeriu, ainda, que o testamento vital satisfizesse a quatro finalidades: primeira, em processos judiciais, a necessidade de se ter em conta a diferença entre homicídio privilegiado por relevante valor moral (a compaixão) e o homicídio qualificado por motivo torpe; segunda, a necessidade legal de permitir, ao paciente, o direito de morrer por sua vontade; a terceira, a necessidade de o paciente expressar seu desejo de morrer, ainda que incapaz de dar seu consentimento na ocasião; quarta, para satisfazer às três primeiras finalidades, dever-se-ia dar, ao paciente, garantias necessárias de que sua vontade fosse cumprida.
Apesar de muitas tentativas de se institucionalizar e regulamentar tal possibilidade nos diversos estados americanos, todas restaram infrutíferas. A primeira delas foi uma iniciativa de Walter Sackett, na Flórida, em 1968.
Somente em 1972 nos EUA, que este documento teve reconhecido o seu valor legal, surgindo com o Natural Death Act, na Califórnia.
Ribeiro (apud CLEMENTE, PIMENTA, 2006, p.4) assevera que
um segundo período de legalização começou em 1976, com a promulgação, na Califórnia, da primeira lei sobre morte natural, vigente até 1991, quando entrou em vigor a lei federal de autodeterminação do paciente. Nesse período, a opinião pública foi mobilizada por processos judiciais de grande repercussão, como por exemplo: o Caso Quinlan, de 1976, o Caso Conroy, de 195, e o Caso Cruzan, de 1990, cujo objeto era a retirada de tratamentos vitais. Esses casos fizeram com que muitas pessoas temessem ficar presas a tratamentos similares aos impostos àqueles pacientes, com a Justiça exigindo, ao final de suas vidas, provas das preferências prévias de cada um.
Em 1977, foram aprovados nos Estados Unidos, sessenta e um diferentes testamentos vitais em quarenta e dois estados.
Após o ano de 1991 iniciou-se um terceiro período pós-legislativo, que teve como foco a difusão, aperfeiçoamento e ampliação do conteúdo das diretivas. Iniciou-se a discussão acerca da autonomia do paciente frente à escolha de vida e morte, da possibilidade de autodeterminação, da manifestação livre e consentida de vontade e do consentimento informado na relação entre médico e paciente. O que se refletiu no surgimento de vasta literatura, incentivando sua implementação prática.
Assim, em 1º de dezembro de 1991, com a entrada em vigor do PSDA – Patient Self-Determination Act -, nos Estados Unidos, o testamento vital foi confirmado como documento jurídico válido, pois
[…] reconheceu a autonomia privada do paciente, inclusive para recusar tratamento médico. Os centros de saúde, quando da admissão do paciente, registram suas opções e objeções a tratamentos em caso de incapacidade superveniente de exercício pela própria autonomia – são as ‘advance directives’ – previstas nessa lei (SÁ, 2005, p.36).
O Conselho Italiano de Bioética, órgão constituído em Milão em 1992, aprovou uma carta de autodeterminação, com a qual o declarante estabelece determinadas condições para o futuro, caso seja exposto a enfermidade em fase terminal ou a lesão traumática do cérebro, irreversível.
Em Oviedo, no dia 04 de abril de1997 foi firmado o Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e a Dignidade do ser Humano com Respeito às Aplicações da Biologia e da Medicina, o primeiro instrumento internacional com caráter jurídico vinculante para os países que o subscrevem, sendo um marco comum para a proteção dos direitos humanos e a dignidade humana nas aplicações médicas e biológicas, no qual ficou estabelecido (art. 9º) que serão levados em consideração os desejos expressados anteriormente com respeito a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em situação de expressar sua vontade.
Na Cataluña (Espanha), em 21 de dezembro de 2002, com base nos princípios tratados no Convênio de Oviedo, foi editada a primeira lei sobre o respeito à declaração antecipada de vontades. Segundo a qual, qualquer cidadão poderia expressar de forma antecipada a quais tratamentos não desejava se submeter em caso de enfermidade terminal e incapacitante.
No dia 13 de fevereiro de 2003, em Brasília, o Conselho Federal de Medicina (CFM), pela primeira vez, absolveu profissional acusada de não efetuar uma transfusão de sangue em sua paciente, Testemunha de Jeová. A paciente, que morreu ao dar a luz, foi considerada dona de seu corpo, tendo sido acatado o documento que assinou em conjunto com sua família, determinando à médica que, numa emergência, não realizasse em seu corpo nenhuma transfusão de sangue.
Na Europa, em 07 de julho de 2005 foi aprovada a lei 6/2005, que regulamentou a Declaração de Vontade Antecipada, outra denominação para o testamento vital, no estado autônomo de Castilla-La Mancha. (AMARAL, PONA, 2010, p.7 )
Como bem elencam Clemente e Pimenta (2006, p.8),
atualmente, pretende-se ampliar as diretivas antecipadas a quaisquer enfermos em situações clínicas potenciais. Pretende-se, ainda conceder poderes aos pacientes não só para recusarem, mas também para optarem positivamente por um tratamento, diante de um espectro de possibilidades.
Apesar de não haver em nosso país legislação específica tratando sobre o tema do testamento vital, da leitura do ordenamento conjuntamente com os princípios da autonomia privada do individuo, da autodeterminação de sua vontade e da dignidade da pessoa humana defende-se a inclusão deste no nosso ordenamento.
2.2 Conceito
O testamento vital pode ser chamado também de documento de vontades antecipadas, living will, testamento em vida, testamento biológico e ainda de testament de vie.
Sánchez (apud, AMARAL, PONA, 2010, p.4), escreve que
os testamentos vitais são documentos por meio dos quais uma pessoa suficientemente capaz pode estabelecer, antecipadamente, que medidas e tratamentos quer que se lhe apliquem quando não possa mais expressar sua vontade pessoalmente, podendo ainda, designar um representante para que tome esse tipo de decisão em seu lugar.
Segundo Borges (apud CLEMENTE; PIMENTA, 2006, p.4),
o testamento vital é um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade.
Sá, (2005, p.36) afirma que “o living will” ou “testamento em vida” pretende estabelecer os tratamentos médicos indesejados, caso o paciente incorra em estado de inconsciência ou em estado terminal”. Sendo mais comuns as disposições sobre recusa de entubação e de ressuscitação.
Betancor (apud MOTA, 2007, p. 1) define-o como
instrumento jurídico no qual os indivíduos capazes para tal, em sã consciência, expressem sua vontade acerca das atenções médicas que deseja receber, ou não, no caso de padecer de uma enfermidade irreversível ou terminal que lhe haja conduzido a um estado em que seja impossível expressar-se por si mesmo.
Desta forma, tem-se que
o testamento vital é um documento jurídico redigido por uma pessoa quando plenas as suas faculdades mentais, por meio do qual dispõe antecipadamente a sua vontade quanto aos tratamentos a serem ou não empregados caso advenha situação na qual não possa mais expressar suas intenções em virtude do estado de saúde em que se encontre, podendo ainda servir de instrumento para a nomeação de terceiro para tomar a decisão quanto aos tratamentos utilizados e ainda dispor acerca da doação ou não de órgãos. Por meio desse documento o indivíduo manifesta a sua vontade de não ser mantido vivo em condições que considere indignas, cuja qualidade da vida já não mais pode ser preservada diante da batalha travada para vencer a morte. (AMARAL, PONA, 2010, p.5)
Assim, por esse documento é possível que se assegure a morte digna no que se refere à assistência e ao tratamento médico ao qual será submetido um paciente em condição física ou mental incurável ou irreversível.
Baudouin e Blondeau (apud MOTA, 2007) afirmam que “o testamento vital é um nobre e louvável esforço de humanização e uma tentativa de reapropriação da morte, pois, tem como objetivo a preservação da dignidade humana no fim da vida.”
2.3 Características
Faz-se necessário a priori diferenciar o testamento como conhecemos do testamento vital, sobretudo quanto à produção de seus efeitos, pois, enquanto o primeiro destina a produção dos seus efeitos apenas para depois da morte do testador, tendo disposições, em geral, de caráter patrimonial, o segundo, ao contrário, destina-se a produzir efeitos antes do falecimento, sendo suas disposições relativas aos direitos da personalidade e autonomia do indivíduo.
O testamento vital é um documento com diretrizes antecipadas, assim como o testamento comum, realizado por uma pessoa em situação de lucidez mental para ser levado em conta quando, por causa de uma doença, já não seja possível expressar sua vontade.
No entanto, é um ato jurídico entre pessoas vivas e não um ato causa mortis, dado que não tem como fim a regulação das coisas depois da morte.
Por esse instrumento o indivíduo determina, de forma escrita, a quais tipos de tratamento deseja ou não se submeter para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade.
Como elencam Amaral e Pona (2010, p.8), as características deste documento são as mesmas do testamento comum:
a) Ato jurídico (ou negócio jurídico): representa a manifestação da vontade do indivíduo para a produção de efeitos jurídicos;
b) Unilateral: porque sua eficácia não depende do concurso de outra pessoa, bastando a vontade declarada pelo testador na forma da lei;
c) Personalíssimo: somente o indivíduo pode realizá-lo, lhe sendo vedada a outorga de poderes para a confecção por representante;
d) Revogável: para que se leve a cabo as disposições nele contidas, é necessário que expresse as vontades do testador de forma inequívoca, podendo o mesmo, a qualquer momento, revê-las, revogá-las;
e) Gratuito: não impõe ônus nem obrigações a quaisquer pessoas;
f) Solene: exige-se o registro do documento, como garantia da segurança jurídica. É essencialmente formal, devendo ser escrito e respeitar as solenidades, sob pena de nulidade.
2.4 Requisitos
Assim como os demais documentos jurídicos, o testamento vital deve obedecer alguns requisitos para que se permita sua elaboração.
Na maioria dos países nos quais se aceita a sua confecção, exige-se que a pessoa seja maior e capaz; que o documento seja assinado perante duas testemunhas independentes, e que seus efeitos sejam válidos apenas após 14 dias de sua assinatura, sendo a manifestação passível de revogação a qualquer tempo. Além disso tem caráter provisório, pois sua validade no tempo é de aproximadamente 5 anos. Exige-se ainda, a caracterização da fase terminal do doente atestada por dois médicos. (CLEMENTE; PIMENTA, 2006, p.5)
A declaração vital será plenamente eficaz quando for parte de um mandato claro entre paciente e médico. Sua validez dependerá dos trâmites que lhe deram origem, da precisão e clareza com que seja formulado. Não poderá representar alienação à liberdade pessoal, podendo ser livremente revogado ou alterado a qualquer momento.
Converte-se em instrumento eficaz, sobretudo se aos médicos forem concedidas possibilidades de rápido acesso, em caso de acidente ou de enfermidade súbita. Na Dinamarca, o médico tem obrigação de consultar o arquivo central eletrônico de testamentos vitais, sendo penalizado se o não fizer. (MOTA apud GUERRA, 2005, p.374)
Um estudo realizado pela Associação Portuguesa de Bioética (PORTUGAL, 2010, p.14) defende que
para ser válido, o consentimento deve ser atual. Ora a criação on-line de um Registro Nacional de Diretivas Antecipadas de Vontade permitiria que só documentos recentes, com um período de validade predefinido, fossem considerados válidos. Mais ainda, a existência de este registro permite também que o consentimento seja livremente revogado até à prática do ato concreto, na medida em que, enquanto existir competência, o doente pode revogar a orientação expressa no Testamento Vital. Findo este prazo de validade, e no caso de o doente ficar incapaz de decidir, o Testamento Vital manteria o seu valor dado que representa a vontade previamente manifestada do doente, desde que não existam dados que permitam supor que o doente alteraria a sua decisão.
Outro ponto relevante abordado pelo estudo é o estabelecimento de requisitos para a plena eficácia do testamento vital, sendo eles:
a) Limitação a pessoas capazes, competentes, maiores de idade e não inibidas por anomalia psíquica;
b) Informação e esclarecimento adequados, por intermédio de um médico com formação técnica apropriada;
c) Efeito compulsivo na decisão médica e não meramente indiciário;
d) Existência de um formulário-tipo com o objetivo de padronizar procedimentos;
e) Possibilidade de revogação a qualquer momento e sem qualquer formalidade;
f) Renovação periódica da manifestação de vontade;
g) Certificação perante um notário para garantir a autenticidade e evitar influências indevidas na esfera da decisão pessoal;
h) Criação no âmbito do sistema de saúde de um Registro Nacional de Diretivas Antecipadas de Vontade (RENDAV), para agilizar o acesso ao testamento vital por parte dos profissionais de saúde.
Diante da análise destes requisitos pode-se verificar a compatibilidade do testamento vital com o ordenamento jurídico brasileiro.
O primeiro é a capacidade do indivíduo. Fundamental requisito para confeccionar o documento, a capacidade aqui exigida é capacidade plena para a prática dos atos da vida civil. O Código Civil de 2002 optou por definir quem são os incapazes em seus artigos 3º e 4º. Desta forma entende-se por capaz todos aqueles que já atingiram a maioridade, nos moldes do art. 5º, CC/02 excluídos os que se encontrarem nas situações descritas nos arts. 3º e 4º do CC/02. Exclui-se também a possibilidade prevista pelo art. 1860, parágrafo único do CC/02 que prevê a possibilidade dos maiores de 16 anos testarem, atribuindo-se somente aos indivíduos que já tenham atingido a maioridade civil a capacidade para deixarem um testamento vital, pois não se trata aqui da disposição patrimonial, e visa resguardar a vida e a integridade física do menor. (BRASIL, 2002, p.13; 209)
O segundo é a informação, intimamente ligada ao consentimento informado (esclarecido), que se dá através da discussão ampla do médico com formação técnica apropriada com o paciente sobre o diagnóstico, prognóstico, os tratamentos possíveis e suas conseqüências. O que é assegurado pelo art. 5º, XIV, da CF/88, que garante a todos acesso a informação de seu interesse. (BRASIL, 1988, 22) E, ainda, o art. 59 do Código de Ética Médica, que garante ao paciente o direito de conhecer o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento. (BRASIL, 1988, p.7)
Terceiro: efeito compulsivo. O médico ao ter conhecimento do disposto no testamento vital deverá respeitá-lo, agindo em consonância e apenas nos limites deste, ainda que a família do paciente se oponha. Como estaria resguardado pela disposição testamentária não há que se falar em responsabilização civil do profissional. No entanto, se o médico violar tal disposição estará sujeito às penas impostas pelo Código Civil de 2002 em seus artigos 186, 932, 948, 949, 950 e 951. Além de sofrer sanções disciplinares. (BRASIL, 2002, p.141; 167-168)
Quarto: formulário-tipo. Visa facilitar a elaboração deste documento pelo paciente, para que a sua manifestação de vontade seja clara e facilmente compreendida.
Quinto: revogável. Por se tratar de uma manifestação de vontade, é plenamente possível a sua revogação, pois a declaração deve estar em consonância com a vontade do testador, podendo ser revogada a qualquer tempo.
Sexto: renovação periódica. Com o intuito de preservar a vontade do indivíduo, possibilitando sua alteração, tendo o documento prazo de validade, devendo ser renovado de quando em quando. Nos países que adotam o testamento vital esse prazo é de aproximadamente 5 anos.
Sétimo: certificação perante um notário. Para que se dê maior garantia de validade, deve ser realizado por meio de escritura pública ou apresentado a registro perante um tabelião, que, com a fé conferida pela lei, assegura a veracidade e validade de documento.
Oitavo: criação no âmbito do sistema de saúde de um Registro Nacional de Diretivas Antecipadas de Vontade (RENDAV). Não seria necessariamente um requisito, mas sim uma forma de garantir a eficácia do testamento vital, pois para que o médico respeite tal manifestação de vontade é necessário que tenha conhecimento desta.
Apesar de não estar elencada dentre os requisitos estabelecidos pelo estudo da Associação Portuguesa de Bioética é necessário que a manifestação da vontade seja inequívoca. A intenção do paciente deve ser precisa e claramente manifestada. Não podendo haver dúvidas acerca das providências indicadas pelo indivíduo.
No modelo utilizado nos Estados Unidos, tem-se como requisito a presença de pelo menos duas testemunhas no momento da assinatura, as quais devem de igual modo, assiná-lo. E a eficácia do documento se dará somente depois de decorridos 14 dias da assinatura, por motivos de segurança jurídica, sendo de suma importância que se estabeleça um período de espera para o testamento passar a ser válido.
Ressalte-se que as diretrizes antecipadas previstas no testamento vital aplicam-se ao paciente que se encontre em condição terminal, sob um estado permanente de inconsciência ou um dano cerebral irreversível, na qual não seja mais possível a recuperação da capacidade para tomar decisões e expressar seus desejos futuros.
3 AUTONOMIA DA VONTADE
O termo autonomia vem do grego autos (próprio, eu) e nomos (regra, domínio, governo, lei) sendo interpretado como autogoverno, liberdade de direitos, escolha individual, agir segundo a pessoa. (COHEN apud GUERRA, 2005, p.315)
É a capacidade que cada pessoa tem de se autodeterminar, fazendo escolhas e determinando seu destino atrelados ao contexto cultural, já que os seres humanos são motivados pela visão que possuem do mundo.
Segundo Santos (apud CLEMENTE; PIMENTA, 2006, p.4), “a capacidade de autogoverno é a capacidade para pensar, sentir e emitir juízos sobre o que considera bom.”
O princípio de autonomia significa o reconhecimento desta liberdade de ação, desde que o indivíduo, movido pelas suas próprias razões, não produza danos a outrem. (MOTA, 2007, p.4)
Como elenca DINIZ (apud FIÚZA, NAVES, SÁ, 2003, p.85), “é o reconhecimento de que a capacidade jurídica da pessoa humana lhe confere o poder de praticar ou abster-se de certos atos, conforme sua vontade.”
É a resistência do indivíduo à intromissão do Estado, a liberdade de decidir seu destino e arcar com a responsabilidade que decorre de sua escolha.
3.1 Autonomia da Vontade como Direito e Garantia Fundamental do Paciente
A relação médico – paciente transformou-se com o tempo, antes o médico decidia o melhor tratamento e submetia o paciente a este, muitas vezes sem que o enfermo nem mesmo soubesse do que padecia. Hoje, é dever do médico respeitar a autonomia do paciente para que possa tomar decisões referentes à enfermidade. Deve-se observar o consentimento informado para que se alcance o respeito à autonomia.
Segundo Clemente e Pimenta (2006, p.8)
As decisões médicas passaram a considerar as preferências do paciente. O fundamento ético dessa nova forma de agir está no novo modelo autonomista que gerou o direito ao consentimento informado e o fundamento lógico está nas novas teorias causais e nos novos modelos probabilistas.
O princípio da autonomia é o respeito à vontade do paciente, considerando seus valores morais e crenças religiosas. É o reconhecimento do domínio do paciente sobre sua própria vida, sobre seu corpo e sua mente, o respeito à intimidade. (MAGNO apud GUERRA, 2005, p.338)
A autonomia compreende-se como o direito do paciente no uso pleno de sua razão, ou de seus responsáveis, quando faltar consciência para estabelecer os limites em que gostaria de ter respeitada sua vontade.
Na relação médico-paciente, ambos devem ser autônomos, livres para avaliarem as opções possíveis, assegurado ao paciente o direito de consentir ou recusar determinado procedimento.
Na Bioética o respeito à autonomia do paciente é entendida como a valorização da consideração das opiniões e escolhas dos indivíduos, de modo a não obstruir suas ações a menos que estas sejam prejudiciais a outras pessoas. Assim devem ser respeitados: a liberdade de escolha do paciente, seu direito de autodeterminação, de manifestação livre de sua vontade e sua privacidade. (AMARAL, PONA, 2010, p.14)
A autonomia do paciente deve ser externada por meio de seu consentimento livre e esclarecido para que o médico possa fazer as intervenções necessárias (aplicar medicamentos, realizar cirurgias, etc.). (MAGNO apud GUERRA, 2005, p.316)
A Constituição Federal elenca em seu art. 5º, incisos II e III, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante, decorrendo ambos da autonomia da vontade. (BRASIL, 1988, p.22)
No mesmo artigo, em seus incisos IV, VI e VIII, a Constituição assegura o princípio da autodeterminação moral, que garante a liberdade dos indivíduos de pensarem e orientarem sua conduta da forma que lhes pareça apropriada, baseada em qualquer que seja a crença ou a convicção. (BRASIL, 1988, p.22)
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948, p.1-3) de igual modo assegura a liberdade de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão.
Além disso, o Código Civil dispõe em seu artigo 15 que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. O que evidencia a autonomia do paciente frente aos tratamentos médicos. (BRASIL, 2002, p.134)
É o direto básico de qualquer paciente de não sujeição, contra sua vontade, a tratamento, bem como o direito de não aceitar continuidade terapêutica, ou seja, poder exigir a suspensão dos tratamentos que lhe estejam sendo empregados. (DINIZ, 2002, p.31)
3.2 Limitação da Autonomia da Vontade pelo Estado Democrático de Direito
A autonomia da vontade é um princípio fundamental, umas das bases do ordenamento jurídico brasileiro, mas, para evitar que ocorram abusos dessa liberdade do individuo, o mesmo Estado que concede essa faculdade é obrigado a limitá-la, de forma que não haja excessos individuais nem opressão estatal.
Não se pode impor ao paciente nenhum tratamento ou procedimento contra sua vontade. Esse e a família devem ser consultados e informados, ressalvados os casos de extrema urgência em que o médico pode adotar as medidas que julgar convenientes para salvar a vida do paciente.
O Código de Ética Médica nacional veda ao médico: efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal; o desrespeito ao direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, ressalvadas as situações em que houver iminente perigo de vida; e, ainda, que a autoridade do médico seja exposta a tal ponto que limite a liberdade da pessoa sobre o que considera relevante à sua pessoa ou seu bem estar. Previsto, respectivamente, em seus artigos 46, 56 e 48. (BRASIL, 1988, p.6-7)
O desrespeito à autonomia representa uma violação aos direitos do paciente, configurando hipótese de constrangimento ilegal previsto no caput do art. 146 do Código Penal nacional, a não ser que esta intervenção esteja justificada por iminente perigo de vida conforme indica o inciso I, parágrafo 3º do mesmo dispositivo legal, ou ainda, se a coação é exercida para impedir o suicídio. (MOTA apud GUERRA, 2005, p.362)
Depreende-se desses dispositivos que o direito à vida prevalece ao direito à liberdade, pois à autonomia só será exercida plenamente nos casos em que não houver iminência de morte.
O argumento utilizado é de que a vida é um bem maior, sobrepujando-se à autonomia e tornando a realização do ato médico um dever prima facie. (MOTA apud GUERRA, 2005, p.362)
No entanto, não se trata de uma questão tão simples que possa ser resolvida por uma disposição do Código Penal, ou pela ressalvas presentes no Código de Ética Médica. Apesar da importância dessas disposições, faz-se necessário a análise os avanços tecnológicos, sociais e o ordenamento jurídico brasileiro como um todo. Está-se diante de uma mudança de valores: hoje o direito à vida, embora este seja necessário para que todos os demais direitos possam ser exercidos, já não persiste mais solitário, independente e superior a todos os demais direitos, devendo ser analisado juntamente com a autonomia de vontade, e, sobretudo à luz do princípio da dignidade da pessoa humana que é fonte legitimador de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Desta forma, ainda que o evento seja qualificado como iminente perigo de vida, a vontade expressa em um testamento vital deverá ser preservada.
4 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO DE MORRER
4.1 Direito à Vida
A vida é um direito fundamental como elenca o art. 5º da Constituição da República em seu caput. (BRASIL, 1988, p.21)
Durante muito tempo acreditou-se que os direitos fundamentais fossem absolutos, no sentido de se situarem no patamar máximo de hierarquia jurídica e de não tolerarem qualquer tipo de restrição. Desta forma, todo poder seria limitado por esses direitos e nenhum objetivo estatal prevaleceria sobre estes. Os direitos fundamentais gozariam de prioridade absoluta sobre qualquer interesse coletivo.
Prevalecia o princípio do primado do direito à vida no qual se defende que
a vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele o de liberdade religiosa, de integridade física ou mental, etc. (DINIZ, 2006, p.28)
Atualmente, o entendimento é de que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, pois estão em sua totalidade sujeitos a juízos de ponderação, em cada situação hermenêutica, com outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais.
Segundo Canotilho (apud MORAES, 2010, p.7) a relativização do direito à vida é um fenômeno social e consequentemente jurídico, podendo ser definido como
fenômeno jurídico, caracterizado pelo fato de que para se garantir a inviolabilidade da vida ou a dignidade de um ou mais indivíduos, o Direito tem que relativizar a inviolabilidade da vida de outros, os quais representam risco concreto à vida ou à dignidade dos primeiros.
O direito à vida é relativizado em três circunstâncias:
a) Quando se depara com o embate vida x vida: que é o caso da legítima defesa, uma pessoa pode tirar a vida da outra para defender a sua própria.
b) Quando se está diante de choque entre princípios: após a análise do caso concreto, um princípio irá se sobrepor ao outro, não significando que há hierarquia entre estes, mas sim que naquele caso um foi afastado para a melhor aplicação do outro.
c) Quando se tratar da defesa do direito de propriedade: hipótese em que uma pessoa que tem sua propriedade invadida mata outra para defesa dessa.
Assim, tendo em vista que não há direitos absolutos e que a Constituição da República consagra o direito a inviolabilidade da vida, deve-se questionar se o direito à vida compreende também o direito à morte, ou a inviolabilidade assegurada pela Constituição gera um dever do indivíduo em continuar vivo, ainda que intoleráveis sejam as circunstâncias em que tal vida é mantida.
Sztajn (apud, AMARAL, PONA, 2010, p.17) assevera que:
o que o preceito constitucional faz é tutelar um bem jurídico, a vida, sem alcançar a vontade de morrer e a faculdade de provocar a própria morte. A norma protege a vida contra ação de terceiros, daí porque o induzimento ao suicídio é tipificado como conduta delitual. A autonomia na escolha de entre viver ou não deve ser absoluta, resultar da manifestação livre e informada, sem interferência externa de qualquer ordem, especialmente do médico ou do Estado.
A Constituição estabelece em diversos artigos a tutela à vida, dentre eles podemos elencar o art. 5º no qual este recebe status de direito fundamental e em seu inciso XXXVIII instituiu o processo penal por meio do Tribunal do Júri para punir os crimes dolosos contra a vida. E ainda, o art. 225, parágrafo 1º impõe que o Poder Público assegure um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Desta forma, percebe-se o dever do Estado de agir para preservar a vida e ainda lhe garantir determinado grau de qualidade. (BRASIL, 1988, p.75)
Segundo Mota (apud GUERRA, 2005, p.368)
cabe recordar que um dos fins do Estado é propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas. Todavia, a dignidade humana pode ser por diversas maneiras violada, por exemplo, quando o próprio Estado interfere nas convicções mais profundas e essenciais daquelas. Às pessoas cabe dar sentido às suas próprias vidas, e ao Estado cabe facilitar-lhes o exercício da liberdade. Nesse diapasão, liberdade e dignidade ascendem ao patamar dos direitos fundamentais.
No dizer de Canotilho (apud MORAES, 2010, p.22), os direitos fundamentais exercem
a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera, jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).
O direito à vida está intrinsecamente atrelado ao direito de defesa, ou seja, impedir que os poderes públicos pratiquem atos contra a existência de qualquer ser humano e que outros indivíduos se submetam ao dever de não agredir esse bem.
A previsão constitucional do direito de inviolabilidade da vida se destina a assegurar ao indivíduo que ninguém atente contra sua vida. Sendo designada também ao Estado, o qual tem a obrigação de garantir a efetividade deste direito, provendo aos indivíduos segurança e as condições mínimas para o desenvolvimento pleno da vida destes, mas não destinado ao próprio indivíduo, impondo-lhe o dever de continuar vivo em quaisquer circunstâncias.
Assim, o que é assegurado pela Constituição Federal é o direito à vida e não o dever de viver, pois como bem elenca o art. 5º, III, não se admite que o indivíduo seja obrigado a se submeter a tratamento desumano ou degradante. Diante disso, por não ser obrigado a continuar vivo, é possível a escolha do indivíduo anteriormente mesmo à própria doença, de não receber tratamento caso se encontre em estado vegetativo no qual não possa mais expressar sua vontade. (BRASIL, 1988, p.22)
Segundo Borges (apud CLEMENTE; PIMENTA, 2006, p.5) é assegurado o direito à vida, não o dever de viver.
A Constituição não prevê o direito à morte, pelo fato de que ninguém é imputado o dever de matar. Dever à vida é coisa que não existe. Tanto é assim que o Código Penal não tipifica como ilícito penal a tentativa de suicídio. A vontade do paciente expressa no testamento vital de não se submeter a tratamentos inúteis que apenas prolongam uma mera vida biológica, sem nenhum outro resultado, não é forma de eutanásia. É reconhecimento da morte como elemento da vida humana, é da condição humana ser mortal. É humano deixar que a morte ocorra, sem o recurso a meios artificiais que prolonguem inutilmente a agonia. A intervenção terapêutica contra a vontade do paciente é um atentando contra a sua dignidade.
Santos (apud CLEMENTE, PIMENTA, 2006, p.5) elenca que
o direito à vida constitucionalmente, não é um direito sobre a vida. Constitui-se direito de caráter negativo, impondo-se pelo respeito que a todos os componentes da coletividade se exige. O direito à vida, no âmbito privatístico, confere o direito de personalidade as características de indisponibilidade e não interferência de terceiros.
O que se defende aqui é que o direito a uma morte digna, também foi protegido pela Constituição Federal. Quando se defende o direito à morte digna não quer dizer que o indivíduo possa extirpar seu direito fundamental precípuo, necessário para a efetivação dos demais, mas sim que tendo em vista um ideal de qualidade de vida e a não intervenção de terceiros nem do Estado na vida do indivíduo, que este possa negar-se a submeter-se a tratamentos que apenas prolonguem uma vida sem dignidade, onde haveria quantidade ao invés de qualidade.
Diniz (2006, p.381) ao tratar do direito à morte digna assevera que
a dignidade da pessoa humana é o valor fonte legitimador de todo ordenamento jurídico. A consciência jurídica atual, diante da indiferença de um mundo tecnicista e insensível, precisa ficar atenta à maior de todas as conquistas: o respeito absoluto e irrestrito pela dignidade humana, que passa a ser um compromisso inafastável e um dos desafios para o século XXI.
Faz-se necessário ainda, destacar a importância da filosofia do hospice (asilo), que atualmente é adotada nos hospitais através da medicina paliativa, e que visa resguardar o direito a uma morte digna. Dentre seus pilares estão a aceitação da morte como episódio natural do ciclo da vida e que não se deve antecipar, nem prolongar a vida se a morte é inevitável. Busca enfrentar a morte como um processo normal e assegurar a qualidade de vida do paciente terminal, dando possibilidade a este ou a seus familiares de decidir sobre a recusa, ou não, de qualquer intervenção tecnológica prolongadora da vida.
O que o testamento vital viabiliza é que uma pessoa ao perder sua capacidade de discernimento não seja submetida à vontade do Estado ou de terceiros, sendo submetida a tratamentos degradantes que apenas prolongariam uma vida sem dignidade. Não se trata de defender a pratica da eutanásia ou do suicídio, que são vedados pelo ordenamento jurídico, mas sim de garantir ao indivíduo o direito de escolher os tratamentos aos quais quer ou não ser submetido.
4.2 Dignidade da Pessoa Humana
Assim como aconteceu com os direitos humanos em geral, o respeito à dignidade humana, representa a culminação de um longo processo, que se desenvolveu em, pelo menos três fases, como leciona Bobbio (apud, MENDES, 2010, p.217):
Num primeiro momento, eles aparecem como teorias filosóficas nas obras dos seus defensores; a seguir, inserem-se em textos de âmbito nacional; e, por derradeiro, são enunciados em documentos de alcance mundial, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Sarlet (2001, p.101) ensina que
a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana é relativamente recente, […] tão-somente a partir da Segunda Guerra Mundial, o valor fundamental da dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecido expressamente nas Constituições, de modo especial após ter sido consagrado pela Declaração Universal da ONU de 1948.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem elenca em seu artigo 1º que, “ todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade.” (ONU, 1948, p.1)
A ideia de dignidade humana está associada à proteção das circunstâncias indispensáveis para uma existência plena de sentido. Essa idéia traduz o estado do ser humano enquanto indivíduo, não podendo este ser tido com objeto à disposição de interesses alheios, impondo limites às ações que não consideram a pessoa como um fim em si mesmo.
Como bem elenca Reale (apud, MENDES, 2010, p.214):
toda pessoa deve é única e que nela já habita o todo universal, o que faz dela um todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve ser vista antes como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo instante crepita, renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que, afinal, embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer concepção transpersonalista, a cuja luz a pessoa perde os seus atributos como valor-fonte da experiência ética para ser vista como simples “momento de um ser transpessoal” ou peça de um gigantesco mecanismo, que, sob várias denominações, pode ocultar sempre o mesmo “monstro frio”: “coletividade’, “espécie”, “nação”, “classe”. “raça”, “ideia”, “espírito universal”, ou “consciência coletiva”.
Segundo Moraes (2010, p.22) a dignidade da pessoa humana
concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Insta salientar que a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca do indivíduo, sendo irrenunciável, inalienável e inerente a toda e qualquer pessoa humana.
Uma Constituição que, de forma direta ou indireta, consagra a idéia de dignidade da pessoa humana parte do pressuposto de que o ser humano, em virtude de sua condição biológica humana independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por terceiros e pelo Estado. (SARLET, 2001, p.106)
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios em que se fundamenta a República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º da Constituição Federal. (BRASIL, 1988, p.21)
Nunes (2007, p.45) assevera que a dignidade
é o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais, funcionando como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidas a estes constitucionalmente.
Delpérée (apud, CARVALHO, 2008, p.654) assevera que a Constituição Federal, ao elencar a dignidade da pessoa humana como direito fundamental, consagrou um direito de resistência:
Cada indivíduo possui uma capacidade de liberdade. Ele está em condições de orientar a sua própria vida. Ele é por si só depositário e responsável do sentido de sua existência. Certamente, na prática, ele suporta, como qualquer um, pressões e influências. No entanto, nenhuma autoridade tem o direito de lhe impor, por meio de constrangimento, o sentido que ele espera dar a sua existência. O respeito a si mesmo, ao qual tem direito todo homem, implica que a vida que ele leva dependa de uma decisão de sua consciência e não de uma autoridade exterior, seja ela benevolente ou paternalista.
A dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. Limite da atividade dos poderes públicos, uma vez que a dignidade pertence a cada um devendo ser respeitada, não podendo ser perdida ou alienada. E tarefa, a medida que importa ao Estado assegurar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade. (SARLET, 2001, p.108)
A dignidade é inerente à pessoa humana. É o respeito à integridade física e psíquica do indivíduo, aos seus pensamentos, ações e comportamentos, a sua imagem, a sua intimidade, é a sua liberdade de consciência religiosa, científica, espiritual. Enfim, é assegurar que o indivíduo tenha sadia qualidade de vida.
O respeito à dignidade da pessoa humana que é o fundamento do Estado Democrático de Direito, é a essência do ordenamento jurídico brasileiro, devendo ser tido como fim da sociedade e do Estado e prevalecer sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. (DINIZ, 2006, p.19)
Dessa forma a dignidade (virtude, honra, consideração) das pessoas deve ser respeitada em todos os aspectos, devendo ser levado em conta sua vontade, inclusive para escolher tratamentos ou de recusar os mesmos.
No entanto, atualmente nos deparamos com situações nas quais o indivíduo é posto em segundo plano e os tratamentos nele empregados são tidos como fins em si mesmos, e a intenção não é a de evitar a morte, mas, apenas e tão somente, de prolongar a vida. ( AMARAL, PONA, 2010, p.24)
Desta forma, ocorre a escolha pela quantidade de vida em detrimento de sua qualidade, sendo o indivíduo reduzido à condição de coisa, o que ofende o principio da dignidade da pessoa humana. E ainda, se a submissão a tratamentos se der de forma contrária à vontade do paciente estaremos diante de ofensa à sua liberdade de escolha e a sua autonomia.
Assim, tendo em vista que o testamento vital tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, que é o valor legitimador de todo ordenamento jurídico, esse tem amparo constitucional sendo possível a sua inclusão no ordenamento jurídico brasileiro.
4.3 Relação entre o princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana e os direitos fundamentais
Os direitos fundamentais segundo Schneider (apud SARLET, 2001, p.62) “podem ser considerados conditio sine qua non do Estado constitucional democrático.” Desta forma um Estado no exercício de seu poder está condicionado aos limites fixados na sua Constituição.
Os direitos fundamentais possuem função limitadora do poder do Estado e critérios de legitimação deste poder. Sarlet (2001, p. 63) ensina que
os direitos fundamentais passam a ser considerados, para além de sua função originária de instrumentos de defesa da liberdade individual, elementos da ordem jurídica objetiva, integrando um sistema axiológico que atua como fundamento material de todo o ordenamento jurídico.[…] Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos, integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais, a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo.
Os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios, conforme elenca o artigo 5º, parágrafo 2º, da CF, são posições jurídicas material e formalmente fundamentais fora do Título II, diretamente deduzidas do regime e dos princípios fundamentais da Constituição, considerados como tais aqueles previstos no Título I dessa. Assim os direitos decorrentes do regime e dos princípios possuem importância equiparada com os direitos e garantias fundamentais. (SARLET, 2001, p.98)
Segundo Sarlet (2001, p. 98)
de acordo com a redação do art. 5º, § 2º, da nossa Constituição, poder-se-ia, ao menos em princípio, sustentar que apenas os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios se encontram umbilicalmente vinculados aos princípios fundamentais consagrados no Título I da nossa Lei Fundamental, no sentido de que os demais direitos fundamentais localizados fora do catálogo (na Constituição ou em tratados internacionais) não são – ou não precisam ser – necessariamente decorrentes daqueles. […] Assim, não há como negar que os direitos à vida, bem como os direitos de liberdade e de igualdade correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana.
A maior parte dos direitos fundamentais pode ser identificada por seu conteúdo comum, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, que se materializa através do reconhecimento e positivação de direitos e garantias fundamentais.
O princípio da dignidade da pessoa humana tem caráter dúplice como bem elenca Sarlet (2001, p.100)
além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização deste princípio, também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais, revelando, de tal sorte, sua íntima relação com o art. 5º, § 2º, da nossa Lei Fundamental.
Apesar de o Constituinte de 1988 não ter incluído a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos fundamentais, o que faria desta um autêntico e típico direito fundamental, esta recebeu o tratamento de princípio fundamental do qual os direitos fundamentais podem, de modo geral, ser considerados concretizações de suas exigências.
Segundo Sarlet (2001, p. 100)
este princípio deve ser considerado em si mesmo, como um autêntico direito fundamental autônomo, em que pese sua importante função, seja como elemento referencial para a aplicação e interpretação dos direitos fundamentais, seja na condição de fundamento para a dedução de direitos fundamentais decorrentes.
A qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental tem conteúdo ético e moral, além de constituir norma jurídico-positiva com status constitucional, dotada de eficácia o que a torna um valor jurídico fundamental da sociedade. Desta forma, é a essência de todo o ordenamento jurídico.
Assim, tendo em vista que os direitos fundamentais são concretizações ou desdobramentos da dignidade da pessoa humana e que com base nessa devem ser interpretados, pode-se afirmar que o princípio da dignidade exerce o papel de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais dando-lhes unidade e coerência.
Carvalho (2008, p. 686) ensina que
os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. Encontram limitações na necessidade de se assegurar aos outros o exercício desses direitos, como têm ainda limites externos, decorrentes da necessidade de sua conciliação com as exigências da vida em sociedade, traduzidas na ordem pública, ética social, autoridade do Estado, etc., resultando, daí, restrições dos direitos fundamentais em função dos valores sociais aceitos pela sociedade.
Desta forma, da análise dos apontamentos de Sarlet e Carvalho, pode-se concluir que havendo conflito entre o princípio da dignidade da pessoa humana e um dos direitos fundamentais é possível que o princípio se sobreponha ao direito, uma vez que os direitos fundamentais não são absolutos e devem ser interpretados a luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
4.4 Embate entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana
Ao investigarmos a validade dos testamentos vitais perante o ordenamento jurídico brasileiro surge o embate entre o princípio da indisponibilidade da vida e o princípio da dignidade da pessoa humana conjugado com a autonomia de vontade.
Colisão que deve ser analisada com cuidado, pois, embora o direito à vida seja inviolável, não existem direitos absolutos. Os princípios da dignidade humana e da autonomia da vontade possuem valor igual ao atribuído ao princípio da inviolabilidade á vida.
Como não há hierarquia entre princípios, devendo-se em caso de colisão, um princípio ceder ante o outro. O que não significa que este perca sua validade ou que não deva ser observado, mas sim que naquele caso concreto ao exercer um juízo de ponderação foi necessário que este fosse afastado para plena eficácia do outro.
Desta forma pode-se dizer que o conflito entre princípios se dá na dimensão do peso.
Essa ideia de peso significa que o conflito entre princípios será resolvido tendo em vista a sua hierarquização. Não uma hierarquização absoluta, é verdade, mas uma hierarquização tendo em vista o caso concreto, realizada pelo procedimento de ponderação dos princípios envolvidos na situação. (GALUPPO, 2002, p.175)
Assim apenas a análise do caso concreto poderá dizer qual princípio irá se sobrepor ao outro, sendo plenamente possível que sob outras condições a preponderância ocorra de maneira inversa.
Como bem elenca Mota (apud GUERRA, 2005, p.355)
o direito à vida, reconhecido no art. 5º da Constituição brasileira, nem sempre pode considerar-se inviolável, mas sim que seja quantitativamente graduável e suscetível de ponderações quando entra em conflito com outros interesses, pois bem vida não se coloca no mundo jurídico alheio à sua qualidade de vida digna e livre, o que a liberta de ser um mero ato biológico.
E é exatamente por ser a vida o bem maior, traduzindo-se como bem indisponível, da qual derivam todos os demais direitos, que se defende a inclusão do testamento vital no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que este almeja a garantia de vida e morte dignas.
A vontade declarada pelo paciente nada mais é do que o seu posicionamento diante desse embate. Nesse aspecto, a morte digna desejada pelo indivíduo nada mais seria do que deixar a natureza agir por si própria, no que a medicina não pode remediar.
Como todos os princípios são relativizados, não se pode afirmar que a dignidade da pessoa humana sempre prevalecerá em detrimento do direito à vida, pois apesar de o primeiro ser um princípio de valor pré-constitucional e de hierarquia supra constitucional, deve-se existir um amplo grupo de condições de precedência, assim como um elevado grau de segurança no sentido de que, presentes tais condições, este prevalece sobre os demais.
Não havendo então que se falar em hierarquia ou valoração de princípios, o que ocorre é que em determinadas situações legitima-se a precedência do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana sobre a indisponibilidade da vida.
5 DIFERENCIAÇÃO ENTRE TESTAMENTO VITAL E EUTANÁSIA
Os testamentos vitais ou as diretrizes antecipadas são instrumentos de manifestação de vontade com a indicação negativa ou positiva de tratamentos e assistência médica a serem ou não realizados em determinadas situações. Trata-se de uma escolha do paciente em se submeter ou não a determinado tratamento, que não lhe trará a cura, mas poderá adiar a sua morte.
Nesse contexto, assim como o paciente participa das decisões acerca do tratamento indicado pelo médico, emitindo a sua opinião sobre os procedimentos a serem adotados sobre a sua saúde e a sua vida, deve o médico, também, ouvir o paciente quando da indicação de determinado tratamento.
O médico de hoje, dentro das suas atribuições, indica e recomenda o tratamento adequado. O paciente, dentro da autonomia que lhe é assegurada, aceita ou não a recomendação, exercendo poder de escolha para tomar decisões sobre si.
Não se trata de eutanásia, cuja prática consiste em pôr fim à vida de um enfermo incurável, a seu pedido, em razão de um sofrimento insuportável, de maneira assistida, cujo ato é praticado por um terceiro.
Sá (2005, p.38) ensina que o termo eutanásia deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como “boa morte”, “morte apropriada”, morte piedosa, morte benéfica, fácil, crime caritativo, ou simplesmente, direito de matar. Sendo a nomenclatura eutanásia utilizada como a ação médica que tem por finalidade abreviar a vida de pessoas. É a morte de pessoa – que se encontra em grave sofrimento decorrente de doença, sem perspectiva de melhora – produzida por médico, com o consentimento daquela. A eutanásia, propriamente dita, é a promoção do óbito. É a conduta, por meio da ação ou omissão do médico, que emprega ou omite meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida.
Como bem elencam Clemente e Pimenta (2006, p.7)
O direito de morrer dignamente não deve ser confundido com direito à morte. O direito de morrer dignamente é o desejo, a reivindicação por vários direitos e situações jurídicas, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, os direitos de personalidade. Refere-se ao desejo de se ter uma morte natural, humanizada, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil. Isso não se confunde com o direito de morrer.
O testamento vital não se confunde com a prática da eutanásia ou do auxílio ao suicídio, que são intervenções que causam a morte. O testamento vital visa resguardar o direito de morrer dignamente, não se trata de defender qualquer procedimento que cause a morte do paciente, mas sim de reconhecer sua liberdade e sua autodeterminação. (SANTOS, 2001, p.40)
No caso de o paciente solicitar a eutanásia ativa, por exemplo, o médico estaria proibido de executá-la, pois é ilegal no Brasil. Porém, nos casos em que a doença levar inevitavelmente à morte, o direito de autodeterminação do paciente deve ser respeitado.
6 CONCLUSÃO
No Brasil não há regulamentação do testamento vital, no entanto ao conjugar a interpretação das diversas normas percebe-se que é possível a inclusão desse documento no ordenamento jurídico brasileiro.
O ritmo acelerado de inovações tecnológicas das últimas décadas na seara da medicina trouxe um grande poder de intervenção sobre a vida e a morte. Assim, faz-se necessária uma reflexão a respeito da bioética e do biodireito para buscar a melhoria da qualidade de vida do ser humano e o que deve ser considerado prioritário, possibilitando ao homem vida e morte dignas.
Ao se analisar o embate entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, não se deve ter como base o ponto de vista biológico, sob o qual sem vida não é possível defender nenhum outro direito, mas sim o de que a dignidade da pessoa humana é um valor que deve ser preenchido a priori, uma vez que esta nasce com a pessoa, é de sua essência, logo, não existe vida sem dignidade.
Nesse contexto, tem-se por constitucional a permissão para que uma pessoa disponha antecipadamente, enquanto plenas suas capacidades mentais, não querer ser mantida viva em condições as quais considera indignas, sustentada por inúmeros aparelhos. Não permitir tal disposição, condenando antecipadamente os indivíduos a serem mantidos vivos a qualquer custo, atenta contra sua dignidade.
No caso de o paciente solicitar prática de tratamento vedado na legislação brasileira, como por exemplo, a eutanásia e o suicídio assistido, o médico estaria proibido de executá-lo. Porém, nos casos em que a doença leve inevitavelmente à morte, o direito de autodeterminação do paciente deve ser respeitado.
Desta forma deve ser analisado o caso concreto para que se tenha a melhor solução a ser seguida. Não se trata de fazer cumprir a declaração de vontade do indivíduo nos moldes por ele deixados, mas realizá-la dentro dos limites impostos pela lei. Sendo assim os testamentos vitais poderiam ser feitos e cumpridos apenas nos casos de doenças irreversíveis ou terminais, cujo tratamento destinado a prolongar a vida do enfermo provocaria inevitavelmente, dor (física ou psicológica) e degradação.
De fato, não é possível a previsão de todos os casos pela lei. Cada quadro clínico tem um desenvolvimento próprio. Porém, compete à família e ao corpo clínico responsável avaliar a situação do paciente se enquadra dentro dos limites previstos em lei.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do; PONA, Éverton Willian. Autonomia da vontade e testamento vital: a possibilidade de inclusão no ordenamento jurídico brasileiro. 2010. 29 f. Artigo Científico – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010.
BAUDOUIN, Jean-Louis, BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Universitaires de France, 1993, p. 97-98.
BETANCOR, Juana Teresa. El Testamento Vital. Eguzkilore, San Sebastián, n. 9, p. 100, dic. 1995.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001. p. 32.
BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Imprensa Nacional, Diário Oficial da União, 12 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui %C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02 nov. 2011.
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[1]Graduando do 10º período do curso de Direito – FACISA – do Centro Universitário Newton Paiva
[2] Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2006), Professor adjunto do Centro Universitário Newton Paiva, Professor Orientador do CEJU – Centro de Exercícios Jurídicos, Professor da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.