Ana Carolina Campos Oliveira[1]
Fernando Gonçalves Coelho Júnior[2]
Ronaldo Passos Braga[3]
Valéria Edith Carvalho de Oliveira[4]
Resumo: O artigo propõe um estudo sobre os crimes de lesão corporal leve cometidos no âmbito doméstico e familiar, sob a incidência da Lei 11.340 de 2006, baseada no caso da biofarmacêutica Maria da Penha. Com ênfase nas condições de procedibilidade, processamento e renúncia nesses delitos, à luz do Código de Processo Penal e Legislação específica.
Palavras chave: Lei Maria da Penha. ADI 4424. Ação penal.
Áreas: Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Processual Penal e Legislação Especial.
1 – Introdução – A violência contra a mulher.
A agressão doméstica é um assunto que provoca desconforto entre homens e mulheres, não apenas pelo preconceito, como também pelo desconhecimento e influência cultural ultrapassada. Este é um problema que satura a seara privada e invade a esfera pública, precisando de soluções urgentes e improrrogáveis. Muitas eram as dúvidas e mudanças esperadas pelo Governo Brasileiro, no entanto, a primeira delas foi a condição para o desenvolvimento das demais, o reconhecimento desse mal social e a intenção de combatê-lo.
O primeiro passo escolhido para combater esse tipo de violência foi ratificar da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – Cedaw (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against women) de 1º de fevereiro de 1984, com reservas a alguns dispositivos. Depois, em 1994, tendo em vista o reconhecimento, pela Constituição Federal brasileira de 1988, da igualdade entre homens e mulheres, em particular na relação conjugal, o governo brasileiro retirou as reservas, ratificando plenamente todo o texto da convenção. (CARVALHO:2011)
Esta convenção apontou os problemas gerados pelas desigualdades entre homens e mulheres, e a necessidade de amenizar os resultados. É preciso entender que a participação da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, para o bem-estar do mundo e para a causa da paz. E, em apelo maior, o reconhecimento de que a discriminação contra a mulher viola os princípios de igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviços ao seu país e à humanidade.
O segundo passo adotado pelo Brasil nessa direção foi a ratificação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – mais conhecida como “Convenção de Belém do Pará”. Essa mesma convenção foi adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA, em 6 de junho de 1994, e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995. O tratado complementa a CEDAW (Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) e reconhece que a violência constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, de forma a limitar total ou parcialmente o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades. (CARVALHO: 2011).
2- Violação ao Princípio da Igualdade e Dignidade da Pessoa Humana
Entretanto, todas as iniciativas tomadas não afastaram a problemática da violência doméstica praticada contra a mulher cuja origem em tempos remotos é saudada por uma cultura enraizada pela dominação masculina. A partir dessa ótica, é possível detectar resultados que repercutem no meio social e privado de ambos os sexos com a finalidade de impor papéis sociais diferenciados e embasados pela cultura machista pregada através da submissão da mulher ao homem. Por isso, a represália ao ato rudimentar não significa uma tarefa simples de ser solucionada.
A sedimentação do princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º, inciso III estremeceu as bases do direito civil, mais especificamente no ramo do direito de família, uma vez que neste âmbito o indivíduo obtém plena realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os integrantes dessa sub-sociedade (família) deixa de representar a conotação patrimonial para envolver, sobretudo, o afeto, carinho, amor e a ajuda mútua. Além do artigo mencionado, o diploma jurídico também otimizou o combate à violência doméstica em seu artigo 226, parágrafo 8º, pois o Estado deve assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Assim, a violência familiar cria um status constitucional.
Desta feita, o respeito à mulher é manifestado nas garantias de igualdade material, liberdade, integridade e solidariedade, todas consagradas e asseguradas na Constituição Federal e no Código Civil, harmônicos com a ideia de justiça distributiva e dignidade da pessoa humana, fundamento da Constituição da República Federativa Brasil no seu art. 1º, III (CAVALCANTI: 2011).
3- Caso nº 12.051/OEA : MARIA DA PENHA
Em 29 de maio de 1983, a biofarmacêutica Maria da Penha foi vítima de violência doméstica praticada por seu ex-marido, que a agrediu durante o sono, e na oportunidade dissimulou a ação como se tivesse corrido uma tentativa de roubo. A agressão, na verdade, foi uma tentativa de homicídio que deixou seqüelas permanentes: paraplegia nos membros inferiores. Duas semanas depois de regressar do hospital, ainda durante o período de recuperação, Maria da Penha sofreu o segundo atentado contra a sua vida: sabendo de suas condições, seu ex-marido tentou eletrocutá-la durante o banho.
Entre a prática dessa dupla tentativa de homicídio e a prisão em definitivo do criminoso transcorreram nada mais nada menos que 19 anos e seis meses, graças aos procedimentos legais e instrumentos processuais brasileiros vigentes à época, que colaboraram demasiadamente pela morosidade da justiça em condená-lo.
Em razão desse vergonhoso fato, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima – Maria da Penha – formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA – órgão internacional responsável pelo arquivamento de comunicações decorrentes de violação desses acordos internacionais.
Diante da displicência brasileira perante a morosidade procedimental com relação aos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Comissão da OEA publicou o relatório de número 54 em 2001, concluindo que o Estado brasileiro é responsável pela sua omissão no trato da violência doméstica e familiar praticado contra a mulher e é premido a adotar ações no combate a essa forma de ofensa à dignidade humana.
Nasce, dessa forma, o primeiro Projeto de Lei 4.559/2004, que teve, em sua elaboração, participação de organizações não-governamentais de combate à violência doméstica. Após alguns debates em audiências públicas, o projeto, inclusive no Senado Nacional, sofreu algumas alterações e foi sancionado pelo Presidente da República em 7 de agosto de 2006 resultando na Lei 11.340 que está em vigor desde 22 de setembro de 2006 em virtude da vacatio legis de 45 dias prevista no artigo 46 no corpo de seu texto.
Muito se questiona sobre a constitucionalidade desta lei, argüindo-se a possível ofensa ao artigo 5º, caput e inciso I e artigo 226, parágrafo 5º, ambos da Carta Magna que versam a respeito da inviolabilidade do direito à igualdade entre homens e mulheres. Os que defendem a inconstitucionalidade da Lei afirmam que a elaboração do instituto defende e beneficia exclusivamente a mulher em desfavor do homem e, por isso, afronta o princípio da igualdade, sendo esta uma norma supraconstitucional a qual todas as outras devem obediência, servindo como garantidor contra injustiças e para tolher favoritismos.
Entretanto, alinhado com o posicionamento majoritário, que aduz ser constitucional a discriminação de gênero resguardada pela Lei 11.340/06, que na verdade protege a discriminação positiva, pois estão sendo tratados desigualmente homens e mulheres, tendo em vista que a mulher fragilizada pela violência necessita ser protegida para alcançar o status de igualdade. Registre-se, a possibilidade do homem também poder sofrer violência doméstica, além de configurar uma situação isolada, já possui resguardada na legislação em vigor de forma a respeitar a analogia. A Lei vem na exata medida de efetivar o princípio da igualdade. Sendo assim, afastando todas as prováveis ofensas aos princípios mencionados, a relativa Lei tem o condão de ser instrumento pacificador e de transformação social (ALVES: 2011).
4 – Hipóteses de aplicabilidade da Lei Maria da Penha
Conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a Lei Maria da Penha estende sua aplicação a toda violência praticada em razão de relação amorosa, abrangendo assim namoro, noivado, casamento e união estável. Realça-se aqui, que no caso de simples namoro, mesmo não havendo coabitação há entendimento pela aplicação da referida Lei, funcionando como paradigma no caso concreto a existência de nexo causal entre a conduta criminosa e a relação de intimidade entre os envolvidos.
CC 96532 / MG. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E CONVIVÊNCIA INDEPENDENTE DE COABITAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL.1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação.2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica.3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles casos concretos, a agressão não decorria do namoro. 4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar. 5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete –MG. (STJ. 3ª Seção. Rel. Min. Convocada Desembargadora Jane Silva do TJMG.19/12/2008).
5- A ineficácia da Lei 9.099/95 no combate aos crimes de violência (doméstica/familiar) contra a mulher.
O procedimento aplicado aos Juizados Especiais previstos na Lei 9.099/95 revelou-se extremamente incapaz de atuar nos casos de violência previstos nas Lei 11.340/06, haja vista que torna banal o crime praticado contra a mulher que se origina na forma branda da resposta penal proposta pelos Juizados.
Esta banalização da resposta penal é decorrente dos institutos despenalizadores contidos na Lei 9.099/95, uma vez que esta lida com delitos de menor potencial ofensivo e são resolvidos com o pagamento de cestas básicas a entidades beneficentes cadastradas nos Juizados e também através de penas restritivas de direitos, dentre outras penas alternativas.
Os institutos despenalizadores significam um grande avanço para o direito penal, mas na esfera da violência doméstica não há como presenciar um grande progresso, pois os Juizados Especiais Criminais foram criados com a finalidade de desafogar o judiciário e evitar a estigmatização do sistema penal, entretanto, não atendem ao efetivo amparo às vítimas de crimes praticados em situação de violência doméstica ou familiar.
A exemplificação deste aspecto está na prisão preventiva e assim, a impossibilidade da prática descrita no artigo 313 do Código de Processo Penal, antes da alteração sugerida pela Lei 11.340/06 que deixava à mulher a absoluta situação de abandono e descaso, levando a descrédito a Justiça Brasileira.
Assim, há de encontrar a incapacidade de oferecer à mulher a proteção necessária, ou pela inviabilidade na prisão cautelar do agressor no caso de crimes de menor potencial ofensivo ou pela ausência de normas específicas de proteção à vítima. Registre-se, somente haveria a possibilidade da medida cautelar pessoal no referente aos crimes de menor potencial ofensivo se o agressor recusasse a posteriormente comparecer a uma audiência de conciliação.
Além do mais, a inoperância da Lei 9.099/95 está no controle desses crimes, pois verifica-se o alto índice de desistências sob o prisma da “ausência de interesse da vítima” ou na retratação da representação ocorridas na audiência preliminar ou mesmo na audiência de instrução e julgamento. Essa conciliação que ocorre não é para apenas o ressarcimento dos danos, mas também para o arquivamento dos autos, e este arquivamento (ou desistência da vítima), em geral era induzido pelo magistrado ou conciliador, através da insistência feita à vítima de aceitar o compromisso (verbal e não expresso/judicial) do agressor em não reiterar a prática do ato violento, renunciando ao direito de representar.
As audiências eram realizadas mais no intuito de resolver o processo, mediante a “falta de interesse da vítima” em prosseguir do que com o fato de ser necessária a resolução do problema mediante as ações de prevenção e repressão. Ficando provada a inviabilidade, sob diversos aspectos, à aplicabilidade do sistema adotado pela Lei 9.099/95 em ser incapaz de punir o agressor e oferecer proteção à vítima.
6- As alterações trazidas pela lei 11.340/06
Iniciativa tomada pela Lei 10.455/02 no sentido de conferir à mulher vítima de violência doméstica e familiar um amparo especial ao acrescentar na parte final do parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95, que a partir de então passou a vigorar com o seguinte texto: “Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.”. No âmbito do direito material, a Lei 10.455/02 alterou o artigo 129 do Código Penal, ao acrescentar no parágrafo 9º o subtipo penal de lesão corporal decorrente da violência doméstica, na qual não ingressou o efetivo combate.
O nascimento da Lei 11.340/06 promulgada em 7 de agosto trouxe a oportunidade processual de tipificar o instrumento específico para o efetivo combate à violência em tela. E, com ela, finalmente a origem do mecanismo específico de amparo à vítima. Dentre todas as inovações, é possível explicitar as seguintes alterações no que tange à estruturação: a tipificação e definição da violência doméstica e familiar; o reconhecimento de ser a violência doméstica e familiar uma das formas de violação dos direitos humanos; a competência dos Juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher; impossibilidade de fixação de penas de cesta básica ou outras formas de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa pelo agressor; a necessidade de participação do Ministério Público nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica; não aplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher independentemente da pena prevista; estabelecimento de medidas de assistência e proteção a essas mulheres vítimas da violência; desenvolvimento de políticas públicas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares resguardando-as de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Dessa forma, com a nova Lei, efetivamente, o poder familiar passa a contar com um instrumento apto a coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, inaugurando uma nova fase na história das instituições públicas e sociais, na medida em que condensa um conjunto de regras penais e extrapenais com o fim de diminuir a impunidade e, principalmente, proteger a entidade familiar.
7-Da ação penal
No sistema processual penal pátrio, a ação penal pode ter caráter público ou privado, sendo que a primeira pode ser condicionada ou incondicionada à representação e a segunda pode ser exclusivamente privada ou privada subsidiária da pública. Essa subdivisão deriva objetivamente do sujeito que possui a titularidade da ação penal.
Em regra, a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido, conforme descrito no artigo 100 caput do Código Penal e no seu parágrafo 1º descreve que a ação penal pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça. E, no mesmo sentido, está previsto no artigo 24 caput do Código de Processo Penal.
Assim, a regra é que a ação penal seja pública incondicionada, exigindo a lei, para que seja considerada privada ou pública condicionada à representação, com expressa previsão, ou seja, sempre estarão contidas nas normas complementares ao tipo penal incriminador. Na ação penal pública incondicionada prevalece o interesse do Estado, sendo de todo irrelevante a vontade do ofendido, necessitando apenas do mínimo de justa causa para o oferecimento da denúncia e assim a promoção da ação penal.
Nesse sentido, ensina Prado:
Sendo a ação penal pública incondicionada, estarão dispensados quaisquer requisitos para a sua promoção. O Ministério Público oferecerá a denúncia independentemente de representação da vítima ou de requisição do Ministério da Justiça. É irrelevante mesmo a vontade contrária do ofendido, ou de quem quer que seja (PRADO, 2006, p.750).
Na ação pública condicionada há exigência de uma condição de procedibilidade, seja pela representação do ofendido ou de seu representante, seja por requisição do Ministro da Justiça em determinados casos. Portanto, não há o que se falar em ação se não haver vontade da vítima, ou seja, contra a vontade da mesma, a ação não será levada à apreciação do Poder Judiciário. No entanto, uma vez implementada a condição de procedibilidade, torna-se múnus, atribuição do Ministério Público o processamento criminal, cabendo retratação da vítima somente até o oferecimento da exordial acusatória.
Assim esclarece Bitencourt:
Na ação penal pública condicionada há uma relação complexa de interesses do ofendido e do Estado. De um lado, o direito legítimo do ofendido de manter o crime ignorado; de outro lado, o interesse público do Estado em puní-lo: assim, não se move sem a representação do ofendido, mas, iniciada a ação pública pela denúncia, prossegue até decisão final sob o comando do Ministério Público (BITENCOURT, 2007, p.335).
Por fim, na ação penal privada e em qualquer das suas subespécies, o Estado, titular do exclusivo direito de punir, transfere a legitimidade de propor a ação para o ofendido ou seu representante legal. Pois, fundamenta-se na preservação da intimidade da vítima, uma vez que o processo pode ser mais danoso do que a própria repreensão do agente.
7.1 – A ação penal nos crimes de lesão corporal leve
Nos crimes de lesão corporal leve, tradicionalmente, o Direito Brasileiro previa que o delito deveria ser processado via ação penal pública incondicionada, à míngua de não haver previsão expressa em sentido contrário. Neste caso, no crime previsto pelo artigo 129 do Código Penal, em qualquer de suas modalidades, sujeitava-se à ação penal pública incondicionada, incubindo ao Ministério Público, titular da ação, em havendo justa causa, denunciar o agressor, independente da vontade da vítima.
Posteriormente, o artigo 88 da Lei 9.099/95, em suas disposições finais, prescreveu que “além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. Dessa forma, a partir da vigência da Lei 9.099/95, que instituiu aos Juizados Especiais, os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa passaram a ser de ação penal pública condicionada à representação, inclusive na hipótese de violência doméstica haja vista inexistência, até então, de legislação específica.
A nova regra teve alcance aos crimes cometidos antes da sua vigência, tendo em vista a adoção do princípio da retroatividade penal benigna (artigo 5º, inciso XL Constituição Federal de 1988) no caso de norma processual penal mista e, juntamente com o artigo 91 da Lei de Juizados Especiais (9.099/95), passou ser requisito de validade a representação da vítima ou de seu representante dentro do prazo tido como decadencial de 30 dias para o prosseguimento da ação. Com a inovação deste Juizado, visando a previsão de rito especial, célere e informal, e a institucionalização do caráter despenalizador em face da figura da transação penal, composição civil e suspensão condicional do processo, apropriou-se a ideia de intervenção mínima do direito penal e da justiça restaurativa promovendo alguns ajustes em prol da proporcionalidade, dificultando em parte o processamento desses crimes.
Com o advento da Lei 11.340/06 e o disposto em seu artigo 41, aos citados crimes, quando praticados no âmbito doméstico e familiar em face da mulher, independentemente da pena prevista, vedou-se a aplicação à Lei 9.099/95, restringindo todo o caráter despenalizador anteriormente mencionado, até porque, houve a ampliação da pena do citado crime que não mais insere-se na competência dos Juizados Especiais.
A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima (HABEAS CORPUS Nº 96.992 – DF (2007/0301158-9. Ministra Relatora Desembargadora convocada do TJ/MG Jane Silva).
E mais, a regra também contida o artigo 17 da Lei 11.34/06, veda por completo, no caso de violência doméstica, a aplicação de penas, com efeito meramente financeiros como cestas básicas ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique no pagamento isolado de multa, uma solução decorrente do procedimento da Lei dos Juizados Especiais que era alvo de severas críticas, uma vez que a agressão sofrida pela mulher se tornava objeto de mercancia. Quanto a vedação na aplicação de penas com efeito meramente financeiros não há que se falar em inconstitucionalidade, mormente diante do inciso XLVI, artigo 5º da Constituição Federal que determina que caberá à Lei regular a individualização da pena, afastando por completo qualquer alegação de violação da constituição e do princípio da igualdade na hipótese.
Realça-se, que os crimes de lesão corporal culposa não estão abrangidos pela Lei 11.340/06, uma vez não presente o dolo do agente em praticar o ato, mas sim, a simples ocorrência de resultado não desejado, fruto de imprudência, negligência ou imperícia.
Registre-se ainda, que num primeiro momento a jurisprudência pátria enveredou-se pelo entendimento de que no caso de crime de lesões corporais leves decorrentes de violência doméstica a ação penal seria pública incondicionada.
8 – Superior Tribunal de Justiça altera o entendimento sobre a Lei 11.340/06 (Janeiro de 2011)
Conforme registrado infra, num primeiro momento, a jurisprudência pátria direcionou-se, em razão do colacionado no artigo 41 da Lei 11.340/06, no sentido da natureza pública incondicionada da ação referente ao crime de lesão corporal leve praticado no âmbito doméstico, no entanto, em 21/05/2010, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1097042 originário do Distrito Federal, firmou entendimento pela necessidade de a vítima representar assim manifestando: “é imprescindível a representação da vítima para propor ação penal nos casos de lesões corporais leves decorrentes de violência doméstica” (BRASIL, 2011).
REsp nº 1097042. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSO PENAL. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. IRRESIGNAÇÃO IMPROVIDA.
1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da vítima.
2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei 9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras.
3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada.
4. Recurso especial improvido (Brasil, 2011)
Juntamente com a Terceira, a Quinta e a Sexta Turmas, que juntas formam a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça excluem a interpretação de que a Lei 11.340/2006 a ação penal pública a respeito de violência doméstica tem natureza jurídica incondicionada, mormente em razão do disposto no artigo 16 da mencionada legislação que dispõe: nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Por fim, transcreve-se a citação da doutrina da jurista Maria Lúcia Karam e da Desembargadora Maria Berenice Dias, ambas utilizadas pelo do Ministro Jorge Mussi, a fundamentar seu voto no Recurso Especial supracitado.
Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher contra a sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente ofendida, o seu direito e o seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar o direito à liberdade de que é titular para tratá-la como coisa fosse, submetida à vontade dos agentes do Estado, que, inferiorizando-a e vitimando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar. E sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é, ou não, um agressor, ou que, pelo menos, não deseja que seja punido. Não há como pretender que se prossiga uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com definição de alimentos, partilhas de bens e guarda de visita. A possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos, envolvendo as questões de Direito de Família, que são bem mais relevantes do que a imposição de uma pena criminal ao agressor. A possibilidade de dispor da representação revela formas por meio das quais as mulheres podem exercer o poder na relação com os companheiros.
9- Supremo Tribunal Federal e o caráter de ação pública incondicionada do crime de lesão corporal no contexto da violência doméstica firmado no julgamento da ADI 4424
Em recente julgado, datado de 09/02/2012, por maioria de votos, vencido o ministro Cezar Peluso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
Por dez votos a um, a Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido da possibilidade de o Ministério Público iniciar a ação penal sem necessidade de representação da vítima, na hipótese de violência doméstica.
A Ministra Rosa Weber afirmou que:
… exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação atenta contra a própria dignidade da pessoa humana. Tal condicionamento implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança (BRASIL, 2012).
O Ministro Luiz Fux assim manifestou:
… sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea (BRASIL, 2012).
A ministra Cármen Lúcia assim dispôs: “é dever do Estado adentrar ao recinto das “quatro paredes” quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência” (BRASIL, 2012).
O Ministro Gilmar Mendes manifestou a dificuldade em se saber a melhor forma de proteger a mulher no concernente à definição do caráter da ação, se pública incondicionada ou condicionada, mas concluir que “… como estamos aqui fixando uma interpretação que, eventualmente, declarando (a norma) constitucional, poderemos rever, diante inclusive de fatos, vou acompanhar o relator”(BRASIL, 2012).
Ministro Dias Toffoli acompanhou o relator
… o Estado é “partícipe” da promoção da dignidade da pessoa humana, independentemente de sexo, raça e opções, conforme prevê a Constituição Federal. Assim, fundamentando seu voto no artigo 226, parágrafo 8º, no qual se preceitua que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (BRASIL, 2012).
O ministro Ricardo Lewandowski destacou o problema do fenômeno conhecido como “vício da vontade”
Penso que estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade, e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade (BRASIL, 2012).
O ministro Joaquim Barbosa, ressaltou a importância das discriminações positivas em prol de determinados setores: “quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba se revelando ineficiente, é dever do Supremo, levando em consideração dados sociais, rever as políticas no sentido da proteção”.
Para o ministro Ayres Britto, “a proposta do relator no sentido de afastar a obrigatoriedade da representação da agredida como condição de propositura da ação penal pública me parece rimar com a Constituição” (BRASIL, 2012).
Acompanhando o relator o ministro Celso de Mello consignou
… estamos interpretando a lei segundo a Constituição e, sob esse aspecto, o ministro-relator deixou claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material (BRASIL, 2012).
Em voto isolado, o ministro Cezar Peluso divergiu do relator reafirmando a natureza jurídica de ação penal pública condicionada do crime de lesão corporal leve no âmbito doméstico:
… não posso supor que o legislador tenha sido leviano ao estabelecer o caráter condicionado da ação penal. Ele deve ter levado em consideração, com certeza, elementos trazidos por pessoas da área da sociologia e das relações humanas, inclusive por meio de audiências públicas, que apresentaram dados capazes de justificar essa concepção da ação penal (BRASIL, 2012).
Finalizou seu voto afirmou que é preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não apresentar queixas contra seus companheiros quando sofrem algum tipo de agressão. “Isso significa o exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a responsabilidade do ser humano pelo seu destino. O cidadão é o sujeito de sua história, é dele a capacidade de se decidir por um caminho, e isso me parece que transpareceu nessa norma agora contestada”, salientou. O ministro citou como exemplo a circunstância em que a ação penal tenha se iniciado e o casal, depois de feitas as pazes, seja surpreendido por uma condenação penal.
10- Considerações finais
Clarividente, que a decisão do Supremo Tribunal Federal conferindo interpretação conforme a Constituição Federal aos artigos 12, inciso I, 16 e 41 da Lei nº 11340/2006 (Lei Maria da Penha) e estabelecendo que o crime de lesões corporais consideradas de natureza leve, praticadas contra a mulher em ambiente doméstico, processe-se mediante ação penal pública incondicionada, consolida a intenção do legislador quando da elaboração da Lei 11.340/06 de coibir a impunidade historicamente imbricada na cultura e na prática patriarcais do país.
Interpretação contrária representaria violação direta aos direitos fundamentais condicionantes da própria condição humana, mormente do princípio da dignidade da pessoa humana , conforme precisa argumentação disposta pela Procuradoria Geral da República na ADI 4424 “Condicionar a ação penal à representação da ofendida é perpetuar, por ausência de resposta penal adequada, o quadro de violência física contra a mulher e, com isso, a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 2012).
Nesse esteira também, a confirmação no mesmo julgado de que a Lei 9.099/95 e seus institutos despenalizadores não se aplicam, em nenhuma hipótese, aos crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.
Por derradeiro, a erradicação de toda forma de violência na busca da concretização dos valores fundamentais é objetivo inerente a todo Estado Democrático e Social de Direito justificando o uso de ações afirmativas dando tratamento diferenciado à mulher em situação de violação de seus direitos humanos, sendo absolutamente legítima e louvável a intervenção do Estado em prol da nivelação das diferenças e promoção da igualdade material fática.
Referências bibliográficas
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[1] Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.
[2] Mestre em Direito Internacional. Professor no curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado.
[3]Mestre em Direito. Professor no curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado.
[4]. Mestre em Direito Privado. Professora no curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogada.