“Quando filosofia e vida se confundem não se sabe mais se alguém se debruça sobre a filosofia, porque ela é vida, ou se preza a vida, porque ela é filosofia” (LÉVINAS, 2005, p. 23)
Aluízio Rodrigues Lana*
RESUMO: Partindo de uma análise das principais características da tradição ética judaico-cristã, o presente trabalho procura demonstrar a postura de abertura hermenêutica das categorias concebidas por este pensamento. Busca-se mostrar a fecundidade de uma ética lastreada pelos fundamentos desta tradição, notadamente na adequação histórico-temporal e humana que é proporcionada e, sobretudo, no que concerne à concepção da Justiça. Perceber-se-á que esta, dentro do contexto desenvolvido, participa do horizonte ético como o parâmetro de ‘normatividade’ moral dirigido pela idéia de alteridade, que é o pressuposto essencial à compreensão da realidade da vida humana, assim como da fundação de um ethos originário, direcionado pelo humanismo e pela consideração integral da vida humana. Em comunhão com o amor-caridade – agápē (αγάπη), a aceitação da presença do ‘outro rosto’ e a ‘externalidade’ ontológica, a justiça se manifesta como o centro de convergência da conduta humana, através deste sincretismo principiológico, que também se manifesta como metodologia de uma filosofia prática. Objetiva-se, ao final, demonstrar a possibilidade de instauração de um ethos fundado em tais pressupostos, como horizonte de uma ética caracterizada por ser inclusiva, humanista e realista, posto que atenta e adequada ao terreno em que a vida se manifesta: o ‘chão vital’.
PALAVRAS-CHAVE: Ética; Justiça; Alteridade; Cristianismo; Judaísmo.
ÁREAS: Filosofia do Direito; Ética; Teoria da Justiça.
1 – Introdução
A partir observação contemporânea dos discursos teóricos tanto na Filosofia, quanto na Teoria do Direito, percebe-se acirrada disputa pela prevalência argumentativa de suas próprias estruturações, o que se configura em uma divergência possivelmente irresolúvel.
Percebe-se em tais estruturações a ausência de um arcabouço argumentativo adequado à nossa realidade histórica, notadamente devido ao afastamento entre a construção teórico-conceitual e as possibilidades decorrentes do mundo vivido.
Neste prospecto, parece que as teorias filosóficas, em sua concepção da ética e da justiça, falham, no momento em que se estatuem como grandes construções racionais, porém se apresentam distantes daquilo que ocorre na realidade histórico-social e daquilo que anseiam os participantes do ‘mundo da vida’.
Estes elementos dão razão à refutabilidade destas construções teóricas, assim como à instabilidade de seus argumentos, implicando a instabilidade de seus conceitos que, inadequados à realidade social, são constantemente substituídos, resultando em uma cadeia de teorias ordenadas historicamente.
Na busca de uma teoria da justiça que faça frente a estas dificuldades, se apresenta a Tradição Filosófica Judaico-Cristã como possível resposta aos anseios e necessidades decorrentes da busca de um fundamento último para justiça, assim como, particularmente no direito, para a procura do parâmetro de legitimação de uma ordem jurídica justa.
É neste contexto que uma teoria da justiça desenvolvida a partir da tradição judaico-cristã apresenta a proposta de restauração de um ethos originário, abalizado na alteridade e na caridade como princípios hermenêuticos da ideia de justiça, alicerces de uma racionalidade aberta, com foco em um horizonte preocupado com as possibilidades decorrentes da ‘trama da realidade humana’.
Para a realização da proposta, este escrito se dividiu em cinco estágios. Em um primeiro momento, buscar-se á a configuração do problema ‘genético’ das teorias filosóficas ocidentais como decorrente da própria forma de pensar logocêntrica, herdada do mundo e da filosofia grega.
Posteriormente, serão tecidas considerações que esclarecem o modo de ser da cultura judaico-cristã, especialmente fazendo-se uma comparação com a perspectiva logocêntica, apegada e limitada ao conceito.
A seguir, refletiremos sobre a justiça como decorrente da idéia de alteridade, caracterizando-se como situação anterior a qualquer estruturação conceitual, sendo, portanto, originária. Isto se perfaz através da percepção do ‘rosto’, e da assunção da existência do ‘outro’, conforme será visto.
Na sequência, dissertaremos sobre a concepção cristã de ‘amor’, como caridade, percepção do próximo, primordial para se pensar a alteridade e a própria ideia de justiça.
Ao final tentamos responder a algumas questões atinentes à proposta de retomada de um ethos de abertura: é este ethos possível? Atende aos anseios de nossa realidade histórica? Pode se harmonizar com o pensamento conceitual decorrente da nossa herança grega?
Obteremos respostas definitivas? Parece que não, mesmo porque, orientados por tal tradição, não nos arriscaríamos a contraditá-la, a aprisioná-la nas questões suscitadas nesta breve empresa. Logo, este trabalho não se assoberba à pretensão de se firmar como certo ou de esgotar o debate sobre esses temas.
Outrossim, propõe-se uma reflexão sobre o modo de pensar da nossa Ética Filosófica e da nossa Filosofia do Direito, tão arraigadas em conceitos pretensiosamente definitivos. Com tudo isso, não se espera executar um trabalho incontestável ou imune a criticas ou limitações, mas o estabelecimento de uma proposta principiológica fundamental originariamente dotada de abertura, caracterizada e fundamentada por sua provisoriedade temporal.
Desta forma, busca-se incitar o interesse investigativo do leitor, através do esforço continuo em fornecer um bom estudo, cujos aperfeiçoamentos e aprofundamentos decerto surgirão, posto que inerentes a qualquer feito humano submetido à provisoriedade dos estudos científicos.
2 – A Tradição Grega e a Violência da Cultura Conceitual Logocêntrica.
O pensamento ocidental – tanto o filosófico e científico, quanto ao que se refere à rotina e ao modo de ser dos indivíduos – apresenta um grave obstáculo para a interpretação e compreensão da estrutura e das categorias concebidas pela tradição judaico-cristã, barreira que resulta da própria herança recebida da tradição e do pensamento grego, desenvolvidos no berço desta civilização (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 121).
De fato, o ocidente foi educado de modo a conceber o mundo de acordo estrito com o ‘lógos’, costume sucedido da cultura grega, preservado pela filosofia cristã da idade média[1] e exasperado com o advento da revolução científica e da idade das luzes[2] (LÉVINAS, 2005, p.11-12).
Neste contexto, é que a tradição grega tende a “[…] compreender a realidade aprisionando-a em um conceito, numa universalidade, sintetizando e sincronizando […]” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 123), ou seja, é em virtude de tal influência que tendemos a conceber o mundo sempre com base em conceitos bem definidos e explicitações detalhadas e sistemáticas, construídas através de um discurso racionalmente coerente (SIMON, 1998).
Esta tendência não só é muito marcante no campo da Filosofia, mas especialmente decorre da própria tradição filosófica ocidental, cujas raízes remontam a Aristóteles e Platão[3] (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 123). Em verdade, até hoje em dia, a filosofia grega ainda mantém seus traços no pensamento da maior parte dos autores, notadamente na posição central dada à razão, ao seu uso estritamente dialético (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 98), e à formulação e adoção de conceitos.
Importante destacar que essa forma de racionalidade foi extremamente bem sucedida no ocidente, importando em contribuições que favoreceram toda a humanidade, notadamente nas áreas da medicina, da engenharia, ou mesmo da física, da química e da astronomia. Portanto, a cultura do lógos e do conceito, ao estimular o fortalecimento da técnica proporcionou o avanço dos métodos das ciências, implicando na formação de um saber tecnocientífico de notável eficiência (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 129). Instaura-se, desta forma, “[…] a ditadura da ciência, da tecnologia e do pensamento racionalista.” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 121).
Entretanto, apesar de seu avassalador sucesso, o pensamento logocêntrico resulta em diversas dificuldades, principalmente por assumir uma forma de racionalidade ‘fechada’, que tende a aprisionar toda a realidade em conceitos estáticos (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 123).
É neste sentido que podemos considerar o logocentrismo como ‘a lógica da violência’, levando em conta que “Violência significa aprisionar todos os entes, diferentes entre si, numa generalização que os condiciona e os condena a ‘não poder deixar de ser’, a ‘não poder ser outro’ e a não poder ser diferente’” (COSTA, 2000, p. 119). Isto significa que “[…] a conceituação constrói sistemas, que, para sobreviverem, não podem admitir a diferença.” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 124), de forma que, quando o ‘eu’ logocêntrico pensa, tanto as pessoas, quanto os objetos da realidade, o faz através de uma imposição individual inflexível. Tal violência implica na redução da realidade ao pensamento estabelecido com base nos conceitos previamente formulados, o que se manifesta, muitas vezes, como mero exercício de poder e impedindo que ‘o outro seja o outro’(OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 125). Não há portanto, a possibilidade da ‘diferença’, da individualidade e, por conseguinte, da liberdade.
O fechamento conceitual, destarte, implica no reducionismo das categorias que são avaliadas, diminuindo também o horizonte de realidade de tudo aquilo que é pensado, posto que esta, vista como ‘externalidade’, se manifesta historicamente, ao contrário do ‘conceito’, que é estático no tempo e no espaço. Desta forma, o pensar logocêntico trata-se “[…] de um pensamento solitário, de uma subjetividade fechada, que não consegue se relacionar com a exterioridade.” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 126), ou, em outras palavras, “[…] o ser se aprisiona no campo do conhecimento (consciência intencional) e perde, conseqüentemente, sua alteridade.” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 126).
Como resultado, esse fechamento do horizonte da realidade traz enormes prejuízos às teorias éticas, que ficam limitadas ao pensamento teórico temporal e tornam-se inevitavelmente efêmeras e historicamente limitadas somente ao contexto em que foram pensadas. Para uma maior clareza, podemos dizer que o ‘conceito’ proporciona um ‘fechamento’ da racionalidade em torno de certos argumentos, que, por sua vez, limitam o exercício da racionalidade humana, reduzindo a possibilidade de adequação e flexibilização histórica do seu pensamento e, por conseguinte, da sua capacidade de conceber a ética e a justiça como inseridas em um contexto temporal[4], que, entretanto, não é fixo e rígido, mas dinâmico e mutável.
Assim, longe de descrever uma realidade, o uso da razão conceitual torna-se imprestável para descrever e dirigir o ser humano em sua ‘morada’[5], em seu ‘habitat’ moral, servindo, muitas vezes, apenas de instrumento de manipulação ideológica, em função das idolatrias, dos ‘patos’ humanos – ter, poder e prazer. Neste contexto é que “O logocentrismo ocidental entrou em crise profunda, como só acontece com tudo aquilo que se fecha em novas possibilidades.” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 122), ao formular um moralismo fechado que desumaniza o ser humano e o transforma em uma ‘coisa’ (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 129).
Nas palavras de Emmanuel Lévinas: “as maravilhas da técnica não abrem o além onde nasceu a ciência, sua mãe! Nada de exterior em todos esses movimentos! Que imanência! Que mau infinito!” (LÉVINAS, 2002, p. 26)
Em suma, não obstante ser impossível desprezar toda a filosofia historicamente afetada por esta problematização, devemos nos atentar para uma forma de pensar diferente, forma esta que sempre esteve ao lado da tradição logocêntrica, mas, frequentemente, foi omitida e interpretada à luz de um conhecimento fechado em conceitos. Esta tradição não nos é estranha e determina uma filosofia aberta à totalidade das dimensões humanas, conforme explicitaremos a seguir.
3 – A Abertura da Tradição Judaico-Cristã e o ‘Chão Vital’.
Conforme debatido, é necessário o estabelecimento de um ponto de contato do pensamento logocêntrico com uma racionalidade aberta, uma forma de pensar que nos permita, senão uma fuga, ao menos uma alternativa ao aprisionamento conceitual. Neste intuito é essencial o diálogo com a tradição filosófica judaico-cristã[6].
Contudo, para a análise dos ensinamentos judaico-cristãos, se afigura um problema que Antoncich e Sans (1992) denominam “problema hermenêutico” (1992, p. 50-72), e que pode ser explicado em duas questões. A primeira trata das dicotomias criadas no decorrer da tradição filosófica ocidental, o que pode ser bem retratado, por exemplo, na concepção grega da separação entre corpo e alma[7] (veremos outro exemplos de dicotomias em Marx, na separação entre ética e política, e em Kant, na separação entre ética e direito [8]). Esta tendência resultou, atualmente, na fragmentação do ‘eu’ e na separação radical das dimensões da vida humana[9]. Devemos atentar para o fato de que no contexto cristão nenhuma destas separações conceituais existe (BIGO; ÁVILA, 1986, p.84 e 111). Também é importante delinear que esta fragmentação é justamente o resultado do estabelecimento de conceitos rígidos, de forma que, sem a superação deste momento hermenêutico se afigura impossível a compreensão do terreno da vida humana, visto que, para a cultura do lógos, a realidade somente é percebida por fragmentos. Impossível, portanto entender o contexto ético judaico-cristão, uma vez que o leitor tem a sua compreensão limitada, em decorrência de seu intelecto fechado em conceitos.
A segunda questão atinente à hermenêutica pode ser denominada como a da “justa autonomia das realidades terrestres”, conforme ensinam Bigo e Ávila (1986, p. 116 e 196). Isto consiste no fato de que a realidade da vida humana não pode ser imposta pela pretensão espiritual da ética cristã e vice-versa, de modo que, além do plano transcendental, o homem tem sua dimensão política, econômica, científica, social, laborativa, etc. (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 116). Logo, estes campos são dotados de “independência mútua” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 116), o que, porém, não implica na exclusão da esfera metafísica, sendo que devem mesmo ser vividos com atenção ao norte espiritual cristão. É o que os autores denominam ‘princípio da subsidiariedade’ (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 199) da ética cristã, uma vez que a autonomia das realidades terrestres é limitada tanto temporalmente, quanto espacialmente, ou seja, a dinâmica das realidades humanas tem limites tanto ontológicos quanto culturais, que decorrem da própria essência humana, e que determinam a necessidade da busca do transcendente, do espiritual, e da presença desta dimensão no campo imanente do homem (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 200).
Assim, a ‘compreensão’ dos textos cristãos deve ser feita com respeito e direcionada às realidades terrestres, atentando-se para os diversos campos da atividade humana e consciente de que estes, assim como a realidade do mundo vivido, são inseparáveis e indivisíveis, não sendo pertinente qualquer dicotomia teórica do pensar logocêntrico (OLIVEIRA; PAIVA, 2010).
É nesta perspectiva que surge a idéia de ‘chão da vida’, horizonte que norteia a hermenêutica de uma ética do real, sentido que respeita as limitações do ser e o caráter temporal que não pode a nenhum momento ser excluído das relações humanas (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 200) (LÉVINAS, 2005, p. 13; 15). Portanto, o ‘chão da vida’ – a realidade; cenário e roteiro da ‘passagem humana’ (LÉVINAS, 2005, p. 291-292) – é o alicerce onde deve ser lido o ethos da Igreja e onde o homem deverá buscar a realização na plenitude de sua essência (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 83), sua realização espiritual.
Isto demonstra a “circularidade hermenêutica entre vida e doutrina” descrita por Antoncich e Sans (1992, p. 70), que se traduz na interdependência existente entre as esferas da ética presente na tradição judaico-cristã e do ‘chão da vida’ – terreno onde a tradição se manifesta e assume significado. Neste sentido, para a compreensão de cada uma destas esferas, assim como para a interpretação dos textos bíblicos, é necessária uma leitura integral e conjunta (não obstante suas autonomias).
E é nesta perspectiva hermenêutica que a doutrina cristã, partindo do fundamento do ‘sentido do homem’, busca a realização do “homem em sua dimensão total” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 83), isto é, o homem deve ser considerado em sua totalidade, em todas as dimensões da vida, seja ética, social, política, familiar ou espiritual, sem dualismos e separações radicais (OLIVEIRA; PAIVA, 2010). Nas palavras de Paulo VI, na Carta Encíclica ‘Populorum Progressio’:
É necessário promover um humanismo total. Que vem ele a ser senão o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens? Poderia aparentemente triunfar um humanismo limitado, fechado aos valores do espírito e a Deus, fonte do verdadeiro humanismo. O homem pode organizar a terra sem Deus, mas “sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano”. (PAULO VI, 1967, p. 42)
Em outros termos, o tema central do ethos sob debate é o humanismo[10], para o qual é necessária a consideração do ser humano em sua totalidade, em relação ao seu tempo, à sua comunidade, em sua relação com o ‘outro’ e em relação ao ‘Grande Outro’ (ANTONCICH; SANS, 1992, p. 267). “Imerso na natureza, o homem emerge, pelo seu espírito, ao mundo invisível, fora do tempo e do espaço. O horizonte escatológico é da essência mesma do espírito humano” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 83). “Escatológico”, pois refere-se à natureza humana e exige a “valorização do homem” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 224) com atenta consideração do tempo e da história (HOLANDA, 1997, p. 686) (ANTONCICH; SANS, 1992, p. 280); uma visão integrada do homem. Como reafirmam Oliveira e Paiva (2010) ao citarem Emmanuel Lévinas: o ‘humanismo se manifesta na própria abertura racional do espírito humano’ e ‘seu despertar acontece na trama ética’, através de um retorno constante para o terreno da vida humana (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 132).
Mas, neste contexto, o ser humano não pode ser reduzido a um conceito como faz o pensamento grego e seus herdeiros, posto que “As relações entre o eu e a totalidade não coincidem com aquelas que um estudo de lógica formal estabeleceria entre a parte e o todo, ou entre o indivíduo e seu conceito” (LÉVINAS, 2005, p. 63). Também, nas palavras duras de Lévinas:
Buscar o eu com singularidade, em uma totalidade feita de relações entre singularidades não subsumíveis sob um conceito, é se perguntar se um homem vivo não tem o poder de julgar a história na qual está engajado, quer dizer, se o pensador, enquanto eu, para além de tudo o que ele faz com o que possui, cria e abandona, não tem uma substância de cínico[11] (LÉVINAS, 2005, p. 49).
Ainda, não podemos relevar que:
Ao eu como ente não corresponde um conceito. Isto porque o próprio contexto da “experiência” de outrem não poderia ser delineado a partir de um trabalho de abstração aplicada a si e que finalizaria no “conceito” do eu. (LÉVINAS, 2005, p.50)[12]
Desta maneira, é mister que seja lançada mão da ‘abertura do espírito’ para que possamos compreender o homem e o mundo de maneira satisfatória. É necessário fugir dos conceitos para construirmos uma teoria ética menos individualista, adequada à humanidade e resistente ao tempo, à história e às realidades individuais. Nas palavras de Oliveira e Paiva (2010, p. 132), é necessária a passagem do logos ao ethos, isto é, a saída de uma ontologia conceitual logocêntrica para uma ética originária (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 132). Neste sentido,
[…] o termo ética descreve a estrutura profunda do ser entendido como exterioridade e multiplicidade, descreve a estrutura do próprio real. Este, como trama, exterioridade, multiplicidade de únicos, como ‘symploké’ (entrelaçamento), não se deixa explicar dialeticamente, mas eticamente: a trama do real – multiplicidade, exterioridade, diferença, unicidade – é ética (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 136).
E é justamente este o horizonte ético da doutrina judaico-cristã: a busca de um ‘porvir’, cujo objetivo é fazer os ‘homens de boa vontade’ tentarem ‘ver com o espírito’, uma vez que somente “Pelo espírito o homem penetra no universo dos valores morais, quer dizer, à consciência do sentido da existência e à liberdade de optar entre o bem e o mal.” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 85). Logo, o objetivo é a reconstrução da moralidade com o horizonte na vida de Cristo. A busca de uma nova significação para a mensagem bíblica orientada por uma compreensão aberta de seus textos no intuito da restauração de uma ética inclusiva e humanista – que transcende os meros conceitos (LÉVINAS, 2002, p. 87).
Enfim, a ética cristã nos mostra ‘um deus’ transcendente, cuja compreensão é impossível ao pensamento logocêntrico e nos informa que o ‘mistério da criação’ (BIGO; ÁVILA, 1986, p 82) leva o homem a um eterno ‘anseio de completude’, que só pode ser satisfeita no horizonte metafísico (teotropismo) (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 86-87). E este mistério é resolvido na vinda de Cristo (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 93), que desvenda a natureza do homem, o seu sentido, e demonstra que sua essência é a de ‘imagem de Deus’, e que, por isto, deve agir e viver conforme o reino messiânico, do qual Jesus é o ‘protótipo’.
Portanto, a doutrina cristã assume uma manifesta postura de ‘abertura do espírito’, do ‘intelecto’ e elabora sua doutrina em razão da dignidade de todo ser humano (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 93), defendendo a busca de um bem comum, que é reconhecido no horizonte da vida, interpretada e vivida em sua totalidade (na ‘trama do real’).
Sob este cenário é possível pensar a ‘ideia de justiça’ que orienta o indivíduo na direção de seus atos e que deve, em razão da natural tendência de abertura do espírito humano, considerar a integralidade das relações humanas, especialmente considerando sua relação com ‘outro’, e com ‘mistério da existência’ (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 111).[13] Isto será desenvolvido a seguir.
4 – A Justiça como Alteridade.
Conforme expusemos no tópico anterior, o modelo teórico judaico-cristão exige uma leitura integralista do homem, dadas as exigências essenciais deste. Isto resulta de certas características que são basilares no ethos judaico-cristão e que, notadamente, decorrem do ‘mistério da criação’ e do fato de o homem ‘ter sido construído à imagem e semelhança do ser criador’, conforme nos registram os textos bíblicos.
Na dimensão moral, destes fundamentos decorre que o homem, criado dentro de um contexto já ordenado pelo criador, obedece a leis naturais – repita-se, em razão de sua essência de substância divina. Logo, existe uma lei natural que liga o ‘imutável’ ao ‘temporal’. Há uma tendência manifesta nos seres humanos de que suas ações ocorram de acordo com princípios possíveis. Estes princípios se constituem como expressão da abertura originária do intelecto humano e se manifestam no seio do ethos social, espaço onde é concebida a idéia de justiça.
Desta forma, é a existência de uma essência humana comum, de um sentido para todo o homem, que determina um ordenamento natural das coisas, “um ethos que ata sem Lei” (ANTONCICH; SANS, 1992, p. 55) e que expressa propriamente a justiça. Neste sentido, por todos homens serem iguais em sua dignidade, devem, portanto, ser tratados com justiça e equidade. Este tema, dentro do contexto em análise, sempre foi a principal preocupação na tradição da qual resulta o cristianismo.
De fato, desde o antigo testamento esse interesse pela justiça é recorrentemente afirmado, conforme explica Sicre:
Um dos aspectos mais importantes da mensagem profética é constituído pela sua denúncia dos problemas sociais e pelo esforço em prol de uma sociedade mais justa. […] A descoberta de numerosos textos orientais – egípcios, mesopotâmicos, hititas e ugaríticos – demonstrou que a preocupação com a justiça foi constante entre os povos do Antigo Oriente Próximo. (SICRE, 2002, p. 357)
Este interesse pela justiça, segundo o autor (SICRE, 2002, p. 357-380), manifesta-se especialmente através da crítica social e da denúncia da riqueza em detrimento dos pobres (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 160 a 162). Por conseguinte, a identificação da justiça na questão dos pobres gera, posteriormente, um novo e importante critério hermenêutico dos textos bíblicos, retratado na declaração pela Igreja da ‘opção preferencial pelos pobres’ (ANTONCICH; SANS, 1992, p. 62 a 72) (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 160). Atualmente, podemos dizer, como o fazem Antoncich e Sans, que “Talvez a razão mais profunda que vincula a Igreja, a evangelização e os pobres seja a presença e a identificação do próprio Jesus nos pobres.” (ANTONCICH; SANS, 1992, p. 68)
Não obstante a atualidade do tema, podemos constatar que a justiça no contexto profético assume as mais diversas nuances, como, por exemplo: ‘a preocupação pelos mais fracos, a preocupação pela correta administração da justiça, o interesse especial na legislação sobre empréstimo e as fianças, a defesa dos grupos mais pobres, a administração da justiça nos tribunais, as normas sobre o salário, e até mesmo tratando de temas como leis sobre o comércio’ (LÉVINAS, 2002, 358-359).
Assim, apesar de a preocupação com a justiça assumir principalmente o aspecto social, não exclui contextos mais estritos, como os que envolvem ‘justiça legal’ e sua prática, além de outros, como os acima delineados.
Entretanto, surge a pergunta: porque a justiça nesta tradição assume a forma que explicitamos? Porque a ética hebraica e a ética cristã se dedicam tanto ao aspecto social, notadamente aos pobres?
Talvez a melhor explicação seja revelada na obra de Emmanuel Lévinas (2005 e 1993) quando este desenvolve o tema da ‘alteridade’. Neste contexto, considerar o ser humano em sua totalidade, de acordo com sua ‘natureza’, exige que o ‘eu’ considere sempre o ‘outro’ e reconheça-o como semelhante na busca de um bem que é comum entre ‘nós’[14]. Este ‘bem comum’ só pode ser alcançado à medida que reconheço ‘o outro’ como igual e que busco, no meu agir, impedir que sejam criadas diferenças que não existem na essência comum dos seres humanos. (LÉVINAS, 2005, p. 39).
Lévinas, portanto, desenvolve a idéia da justiça a partir de uma ‘ética da alteridade’, entendida como o horizonte de abertura espiritual que nos permite compreender a realidade a partir de sua apresentação como elemento distinto do ‘eu’. Em outras palavras, a justiça nasce de uma forma de compreender a realidade como algo que é dado externamente, como algo que é diferente de ‘mim’. (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 143).
Esta externalidade se apresenta a partir da percepção do ‘rosto’, momento em que o ‘eu’ se perturba e ‘experimenta’ a existência do ‘outro’. Assim, em exercício de sua abertura racional originária, o homem passa a compreender a realidade como o espaço do ‘outro’, saindo de seu isolamento ontológico em direção a uma identidade ética fundamentada na alteridade. O rosto traz ao humano, portanto, a identificação no outro rosto, em outros termos, é um momento hermenêutico em que o sujeito se compreende “concretamente na intriga ética do face a face com o outro ou da proximidade”. (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 133) e, portanto, se constitui eticamente como o ‘ser-para-o-outro’ (LÉVINAS, 1988).
A partir desta trama, conclui-se que a justiça exige a alteridade e, até mesmo, com ela se confunde. Para a compreensão da justiça é indispensável o reconhecimento do outro.
Neste contexto, percebemos que, diferentemente do conceito logocêntrico de justiça, a justiça judaico-cristã é ‘aberta’ e ‘originária’. Nesta forma de racionalidade, não é permitido o aprisionamento do ‘outro’ num conceito concebido pelo próprio eu individualista, uma vez que aquele é considerado como um diferente ‘rosto’, com individualidades e características próprias (LÉVINAS, 2005, 1993).
É neste sentido que podemos considerar a ‘lógica do conceito’ como uma espécie de violência, se considerarmos que esta forma de pensar tenta abarcar toda a realidade em suas categorias, anulando o diferente, reduzindo o ‘outro’ a um conceito e impedindo, pois, a alteridade (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 133). O lógos aliena toda a exterioridade do ‘outro’ de forma agressiva, tolhendo toda sua individualidade, autonomia e sua própria realidade (LÉVINAS, 1988, p. 53).
Enfim, podemos concluir que a justiça não pode caber em um conceito, somente podendo ser compreendida como resultado da alteridade, ou seja, como um momento de ‘abertura ao outro e ao grande outro’(LÉVINAS, 1988). E esta abertura exige a evasão do lógos rumo à exterioridade, de forma que as relações humanas sejam pensadas com a possibilidade de admitir todas as circunstâncias que lhe permeiam (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 143). Este horizonte aberto e inclusivo tem um grande aliado na tradição judaico-cristã: o amor-caridade, ou agápē (αγάπη).
5 – A Justiça e o Amor como Caridade [agápē (αγάπη)].
É difícil precisar a origem do tratamento do amor como fundamento da justiça, entretanto parece inquestionável que o primeiro a dar grande consistência ao tema foi Jesus Cristo (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 216). Evidentemente, o amor aqui tratado como justiça não é o amor no sentido de ‘érōs’ (ἔρως) (amor erótico) ou ‘philía’ (φιλία) (amor-amizade), (LÉVINAS, 2005, p. 143) mas o amor agápē (αγάπη) no sentido de caridade, de reconhecimento do outro em sua individualidade ou, tomando novamente as palavras de Lévinas, é o amor que designa o reconhecimento do ‘rosto do outro’ (LÉVINAS, 2005, p. 155)
Destarte, o amor cristão é a ‘externalização’ da própria alteridade, uma vez que somente ama quem aceita a presença do ‘outro’. O amor como caridade chega mesmo a se identificar com a alteridade, se considerarmos que caridade é o próprio ato de ‘desprendimento’ em relação ao ‘próximo’, é o respeito à existência do ‘outro’. Nesta perspectiva, o ato de amor ou a prática da caridade se asseveram como a manifestação da alteridade que emana do ser. Aqui o ato de amor coincide também com a ideia de justiça, tendo em vista que esta somente se manifesta no agir humano, na prática que respeita e que dá liberdade à existência do ‘outro’. Num jogo de palavras: somente é justo quem age pela alteridade; somente pratica a alteridade quem ama; e quem pratica o amor-caridade age justamente. Estas são esferas que se entrelaçam e se fundamentam mutuamente, portanto interdependentes.
O amor se compraz na diferença, na espera do amado, não é anulação do outro, não é igualdade, caso contrário acabaria o desejo, viraria guerra. […] Por fim, é o desejável que ordena como é o amado que atrai, como o amor me faz retornar à pessoa amada; o desejável nos desperta, nos mantém na vigília, desperta-nos à proximidade que é responsabilidade para com outrem, para com o próximo. (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p.150).
Nas palavras de Lévinas (2005, p. 43), além da explícita relação do amor com a alteridade podemos afirmar que “a própria justiça nasce da caridade” (LÉVINAS, 2005, p. 147), ou que “A justiça brota do amor.” (LÉVINAS, 2005, p. 148). Ainda: “a caridade é impossível sem a justiça, e […] a justiça se deforma sem a caridade”. (LÉVINAS, 2005, p. 164)
Desta forma, a caridade é o amor que rege a justiça e que é concebível até em relação ao próprio inimigo (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 163), conforme Cristo defendeu em seus ensinamentos. Também é o alicerce que caracteriza e propicia a ‘abertura’ que entendemos dotar a concepção de justiça judaico-cristã.
Particularmente, a questão da abertura interpretativa fica mais evidente quando comparamos a concepção de justiça judaico-cristã com a grega. Sobretudo se pensarmos na visão matemática que os gregos tinham de justiça, concluímos que é impossível o ‘agápē (αγάπη)’ fazer justiça no modelo conceitual grego. O amor, como ensinava Cristo, exige o perdão; mas o perdão não faz justiça de maneira ‘proporcional’. Não há ‘proporção’, nem ‘igualdade matemática’ na justiça pregada por Cristo. Sequer a vida Dele teria justiça na visão dos gregos[15]. Ele veio ao mundo para ‘remir’ nossos pecados (BIGO; ÁVILA, 1986, p.166). Ora, este tipo de justiça não cabe num conceito. É impossível reduzir a um conceito (de uma racionalidade fechada em padrões) uma idéia que exige diversos critérios hermenêuticos para sua leitura, urgindo, portanto, uma racionalidade aberta, condição de possibilidade de uma ética e de uma justiça originárias.
Destarte, a justiça cristã propõe a consideração do outro em sua totalidade, atento à natureza e à dignidade humanas, e por isso difunde o perdão como forma de justiça decorrente do amor-caridade, que admite que o ‘pecado’ faz parte da vida humana e cumpre, dentro do contexto, função direcionadora da conduta ética.
Em resumo, justiça é amor, alteridade, igualdade e dignidade, dentro de uma realidade temporal e espacial limitada e em relação ao homem todo. E Deus é o mais justo dos seres, porque amou a todos os homens, a ponto de oferecer o flagelo de seu filho para expiar as injustiças humanas. Acima de tudo, Cristo é o horizonte para a compreensão da vida e realização da verdadeira justiça. Ou, nas palavras de Bigo e Ávila, “A partir de cristo, toda História anterior e toda História posterior têm sua explicação misteriosa e definitiva.” (1986 p.88).
São estes, portanto, os pressupostos da instauração de um ethos originário de abertura racional, terreno fértil à uma concepção de justiça adequada às realidades sociais, flexível e adaptável histórica e geograficamente. Aqui se encontram as condições de possibilidade de uma teoria da justiça não conceitual, mas que se revela como horizonte de uma compreensão humanista da realidade.
A seguir, refletiremos sobre a possibilidade da retomada de um ethos com tais características, com vista no plano intersubjetivo, o que só pode ser pensado “na trama do tecido ético da proximidade de outrem que me afeta e da minha responsabilidade por ele” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 151).
6 – A Retomada de um ethos Originário de Abertura Espiritual
Desenvolvidos os pressupostos fundamentais de uma filosofia prática a partir da orientação tradicional judaico-cristã, surgem as seguintes indagações: é possível o desenvolvimento de um pensamento alicerçado nestes princípios em um âmbito comunitário, isto é, no plano intersubjetivo? A ética da alteridade corresponde às necessidades impostas na atualidade? É possível harmonizar o modo de pensar conceitual dominante com uma ética de abertura originária?
Como afirmamos, a tradição judaico-cristã, desde os primórdios, utilizou em seu discurso a forma aberta de leitura do mundo e do homem. Esta postura parte da própria lógica daquele povo, fundamentada no ‘ouvir’ (shemah), onde o caminhar ético se revela como incerto, inseguro (SALES, 2005, p. 114), o que pode ser contraposto ao horizonte grego – a lógica do ‘ver’ (noein) – que a tudo percebe e a tudo apreende, a tudo aprisiona (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 143).
De forma comparativa, Oliveira e Paiva (2010, p. 134) salientam a semelhança da filosofia grega com odisséia de Ulisses, “[…]cuja aventura pelo mundo nada mais foi do que um retorno a sua ilha natal – uma complacência no Mesmo, um desconhecimento do Outro.” (LÉVINAS, 1993, p. 50). Por outro lado,
[…] a lógica da tradição judaica, poderá ser equiparada à trajetória de Abraão, que, atendendo ao chamado de Deus, deixou sua terra e para lá nunca mais voltou: ou ainda à de Moisés, que também em virtude do chamado divino pôs-se a pastorear o povo de Deus na travessia do Egito, libertando-o da escravidão rumo a um novo mundo e, quando se viu diante daquela terra que vinha sendo o sentido da caminhada de todo o povo por ele guiado, ali entregou a conclusão de sua missão a Josué e faleceu, agindo sem desfrutar da Terra Prometida.(OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p.134).[16]
Entretanto, a despeito de suas características peculiares, o pensamento judaico-cristão, em dado momento histórico (após a expansão do império romano), se ‘agregou’ à cultura greco-romana, se misturando ao pensar logocêntrico[17] e perdendo parte da abertura espiritual que ora foi demonstrada. Por este motivo, Oliveira e Paiva chegam citar que: “Segundo Lévinas, as teologias judaica e cristã foram imprudentes em assumir a ontologia grega para traduzir sua fé numa linguagem universal” (OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 143).
Diante disto, como seria possível a conciliação entre estas duas racionalidades? Parece correto considerarmos que a conciliação somente é possível através do exercício da abertura originária do intelecto; da restauração social de um ‘ethos originário’.
Originária é aquela ética que se apresenta como ‘meta-conceitual’, isto é, tem uma formulação anterior ao conceito e que o ultrapassa e vai além. Isto é o que torna possível a consideração da ‘ética da alteridade’ como filosofia primeira, uma vez que a percepção do ‘outro’ vêm antes de qualquer conceito (OLIVEIRA; PAIVA, 2010). Mas como se instaura esta ética? Historicamente, há algum sinal de sua afirmação?
Em resposta, observamos que tem ocorrido historicamente gradual aumento da preocupação da igreja católica com o resgate de seus princípios fundadores, o que pode ser notado na publicação de diversos documentos de caráter ético-social. Nesta perspectiva, destacamos a carta encíclica Pacem In Terris (JOÃO XXIII, 1963) como verdadeiro marco de retomada deste ideal de restauração de um ethos abalizado pelo humanismo e pelos princípios fundamentais cristãos da alteridade, caridade e do perdão.
A importância desta encíclica se acentua especialmente em razão do momento histórico em que foi publicada, em que a Igreja se mostrava ainda ‘tímida’ no tratamento dos assuntos sociais. De fato, como comentam Bigo e Ávila (1986, p. 191) “Com João XXIII se inaugura uma fase nova e decisiva na evolução do pensamento social da Igreja, que o insere no âmago dos grandes problemas do mundo contemporâneo.”Ainda, “foi com ele que se inaugurou a grande mutação da atitude mesma da Igreja com relação ao mundo e à cultura” onde esta instituição “Renuncia seus direitos divinos para aceitar com humildade a realidade histórica.” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 196) A partir deste momento:
A igreja começa a se compreender como povo de Deus, integrado na caravana histórica da humanidade, à qual ela presta o imenso serviço de manter acesa a chama incrível da esperança iluminada há 2000 anos na gruta de Belém. Igreja, povo de Deus que aceita com a simplicidade de João XXIII, substituir o prestígio pela comunhão, ‘koinonia’, o poder do serviço, ’diakonia’, e a assistência pela imensa obra da promoção humana (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 196)
Também é de grande interesse neste documento, o fato de o autor tê-lo dirigido não apenas para os integrantes da Igreja (como era frequente), mas também “a todas as pessoas de boa vontade” (JOÃO XXIII, 1963, p. 1), o que evidencia a tentativa de ‘universalizar’ o modo de ser cristão, especialmente se propondo a todas as culturas e tradições, através do horizonte do ‘bem’.
É, portanto, o texto da encíclica, uma mensagem a todos os homens, tratando Jesus Cristo como o horizonte de compreensão da vida. Neste aspecto, o próprio documento nos indica o horizonte hermenêutico em que deve ser lido: o ‘anúncio de um tempo diferente, de plenitude que se realiza em Cristo; e de denúncia de tudo o que não está de acordo com o reino messiânico’, contexto em que deverá realizar-se a “imensa tarefa de restaurar as relações de convivência humana” (JOÃO XXIII, 1963, p. 162).
A partir destas constatações, é evidente a propositura do modo de ser cristão no plano intersubjetivo, especialmente através da ênfase na dimensão social. Assim é que se demonstra particular preocupação com o ‘outro (o próximo)’, com a justiça e com a caridade, mas em um horizonte de compreensão direcionado à vida humana em sua integralidade, de acordo com o terreno da realidade.
Tanto que, em seu texto, não é excluído nenhum campo da vida humana; João XXIII (1963) fala sobre propriedade privada; trabalho e remuneração salarial; solidariedade; constituição da família; dedicação à vida religiosa; política nacional e internacional (destaque especial para a ‘corrida armamentista’, tema de grande importância, na época, em virtude da ‘guerra fria’); enfim, trata de relações humanas das mais diversas.
Para tanto, reconhece a autonomia das atividades terrestres, as incentiva, mas estabelece um norte espiritual, pois, apesar do ‘dinamismo da vida’, os aspectos temporais são dotados de transitoriedade; em outras palavras, os valores imanentes têm caráter apenas pragmático e são úteis no fluxo do tempo, porém transitórios, motivo pelo qual não dão ‘completude’ ao homem[18]. Isto último, em especial, é claramente mostrado no final de cada uma das partes do documento, em que o autor salienta os ‘sinais dos tempos’, enquadrando na realidade atual os ensinamentos de ordem teórica expostos.
Logo, apesar de tratar de assuntos não teológicos (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 141-142) a encíclica não abre mão da questão da espiritualidade, explicando os fundamentos que decorrem do sentido e da natureza humana como criatura de Deus, mas que devem respeitar ‘deveres temporais’, decorrentes da necessidade de trabalho, estudo, família, etc., o que nos demonstra a possibilidade de correspondência de uma tal ética aos anseios postulados pela atualidade.
Não obstante seu direcionamento essencialmente cristão, em alguns momentos a carta demonstra considerável influência da tradição grega, como por exemplo, ao falar sobre uma ‘ordem natural das coisas’[19] (JOÃO XXIII, 1-3), sobre a ‘Lei que se encontra gravada nos corações humanos’[20] (JOÃO XXIII, 4-5) ou, ainda, quando cita expressamente São Tomás de Aquino, tecendo considerações sobre a ‘Lei eterna’ (JOÃO XXIII, 38). Também desenvolve no texto uma teleologia semelhante à de Aristóteles (1996), mencionando freqüentemente o “bem comum” como guia das atividades sociais humanas e fala, ainda, em reta consciência, expressão equivalente à reta razão, conceituada por Aristóteles.
Entretanto, mesmo com estas influências[21], podemos afirmar que o contexto de integralidade em que encíclica considera o ser humano, proporciona grande abertura até mesmo aos conceitos gregos utilizados, que acabam não sendo interpretados restritivamente, por não ser omitido o seu horizonte hermenêutico. E realmente, é admitida expressamente no texto a influência de diferentes ideias, mas com a condição de serem lidas sob o pano de fundo histórico a que se prestaram, como podemos notar a seguir:
[…] cumpre não identificar falsas idéias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas idéias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é suscetível de alterações profundas. De resto, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos dignos de aprovação? (JOÃO XXIII, 158)
Assim, a encíclica levanta diversos temas e sofre influência da cultura conceitual. Mas não nega ao leitor uma interpretação aberta e espiritual para os temas, que, cada qual com sua particularidade, poderia atravessar os tempos e ter seu significado adaptado em diferentes épocas, sem prejuízo da adequação e atualidade.
Em síntese, o texto da Pacem in Terris, apesar de escrito há mais de 40 anos, ainda continua dotado de atualidade, o que é a principal característica da qual decorrem todos os fatores que são apontados neste trabalho. O discurso cristão é, portanto, capaz de se adequar a realidades históricas e de se flexibilizar de acordo com as necessidades vividas, independentemente de sua época, o que se caracteriza como valiosa vantagem deste pensamento.
Neste contexto, considerando a orientação principiológica da Pacem in Terris, e também sua aplicação prática e seu discurso dirigido a todos os seres humanos, podemos considerar como um horizonte possível à instauração de uma ética de abertura espiritual a partir dos elementos da tradição judaico-cristã.
Isso somente é possível através da inclusão nesse ‘modo de ser’ de todos os contextos da vida humana, de forma que os fundamentos essenciais cristãos da caridade, da alteridade e da justiça sejam direcionadores do ser humano como um todo, em todos os contextos de sua vida.
Para tanto, é necessária a instauração de uma postura hermenêutica que possibilite o desapego de um lógos exacerbado, a saída da lógica do conceito e a conscientização de que a compreensão humana se encontra submetida a constantes limitações.
Somente assim, através de uma leitura histórica dos preceitos fundamentais da tradição judaico-cristã, atenta aos influxos dos fatos sociais contemporâneos e com vista no horizonte do ‘devir’, pode-se conceber a justiça com fundamento na alteridade, no amor ao próximo e no perdão, isto é, uma teoria da justiça aberta e inclusiva. Sem dúvida um horizonte ético possível, legitimado pelos “[…] elementos fundamentais para a construção de uma intersubjetividade não violenta, tanto para o outro, como para o mesmo, uma vez que estão em vista do Bem.”(OLIVEIRA; PAIVA, 2010, p. 158)
7 – Considerações Finais
Finalmente, a partir das questões abordadas parece correto dizer que a tradição filosófica judaico-cristã nos fornece elementos mais adequados à compreensão do homem e das dimensões em que este se encontra inserido, tendo em vista a sua abertura racional originária, bem como os seus pressupostos norteadores mais atentos à realidade e à integralidade das relações humanas.
Pelo paralelo feito com a tradição logocêntrica, pudemos perceber alguns aspectos que implicam na dificuldade de compreensão da teoria cristã. Entretanto, explicamos que, com um horizonte hermenêutico inclusivo, direcionado à consideração integral do homem, em sua natureza e com respeito às necessidades fundamentais decorrentes do seu sentido, é possível entender o funcionamento das categorias desta tradição.
Vimos que a perspectiva logocêntrica herdada da civilização grega nos induz a uma dependência permanente de construções conceituais absolutas, o que importa no fechamento da capacidade de abertura do pensamento humano, com a consequente apropriação da realidade, através do seu enquadramento e aprisionamento em categorias.
Isto implica em grave problema, quando consideramos sua aplicação nas relações intersubjetivas, o que é aparente no pensamento ético ocidental, sucessor dos grandes filósofos gregos.
Para a solução do problema, propõe-se um pensar aberto à totalidade das dimensões humanas, especialmente configurado na tradição judaico- cristã do ouvir (shemah), passageiro e mutável, que nos permite compreender a ética e a justiça como inseridas em um contexto histórico-social.
Especialmente, com foco no contexto ético, em virtude da consideração do homem como um todo, é necessária a regência da filosofia prática pela idéia de alteridade, o que exige que o ser humano seja pensado em sua relação com ‘outro’ e com o ‘grande outro’. Como suporte a um tal ethos, apresentamos o ‘amor’ cristão, no sentido de ‘caridade’, que não somente fundamenta uma ética individual de alteridade, mas torna possível a concepção da idéia de justiça.
É assim que ocorre o ‘des-inter-essamento’, consistente na ‘saída do ser’, ou na saída da ‘ontologia individual’, para uma passagem à ‘etica da alteridade’, o que é proposto através da rejeição à privatização da razão humana no conceito e no indivíduo, em favor de um enfoque ético de abertura total do intelecto.
Por fim, a partir de questões suscitadas no decorrer do nosso debate, concluímos a necessidade da retomada de um ethos de abertura originária, que se afigura como uma realidade possível. Para tanto, sobretudo a partir da análise do texto da encíclica Pacem In Terris, parece correto afirmar a possibilidade de convivência harmônica entre lógos e ethos, desde que estes se caracterizem por uma postura hermenêutica de abertura.
Neste contexto é que podemos propor uma tal ética – ou um conceito de justiça – correspondente aos anseios que urgem da atual realidade histórica, tendo em vista que, a partir das digressões do nosso estudo, uma Teoria da Justiça com base na tradição judaico-cristã atende às necessidades de flexibilidade e adequação espácio-temporal postuladas.
Em suma, a partir de constatações apreciadas na carta encíclica Pacem in Terris, pudemos afirmar a possibilidade prática da implementação social de um discurso a partir da alteridade, justiça e caridade, que se manifesta como autêntico humanismo. Neste aspecto, a ética judaico-cristã se assevera irrefutavelmente como horizonte possível.
REFERÊNCIAS
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* Advogado. Mestre em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Introdução à Ciência do Direito e Teoria Geral do Direito do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: aluiziolana@adv.oabmg.org.br.
[1] Ver Agostinho (2001) e Aquino (1990)
[2] Sobre este posicionamento teórico iluminista ver texto: “Resposta à Pergunta: o Que é o Iluminismo” (KANT, 2004, p. 11-19).
[3] Ver Aristóteles (1973) e Platão (2001)
[4] Isto também é bastante adequado ao Direito, tanto no seu aspecto teórico, quanto no prático.
[5] Alusão às origens da palavra ‘moral’ – do latim ‘mos/mores’ – cujo significado reporta a ‘hábito, modo de ser, costumes, ordenamento’; e seu correspondente em grego – ‘ηθική /ethiké’ – que pode ser entendido como ‘toca, morada (de animais), hábito, costume, caráter’.
[6] Para uma melhor compreensão desta tradição, notadamente em sua dimensão hebraica, é importante a contextualização histórica, geográfica, climática e cultural dos povos que constituíram as civilizações do Oriente Próximo. Para uma leitura introdutória e sistemática do tema é indicada a obra ‘Bíblica: o Atlas da Bíblia’ (BEITZEL, 2009).
[7] Ver Platão (2001).
[8] Ver Marx (1991) e Kant (2003).
[9] Sobre a fragmentação ontológica que ocorre na contemporaneidade, importante salientar, é questão comumente discutida até mesmo por autores de diferentes orientações teóricas, como ocorre, por exemplo, com o ‘aristotélico’ Alasdair Macintyre (2001), na obra “Depois da Virtude”, onde discute justamente a carência de uma unidade ontológica do homem contemporâneo, que divide sua vida em contextos independentes, ao ponto de causar a fragmentação de seus preceitos morais fundamentais. Nesta perspectiva é que o autor propõe a indagação de se ainda é possível a idéia de alguma virtude, isto é, se ainda é possível a instauração de uma moral comunitária.
[10] Ver também Lévinas (1993).
[11] A palavra cínico, segundo o próprio autor, deve ser entendida em seu sentido filosófico, qual seja de partidário “da escola cínica, que se caracteriza principalmente pela oposição radical e ativa aos valores culturais vigentes” (HOLANDA, 1997, p. 407)
[12] Sobre isto, ver, também Lévinas (2005, p. 59 e 95).
[13] São mencionados neste parágrafo temas fundamentais à tradição cristã, que, contudo não são ocasionalmente desenvolvidos devido ao objetivo de concisão do presente trabalho.
[14] Assim, podemos dizer que o ‘ethos’ cristão assume uma forma teleológica.
[15] De fato, segundo o raciocínio conceitual da civilização ocidental, é difícil pensar que a vida de Jesus Cristo não tenha sido permeada de injustiças. Quem diria, por exemplo, que é justo o perdão de Jesus aos seus carrascos quando diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (LUCAS, 23,34). É possível entender como realmente justo o fato de Jesus buscar a salvação dos criminosos e marginalizados, mas não a dos virtuosos e obedientes? Na verdade, o ‘conceito’ de justiça é irrelevante para Jesus Cristo, que vive e instaura um novo ethos, somente regido pelos valores fundamentais da caridade e da alteridade e, portanto, de perdão e de ‘recomeço’. Estes valores são, para ele, a própria justiça.
[16] Tais características se reafirmam na cultura cristã. De fato, é importante considerarmos que Jesus Cristo sempre se expressou pela fala e pelas histórias de sua caminhada pelas terras bíblicas. Assim, sua tradição também se propagava pelo ‘ouvir’, o que fica evidente quando consideramos que os textos dos evangelhos foram escritos mais de cem anos após a sua morte.
[17] Isto é patente no pensamento de filósofos como Santo Agostinho (2001) e Santo Tomás de Aquino (1990), que demonstram, sem sombra de dúvidas, sua inspiração em Platão e Aristóteles.
[18] Alguns dos temas comentados neste tópico estão presentes em múltiplos lugares no texto da encíclica, motivo pelo qual não são referenciados com os parágrafos de localização respectivos.
[19] Ver ARISTÓTELES (1996)
[20] Ver AQUINO (1990)
[21] Que conforme explicamos anteriormente, podem trazer perdas ao horizonte judaico-cristão.