Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Maurílio Santiago1

 

“ήθός  ανθρώπώ δαίμων”
 Heráclito de Éfeso, DK, 22, B, 199. 

“O que não quereis que vos façam, não o façais a nenhum outro”.
MT. 7, 12; LC 6, 31 

“Existir, se não se entende por isto um simulacro da existência, não pode realizar-se sem paixão. A existência ela própria, o existir, é um esforço, simultaneamente patético e cômico; patético, porque o esforço é infinito, ou seja, dirigido para o infinito, porque é realização do infinito, o que significa o mais alto pathos; cômico, porque o esforço é uma contradição interna. Do ponto de vista patético,um segundo tem um valor infinito; do ponto de vista cômico, dois mil anos são uma brincadeira.”
Kierkegaard

 

RESUMO: Nosso texto tem por objetivo traçar as grandes linhas que compõem a ética de Aristóteles e a Ética de Kant, tendo por objeto de investigação o fato de a ética aristotélica ser pautada na experiência, “A POSTERIORI”, e a ética Kantiana ser fundamentada em princípios estritamente racionais, ou seja, princípios “A PRIORI”.2 Desse modo acreditamos ter nos referido, no contexto vasto que é a Ética, a dois pensadores cuja filosofia moral exerceu uma enorme influencia no pensamento do Ocidente e cujo cotejo de seus traços fundamentais no que se refere à ética ser importante. 

SUMÁRIO: 1. Aristóteles: a contemplação de Deus como o bem supremo; 2. Kant e a ética racionalista.

 

1  ARISTÓTELES: A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS COMO O BEM SUPREMO

Aristóteles é o fundador da Ética como “ciência pratica”, em contraposição à ética como “ciência teórica” almejada por Platão. Se por um lado a ética de Platão é a fundamentação da ética socrática da virtude numa ontologia do Bem (τό αγαθόν), na medida em que a ideia do Bem tem um alcance ontológico (princípio primeiro de toda a realidade) e um alcance ético (como princípio da αρετή fundamental que é a justiça e que tem de realizar-se na totalidade – indivíduo, cidade, cosmos) e, como tal, assume assim a forma de uma ciência suprema; por outro lado a ÉTICA aristotélica busca apresentar uma noção de Bem não mais unívoca e separada, como a Ideia do Bem (Platão), mas a noção de Bem passa a ser uma noção analógica (λέγεται πολλαχως), e a ÉTICA então é compreendida como a ciência do BEM no indivíduo, assim como a POLITICA é a ciência do Bem na πόλις.3 senão, vejamos.

Na ÉTICA A NICÔMACO4 Aristóteles inicia partindo da seguinte tese, a saber: “Toda arte (τέχνή) e toda investigação (μέθοδος) e igualmente toda ação (πράξίς) e todo propósito (προαίρεσις) tendem para algum bem, segundo o que parece (δοχεί). Por isso tem-se declarado com razão que o Bem é aquilo a que todas as coisas tendem”.5 Logo no início encontramos sem nenhum rodeio a tese geral da obra. Nela alguns elementos são, a nosso ver, fundamentais. Primeiro nosso autor tem um cuidado especial em mostrar que cada coisa, na sua especificidade, tem seu bem apropriado para o qual ela tende; como observa Tricot, causa final e Bem são idênticos. Seja a arte em geral, que visa a realização de uma obra exterior ao próprio artista, ao próprio homem (τεχνιτης; ποίητίς), seja a ação, cujo fim é imanente ao próprio homem (“europraxie”), seja também a propósito (προαίρεσις), compreendido como a escolha racional, deliberada e refletida, na qual todos tendem para algum Bem. Outro ponto importante é a presença do termo δοχεί, ao nos mostrar que Aristóteles parte ora da opinião comum, ora da opinião de algum outro filósofo, característica muito presente na obra de um pensador que tem um espírito agudo da História, ora da sua própria opinião. É a partir desse conjunto de opiniões que se dá inicio a investigação filosófica sobre a moral, e só depois, à luz da Razão, que poder-se-á dizer que há uma total evidencia dos fatos. Como mostra Ticot, “O verbo δοχειν se distingue de ϕαινεσθαι, que indica a evidência dos fatos”.

A ÉTICA aristotélica parte dos fatos, embora seja sabido que em Aristóteles não há uma ética empirista e ou utilitarista como em Hobbes, na medida em que ela expressa um princípio fundamental da ética antiga, a saber, a teleologia do Bem e a aceitação da ideia universal de “fim” e de “natureza”. Todavia poderíamos dizer, em sentido lato, que a Ética aristotélica é uma ÉTICA A POSTERIORI, vem a ser, em termos de método, uma ética que parte primeiro do conflito das opiniões para chegar ao conceito filosófico. Ao invés de partir A PRIORI como no raciocínio apodítico, que toma primeiro os princípios e as causas para depois atingir as consequências e os efeitos, Aristóteles adota um método inverso, se quisermos, A POSTERIORI, isto é, parte dos fatos para remontar por indução (έπαγωγή) até aos princípios. Tal é o caminho utilizado pelo estagirita para tratar da realidade moral e social, pois nesse contexto não se obtém uma clareza de definições como nos axiomas matemáticos e, deve-se, portanto, partir da experiência, diz Aristóteles:

Não esqueçamos a diferença que existe entre os argumentos que partem dos princípios e os que voltam para eles (…). É necessário, com efeito, partir das coisas conhecidas e, uma coisa é dita conhecida em dois sentidos, seja para nós (ήμιν), seja de uma maneira absoluta (απλώς). Sem dúvida devemos partir das coisas conhecidas para nós.6

 

Estabelecido pois o método, Aristóteles irá desenvolver um ponto nodal da sua ÉTICA, vem a ser, construir uma filosofia da moral que deva permitir estabelecer as condições de BEM-estar ou felicidade (ευδαιμουία) do cidadão. A Felicidade assume na ÉTICA aristotélica um caráter fundamental. A Felicidade como Bem Humano tem um caráter teleológico e no interior da ÉTICA A NICÔMANO são analisados diversos tipos de Felicidade que se referem a diversos tipos de vida postas pelo filósofo dentro de uma hierarquia, ao nosso ver melhor ilustrada na figura da pirâmide, cujo ápice é a Vida do Sábio que encontra a Felicidade na contemplação (τεωρία) do SUMO BEM. Diz Aristóteles: “Do momento em que toda escolha deliberada aspira a algum Bem, que afirmamos ser os objetivos da ciência política, de outro modo diz que é de todos os bens realizáveis aquele que é o Bem Supremo. Sobre seu nome, em todo caso, a maioria dos homens estão de acordo: é a FELICIDADE, tanto no dizer do vulgo como no dizer dos sábios, todos assimilam o fato de Bem Viver e de Bem agir ao fato de ser FELIZ.

Diferem, porém, quanto ao que seja a FELICIDADE, e o vulgo não o concebe do mesmo modo que os sábios”. 7

Aristóteles irá buscar a definição da natureza da Felicidade (ευδαιμουία) a partir do conflito gerado pelas diversas opiniões. Na busca de uma solução (λυσις) a esta aporia (απορία) são colocados dois argumentos defensáveis, um ligado ao vulgo (οί πολλοί) outro aos sábios (οί χαριεητης; σοϕοί; αγαθοί), donde se chegará à verdade, ao conceito do que vem a ser a FELICIDADE, que passará a ser então o princípio (αρχη)8 para se estabelecer a filosofia moral.

O estagirita reconhece a importância dos bens externos, como por exemplo, a riqueza, porém estes têm por vista outra coisa, são apenas meio e, portanto, não podem ser o fim perfeito (τέλειος), ao passo que o Soberano Bem é, com toda evidência, alguma coisa de perfeito.9 Desse modo Aristóteles irá identificar o fim perfeito, o Soberano Bem, com a Felicidade, “Vê-se pois que a felicidade é algo de perfeito e auto-suficiente (αύταρχεια), e é o fim de nossas ações”.10

Aristóteles assim irá definir a Felicidade como a função própria do homem, afirma: “O simples fato de viver é, com toda evidencia, uma coisa que o homem possui em comum mesmo com os vegetais; ora, o que nós procuramos é aquilo que é próprio do homem”.11 Assim, são refutados a nutrição e a percepção que igualam o homem às bestas. Com efeito, diz ele: “resta pois uma certa vida prática da parte racional da alma, parte que pode ser considerada, de uma parte, no sentido no qual ela esta submetida a Razão,e, de outra parte, no sentido no qual ela possui a Razão (λογος) e exerce o pensamento”.12 Ora, se a “Vida do elemento racional” tem dois sentidos, a referência aqui é a vida “no sentido da atividade, pois essa parece ser a acepção mais própria do Termo”. Desse modo chega-se ao conceito de Felicidade que não é, senão “uma atividade da alma conforme a Razão”. 13

Se a unção do homem consiste em um certo gênero de vida, isto é, em uma atividade da alma e das ações acompanhadas de Razão; se a função de um homem virtuoso é a de realizar esta tarefa, e realizar bem e com sucesso cada coisa, quanto mais estando bem cumprido no memento em que ela é segundo a excelência que lhe é própria – nessas condições é que o Bem para o homem consiste em uma atividade da alma em acordo com a Virtude (αρητη),e, em se tratando de várias Virtudes, em acordo com a mais perfeita entre elas.14

 

A mais perfeita entre elas é a σοϕία (sophia, sabedoria, filosofia) , a Vida contemplativa, que é a suprema Felicidade.

Urge ressaltar que a ÉTICA aristotélica é também uma doutrina do justo-meio (μεσότης), no qual consiste a Virtude (αρετη) e também a investigação das possibilidades para a escolha (προαίρεσις) do justo-meio. Tal é o longo caminho percorrido no livro II da ÉTICA A NICÔMACO, no qual Aristóteles distingue os diferentes tipos de Virtude, ligadas as duas partes da alma, a saber, o lado concupiscente  e o puramente racional, daí a construção de uma espécie de tabua das Virtudes.

Todavia, o ponto importante que queremos ressaltar refere-se à contemplação (τεωρία) do Sumo Bem com a Suprema Felicidade. No final da ÉTICA A NICÔMACO Aristóteles chegará à conclusão de que “se a felicidade é uma atividade conforme a Virtude, será razoável que ela esteja também em concordância com a mais alta Virtude; essa será a Virtude da parte mais nobre que há em nós”.15 Nosso filósofo refere-se à, a σοϕία (Sophia), a Virtude do νους (Nous) , cuja atividade é a especulação pura (ϴεωρία). A σοϕία (Sophia, Sabedoria) é o que há de divino em nós e, com efeito, é através dela que alcançamos a perfeita felicidade; “sua atividade conforme a Virtude que lhe é própria será a perfeita felicidade”.16

Oito argumentos17 irão dar razão ao fato de ser a CONTEMPLAÇÃO a Suprema Felicidade e a mais alta Virtude. Ei-los:

PRIMEIRO ARGUMENTO – A Razão é a melhor parte que há em nós e seus objetos são também os mais altos de todos os objetos cognoscíveis. Os objetos de contemplação do νους (Nous)  são as verdades da matemática, da filosofia da natureza e da metafísica, que formam os três ramos da sabedoria teórica; mas na hierarquia das ciências teóricas é a metafísica que ocupa o primeiro lugar, em razão da suprema e absoluta realidade de seu objeto, vem a ser, DEUS.

SEGUNDO ARGUMENTO – A Vida teórica ou a contemplação é a mais contínua. Esse caráter de continuidade é, embora de forma muito menos elevada, semelhante ao primeiro Motor; ή νόητις νοήτεως νόητις.

TERCEIRO ARGUMENTO – A atividade segundo a sabedoria é a mais aprazível das atividades conforme a Virtude.

QUARTO ARGUMENTO – A contemplação possui o caráter de auto-suficiência (), independência, incondicionalidade.

QUINTO ARGUMENTO – A atividade teórica é um fim em si mesmo e desinteressado, na medida em que ela tem a meta suprema.

SEXTO ARGUMENTO – A atividade teórica possui uma espécie de lazer que lhe é próprio.

SÉTIMO ARGUMENTO – A atividade teórica é o que há de mais divino no homem, ou ainda, “a Vida contemplativa, atividade nobre e beatificante, é contínua e eterna no Primeiro Motor, o homem não pode experimentá-la senão em raros momentos (μιιχρόν χρόνόν) no qual nosso intelecto se torna ato”.

OITAVO ARGUMENTO – A contemplação é a Verdadeira vida do homem. Se todo ser, com efeito, se define por sua essência, o homem se define por sua alma, e a função da alma não é senão a atividade segundo o νους (Nous)  , aí reside a essência do homem. Diz Aristóteles: “Para o homem a Vida conforme a Razão é a melhor e mais aprazível, já que a Razão, mais que qualquer outra coisa, é o homem. Donde se conclui que essa Vida é também a mais feliz”.

Ora, se a felicidade encontra-se na Contemplação (ϴεωρία) do Sumo-Bem poderíamos perguntar: Como Aristóteles define o Sumo-Bem? Nesse momento a questão que se põe não é mais a do conhecimento dos fatos, cujo método de investigação próprio da filosofia moral reside ao derredor da pergunta pelo o quê (ότί), mas, sim, a busca pela causa, pela essência, pelo porquê (διότί). Somos assim remetidos à METAFISICA, em especial ao livro Δ, onde Aristóteles prova a primazia da substância e nos fornece o seu conceito.  Lembremos que esta obra e em especial o célebre livro constitui, a nosso ver, uma das mais belas páginas escritas pelo gênio de Aristóteles e que, sem duvida, irá marcar com uma força caracterizante ímpar a cultura ocidental. Nela Aristóteles mostra a necessidade de um primeiro Motor eterno, cuja essência seja não sensível, mas imóvel, eterna, incorruptível e dotada de um movimento eterno e circular. Pois diz Aristóteles: “É preciso que exista um principio tal que sua substância seja ato mesmo”. Essa substância é ato, pois se fosse potência, haveria um momento no qual nada tivesse existido, o momento do não-ser. “O mundo de toda eternidade é o que é se o ato é anterior à potência”.

Assim, Deus, forma pura e transcendente, ser supremo, é a soma e o termo da série das formas, desenvolvidas entre o pólo da matéria e o pólo do Pensamento Puro. Ele não tem outra condição senão ele mesmo, Ele é a realidade por excelência, que confere ao resto existência e inteligibilidade. Tudo o que há participa em algum grau, e em alguma medida de sua Perfeição. Deus é um ser absolutamente real, absolutamente livre de toda matéria e de toda potência. Ato Puro, que informa tudo e não é informado por ninguém, é, assim, causa formal e suprema inteligibilidade, que em si contém tudo o que é inteligível. Com efeito Deus é, por si mesmo, causa final, Soberano Bem, atração e animação universal, objeto último do amor e do desejo, tudo aspira por sua atividade, a imitar a Vida eterna e perfeita, que é o próprio Deus; ato puro, Primeiro Motor, eterno e imóvel, pensamento do pensamento. Ora, Deus não é possuidor da Vida, mas é a própria Vida, ato puro, e a Vida contemplativa, a contemplação de Deus, do Soberano Bem, é o fim da Vida prática e o ideal de toda Vida. “Este caráter divino da inteligência se encontra no mais alto grau da inteligência divina, e a contemplação é a beatitude perfeita e soberana, o gozo supremo e a soberana felicidade”.18

 

2  KANT E A ÉTICA RACIONALISTA

Kant é a expressão máxima da ética racionalista, de caráter abstrato, que culmina na ética do DEVER (Imperativo Categórico) e na universalidade da Razão, segundo o otimismo da AUFKLÄRUNG.  Para Kant a Filosofia deve indagar sobre as possibilidades e limites da Razão no campo das três interrogações fundamentais que são respondidas pela ciência, pela ÉTICA e pela Religião: o que posso saber? O que deve fazer? O que me é permitido esperar?

No “Prefácio” da FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES Kant aceita a divisão da Filosofia (de origem estóica) em Física, Ética e Lógica. A lógica pertence à Filosofia formal e ocupa-se apenas da forma do Entendimento e da Razão em si mesmas e das regras universais do pensar em geral, sem distinção do objeto. Já a Física e a Ética pertencem à Filosofia material, isto é, “ocupam de determinados objetos e das leis a que eles estão submetidos”,desse modo a Física trata das “leis da natureza” e a ÉTICA ou “DOUTRINA DOS COSTUMES” (SITTENLEHRE) trata das “leis da liberdade”. 19

A intenção de Kant é, pois, fundamentar a moral em princípios estritamente racionais, ou seja, princípios “A PRIORI”. Essa é a tarefa a que se propõe a METAFÍSICA DOS COSTUMES. Isso porque Kant sabe que só é possível uma ÉTICA se, e somente se, esta estiver fundamentada na Metafísica. Diz ele:

 A lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exatamente isso o que importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa Filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem  ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de Filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional comum exatamente por expor em ciência à parte aquilo que este conhecimento só concebe misturado); merece ainda menos o nome de Filosofia moral, porque, exatamente por este amálgama de  princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a sua própria finalidade.20

 

Com efeito, a concepção Kantiana da moral se estrutura, assim, em três móveis que correspondem às três seções dos FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA DOS COSTUMES.21

1) “Primeira seção: transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico”. Nesse conhecimento moral da razão vulgar aparecem duas noções centrais: a noção de “boa-vontade” ( GUTER WILLE) e a noção de Dever (PELICHT) que lhe é correspondente.” … A necessidade das minhas ações por puro respeito à lei prática é o que constitui o dever, perante o qual tem de ceder qualquer outro motivo, por que ele é a condição e uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo.”22

2) “Segunda seção”:  Transição da Filosofia moral popular para a METAFÍSICA DOS COSTUMES”. Na METAFÍSICADOSCOSTUMES serão definidos rigorosamente as noções de: Lei, Valor absoluto e necessário ou A PRIORI da Razão Pura no seu uso prático; dever, necessidade de uma ação com respeito à lei. É um “A PRIORI” da Razão Pura no seu uso prático e, portanto, não é derivada da experiência;  Vontade, “tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a Razão, a Vontade não é outra coisa senão Razão Prática”, Imperativo, fórmula do mandamento ou dever, “a representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da Razão); e a formula do mandamento chama-se Imperativo”. O Imperativo se divide em hipotético, quando diz respeito aos meios, e Categórico, quando se prescreve uma ação objetivamente necessária por si mesma, ou “se a ação é representada como boa em si, por conseguinte, como necessária numa vontade em si conforme a Razão como Princípio dessa Vontade, então  o Imperativo é Categórico”.

O Imperativo Categórico universaliza a máxima que tem caráter subjetivo. As duas principais fórmulas que Kant propõe do Imperativo Categórico são23:

“Age como se a máxima de tua opção devesse tornar-se, por tua vontade uma lei universal da natureza”.

“Age de tal modo que trates sempre a humanidade, seja na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca como um meio”.

O fim é compreendido como aquilo que serve à Vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação (ZWECK); e quando este princípio é dado pela só Razão, ele tem de ser valido igualmente para todos os seres racionais. O meio é o que contém apenas o princípio da possibilidade da ação, cujo efeito é um fim. Explicita Kant:

O princípio subjetivo do desejar é o móbil, o princípio objetivo do querer é o motivo; daqui a diferença entre fins subjetivos, que assentam em mobílies e objetivos, que dependem de motivos, válidos para todo o ser racional. Os princípios práticos são formais, quando fazem abstração de todos os fins subjetivos; mas são materiais quando se baseiam nestes fins subjetivos e portanto em certos móbiles.24

 

3) “Terceira seção: último passo da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão prática”. Aqui Kant coloca a questão sobre a possibilidade de um Imperativo Categórico. O pressuposto da Crítica da Razão Prática é a liberdade como FAKTUM a priori e, portanto, constitutivo da Razão Pura enquanto prática. A prioridade da Razão Prática implica, por sua vez, a autonomia do sujeito moral e o chamado formalismo ético, ou seja, a exclusão dos conteúdos “A POSTERIORI” da sensibilidade na determinação da norma na moralidade. Em Kant o sujeito ético é, eminentemente, a pessoa racional.

Nos FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA DOS COSTUMES e na CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA Kant efetua uma espécie de propedêutica a uma METAFÍSICA DOS COSTUMES, que é, ao que nos parece, uma obra que visa uma tentativa de aplicação, aos casos e às circunstâncias especiais da vida real, daqueles princípios universais afirmados a propósito da lei moral e do Imperativo Categórico.

Uma questão importante da METAFÍSICA DOS COSTUMES25 refere-se à divisão dessa obra em duas grandes partes, a saber, a primeira dedicada à Doutrina do Direito e a segunda a segunda à Doutrina da Virtude. Parece-nos evidente que Kant percebia que a unidade entre a Teoria e a Prática no domínio político não possui apenas um sentido ético, mas é antes de tudo uma questão de Direito. Ora, o direito não supõe, para a sua realização, as mesmas condições que a ÉTICA, isto é, do valor ao fato e do direito ao fato a distância não é a mesma, como ensina Kant. Com efeito, para se ter direitos não é absolutamente necessário ser um homem de BEM, não é necessário agir por dever; mas é necessário, somente, agir conforme o dever. Assim, a Doutrina do Direito pretendeu ser um estudo relativo à realização, na vida gregária, do lado objetivo da lei moral, ao passo que a Doutrina da Virtude nos reconduz, ao invés, ao lado subjetivo da moralidade, ou seja, o qual mesmo sendo claramente avaliável só no íntimo da consciência de cada um (avaliação esta que não podemos saber, uma vez que não podemos saber do outro) é, aqui, objetivada, vem a ser, suposta como visível, com a intenção de nos levar a exercitar nosso conhecimento moral e oferecer a nossa consciência  um recurso eficaz para que possa tornar-se sempre mais pronta e vigilante.

Já no “PRÓLOGO” da segunda parte da METAFÍSICA DOS COSTUMES, isto é, “Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude” Kant inicia colocando a seguinte questão:

 Tem de haver para a Filosofia um sistema de conceitos racionais puros, independentes de toda condição da intuição, isto é, uma metafísica. Trata-se, pois, de saber se para toda a Filosofia prática, enquanto doutrina dos deveres, portanto também para a doutrina da Virtude, são necessários PRINCÍPIOS METAFÍSICOS para poder estabelecê-la como uma verdadeira ciência, e não como um agregado de doutrinas examinadas por separado (fragmentariamente)

 

Portanto, logo no início, Kant busca a exclusão dos conteúdos “A POSTERIORI” da sensibilidade na determinação da norma na moralidade.

Para Kant nenhum princípio moral se funda no sentimento, na inclinação, mas apenas em princípios estritamente racionais, pois, caso contrário, a doutrina da Virtude não terá nenhuma seguridade ou pureza, nem sequer força impulsora.26 Se renunciarmos aos princípios racionais e partimos do sentimento patológico ou puramente estético para determinar o dever, ou ainda, diz ele, “se partimos da matéria  da Vontade, do fim, e não da forma da Vontade, isto é, da lei, então efetivamente não há lugar para princípios metafísicos da Doutrina da Virtude”. Isto porque o conceito de dever é um “A PRIORI” da Razão Pura no seu uso prático e, portanto, não deriva da experiência. Isto porque para Kant tudo indica que a experiência é a mãe do engano.

Com efeito o que diz Kant sobre uma “doutrina da Felicidade?” Diz ele, “ultimamente se há pensado em uma certa felicidade moral, que não se baseia em causas empíricas, o que é um absurdo, contraditório em si mesmo”.27 Aqui nosso filósofo refere-se aos eudaimonistas que dizem ser a felicidade o autêntico princípio motor a partir do qual as pessoas atuam virtuosamente. Ora, se nos FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA DOS COSTUMES o dever define-se, pois, como “a necessidade de uma ação por respeito à lei”, para o eudaimonista,

não é o conceito do dever o que determina imediatamente a Vontade, mas que só é determinado a cumprir o dever por meio da perspectiva da Felicidade”. Assim o eudaimonista é levado a cair em um círculo, pois, “posto que só pode esperar essa recompensa da Virtude da consciência do dever cumprido, esta última tem que preceder; isto é, tem que ver obrigado a cumprir seu dever antes de pensar – e sem pensar – que a Felicidade será a consciência de haver observado o dever. Portanto, com sua etiologia cai em um círculo, isto é, só pode esperar ser feliz (ou inteiramente ditoso) se é consciente de que há observado seu dever, porém, só pode ser movido a observá-lo se prevê que será feliz desse modo..

 

Aqui dois motivos contraditórios, segundo Kant, se justapõem, a saber, um motivo moral, na medida em que deve cumprir seu dever sem perguntar primeiro que efeito isto resultará em sua felicidade; e um motivo patológico na medida em que só pode reconhecer algo como dever se pode contar com a felicidade que ele alcançará. Desse modo, para Kant, quando se coloca como princípio a eudaimonia (princípio da felicidade) em vez da eleuteronomia (ou princípio da liberdade da legislação interior), então a consequência e a eutanásia, a doce morte de toda moral.28

Qual é para Kant a causa desses erros? É a não compreensão do que seja o Imperativo Categórico, que é compreendido como sendo o que representa a ação como objetivamente necessária em razão de si mesma. É um juízo apoditicametne prático e vincula necessariamente a Vontade à lei por meio de uma síntese prática A PRIORI.  O Imperativo Categórico é o imperativo próprio da moralidade: “Faze isto porque deves fazê-lo”.

Kant, na esteira de Agostinho e Lutero, sabe que o homem e um ser de impulsos, de mancha, de inclinações, e a questão então é, como mesmo sendo “curvus”, deve ser virtuoso. Para tanto a lição de Kant é que a liberdade é fim em si mesma e para si mesma, e a liberdade se autofinaliza no consentimento ao BEM, dando-se a si mesma o seu verdadeiro como Virtude. Diz ele: “O homem tem que julgar-se capaz de lutar contra essas forças e vencê-las mediante a RAZÃO, não só no futuro, mas também no agora (ao pensá-lo): isto é, poder aquilo que a lei ordena incondicionalmente é o que deve fazer”.29 Kant busca assim a união da ação com a máxima, a tal ponto que “pela sua própria máxima a Vontade possa considerar-se, ao mesmo tempo legisladora universal”, ou ainda, “já que as inclinações sensíveis nos conduzem a fins (como matéria do arbítrio), que podem opor-se ao dever, a Razão Legisladora não pode defender-se dessas influências a não ser mediante um fim moral contraposto, que tem, portanto, que estar dado A PRIORI, com independência das inclinações”.

Dessa feita, exposto um breve cotejo entre as duas éticas, talvez devesse aqui optar e definir por uma posição, ou seja, Aristóteles ou Kant? Mas confesso que isso eu não farei, haja vista ser muito jovem na filosofia e reconhecer que tal posição me exigirá talvez a velhice. 

O autor, Maurílio Santiago é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996) e mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2001). Atualmente é Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (FAE), Programa com nota 7 na CAPES. Foi coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa/CEP do Centro Universitário Newton Paiva até fevereiro de 2013, onde foi de 2009 até fevereiro de 2013 professor de dedicação exclusiva, 40 horas. É professor do Centro Universitário Newton Paiva, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, filosofia do direito, ética, educação. Foi Professor Contratado da PUC-MINAS e foi Professor da Faculdade Promove. Atualmente atua também como palestrante em eventos de temas transversais para o ENADE no Centro Universitário Newton Paiva. Endreço na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/9444391535027505

 

NOTAS DE FIM

1 Filósofo e Professor de Filosofia do Centro Universitário Newton Paiva 

2 Tal tese refere-se a uma entre outras colocadas e desenvolvidas pelo professor Dr. José Henrique Santos, no curso de Ética por ele ministrado no 2º semestre de 1996 na Pós-Graduação da Fac. De Filosofia da UFMG. 

3 Ver VAZ, H. C. de Lima. Escritos de Filosofia II – ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988. Ver também PLATÃO. A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 

4 Ver Aristóteles. Ethique a Nicomaque. Nouvelle Traduction avex introduction, notes et index por J. Ticot, Paris, Librairie Philosophique J. Urin, 1959. 

5 ARISTOTE, op. cit. p. 31-32 [1094 A]. 

6 ARISTOTE, op. cit. p. 41[1095 A] 

7 ARISTOTE, op. cit. p. 40[1095 A] 

8 Alguns termos em grego não se encontram devidamente acentuados, porque o programa do computador não o permitiu. 

9 ARISTOTE, op. cit. p. 55 [1097 b]. 

10 ARISTOTE, op. cit. p. 55 [1076 b]. 

11 ARISTOTE, op. cit. p. 58 [1098 A].O grifo é nosso. 

12 ARISTOTE, op. cit. p. 58 [1098 A]. 

13 ARISTOTE, op. cit. p. 59 [1098 A]. 

14 ARISTOTE, op. cit. p. 59 [1098 A]. 

15 ARISTOTE, op. cit. p. 508-509[1177 A]. 

16 ARISTOTE, op. cit. p. 508-509[1177 A].

17 Cf. ARISTOTE, op. cit. p. 508-514[1177 A-1178a]. 

18 ARISTOTE, La Métaphysique. Introduction, notes e index par J. Tricot. Librairie Philosophique J. Urin, tomo II, 1970. [p.641-714]. Livro Δ.

19 ARISTOTELES, Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. “Prefácio”, p. 103 (Col. Os Pensadores). 

20 KANT, op. cit. p. 105.

21 KANT, op. cit. p. 107. 

22 KANT, op. cit. p. 117. 

23 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Curso de Ética: esquemas de aulas. (anotações de alunos). Belo Horizonte-MG 

24 KANT, op. cit. p. 134. 

25 KANT. La Metafísica de las Costumbres. Tradução de Adela Cortina Ortz e Jesus Connil Sancho. Madrid: Tecnos, 1994. P.223,em 375. 

26 KANT, op. cit. p. 224, em 376 

27 KANT, op. cit. p. 226, em377. 

28 KANT, op. cit. p. 227, em378. 

29 KANT, op. cit. p. 229, em380.