Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Adélia Procópio Camilo1

 

RESUMO: Diante de todo o desenvolvimento cultural, científico e social, observa-se a necessidade de regulamentar as técnicas científicas de interferência na saúde e no corpo humano. O papel dos juristas é o de adequar essas crescentes descobertas e estudos ao ordenamento jurídico, garantindo o princípio norteador do direito atual, qual seja, a dignidade humana. Neste contexto, insere-se a clonagem humana, seja terapêutica, seja reprodutiva e que a muitos assombra. É importante reconhecer a inequívoca contribuição da ciência, no campo da clonagem e genética, para a ampliação do conhecimento e melhoramento da vida. Suas descobertas têm concorrido para o prolongamento e melhora da qualidade de vida dos seres humanos.

PALAVRAS-CHAVE: Clonagem Humana, Clonagem Reprodutiva, Bioética, Biodireito.

ABSTRACT: In the face of all the cultural and social development, scientific, there is a need to regulate the scientific techniques of interference in health and the human body. The role of lawyers is to adapt these findings and studies the legal system growing, ensuring the guiding principle of the current law, namely human dignity. In this context, it inserts if human cloning, whether therapeutic, and reproductive is that many haunts. It is important to recognize the unique contribution of science in the field of cloning and genetics, to the expansion of knowledge and improvement of life. Their findings have contributed to prolonging and improving the quality of life of human beings.

KEYWORDS: Human Cloning, Reproductive Cloning, Bioethics, Biolaw.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Histórico; 3 Clonagem: Precisões Conceituais; 4 Funcionamento Técnico da Clonagem Reprodutiva; 5 Breve Exposição sobre Bioética e Biodireito; 6 Alguns Casos Concretos (hard cases); 7 Considerações Finais.

ÁREA DE INTERESSE: Biodireito.

 

1 INTRODUÇÃO

A partir da evolução da ciência e da tecnologia, a vida começou a ser analisada sob um novo enfoque. O seu começo, meio e fim ganharam técnicas de aperfeiçoamento. As crescentes descobertas científicas tornaram o mistério da vida mais decifrável.

A experimentação com o corpo humano, há muito tempo, é um tema que divide opiniões, seja de cientistas, juristas, leigos, instituições religiosas ou governantes de toda a sociedade internacional.

Toda essa polêmica originou a bioética e o biodireito, ambos preocupados com as possíveis repercussões advindas do crescimento e conseqüente aplicação das descobertas científicas.

Garcia (2010, p. 181) expõe:

[…] Os caminhos da Ciência Biológica e do Direito, entrecruzados tantas vezes, coincidem agora e se encontram, no desenvolvimento da engenharia genética e, com esta, nas possibilidades e problemática do pré-embrião, do embrião, da clonagem, da manipulação do genoma humano […]

O homem sempre está buscando o aprimoramento de sua espécie, o que o torna capaz de interferir nos processos naturais dos sistemas biológicos, mediante a utilização de técnicas modernas que possibilitam a transformação e a criação seres vivos, visando a alteração, o melhoramento e o prolongamento da qualidade de vida.

Os clones não chegam a ser novidades biológicas, mesmo que tal termo somente na atualidade esteja sendo utilizado em larga escala, já se observava que os gêmeos idênticos são clones uns dos outros. Porém, os clones da atualidade são diferentes, e a principal diferença está na sua forma artificial de obtenção, através da técnica da clonagem reprodutiva, que se vale de material genético de uma célula diferenciada de um indivíduo adulto.

 

2 HISTÓRICO

Pode-se considerar que a clonagem foi uma das novidades mais esperadas da história da Ciência. Desde o início do século XX, experimentos realizados demonstravam que seria possível produzir cópias genéticas de organismos.2

Em 1902, o americano Hans Spemann divide em dois um embrião de salamandra. Tratou-se de uma semiclonagem, uma vez que o embrião era muito pequeno. Hans Spemann recebeu o Prêmio Nobel em 1935 por seu trabalho com embriões.

No ano de 1950, é realizada, nos Estados Unidos, a primeira experiência bem sucedida de fertilização artificial em vacas.

Em 1952, realiza-se a primeira experiência real de clonagem. Thomas J. King e Robert Briggs, do Instituto de Carnegie, nos Estados Unidos, procedem à clonagem de girinos a partir de núcleos de células somáticas. Obtêm-se embriões bem maiores que os de Hans Spemann. Porém, todos morreram antes de amadurecerem e se transformarem em rãs.

No início da década de 60 (1962), nascem nos Estados Unidos os primeiros bezerros de proveta.

Em 1967, o biólogo inglês Jonh B. Gurden consegue obter clones de um vertebrado adulto. Repetindo o procedimento de Thomas J. King e Robert Briggs, Gurden cria o clone de uma rã. O clone se desenvolveu a partir de uma célula comum, extraída do intestino de sua “mãe”. Porém, novamente, o girino morreu antes de alcançar a vida adulta. Criou-se, também, outra polêmica, relativa ao amadurecimento da célula do intestino da rã utilizada para clonagem. Surgiu a dúvida se tal célula seria realmente “adulta”, uma vez que, apesar de se encontrar em um organismo totalmente formado, ela poderia ser imatura, semelhante à de um embrião (CRUZ; TEICH, 2001)

Na Inglaterra, em 1969, começam a ser realizadas experiências de fecundação de óvulos humanos em laboratório.

Em 1970 começam a ser realizadas pesquisas com embriões de ratos.

No mesmo ano, o Journal of the American Medical Association expôs em um editorial: “Certamente um dia seremos capazes de reproduzir um indivíduo em todos os seus detalhes, mas será que isso constitui uma meta desejável?”.

Em 1978, os ingleses Patrick Steptoe e Robert Edwards anunciam o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta. (CRUZ; TEICH, 2001.)

No ano de 1984, os embriologistas americanos Davor Solter e James McGrath realizam uma série de tentativas para clonar embriões de ratos transferindo os seus genes para dentro de um óvulo, técnica semelhante à que seria mais tarde usada por Ian Wilmut. Erroneamente, concluem que a clonagem de mamíferos por essa técnica é “biologicamente impossível”.

Após nove anos, em 1993, na reunião da Sociedade Americana para Pesquisa da Fertilidade, realizada em Montreal (Canadá), os pesquisadores norte-americanos Jerry Hall e Robert Stillman anunciaram que, durante um trabalho de fertilização assistida, haviam separado os blastômeros (células resultantes do processo de segmentação da célula – ovo) de um zigoto segmentado.

Zigoto este que, fatalmente, degenerar-se-ia, pois era tripóide, isto é, possuía três conjuntos cromossômicos em vez de dois, encontrados em uma célula comum. A partir de cada um dos blastômeros, mostraram que era possível obter um embrião. Portanto, se o zigoto segmentado tivesse sido normal, os vários embriões resultantes teriam a possibilidade de serem implantados no útero de uma mulher, podendo gerar gêmeos univitelinos.

Foram divididos 17 embriões, nos estágios de duas a oito células, resultando em 48 novos embriões. Todos os embriões gerados foram destruídos ao final do experimento, com um estágio máximo de desenvolvimento de 32 células.

Foi no final de 1993, portanto, que a expressão ‘clonagem humana’ começou a ser divulgada com maior intensidade. Na realidade, Hall e Stillman tentaram aplicar à espécie humana o que já vinha sendo feito há muito tempo em animais.

No ano de 1994, o veterinário americano Neal First clona os primeiros embriões de vaca.

Em 1996, nasce na Escócia, a ovelha Dolly, clonada a partir das glândulas da mama de uma ovelha adulta.

Pela primeira vez, em todo o mundo, criou-se o clone de um animal adulto. O nascimento da ovelha Dolly foi produto de muitos anos de pesquisa do embriologista inglês Ian Wilmut. O nome Dolly foi dado à ovelha em homenagem à atriz Dolly Parton, famosa por suas glândulas mamárias.

O embriologista Ian Wilmut possuía como base de sua pesquisa a criação de animais capazes de produzir drogas para uso humano, já que era patrocinado por um laboratório.

Posteriormente, foi descoberto o envelhecimento precoce da ovelha, clonada a partir de outra adulta, lançando ainda mais dúvidas sobre a questão.

Em 1997, foi clonada a ovelha Polly recebendo genes humanos e unindo, dessa forma, em uma única pesquisa as técnicas de clonagem e transgenia.

Nesse mesmo ano, o pesquisador inglês Jonathan Slack, da Universidade de Bath, cria um sapo transgênico sem cabeça. A Universidade do Havaí, por sua vez, produz os primeiros camundongos clonados.

No início do ano de 1998, cientistas da Universidade de Wisconsin usam óvulos de vacas para abrigar embriões clonados de ovelhas, porcos, ratos, bezerros e macacos. Entretanto, problemas congênitos impediram as gestações de chegar ao fim (FREITAS JÚNIOR; PROPATO, 2001).

Por sua vez, o cientista americano Richard Seed afirma que fará clonagens humanas clandestinas. Já se torna possível, também, a separação de espermatozóides que têm o cromossomo Y dos que têm o cromossomo X, de modo a poder usar um ou outro, conforme se queira, levando à possibilidade de escolha do sexo do bebê. Assim, se a fecundação for feita com os espermatozóides que têm o cromossomo Y, nascerá um menino, caso contrário, uma menina irá nascer.

Ainda em 1998, os americanos James Thomson e Jonh Gerhart isolam as primeiras células tronco de um embrião humano em um estágio muito inicial de desenvolvimento.

Ao final de referido ano, no Japão, oito vacas são clonadas a partir de uma célula adulta.

Em meados de 1999, nascem as ovelhas Diana e Cupido, com gene que as faz produzir grandes concentrações de albumina humana, essencial ao tratamento de queimados e feridos, inclusive leite com referida proteína.

Em setembro de 1999, nasce a macaca terra, primeira primata clonada pela técnica de fissão de embriões, ou produção artificial de gêmeos, em que um embrião é dividido em quatro clones. Terra foi a única a sobreviver.

No ano de 2000, foi revelada a existência de Xena, porca clonada no Japão a partir de uma experiência que utilizou 110 (cento e dez) óvulos fertilizados. Nasce também Andi, primeiro macaco transgênico. Andi recebeu o gene de determinada espécie de água-viva que brilha quando exposta à luz. Foram necessários 225 (duzentos e vinte e cinco) óvulos, 40 (quarenta) embriões e 5 (cinco) gestações para a geração de 1 (um) só macaco com as alterações desejadas.

Em 2001, no Distrito Federal, nasce a bezerra Vitória, primeiro animal clonado no Brasil. Dos 15 (quinze) embriões utilizados na experiência, apenas 1 (um) sobreviveu.

Em fevereiro de 2002, a PPL Therapeutics, empresa fundada nos EUA pelos criadores de Dolly, apresenta novos clones de porcos. Esses animais foram clonados sem um gene responsável pela rejeição de órgãos suínos, quando transplantados para pessoas. Um dia depois, a Universidade do Missouri, diz ter obtido o mesmo avanço.

O ano de 2002 também foi marcado por anúncios de cientistas como o italiano Severino Antinori e o americano Panayiotis Zavos, que declararam a intenção de clonar um ser humano, despertando curiosidade e polêmica entre os cientistas, assim como entre a opinião pública. Alguns meses depois de referida declaração, Antinori chegou a dizer que uma mulher estava grávida de oito semanas de um clone humano, de acordo com a edição on-line da revista médica New Scientist3. Em reação ao anúncio de Antinori, a empresa Clonaid anuncia já ter implantado no útero de diversas mulheres, embriões produzidos a partir de clonagem. Da mesma forma, uma pesquisadora chinesa respeitada – Lu Guangxiu – declara ao jornal americano “Wall Street Journal”, que produzia dezenas de embriões humanos por clonagem desde 1999.

Em julho de 2002, nasce a bezerra Penta, o primeiro clone de um animal adulto produzido no Brasil. A bezerra morreu de infecção generalizada, cinco semanas depois.

Também em 2002, a Universidade A and M, Texas, realizou a primeira clonagem de um animal de estimação, no caso, um gato, que recebeu o nome de Copycat, demonstrando que pesquisas continuavam sendo realizadas em todo o mundo, com as mais diversas espécies de animais.

Ainda em 2002, uma empresa afirma ter clonado um ser humano. Dizem que o bebê, uma menina chamada Eva, nasceu sadia e pesa 3,2 Kg. A empresa é da seita dos realianos – que acreditam que o ser humano é obra de extraterrestres. Nada foi confirmado desde então.

O ano de 2003, por sua vez, inicia-se com a notícia da morte da ovelha Dolly na Escócia, no dia 14 de fevereiro, sexta-feira, aos 6 (seis) anos. Observa-se que uma ovelha pode viver até 12 (doze) anos. Veterinários deram à ovelha mais famosa do mundo uma injeção letal, depois de descobrirem sinais de uma doença pulmonar progressiva. A necropsia revelou que Dolly teve câncer.

Em dezembro de 2003, a Câmara Baixa do Parlamento francês aprova um projeto de lei que torna a clonagem reprodutiva humana um crime contra a humanidade, suscetível de punição de 30 (trinta) anos de prisão e multa de até 7,5 milhões de euros.

No mês de fevereiro de 2004, cientistas sul-coreanos, liderados por Hwang, anunciam que produziram uma linhagem de células-tronco pluripotentes (capazes de se diferenciarem em vários tecidos), a partir de dezenas de embriões produzidos por meio da clonagem. Anunciaram, assim, o que seria a maior descoberta do novo século: a primeira clonagem de um embrião humano. Porém, no mês de dezembro, uma equipe de pesquisadores sul-coreanos mostrou que as pesquisas de Hwang foram forjadas. O cientista desculpou-se publicamente e pediu demissão da universidade onde trabalhava.

No Brasil, também em fevereiro, nasce a bezerra Vitoriosa, cópia da vaca Vitória, primeiro clone brasileiro. O nascimento foi anunciado duas semanas depois de realizado o procedimento. Após três meses, Vitoriosa morre. A causa mortis mais provável foi um ataque do coração.

Em fevereiro de 2005, a ONU aprova uma resolução que pede às nações que proíbam todas as formas de clonagem humana que não protejam a vida – incluindo aquelas com fins terapêuticos.4

Ainda no final de fevereiro, cientistas franceses do laboratório Cryozootech e o centro de pesquisa genética italiano CIZ clonam o cavalo campeão Pieraz-Cryozootech-Stallion, que fora castrado ainda novo. O laboratório informou que seus bancos de genes já continham células de trinta cavalos, todos excepcionais em suas categorias de competição, além de outros de raças em perigo de extinção.

Também em 2005, os sul coreanos mostram ao mundo o primeiro clone de um cão adulto, que foi chamado de Snuppy. A novidade está na maior dificuldade que a clonagem de um cão exige por causa da fisiologia reprodutiva única desse animal, que reduz a qualidade e a quantidade dos óvulos utilizados no processo. Os genes de Snuppy foram retirados de uma única célula da orelha de um cachorro adulto. A descoberta foi considerada a invenção mais espetacular de 2005, de acordo com a revista norte-americana Time, que seleciona anualmente os projetos que podem ter grande impacto na sociedade (PARK, 2005).

No Brasil, em maio de 2005, a Embrapa anuncia a produção de dois clones da raça bovina Junqueira, sendo ambas, Porã e Potira, clones da mesma fêmea.

Em 2013, uma equipe de cientistas de Oregon, nos EUA, anunciou que conseguiu reprogramar células da pele humana para que atuem como células-tronco, o que pode abrir caminho para a clonagem com fins terapêuticos de órgãos humanos. Os cientistas acreditam que as células-tronco poderiam ser usadas para substituir as células danificadas por doenças ou lesões, e para tratar males como o Parkinson, a esclerose múltipla, as doenças cardíacas e as lesões na medula espinhal.

O histórico em questão demonstra que as pesquisas não cessam e evoluem a cada dia, demonstrando a rapidez das revoluções operadas pelas ciências biomédicas e o surgimento de difíceis questões ético – jurídicas, não podendo o direito deixar de se manifestar diante de tal realidade.

 

3 CLONAGEM: PRECISÕES CONCEITUAIS

Antes de adentrar no funcionamento técnico da clonagem, é necessário fazer uma breve conceituação: o termo clone foi criado em 1903 pelo botânico Herbert J. Webber enquanto pesquisava plantas no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Segundo Webber (1903), o termo vem da palavra grega Klón, que significa broto vegetal. É basicamente um conjunto de células, moléculas ou organismos descendentes de uma célula e que são geneticamente idênticas a célula original (DINIZ, 2009).

Desta forma, a clonagem é um processo de reprodução assexuada, onde são obtidos indivíduos geneticamente iguais (microorganismo, vegetal ou animal) a partir de uma célula-mãe. É um mecanismo comum de propagação de espécies de plantas, bactérias e protozoários. Em humanos, os clones naturais são gêmeos univitelinos, seres que compartilham do mesmo DNA, ou seja, do mesmo material genético originado pela divisão do óvulo fertilizado.

Cabe aqui, fazer-se a distinção entre as clonagens reprodutiva e terapêutica, relembrando que apenas a primeira será objeto do presente estudo.

Pode-se observar que o destino dado ao ente clonado é uma das principais diferenças entre as clonagens terapêutica e reprodutiva: no primeiro caso, o embrião seria a fonte de colônia de células-tronco e teria sua existência restrita ao âmbito laboratorial. Na clonagem reprodutiva, o destino do embrião é ser implantado no útero de uma mulher, para que seu desenvolvimento seja levado a termo, surgindo daí uma pessoa humana, dotada de vida social.

A clonagem reprodutiva objetiva criar uma cópia idêntica de um ser humano. Seria como um gêmeo idêntico, porém, nascido anos ou décadas depois. Foi através de um processo de clonagem reprodutiva que foi criada a ovelha Dolly, como será a seguir explicitado.

Em relação à clonagem terapêutica, observa-se que os seres vivos são concebidos a partir da multiplicação de uma única célula ovo, contendo em seu DNA toda a informação hereditária. Antes de começarem a se dividir e se diversificar para formar os tecidos do corpo, as células do embrião são indiferenciadas.

A clonagem terapêutica tem como objetivo principal reorientar essa única célula a produzir um determinado conjunto de células ou um tecido: é a chamada célula tronco. Assim, elas podem funcionar como um “curinga” de órgãos doentes, ajudando a substituir seus órgãos degenerados. No caso de alguém que fosse portador de uma doença como a leucemia, por exemplo, e necessitasse de um transplante de medula, ele poderia ser o doador para ele mesmo, não correndo o risco de rejeição, graças à clonagem terapêutica.

Dieguez (2011), trouxe uma reportagem interessante sobre estudos feitos com células-tronco. Referidas células – unidades com potencial para se transformarem em tecidos musculares, cardíacos, nervosos, dentre outros – são as responsáveis pela discussão acerca da legalização da clonagem terapêutica, haja vista que, como será mostrado ao longo desse estudo, a clonagem reprodutiva é majoritariamente refutada. Nessa reportagem, expõe-se que como a lista de males possivelmente curáveis cresce a cada dia, é difícil dizer onde vão parar os benefícios médicos dessas incríveis “peças de reposição naturais”. Resultado: com essa descoberta, gerou-se uma pressão política enorme para a tomada de decisões rápidas sobre a clonagem. O motivo é que para obter, estudar e utilizar células-tronco, é preciso tirá-las de embriões muito jovens, de preferência logo após quatro dias de idade, quando o futuro bebê ainda é apenas uma esfera invisível a olho nu formado por algo entre 50 e 300 células. E a melhor maneira de fazer isso, dizem os especialistas, seria produzir embriões em laboratório, com a clonagem.

 

4 FUNCIONAMENTO TÉCNICO DA CLONAGEM REPRODUTIVA

Sendo a clonagem reprodutiva um tema relativamente novo, torna-se necessário demonstrar o funcionamento técnico do processo de clonagem, desmistificando várias polêmicas causadas, muitas vezes, pelo desconhecimento do tema e pela veiculação de informações inverídicas por parte da mídia.

A reprodução é o processo biológico em que os seres vivos originam novos indivíduos, sendo a etapa do ciclo vital que permite a perpetuação das espécies.

Para muitos seres a clonagem é um método de reprodução normal, natural, o que não ocorre com a maioria dos organismos existentes. As bactérias, por exemplo, seres unicelulares, reproduzem-se através da clonagem, ou seja, as filhas são cópias genéticas idênticas às suas mães. A reprodução das bactérias é assexuada. Há apenas uma duplicação e posterior divisão de tais seres (SILVA JÚNIOR e SASSON,2001).

Porém, na maioria dos organismos, nenhuma célula do corpo seria capaz de gerar um novo ser. A reprodução é sexuada, ocorrendo a fecundação entre os gametas feminino e masculino e a transmissão das características hereditárias.

Haveria duas formas de reprodução que poderiam ser utilizadas na clonagem: a separação das células de um embrião em seu estágio inicial de multiplicação celular ou a substituição do núcleo de um óvulo por outro proveniente de uma célula de um indivíduo já existente.

Na primeira classificação, que seria a separação provocada das novas células de um embrião, serão produzidos novos indivíduos exatamente iguais quanto ao patrimônio genético, porém diferentes de qualquer outro existente, por exemplo, como ocorre na natureza quando da geração de gêmeos univitelinos.

O Professor Jerry Hall, da Universidade George Washington/EUA, realizou esse tipo de experimento. Foram divididos 17 (dezessete) embriões, nos estágios de 2 (duas) a 8 (oito) células, resultando em 48 (quarenta e oito) novos embriões. Todos os embriões gerados foram destruídos ao final do experimento, com um estado máximo de desenvolvimento de 32 (trinta e duas) células. A segunda técnica seria a que reproduz assexuadamente um indivíduo criando outro igual ao previamente existente.

A reprodução assexuada é classificada por Stela Marcos de Almeida Neves Barbas (1998, p. 39-40), da seguinte forma:

I – Reprodução Assexuada.

Cloning.

 

1.1 Com componente genético de um dos cônjuges:

a) Gene do pai, clonado em óvulo de mãe legal e gerado por ela – cloning homólogo.

b)Gene do pai, clonado em óvulo doado e gerado por mãe legal. .

c) Gene da mãe, clonado em óvulo de mãe legal e gerado por ela – cloning antólogo.

d) Gene clonado em óvulo de mãe doadora e gerado por ela.

 

1.2 Com componente genético de doador, clonado em óvulo de mãe portadora e gestado por ela – cloning heterólogo.

Foi utilizada a reprodução assexuada, no caso a técnica do transplante nuclear, na criação da ovelha Dolly, e é anunciada pelos cientistas como a que deverá ser utilizada para a clonagem de seres humanos.

Essa técnica consiste em retirar-se do ser (do animal) ao qual se deseja copiar, uma célula comum cujo núcleo é, em seguida, extraído, sugado com uma agulha. O núcleo de referida célula é enxertado em um óvulo – do qual também foi retirado o núcleo – de outro ser.

Para unir o óvulo ao núcleo inserido, utiliza-se uma descarga elétrica. O patrimônio genético do ovo formado é completo, uma vez que vem de uma célula comum de um animal adulto. A partir de tal fusão, o óvulo é colocado em um meio que estimula a formação do embrião que, por sua vez, será implantado no útero de outro organismo, da mesma espécie que os anteriores. Após o período de gestação, nascerá um ser geneticamente igual àquele do qual foi extraído o núcleo da célula comum, apesar de o óvulo e útero pertencerem a outros organismos.

O médico italiano Severino Antinori citado por Dieguez (2001) afirma ser possível a clonagem humana através da seguinte experiência: serão retirados óvulos de 180 (cento e oitenta) mulheres. Estimuladas por drogas, cada mulher doará, aproximadamente, 10 (dez) óvulos, cujos núcleos serão removidos, ou seja, totalizando 1800 (mil e oitocentos) óvulos. Como descrito anteriormente, será introduzido em tais óvulos, o núcleo das células de pessoas candidatas à clonagem. Após o processo de reconstrução e fecundação, apenas 600 (seiscentos) óvulos chegarão ao estágio de embrião.

Foram selecionadas outras 200 (duzentas) voluntárias que possuirão, em média, 3 (três) embriões implantados em seus úteros. Apenas 30 (trinta) voluntárias passarão da metade do período de gravidez. Ao final, terão nascido, aproximadamente, 8 (oito) bebês e, entre esses, somente 3 (três) deverão sair sadios do berçário (CRUZ, 2001).

Vários obstáculos e polêmicas são gerados a partir de tal experimento, quais sejam: inicialmente, 1/5 (um quinto) dos 1800 (mil e oitocentos) óvulos, é jogado fora após a primeira fase citada.

A retirada do núcleo das células comuns e sua fusão com o óvulo possuem, atualmente, índice de falha de 60% (sessenta por cento) em média.

Proporcionalmente, poucas células clonadas tornam-se embriões. No caso da ovelha Dolly, por exemplo, das 227 (duzentas e vinte e sete) células utilizadas, somente 27 (vinte e sete) tornaram-se embriões. Suspeita-se que a cultura dos embriões, além de provocar perdas, cause futuros problemas genéticos nos clones. Em alguns casos ainda, os defeitos do embrião poderão colocar em risco a fêmea cujo útero está sendo utilizado, gerando a possibilidade de uma pequena parte delas morrer durante o parto.

O processo de nidação (fixação dos embriões nos úteros) é, por sua vez, incerto: quase metade dos embriões não se fixa. Dos que passam por essa etapa, 50% (cinqüenta por cento) morre nos primeiros meses. É o que está sendo chamado de “síndrome das crias”. A causa mais comum dessas mortes é o crescimento exagerado dos órgãos a ponto de inviabilizar a sobrevivência das crias.

Acrescenta-se que alguns dos clones morrerão de problemas respiratórios e cardíacos ao nascer, ou nas primeiras horas de vida. Outros viverão com falhas genéticas e/ou imunológicas graves. Mesmo depois de crescidos, porém, alguns desses clones poderão desenvolver anormalidades que até então, não tinham se manifestado.

Calcula-se que, de todos os embriões clonados, apenas 1% (um por cento) a 5% (cinco por cento) tornam-se adultos saudáveis (DIEGUEZ, 2001).

Também não se pode prever como tais clones se comportarão logo após o nascimento e durante seu desenvolvimento até a fase adulta. Vários experimentos com clones de camundongos demonstram que sua longevidade é muito reduzida em relação ao indivíduo original (clonado). A ovelha Dolly já sofria de artrite com apenas cinco anos (BONFIM, 2005), uma doença comum na velhice ovina, e que não foi documentada no indivíduo do qual Dolly se originou. Em várias espécies, os clones gerados a partir de indivíduos adultos, incluindo Dolly, apresentam vários outros sinais de envelhecimento precoce. O experimento mais significativo evidenciando a eficiência da clonagem, executado pela empresa Advanced Cell Technology, foi feito com 30 vacas clonadas e indicou que “apenas” 20% dos clones apresentaram problemas até a idade de quatro anos, fase adulta dos bovinos. Talvez outras vacas possam ainda apresentar problemas até seus 20 anos, se chegarem à velhice bovina, mas estas informações, presume-se, só poderão ser obtidas daqui a algumas décadas.

Outro fator a ser considerado são os custos, os quais não devem ser esquecidos, pois a técnica de clonagem, que permite a criação de cópias de um único ser clonado, implica em vultuosos gastos. Cumpre apenas lembrar que uma outra técnica foi desenvolvida pelos cientistas criadores de Dolly, qual seja, fusão das técnicas de transplante nuclear com a transgênese, onde o gene de interesse é adicionado ao genoma da célula que será utilizada como doadora (DINIZ, 2003). Conjugando-se essas duas técnicas, permite-se a produção de indivíduos transgênicos, ou seja, com alterações genéticas.

Mas o que poderia acontecer à espécie humana? Qualquer cientista sério responderia que problemas similares nos vários estágios da clonagem e desenvolvimento do clone humano podem aparecer com significativa probabilidade. Mas é necessário pensar em situações que não podem ser respondidas agora. Por exemplo: grande parte do processo de envelhecimento humano está associada à nossa função cerebral, bem diferenciada dos outros animais. Será que teremos de esperar clones humanos se desenvolverem para anotarmos, tal como um resultado de experimento que levou vários anos para ser respondido, que clones ficam “caducos” antes do tempo?

Verificando-se os detalhes científicos dos processos de clonagem, é fácil perceber as barreiras legais, éticas e morais que deverão ser enfrentadas por aqueles que se “aventurarem” na produção de um clone humano.

 

5 BREVE EXPOSIÇÃO SOBRE BIOÉTICA E BIODIREITO

O termo Bioética refere-se, frequentemente, aos problemas éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas e, como exposto, estas tiveram um grande desenvolvimento nos últimos tempos.

Segundo Sá (2004, p. 1):

Nessa esteira de raciocínio, a Bioética surge como corolário do conhecimento biológico, buscando o também conhecimento do sistema de valores. Embora se refira, freqüentemente, aos problemas éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas que tiveram grande desenvolvimento na segunda metade do século XX, muito importante se faz ressaltar, na busca de maior aprofundamento sobre o tema, que referida ciência tem como uma de suas preocupações principais a questão da autonomia do paciente.

Tal termo foi utilizado pelo oncologista e biólogo norte americano Van Resselder Potter, da Universidade de Wisconsin, em Madison, inicialmente num sentido ecológico, onde se considerou a bioética como a ciência da sobrevivência. Posteriormente declarou que “bio” significaria o conhecimento biológico e “ethike” o conhecimento do sistema de valores (PESSINI, BARCHIFONTAINE; DE PAUL, 1996).

Historicamente origina-se da preocupação da comunidade científica, das autoridades e da população em geral, sobre as experimentações com o corpo humano, desde as práticas nazistas.

Sobre a origem da bioética, Séguin (1999, p. 18-19):

A fusão da ética com a ciência da vida deu origem à Bioética, integrando a cultura humanística à técnico – ciência das ciências naturais. Surgiu na década de 60 como estudo multidisciplinar, preocupada com os reflexos do comportamento humano ante o progresso das ciências da saúde. Passou além da ética – ciência e da Filosofia do Direito, interfaceando o Direito Penal e o Direito Civil.

Para Diniz (2001, p. 10-11):

A bioética seria, no sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só dos problemas éticos, provocados pelas tecnociências biomédicas e alusivos ao início e fim da vida humana, às pesquisas em seres humanos, às formas de eutanásia, à distanásia, às técnicas de engenharia genética, às terapias gênicas, aos métodos de reprodução humana assistida, à eugenia, à eleição do sexo do futuro descendente a ser concebido, à clonagem de seres humanos, à maternidade substitutiva, à escolha do tempo para nascer ou morrer, à mudança de sexo em caso de transexualidade, à esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, à utilização da tecnologia do DNA recombinante, às práticas laboratoriais de manipulação de agentes patogênicos, etc., como também dos decorrentes da degradação do meio ambiente, da destruição do equilíbrio ecológico e do uso de armas químicas. Constituiria, portanto, uma vigorosa resposta aos riscos inerentes à prática tecnocientífica e biotecnocientífica, como os risco biológicos associados à biologia molecular e à engenharia genética, às práticas laboratoriais de manipulação genética e aos organismos geneticamente modificados […].

A discussão em torno da Bioética chamou a atenção para as implicações decorrentes das pesquisas biomédicas e biotécnicas, que podem trazer prejuízos à saúde física e mental do homem, afetar o ecossistema, interferir na etnia, agravando posturas racistas, preconceituosas, discriminatórias de indivíduos e grupos étnicos, sociais, econômicos, entre outras polêmicas. Essa discussão evidencia a necessidade de inserir ações no mundo jurídico, para o estabelecimento de normas regulamentadoras dessas pesquisas, sua destinação e implementação de seus resultados, garantindo à sociedade e à pessoa humana a segurança necessária à manutenção de seu bem estar.

O biodireito, então, surge da união da bioética com o direito. O biodireito teria a vida como objeto principal, salientando-se que a verdade científica não poderá se sobrepor à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem os devido limites jurídicos, os destinos da humanidade.

Biodireito, para Bobbio (1992, p. 13):

Direito de Quarta geração, cujo objeto é justamente, regular os efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, acompanhado as transformações sociais em curso e buscando prevenir e solucionar todos os conflitos dela decorrentes.

Segundo Séguin (1999, p. 18-19):

O Biodireito como ciência disciplina as relações médico-paciente, médico-família do paciente, médico-sociedade e médico-instituições, e os diversos aspectos jurídicos que surgem dentro, fora e por causa destes relacionamentos, introduzindo a noção de saúde moral à saúde física. […] Kant ensinou que a violação do Direito ocorrida num ponto da terra é sentida por todos […].

Consideram-se interessantes, ainda, as seguintes observações sobre a bioética e o biodireito:

Andrade Júnior (2002, p. 233-235)

Como a Moral e a Ética, a Bioética e o Biodireito também lidam com normas sociais. Estas, por sua vez, são comando de dever-ser, não estando, assim, na ordem do ser. Isso porque as normas sociais estão sujeitas ao fenômeno da imputação e não da causalidade. São causais os fenômenos da natureza, na qual uma causa produz inexoravelmente uma conseqüência […] É a Bioética um ramo da Ética, quando se estuda o fato relacionado à Biomedicina e será o bem o valor nuclear a dar conteúdo às normas pertinentes a este fato. Todavia, se as normas éticas forem eleitas pelo legislador, como de suma relevância para os fins desejados pelo mesmo, serão estas normas validadas, no que diz respeito ao Direito, surgindo, então o Biodireito. Nesse sentido, o Biodireito será um ramo do Direito, mas abrangerá a Bioética.

Sá (2004, p. 1)

Assim, apesar de termos apontado suas diferenças, Bioética e Biodireito seguem juntos. O Direito não se limita ao discurso legal. A força da norma é uma força da realidade. E esta verdade também se encontra na Bioética, pelo efeito juridicizante que já expomos. E a função maior de ambos é a proteção dos direito humanos, ainda que utilizando técnicas distintas de abordagem, que ao final, sem sombra de dúvidas, se completam Pelo já exposto, percebe-se a necessidade do Direito, seja interno, seja internacional, através do Biodireito e da Bioética, de tutelar e proteger a sociedade, assegurando aos homens direitos essenciais como sua dignidade, assim como a necessidade de manter-se um diálogo aberto e permanente entre os países do globo, sobre as consequências da clonagem para o ser humano.

 

6 ALGUNS CASOS CONCRETOS (HARD CASES)

Após ter estabelecido a distinção entre os tipos de clonagem e demonstrado como se dá o funcionamento técnico da clonagem reprodutiva, cabe aqui relatar, com o objetivo de instigar a reflexão e de mostrar como poderão ser concretas algumas das situações expostas por Silver (2001), com as quais, possivelmente, a humanidade irá se deparar, cotidianamente, em um futuro próximo:

Primeira situação: Anissa era estudante e recebeu o diagnóstico de uma leucemia mielóide, um câncer de progresso lento mas fatal, das chamadas “células-mãe” do sangue. A única maneira de curar esse câncer é por um processo de duas etapas: a) um tratamento com substâncias químicas extremamente tóxicas que destroem todas as “células-mãe” do sangue – o que inclui as cancerosas – em todo o corpo da pessoa. b) a substituição das “células-mãe” eliminadas por outras fornecidas por um doador, mediante transplante de medula óssea. O doador deve mostrar compatibilidade suficiente de tecidos com a pessoa carente e a chance de haver compatibilidade suficiente entre dois indivíduos, que não sejam parentes, é de 1(um) para 20(vinte) mil.

Os pais de Anissa, que estavam desesperados para salvar a vida da filha, procuraram um doador. Nenhum dos membros da família era compatível e também se mostraram frustradas outras buscas. A essa altura, os pais tomaram um decisão: iriam ter outra criança que pudesse doar a medula óssea necessária a Anissa. Por milagre, conseguiram ter uma filha compatível e realizaram o transplante. Desde então, a menina repete, bem feliz, que salvara a vida de sua irmã.

Considerando, porém, o que os pais poderiam ter feito se a clonagem estivesse disponível quando souberam da doença da filha; com uma célula da pele do corpo de Anissa, por exemplo, eles teriam sido capazes de construir um novo embrião com o mesmo material genético. E, em vez de lutarem contra as probabilidades, saberiam desde o início que seu novo filho seria não apenas um doador adequado, mas também perfeitamente compatível com sua filha mais velha (o que é possível apenas com gêmeos idênticos). Exceto por um detalhe, o resultado final não seria diferente do que realmente aconteceu. Uma criança chamada Marissa ainda teria nascido e ela ainda teria curado sua irmã mais velha. É claro que com a diferença de que ao invés de ter material genético 99,95% igual ao de sua irmã mais velha, como os outros pares de gêmeos, o material genético de Marissa seria 100% igual ao de Anissa. Isso faria diferença na quantidade de amor que os pais de Marissa sentiriam por ela? Estaria ela menos orgulhosa de ter salvado a vida de sua irmã? Claro que não. Mas tendo em vista as implicações impostas acima, tem-se que o procedimento ainda é muito incerto, devendo ser acrescentada a seguinte pergunta: seria Marissa realmente saudável?

Segunda situação: um casal possui um par de gêmeos e depois de algum tempo a mãe fica estéril. Um dia, um rapaz drogado invade a calçada com seu carro desgovernado e mata os bebês que estavam em um carrinho no passeio. Os pais sabem que não podem ter mais filhos biológicos. Sem que eles soubessem um médico que estava na sala de emergência no momento em que os bebês foram levados para lá, retirou, cuidadosamente, amostras dos tecidos de ambos os corpos logo depois de mortos e os congelou. Ele explica aos pais como poderiam utilizar essas amostras, em uma tentativa de ter de novo seus próprios filhos biológicos, por meio do processo de clonagem. É claro, ele adverte, que os gêmeos originais não serão trazidos de volta. Mas as crianças daí nascidas se parecerão e muito provavelmente agirão de modo similar aos bebês que eles perderam.

O casal fica confuso com a escolha que está sendo oferecida a eles. No entanto, decidem ir em frente. Agora a família está completa. Um estranho nunca saberia que essa família foi construída pela clonagem dos dois gêmeos fraternos nascidos antes. Ambas as crianças agora vão crescer num ambiente de amor e, quando estiverem com idade para compreender, seus pais vão explicar como eles foram concebidos.

Torna-se difícil imaginar o que poderia estar errado com esse uso da tecnologia da clonagem de humanos. Na verdade, com base num direito constitucionalmente protegido de reproduzir, é difícil imaginar como seria eticamente possível negar o uso da tecnologia – desde que seja considerada segura – ao casal nessa circunstância extremamente incomum.

A questão torna-se ainda mais complicada quando se trata de clonagem de adultos, como é possível perceber pela situação que se segue.

Terceira situação: Elisa é uma mulher solteira que vive de seu trabalho e mora em um apartamento elegante. Concentrou quase todas as suas energias na carreira desde que se formou e tem crescido constantemente no mundo dos negócios. Em termos financeiros está tudo muito bem. Elisa teve relações afetivas com vários homens ao longo desses anos, mas nenhuma foi séria o bastante para que ela desistisse da sua vida de solteira.

No dia de seu aniversário de 35 anos, ela decide ter um filho. Elisa está bem ciente da lei federal que torna a clonagem ilegal. Mas ela decide fazer o que inúmeras outras mulheres em sua situação têm feito recentemente – tirar férias nas Ilhas Cayman, onde há uma grande clínica reprogenética especializada em clonagem.

Como Elisa é uma mulher solteira saudável, não tem necessidade de outros participantes biológicos no processo de clonagem e consegue, desta forma, engravidar. Seu ginecologista e obstetra sabe que ela é solteira e não pergunta (assim como Elisa não conta) como começou a gravidez. Ela dá a luz a uma menina saudável. Raquel vai crescer da mesma maneira que as outras crianças da sua idade. De vez em quando, as pessoas irão comentar sobre a notável semelhança entre a criança e sua mãe. Elisa vai sorrir para elas e dizer: “Sim, ela tem minhas feições”. E a conversa irá parar por aí.

Com essa situação poder-se-ia perguntar: quem é Raquel e quem seriam realmente seus pais? Não há dúvida de que Elisa é sua mãe de nascimento, já que Raquel nasceu de seu corpo. Mas Elisa não será a mãe genética de Raquel se for baseado nos significados tradicionais de pai e mãe. Em termos genéticos, Elisa e Raquel são irmãs gêmeas! Seus únicos dois avós também são seus pais genéticos. E, quando Raquel crescer e tiver seus próprios filhos, seus filhos também serão filhos de sua mãe. Assim, com um único ato de clonagem, seremos forçados a reconsiderar o significado de pais, filhos e irmãos, assim como o relacionamento desses indivíduos entre si.

 

7 CONSIDERRAÇÕES FINAIS

Vive-se em um momento de alta produção científica e tecnológica onde são realizadas descobertas inusitadas. A sociedade encontra-se em um momento de transição, de adaptações às novas exigências, forçando, como consequência, o Direito interno e internacional a se adequarem a tal realidade, sob pena de desconfigurar-se o real sentido de justiça.

A clonagem humana tem causado inflamadas discussões em todo o mundo, principalmente quando essa técnica, já empregada em bactérias, plantas e animais, passou a vislumbrar o ser humano.

O desenvolvimento da clonagem humana fará com que se atinja o limiar do pensamento humano, o que gerará uma modificação profunda nos paradigmas desenvolvidos até os dias atuais.

A verificação da clonagem no plano jurídico e ético deve ter em vista a principiologia que informa o biodireito e a bioética, assim como o ordenamento jurídico nacional e o internacional.

Considera-se que não pode o desenvolvimento da ciência ser prejudicado devido a preconceitos ou princípios anacrônicos sob os quais se revestem valores morais anacrônicos ou valores religiosos da sociedade. Deve-se observar que, ainda nos dias de hoje, há pessoas tão contrários ao desenvolvimento da ciência e à evolução social que proíbem o uso de preservativos para evitar doenças como a AIDS, assim como o uso de outros contraceptivos para se evitar uma gravidez indesejada, ao mesmo tempo em que são contrárias ao direito de o indivíduo recorrer a técnicas de fertilização in vitro para alcançar uma gravidez.

A clonagem humana reprodutiva deve ser analisada com cautela de modo a não gerar decisões precipitadas ou prejudiciais à sociedade e a princípios fundamentais. Além disso, a possibilidade da real clonagem de seres humanos é nova e tudo o que é novo sempre gera o medo. Medo de que sejam tomadas medidas radicais que proíbam o estudo da clonagem, impossibilitando a aquisição de conhecimentos que permitam um futuro mais digno. Medo de que cientistas e médicos inescrupulosos realizem experiências com seres humanos sem observarem o princípio do consentimento informado ou mesmo sem consciência de suas consequências. Medo de que a sociedade não possua discernimento para enxergar possibilidades benéficas e proíba absolutamente sua realização, como vem sendo feito. Medo de que determinados setores da sociedade restrinjam-se a seus interesses limitados e preconceituosos. Medo de que o interesse econômico da minoria prevaleça sobre o da maioria. Porém, só se está começando e resta um longo caminho a ser trilhado.

 

REFERÊNCIAS

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DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Clonagem reprodutiva de seres humanos: análise e perspectivas jurídico-filosóficas à luz dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009.

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SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

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SÉGUIN, Elida. Biodireito. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.

SILVA JÚNIOR, César da; SASSON, Sezar. Biologia 3: genética – evolução – ecologia – embriologia. 6. ed. [s.l.]: [s.n.], 1991.

SILVER, Lee M. De volta ao Éden engenharia genética, clonagem e o futuro das famílias. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Mercuryo,2001.

 

NOTAS DE FIM

1 Mestre em Direito pela PUC/MG, Advogada, Professora Universitária, Professora no Unicentro Newton Paiva.

2 Sobre histórico ver: A ERA dos clones. Descobrir, São Paulo, n. 5, p. 23-25, 1990.; CRUZ, Ana Santa; TEICH, Daniel Hessel. O Próximo!. Veja, São Paulo, n. 1713, p.126-132, 15 ago. 2001.;

3 NEWSCIENTIST. Special Report: Cloning and Stem Cells. Disponível em: <http://www.newscientist.com/hottopics/cloning>. Acesso em: 02 nov. 2001.

4 ONU aprova resolução contra a clonagem humana.