Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

José Carlos Henriques*
Bernardo Gomes Barbosa Nogueira**

 

Resumo: O presente trabalho quer fazer dialogar dois autores que representam a escola fenomenológica do Direito. Gerhart Husserl na Alemanha e António Castanheira Neves em Portugal, ambos recebem influxos diretos do pensamento fenomenológico,desde Husserl até Heidegger, e intentam estabelecer uma procura por aquilo que o direito é enquanto fenômeno, isso a atender o mote da fenomenologia que é o de “voltar às coisas mesmas”. O encontro proposto, pretende mostrar uma face do jurisprudencialismo de Antonio Castanheira Neves a evidenciar sua influência pela fenomenologia e sua contemporaneidade e vivacidade enquanto teoria séria do Direito.

 

Palavras-chave: Jurisprudencialismo, fenomenologia do direito, Antônio Castanheira Neves, Gerhart Husserl.

 

Área de interesse: Filosofia do Direito

 

INTRODUÇÃO

Pensamos aqui em jurisprudencialismo a partir, sobretudo, das reflexões firmadas pelo professor Antônio Castanheira Neves, em torno da importante problemática do direito, sendo propósito verificar a possibilidade de um diálogo entre as propostas jurisprudencialistas e alguns dividendos alcançados pela fenomenologia. Como guia, percorrem-se algumas ideias de Gehart Husserl que, muito cedo, intentou pensar o direito de um ponto de vista fenomenologicamente fundado.[1]

Primeiramente, necessária uma apropriação parcial da compreensão fenomenológica do direito, intentada por Gehart Husserl: a compreensão da idéia de direito com núcleos destemporalizados de sentido.

 

OS NÚCLEOS DE SENTIDO COMO FORMA DE COMPREENSÃO DA IDEIA DE DIREITO

O direito se descobre como sistema de núcleos de sentido ou o composto de idéias jurídicas em sistêmica relação. Isto é, determinados sentidos do direito se destemporalizam, tendem a permanecer, a vencer o tempo histórico de sua inserção e, com isto, abrem-se a novas experiências temporalizantes, enraizando-se na história, de novo, em um movimento de conservação/superação. Certamente, os núcleos de sentido em relação não possuem força normativa em si e por si, como em algumas das vertentes jusnaturalistas.[2] A força normativa, não decorre de uma supralegalidade a-histórica, conferidora de sentido. O sentido nuclear do direito já se construiu historicamente, sua força, como tudo que é humano, é criação, não herança.

O núcleo essencial de um determinado ordenamento jurídico não deve ser entendido como se se tratasse de um ‘direito de ordem superior’, cujos conteúdos possuiriam força normativa, desligados dos homens, que estão reciprocamente inseridos em uma certa comunidade jurídica, sua fonte. A força normativa do direito, ausente nos núcleos de sentido por si, forja-se em meio à constituição e manutenção do empenho dos indivíduos – melhor dizer pessoas – pelo direito, na e pela comunidade jurídica.

Este um ponto essencial, pode-se falar de um direito vivo toda vez que os núcleos de sentido, deixando a abstração, historicamente se enraízam, mesmo que em ambientes vitais diversos daqueles em que se gestaram, evidentemente, com modificações interativas com estes novos ambientes, interações que, na verdade, condicionam a própria possibilidade de realização histórica de um certo núcleo de sentido já identificado. [3](HUSSERL, 1998)

Ademais, o mundo do direito se resolve da mesma maneira com que se plasma o mundo humano em geral. A interação entre indivíduos no seio da comunidade jurídica, exatamente o que os torna consortes nesta comunidade, promove o incremento da intenção destes consortes no sentido de empenhar-se pelo direito, revivendo em si, o direito querido pela vontade da comunidade e, assim, o indivíduo supera-se, torna-se pessoa.

Vontade da comunidade que, com freqüência, herda da tradição idéias, valorações, modos de pensar gestados em ambientes histórico-culturais quase sempre originariamente diversos. Dizemos quase sempre porque de se reconhecer que, em cada cultura, há um horizonte comum essencial que, nada impede, pode ser também desvelado em outro ambiente vital. 

Frisando a compreensão do direito na vida do indivíduo e da comunidade, prossegue Gerhart Husserl convicto de que é um fenômeno histórico que encontramos em quase todos os ambientes da produção humana: as idéias, as valorações, os modos de pensar pré-formados em uma determinada esfera cultural vêm assumidos, em forma mais ou menos estável, em outras esferas culturais e ali desenvolvem uma força realizadora. Na vida do indivíduo as coisas não são diversas. Cada homem tem sua vida. A vida de cada um de nós possui uma ordem interior, se desenvolve segundo um plano de vida que é próprio de cada um de nós e somente de um certo alguém. Mas se se trata de projetar o meu plano de vida e de determinar seus conteúdos, me lançarei, frequentemente, em direção a experiências e às idéias de outros. Faço assim um empréstimo frente a outros. Tal assunção de coisas do fundo de um saber que me foi transmitido pelos homens do meu mundo circunstante, não realiza de nenhum modo sem que eu me abstenha de conduzir a minha vida sob a minha própria responsabilidade. As idéias, as máximas de ação etc. que são assumidas, têm validade para mim quando me reconheço nestas, quando delas faço uso e as revivo ativamente.

Eis porque, com relação às idéias jurídicas, para se tornarem parte do direito vivo, não lhes basta a pré-formação na tradição, é preciso que os indivíduos se empenhem pelo direito, revivendo intencionalmente a vontade do direito constituída na comunidade jurídica circunstante. Do mesmo modo, o encontro com o outro, mediado pelo direito, se resolve em responsabilidade sempre minha. As idéias jurídicas somente se tornam por mim ativas, quando as assumo e as revivo, as torno ato, retirando-as da potencial realização histórico-comunitária, sempre já antecipadamente referenciada na comunidade jurídica da qual tomo parte, como consorte, como homo juridicus, potencialmente.

Vê-se que há sempre uma forma histórica de manifestação das idéias do direito. Seja porque a redução que as alcança parte de experiências jurídicas concretizadas, seja porque a temporalização, de novo, as lança na história. Importando notar que, pela destemporalização, tais idéias se despem das formas originárias de manifestação, podendo então dar-se uma transposição destas a outros ambientes diversos daqueles em que foram gestadas.  Mas sempre como construção humana, não como algo dado, independentemente da ação constituinte do ser-homem situado no tempo. Quando se trata de uma transposição de questões do direito, a ‘destemporalização’ encontra a sua expressão característica no fato de que as idéias jurídicas (de cuja assunção se trata) venham espoliadas das formas transmitidas nas origens. No mundo do direito a forma é sempre mais que simples fenômeno exterior. É nesta forma que este estado de coisas vem experimentado vez por outra como parte da totalidade de um direito vivente.

Mesmo admitindo que são possíveis idéias jurídicas, que tendem a subsistir para além de suas concretas formas de manifestação no seio da cultura, nem por isto se deixa de firmar que o direito seja radicalmente histórico. Isto é, a temporalidade é marca do direito mesmo quando este transcende o tempo histórico dos ordenamentos concretos deixando ver, desvelando seu sentido, sua idéia, ou núcleos de sentido, sua verdade.Por isto, o direito, assim compreendido, como sistema de núcleos de sentido, não se confunde com os ordenamentos jurídicos históricos, quaisquer que sejam. Aquele está para estes como idéia, como verdade.  A idéia de direito, assim compreendida, permanece como um a priori, medida de toda juridicidade historicamente possível. É potência que, como tal, ao atualizar-se, assumindo uma certa forma de concretização, torna-se ato, criado, não já dado. A antecipação possível, contida na idéia, na possibilidade, não dita o que o ato é, e sempre será, responsabilidade humana criadora, na e pela comunidade jurídica.

Ainda aqui, neste passo, tão decisivo, ou seja, quanto à transposição da idéia de direito de um horizonte cultural a outro, historicizando-se, obtendo só com isto força normativa, Gerhart Husserl permanece fiel a sua compreensão do direito como radicalmente imerso no tempo. De fato, somente podem ser transpostas idéias nucleares que sejam também possíveis, de alguma maneira, no novo horizonte cultural de destino: nada no direito faz-se sem imersão no tempo, condição humana intransponível. Direito é tempo.

Neste contexto, devem ser compreendidas as teses gerhartianas acerca da interpretação das normas, enquanto realização do direito. Vejamo-las, sucintamente, mais de perto.

 

INTERPRETAÇÃO, NORMATIVIDADE E TEMPORALIDADE

Primeiro é preciso firmar que a toda norma jurídica é inerente um elemento de “incompletude”, na medida em que para toda norma, enquanto elemento constitutivo parcial de um direito vivente, não pode ser indiferente se e como esta é aplicada, a cada vez.

Daí que normatividade e temporalidade se entrelacem irremediavelmente, isto é, a norma jurídica não é, de algum modo, independente do comportamento dos homens a que se refere. Ela não vem colocada no fluxo da história como “produto finito” do espírito humano, que permanece de uma vez por todas produzido segundo sua idéia. A norma entra no tempo histórico. O tempo não está fechado e a norma, por assim dizer, caminha com ele. Deste modo, como o nascimento de um homem não fixa a sua vida (entendida como aquilo que esta é, segundo sua idéia) sob determinado ponto no tempo histórico, assim a norma do direito não possui um lugar na história fixado de uma vez para por todas mediante o processo de sua elaboração. A questão do sentido de uma norma jurídica pode ser formulada sempre e somente do modo seguinte: qual significado esta possui hoje, em relação à concreta condição de vida, que dá conta de uma perturbação das normas?

Vê-se que deve ser perquirido o sentido atual das normas. Isto porque o legislador, quando estabelece determinadas normas de comportamento, toma providência antecipada a respeito do futuro dos homens, que sempre são interessados naquelas normas. Ele antecipa um vestígio do futuro.

Então a jurisprudência exerce papel fundamental, pois deve ser uma espécie de prolongamento ideal do ato legislativo de criação das normas, atualizando, tornando ato, desvelando o sentido vital das normas. Daí ter afirmado Gerhart Husserl que “é característico das normas do direito, que possam ser produzidas por atos da jurisprudência.” (ibdem)

Ao grifar a expressão “possam”, se muito não nos enganamos, Gerhart Husserl quis apontar para o ser mais próprio do sentido de uma norma: abrir-se à construção jurisprudencial atualizadora da já antecipada previsão do futuro, contida no ato de legislar, mas que padece originariamente de uma carência, sendo incompletude. Futuro que, agora, por força da compreensão e fixação do sentido da norma no tempo hoje, pode ser dito não mais antecipado, abstratamente previsto, mas real, concretamente engendrado no ambiente vital dos homens comunitariamente empenhados em um certo agora.

 

A PESSOA: UM HORIZONTE POSSÍVEL PARA O DIÁLOGO

Já nos referimos à pessoa, enquanto indivíduo empenhado-pelo-direito, constituinte e constituída pela comunidade jurídica. É que, dirá Gerhart Husserl no ensaio Recht und Welt, a vontade normativa se radica no ser-pessoa dos homens que são juridicamente ligados entre si. Lá mesmo onde exista uma mudança da intenção, é a pessoa mesma que vai mudando, produzindo o seu sentido e, junto, concorre aquele das normas. É decisivo: a pessoa se produz ao dizer o direito.

Talvez aqui a mais decisiva aproximação ao jurisprudencialimo, tal como vem hodiernamente defendido. De fato, como se verá, a construção do direito se resolve sempre de novo, a cada nova interação entre problema e sistema. Como se sabe, o jurisprudencialismo vem pensado a partir de uma reflexão que quer, deliberadamente, dizer o que o direito é e, para tanto, comporta o reconhecimento de que, como construção humana, deve suportar o humano todo, emergindo de condições que somente poderiam ser as do homem, como em seguida se dirá. Por isto, com proveito inegável, a aproximação entre uma compreensão do direito fenomenologicamente fundada e aquela trazida pelo jurisprudencialismo é uma inspiração a desenvolver, agora como inicial indicação.

De fato, reconhece Gehart Husserl, “as normas do direito comportam eficácia conforme seu sentido, quando e na medida em que (…) ‘caminham junto com o tempo’.(ibdem)

E prossegue, “um ordenamento não pode permanecer invariado, se aquilo que vem ordenado se transforma essencialmente”. .(ibdem) É o reconhecimento da historicidade radical do direito naquilo mesmo que tem de prático, no sentido filosófico do termo, isto é, naquilo que diz respeito às ações humanas, que o direito pretende ordenar, a seu modo e, porque não dizê-lo, a seu tempo, posto que direito é tempo.

Por isto mesmo, a interpretação de uma lei, como se expressa Gerhart Husserl, deve partir do momento histórico de sua elaboração apenas como referência, mas seu sentido não será alcançado adequadamente a não ser que este momento histórico seja calado para, no presente, dizer de seu sentido.

Direito e tempo se pertencem, esta a lição fundamental. Explicitamos, até agora, que há uma relação intrínseca entre direito e mundo para, ao final, descobrirmos o direito enquanto sistema de núcleos de sentido das coisas jurídicas, já uma vez e sempre, nascido e criado no tempo.

De imediato, seguiremos apontando que pode ser pensado um diálogo com o jurisprudencialismo, a partir destes fundamentos. Talvez pudesse não ser equivocado afirmar que o jurisprudencialismo, enquanto direção de compreensão do direito e enquanto vontade de realização do jurídico, é herdeiro das tradições jusfenomenológicas, que se esforçam por dizer o que o direito é, a partir de sua mostração, como fenômeno histórico e intersubjetivo.

 

O PENSAMENTO JURISPRUDENCIALISTAS DE ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

Interagir é tarefa necessária ao exercício do pensar. Neste sentido, qualquer estruturação racional do pensamento requer um modus relacional para sua execução e criação. A tarefa de pensar o Direito a partir de seus fundamentos, ou, procurar o fundamento do Direito a partir de um pensar acerca dele é percurso que acompanha os pensadores do Direito desde há muito. Aqui, a reconhecer desde já, o fenômeno jurídico como co-partícipe da/na construção daquilo que hoje se reconhece como Ocidente, como homem ocidental. Impossível assim, reconhecermos este sem aquele e o contrário também.

Portanto, encontrar no viés fenomenológico, esteio para enxergar o Direito, é mais uma das tentativas contemporâneas para o encontro desta ciência com seu fundamento. Dois juristas se fiaram nesta procura e, se não nos enganamos, cumpriram bem com o papel de pensadores e permitiram avançar um ponto mais nesse caminho pela procura dos alicerces que sustentam o Direito no mundo Ocidental. Um ponto mais, pois, se assumirmos estes pensamentos como pontos de chegada/conclusão, estaríamos ao mesmo tempo retirando a característica transcendental ao Direito que é sua colocação no tempo – de ser possibilidade apenas.  

Propusemo-nos a fazê-los dialogar – Gerhart Husserl e Antônio Castanheira Neves – a fim de enunciar o que há muito nos aflige enquanto pensamento e necessidade de realização: A premência de reconhecimento de um fundamento ontológico e transcendental ao Direito, sua necessária dação ao/no tempo e uma sua constituenda prática de realização.

A contribuição do entrelaçamento destes pensadores permitir-nos-á o entendimento de questões que povoam o imaginário do pensamento jurídico ocidental; exatamente no ponto nevrálgico de sua constituição, a saber: a busca por um fundamento último que dê validade e legitimação ao fenômeno jurídico. Nada mais atinente ao momento no qual nos encontramos. Momento em que a dicotomia direito natural / direito positivo se encontra, por assim dizer, desgastada, e as teorias do Direito clamam por uma nova via de fundamentação.

Alcançar o sentido do Direito necessariamente é reconhecê-lo no tempo, em seu tempo, diríamos. Os autores em questão propuseram suas construções. Sigamo-las em suas dissonâncias e concordâncias. O mais, é resultado e um exercício relacional do pensamento jurídico comprometido com a melhor forma de reconhecimento do homem- no-mundo. O que desde já fica claro nesta proposta de diálogo são os influxos do pensamento fenomenológico, ora mais relacionado a seu precurssor – com Gerhart Husserl -, ora com um de seus mais ilustres discípulos, Martin Heidegger, – com Antônio Castanheira Neves[4].

Ambos captaram bem o reconhecimento da com-partilha tempo-homem-mundo-direito, que permite a superação do direito natural, bem como, apresentam uma superação das diferentes facetas de positivismo quando reconhecem a existência compartilhada do mundo pelos homens e de um seu necessário reconhecimento como fim – pessoa – para a construção autêntica de seu projeto mesmo de existir.

A existência na história, característica transcendetal ao Direito, e, portanto, ao homem ocidental, é uma percepção que dá ao homem a condição de se decidir acerca de seu futuro. Esculpir seu projeto de forma autêntica, respeitando os valores da tradição e ao mesmo tempo transcendeno-os ao lançar-se  no tempo que é seu enquanto projeto. O direito, portanto, permeia as relações entre esses homens, e se soubermos reconhecer nossa matriz civilizacional, que é greco-romana-judaico-cristã, saberemos responder conforme a melhor realização do direito, ou seja, a formação do homem enquanto pessoa. O direito aqui é levado a sério no ponto em que se confunde com o próprio histórico do homem ocidental. É parte da obra que é a existência humana no Ocidente. Criador e criatura se transformam naquilo que reconhecemos como a história do homem ocidental. 

Enquanto o autor alemão buscou encontrar a idéia de direito pelo método por ele chamado de destemporalização, que, por sua vez, quando posto em prática, alcança aquilo que se quis chamar o direito enquanto direito; o autor português constitui também um alicerce de pensamento que permite encontrarmo-nos com a questão do direito enquanto direito. O que significa dizer que Gerhart Husserl criou o método da destemporalização para alcançar o fundamento do direito. Na mesma esteira, Antônio Castanheira Neves quer, ao prescrutar acerca das condições de emergência do direito, desvelar uma possível construção do que seria o direito enquanto direito.

Os conceitos apriorísticos apontados por Gerhart Husserl para que possamos presenciar uma real experiência jurídica, parecem ter algum eco no que o jurista português chamou de “condições de emergência para o direito enquanto direito”. Esse é o caminho que consideramos frutífero para esse diálogo, ou seja, com a convocação de Antônio Castanheira Neves queremos dizer de uma necessária atenção ao pensamento jurídico de cariz fenomenológico para prescrutarmos acerca do que se propõe de há muito a Filosofia do Direito: A resposta pelo fundamento do Direito.

 

AS CONDIÇÕES DA EMERGÊNCIA DO DIREITO COMO DIREITO[5]

O primeiro elemento constitutivo do fenômeno jurídico é o de existir apenas numa relação intersubjetiva entre os homens. Em uma relação de seres inseridos e mediados pelo mundo. O encontro desta importante constatação permite-nos reconhecer que em face de uma habitação e da característica relacional do homem, a ele é necessário essa inter-ação para uma sua existência mesma. Impossível que se dê fora do mundo, ou seja, que exista sem o intermédio do outro.

Esta  primeira das condições para a existência e para a doação/dação do fenômeno do Direito é assumida na excelente frase de autoria de Antônio Castanheira Neves quando nos ensina que «o mundo é um e os homens nele são muitos», nesse sentido, coloca-se o problema da partilha desse mundo que é «meio» para e onde decorrem as realizações dos homens sendo possibilidade mesma e construção de seu existir.

Assim, o jurista de Coimbra nos convida a reconhecermos duas peculiaridades dessa interação necessária ao estar no mundo dos homens, quais sejam: uma positiva e uma negativa, em que na primeira os homens desfrutam do mundo mediados pelos outros e unidos para a realização de fins comuns e partilha mútua; de oturo lado, a perspectiva negativa é aquela em que a fruição do mundo esbarra nas intenções do outro criando uma relação de exclusividade, ou em melhores palavras, uma «mediação negativa» agora.

Entendidas as possibilidades de mediação e partilha do mundo, atendemos à necessidade intersubjetiva de existência do Direito, ou seja, usufruir o mundo é apenas possível pela mediação do outro, e nessas relações – positivas ou negativas – é que o Direito poderá (deverá!) fazer atuar a justiça.

Com essa colocação, da necessária fruição do mundo com os outros, podemos reconhecer o Direito a implicar uma existência compartilhada do mundo para seu existir mesmo, em que os homens assumem direitos e deveres em relação uns com os outros, dando ao Direito a necessidade de apresentar-se sempre numa relação de «bilateralidade atributiva».

Encontramos em Aristóteles substrato para o entendimento desta importante questão que perpassa o pensamento de Antônio Castanheira Neves, questão na qual a realização da justiça dar-se-ia na relação entre os homens sempre «mediados pelas coisas». Essa existência con-vivente dos homens no mundo que é  «ontológica» ao direito, retrata a existência de uma «condição social» que é consequência da condição mundanal de existência do homem.

b – A condição antropológico existencial:

Nesta segunda condição emergencial da apresentação do fenômeno do Direito, Antônio Castanheira Neves trata da questão da inespecialização e da abertura ao mundo do homem, que se realiza no seio da comunidade – ser-com-os-outros – afirmando sua característica necessariamente relacional em seu existir. Contudo, nesse seu modo de exisitir, há que se apontar que não poderá admitir uma supressão do pessoal pelo social, muito menos a dispersão individualizada que dispõe da vida na comunidade. Portanto,  nesse existir pessoal e social atua a ordem, de forma a regular e impedir os extremos acima expostos buscando relacionar os «dois eus» para a existência total/«real» do homem.

Nesse sentido, o Direito mostra duas condições essenciais para sua mostração – mundanal e antropológico existencial -, mas ainda não suficientes. Questão que conduz para a terceira e última condição de emergência que será esboçada adiante.

A característica da inespecialização do homem mostra a indeterminação natural do homem que o afasta dos animais, os quais, existem numa natureza pré-determinada, enquanto que o homem é existente a partir da ausência de pressupostos naturais que o coloca a cada transcender de si mesmo como constitutinte/construtor de sua existência, de sua cultura. Neste ponto, o nosso trabalho se interliga ao pensamento de Heidegger que acentua a existência como projeto, sendo o homem assumido inespecializadamente como único responsável pela tarefa e possibilidade mesma de seu existir.

Essa característica fundamental e fundante do homem, permite o reconhecimento e sua responsabilização pelo seu projeto, ora, ao se colocar perante um mundo que é capaz de transcender, o homem se constitui, funda e fundamenta seu existir a partir dos valores que essa atitude crítica e de distanciamento de mundo a ele possibilita.

Seria o assumir de rédeas pelo projeto de ser que o homem esculpe a cada transcender de si mesmo. Pois, se o homem não é um dado mas um construto constante de si, sua caracterísitca de «poder-ser» o coloca em condições de em sua superação criar-se a si e a seus valores circundantes que serão o seu próprio mundo.

Nesse sentido, acompanhamos Antônio Castanheira Neves a nos permitir o reconhecimento da passagem da condição antropológico existencial para uma «condição axiológico-normativa do próprio homem». Nesse sentido, a existência inespecializada do homem e sua condição de transcender-se a si mesmo para constituir sua história, permite reconhecermos que os valores poderão/deverão ser encontrados nessa mesma história; história em que o homem atuou como «pastor do ser» e a realizou enquanto realizou o seu próprio existir de sentido e valores. O que significa dizer de uma responsabilidade essencial ao homem pela sua fundação e fundamentação, que a partir de sua «abertura ao mundo» lhe permite o seu transcender que é constituinte de seu mundo.[6]

b’ A dimensão comunitária do homem:

O caminho percorrido até então não seria completo se não atentássemos à característica de existência compartilhada do homem. Significa dizer que desde uma leitura recuperada do zoon politikon aristotélico até o reconhecimento heideggeriano do ser-em, o homem apenas se descobre partícipe e realizador do mundo quando encerrado em sua vivência com os outros. Ou seja, o mundo apenas se exprime como tal em  uma ordem de existência compartilhada.[7]

Portanto, a existência compartilhada do mundo pelos homens será pautada pelo que acima chamamos conjuntamente com Antônio Castanheira Neves de existência «real». Esta existência do homem não permite que ele se “decaia” num comum que absorve sua individualidade, tampouco, se entregue a um «papel» que meramente acondiciona-se a uma categoria social.

Nos interessa mostrar o relevo que a comunidade assume – contra os individualismos modernos e contemporâneos – para a realização plena do homem; esse relevo é explicitado por Antônio. Castanheira Neves a nos mostrar as três condições que a comunidade assume no existir do homem:

1 – Condição de existência: A condição «elementar» de existência em que os homens realizam sua vida e se encontram imersos. É na comunidade que realizamos nossa práxis e que nos permite, em claras palavras, viver. Esta condição é fundamental, pois, se realizamos nossas aptidões a partir da relação com os outros, essa realização necessita de um “local” que permita e possibilite sua existência, qual seja, a comunidade enquanto condição de existência que guarda os valores comuns dos homens que a ela integram. Nesse sentido, é como explica o autor:  local de «origem e conteúdo» dessas possibilidades comuns.

2 – Condição vital: Se partimos da comunidade como condição para o nosso relacionar e realização em nossos projetos comuns, a condição vital denota a característica falível e dependente do homem individual. Assim, a comunidade permite ao homem a realização com os outros, que se complementam mutuamente em sua «debilidade» de existência individual. Portanto, essa característica da comunidade é vital pois proporciona aos homens associações que realizam suas necessidades e que constituem o seu ser pessoal enquanto criam aos outros também, numa atitude de complementariedade de uns para outros.

3 – Condição ontológica: Nesta derradeira condição que a comunidade nos permite, vimos a ontológica necessidade que a existência do homem reclama, qual seja, a necessidade de constituirmo-nos e realizarmo-nos em nosso Ser – que é possibilitado quando estamos em uma ordem comunitária de existir. Mais uma vez a relação entre as «potencialidades» transmitidas na comunidade é que permite a ascensão de cada um a seu patamar maior de realização pessoal. Assim, esse autor ensina sobre a necessária atenção à característica de ser- com-os-outros que dá ao homem altura bastante para alcançar uma progressão humana de si e dos outros com que partilha essa ordem de vivência.

“As possibilidades de cada um são correlatos potenciados das possibilidades dos outros, o ser dos outros a função potenciada do ser comunicado que recebe a assimila de cada um de nós […] É que só no intercâmbio existencial com os outros – no cultivo de projectos e valores que só ele permite, no desenvolvimento de possibilidades pessoais que ele suscita e estimula […] na afirmação e robustecimento da personalidade que só a dialéctica “eu-tu” determina, o ser da possibilidade humana vem à sua plena epifania.”(NEVES, 2008)

Assim, a necessidade de o homem resolver o seu problema de integração dar-se-á mediante e na ordem. Nesse sentido, a coexistência realizada na comunidade não poderá ser constituída de uma mera soma fortuita de indivíduos «apenas como indivíduos», ou «lado a lado», o que não significará que ainda não estejam sozinhos. Tampouco, hão de se constituir em uma plena «homogeneidade» que anula qualquer autonomia desses partícipes, não!

Estes extremos degenerariam e seriam mesmo uma contradição nos termos, ora, como nos ensina Antônio Castanheira Neves, no primeiro caso encontraríamos apenas o indivíduo a existir, e no outro, a existência é vista apenas pelo coletivo, o que não permite a emergência da singularidade de cada  homem. Portanto, o imperativo é que exista o re-conhecimento desses indivíduos em sua incondicionalidade de pessoas, e que antes de se destituirem de sua individualidade perdida na comunidade – e sem uma extrapolação dessa mesma individualidade – possam nela (comunidade) existir sem nela se acabar.

Para resolver o impasse da necessidade comunitária versus a inegável existência individual, a ordem vem permitir ao homem o seu lugar, instaurando a possibildiade de uma integração e de uma existência orientada e organizada por intermédio de valores estabilizantes da con-vivência problemática do homem. Ora, como nos permite reconhecer Santos Coelho, o homem só existe na ordem:

“O homem não é senão na ordem, e na medida em que é, torna-se o que é pela ordem em que se encontra; ao mesmo passo, porém, a ordem não é senão no homem, não é senão como homem mesmo se consuma-realiza – não é senão aquilo em que o homem se torna, instaurando-se  a dialéctica entre homem e comunidade como o encerrar(-se) o homem (em) uma ordem. No entanto, muito embora implique em processos de institucionalização por quais o homem se realiza, muito embora encerre o sentido de dever-ser numa unidade (complexa embora) axiológica, nem toda ordem pode-se considerar de direito.” (COELHO, 2005)

Esses dizeres nos remetem diretamente à terceira condição que o Direito necessita para sua existência, qual seja, a condição ética. Pois, mesmo que as duas primeiras condições se coloquem como condições ontológicas ao fenômeno do Direito; em que a condição mundanal  e antropológico-existencial do homem, culminem na criação cultural de uma ordem;  como dito, nem toda ordem é e nem poderá considerar-se de Direito sem que a condição ética perpasse a sua mostração.

 c – A condição ética do emergir do Direito:

Diante dos dizeres acima, afirmamos junto com Antônio Castanheira Neves sobre a «insuficiência» das duas primeiras condições para permitirem o emergir do Direito.

O Direito não estaria encerrado em qualquer ordem de «intersubjetividade institucionalizada», mas, apenas na ordem em que os homens-com-os-outros tenham a possibilidade do re-conhecimento mútuo enquanto fins-em-si-mesmo, não dispondo nunca de sua característica de pessoa – «do ser do homem uma pessoa» -, o que necessariamente importa na impossibilidade de instrumentalização de meros sujeitos dispostos como meio para a realização de quaisquer fins, senão, o da realização de si mesmos.

Aqui, há uma recondução do Direito à posição de instaurador do homem-no-mundo-enquanto-pessoa, esse imperativo é o que distingue o Direito das demais ordens e que vem fundado numa raiz ética que incide sobre todo o seu fenômeno de aparição. Esse reconhecimento do homem enquanto pessoa e não reduzido a meio para outro fim é «condição transcendental do Direito», ora, como já nos ensinou Aristóteles, só haverá «justiça entre iguais»; daí o reclame incessante por esse re-conhecimento que é ele mesmo possibilitador da existência do Direito.

Contudo, a condição ética não assimila, não se confunde com o todo do Direito, mas não há a possibilidade deste sem uma «dimensão» daquela. Assim, é que o Direito assumido nos moldes propostos, põe ênfase na realização da pessoa; pessoa como projeto do homem e assim do Direito, o que significa saltar da condição antropológica do homem para torná-lo uma «aquisição axiológica».

O Direito não é uma necessidade da existência dos homens, assim como a pessoa só existirá se houver essa disposição para uma sua realização/aquisição, que se dará por intermédio do Direito enquanto regulador que possibilita e mesmo necessita dessa existência para estar no mundo dos homens.

Esse salto se encontra com o pensamento de Heidegger, pois, para que haja o reconhecimento da pessoa é necessário ao homem que tenha uma atitude disposta a tanto, ou seja, para que os outros me reconheçam como pessoa necessito reconhecê-los também. O quê, vistas as coisas sobre o prisma que pretendemos, significaria indentificar o Direito como o projeto do homem que permite uma aquisição de si mesmo enquanto pessoa. A dispor de qualquer necessidade ontológica acerca da existência do homem.

“Está o homem no direito quando realiza a condição ética da emergência do direito como direito, quando o homem não é apenas sujeito […] mas enquanto se funda como pessoa. A pessoa é com o reconhecimento do outro como sujeito-pessoa (também como eu sou) e não como simples objecto.”  (ibdem) 

Assim, a igualdade, necessária à realização da justiça, ínsita ao ser do Direito, importa que seja/esteja aliada a uma atitude responsável na comunidade. Portanto, necessário evidenciar que apenas numa ordem comunitária de atenção ao outro é que concebemos essa possibilidade, ora, a atitude responsável é já um reconhecimento do outro como fim.

Nesta direção, a apontar mais uma vez para a afirmação da necessidade do atendimento ao Direito como projeto/resposta possível. Aqui, a opção pelo Direito não é colocada de forma leviana como mais uma escolha qualquer. Nesse caso, trata-se de optar por ser ou não pessoa. Ora, nas «alternativas ao Direito», essa possibilidade se esvai quando reconhecemos – na política, na economia, por exemplo – um erguer do homem a um patamar de meio, o que na proposta jurídica de Antônio Castanheira Neves se nos mostra inconcebível. Daí que sem estas condições – transcendentais – o fenômeno jurídico não se mostra, não  se desvela. A realização do homem enquanto pessoa torna-se, então, o fim último do Direito.

Resta dizer, que em nenhum momento procuramos evidenciar ou suscitar qualquer influência entre os pensadores em questão. Em verdade, tencionamos mostrar alguns ecos que o pensamento fenomenológico teve no meio jurídico. Com Gerhart Husserl, aliás, como fica claro durante a obra, uma influência maior do pensamento de seu pai. Em Antônio Castanheira Neves, encontrar o direito enquanto direito assemelhou-se ao que Heidegger buscava acerca do Ser. Assim, pôde se questionar: “por que o direito e não antes um não direito?”.

Pensar essa relação foi admitir a co-pertença entre direito e mundo e assim, um encontro entre aquele que cria – pastor – e a obra criada, formando uma existência una e dialética de influência mútua permeada pelo elemento transcendetal do tempo. Essa relação de co-pertença, justifica a discussão de termos caros ao pensamento jurídico, tais como, ideia de direito, núcleos de sentido, comunidade, mundo e pessoa, a mostrar a real colocação do homem no tempo que, ao questionar-se sobre seu modus vivendi  transcende sua existência criando-a.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRITO, José de Souza e. Fenomenologia do direito e teoria egológica. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, 1963. 

COELHO, Nuno M. M. dos Santos, O princípio ontológico da historicidade radical e o problema da autonomia do direito: Ensaio de uma aproximação filosófica do jurisprudencialismo, in, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, nº47 / Jul.-Dez., 2005. 

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SAFRANSKI, Rudiger, Heidegger – Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Tradução Lya Luft. Apresentação de Ernildo Stein. São Paulo: Geração Editorial, 2005.

        


* Mestre em Filosofia e em Direito, professor da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete – FDCL, da Faculdade de Direito de Itabirito e da Faculdade Arquidiocesana de Mariana – FAM. 

** Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, professor do Centro Universitário Newton Paiva

[1] Gehart Husserl, filho de Edmund Husserl, este o fundador da fenomenologia, muito cedo dedicou-se, jurista que era, a pensar o direito a partir das aquisições do método e construções do movimento fenomenológico. Não se alinhou propriamente, isto é, não seguiu uma vertente do movimento fenomenológico em prejuízo de outras, foi sensível a um diálogo da tradição fenomenológica com outras vertentes da filosofia, em especial o neokantismo, mas foi nos desenvolvimentos da fenomenologia que mais se fundou, com especial apelo às idéias de seu pai e ao pensamento de Heidegger. 

[2] Não prosseguiremos sobre o movimento jusnaturalista que encontrou variações desde a Antiguidade até a Modernidade. Importa apenas salientar que Gerhart Husserl não confere à verdade jurídica um estatuto metafísico, essencialístico. Isto é, não há uma verdade jurídica encontrável fora do processo redutivo, da destemporalização, que parte da concreção histórica de ordenamentos jurídicos dados. Ou mais: a verdade do direito se gesta na história, não é disposta ou dada antecipadamente, em ambiente que poderia ser dito pré-humano. Não se trata de alcançá-la pelo conhecimento de regras próprias para se apoderar do objeto, “coisas do direito”. A compreensão do direito se resolve, como de resto, a compreensão do humano, na imanência histórica de sua produção.

[3] A respeito, conferir HUSSERL, Gerhart. Diritto e tempo: saggi di filosofia del diritto. A cura di Renato Cristin. Milano: Giuffrè, 1998. pp. 5 e seguintes. 

[4] As inferências feitas são tateamentos não propostos pelos autores em discussão. 

[5] Título homônimo ao texto base em nosso estudo: CASTANHEIRA NEVES, António, Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do Direito – ou as condições da emergência do Direito como Direito, in, Digesta Escritos Acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua metodologia e outros, volume 3º, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, págs. 9-41.

[6] “Também para ele (Arnold Gehlen) o ser humano está aberto ao mundo, e não se adapta instintivamente a mundo-em-torno especial. Essa não- adaptabilidade diminuiria as chaces de sobrevivência biológicas, se as carências não fossem compensadas de outras  maneiras. O ser humano tem de realizar com cultura o que lhe falta como natureza. Ele tem de criar para si mesmo o mundo-em-torno que lhe sirva.” In, SAFRANSKI, Rudiger, Heidegger – Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, tradução Lya Luft, apresentação de Ernildo Stein, São Paulo, Geração Editorial, 2005, pág. 201. Itálico nosso. 

[7] “À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença é mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros.” In, HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, tradução revisada de Marcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis, Editora Vozes,2006, pág. 175.