Michael César Silva1
Cristofer Paulo Moreira Rocha Silva2
Lorena Hermenegildo de Oliveira3
Rayenne dos Santos Lima Cruz4
Resumo: O contexto social e jurídico contemporâneo exige soluções para minimizar os riscos e danos que vêm de encontro à sociedade plural e complexa, sendo necessário o estudo de novas possibilidades de responsabilidade civil em consonância com os preceitos e valores esculpidos pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estado Democrático de Direito. A pesquisa propõe analisar criticamente o problema da (in)aplicabilidade da teoria da perda de uma chance na seara da responsabilidade civil médica. O estudo tem por objetivo examinar os pressupostos de aplicação da teoria da perda de uma chance, sua natureza jurídica, o quantum indenizatório, além de verificar as hipóteses de ato ilícito praticado pelo médico. O método utilizado é o indutivo, de modo que permita que a conclusão seja mais ampla que as premissas, possibilitando a adoção da linha crítico metodológica. A técnica adotada é a bibliográfica.
Palavras-chave: responsabilidade civil; teoria da perda de uma chance; seara médica.
Abstract: The contemporary social and legal context requires solutions to minimize the risks and damages that go against the plural and complex society, being necessary the study of new possibilities of civil liability, in conformity with the precepts and carved values of the Federal Constitution of 1988 and the Democratic Rule of Law. The research proposes to critically analyze the problem of applicability or not of the theory of the loss of chance in the field of civil medical liability. The study aims to examine the assumptions of applying the theory of loss of chance, its legal nature, and the amount to be indemnified. Also, the study verifies the chances of an unlawful act committed by the doctor. The method used is the inductive one, so that allows the conclusion to be wider than the premises, enabling the adoption of the critical methodological line. The adopted technique is the bibliographic.
Keywords: civil liability; theory of the loss of chance; medical area.
1 INTRODUÇÃO
O cenário mundial contemporâneo é solo fértil para mutações constantes, apresentando novos riscos, que vêm desafiar os operadores do direito a desenvolverem e atualizarem a ciência jurídica, no que se refere à responsabilidade civil, a fim de encontrar soluções adequadas para reparar os diferentes tipos de danos em sociedade. É necessário destacar que as possíveis soluções devem estar alinhadas com o cenário hodierno do Direito Civil, em consonância com os preceitos emanados pelo Estado Democrático de Direito e pela Constituição Federal de 1988.
Nesta linha de intelecção, destaca-se a possibilidade de imputação de responsabilidade civil pela aplicação da teoria da perda de uma chance, em uma variedade de situações cotidianas, com a prática de um ato ilícito por parte do profissional da saúde que retira chances de sobrevivência ou de cura do paciente.
A construção da Teoria da Perda de uma Chance exsurge, no Direito Francês5, a fim de possibilitar a responsabilidade civil do causador do dano injusto, quando se tratar de eventos aleatórios, o que se verifica nas hipóteses em que este atua de forma ilícita, contribuindo, parcialmente, para um resultado danoso, tendo em vista que outros fatores também colaboraram ou, potencialmente, colaborariam para o prejuízo sofrido.
A pesquisa possui como problematização analisar criticamente a (im)possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance na seara médica, com o objetivo de examinar este instituto, demonstrando sua natureza jurídica, o valor a ser indenizado, além de abordar o grau de aplicabilidade da referida teoria nos casos de erro médico.
Inicialmente, será demonstrado como a responsabilidade civil manifesta-se na contemporaneidade, em sequência, será explicitada a teoria da perda de uma chance, e, posteriormente, abordar-se-á a responsabilidade civil do médico, sendo analisada a possibilidade de aplicação da teoria em análise.
A pesquisa adota o método indutivo, com o objetivo de ampliar o alcance dos conhecimentos, caracterizado por “um processo mental que parte de dados particulares e localizados e se dirige a constatações gerais. Assim, as conclusões do processo indutivo de raciocínio são sempre mais amplas do que os dados ou premissas dos quais derivam” (GUSTIN; DIAS 2013, p. 22).
A escolha de tal método se deve, em especial, à possibilidade de a conclusão ser mais ampla, o que seria inviável se, por exemplo, fosse adotado o método dedutivo. Assim, é possível a adoção da linha crítico-metodológica, de forma que se analisarão os materiais bibliográficos apresentando os argumentos adequados.
A técnica adotada é a bibliográfica, de modo que as fontes de produção se adequem às fontes próprias do Direito (fontes diretas) e às obras relacionadas com a temática (fontes indiretas).
2 A RESPONSABILIDADE CIVIL CONTEMPORÂNEA
A abordagem da responsabilidade civil na contemporaneidade deve partir dos efeitos advindos da promulgação da Constituição Federal de 1988, os quais afetam todos os ramos do Direito6, e, em especial, o Direito Civil. A partir disso, registra-se o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, o qual impõe que
as normas de Direito Civil têm de ser lidas à luz dos princípios e valores consagrados na Constituição, a fim de se implementar o programa constitucional na esfera privada. A bem da verdade, não só as normas de Direito Civil devem receber leitura constitucionalizada, mas todas as normas do ordenamento jurídico, sejam elas de Direito Privado, sejam de Direito Público. Esse é um ditame do chamado Estado Democrático de Direito, que tem na Constituição sua base hermenêutica, o que equivale a dizer que a interpretação de qualquer norma deverá buscar adequá-la aos princípios e valores constitucionais, uma vez que esses mesmos princípios e valores foram eleitos por todos nós, por meio de nossos representantes, como pilares da sociedade e, consequentemente, do Direito (FIUZA, 2008, p. 66).
Logo, quando a Constituição Federal de 1988 é promulgada, observa-se um redirecionamento do Direito Privado, o qual, em respeito às normas constitucionais que conduzem a um Estado Democrático de Direito, deve respeitar princípios e valores comuns para todo o ordenamento jurídico na República Brasileira, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, a igualdade substancial, de tal modo que, concomitantemente, o Direito Civil assume o papel de analisar a situação da pessoa e resguardá-la, estando o patrimônio em segundo plano e não mais no centro das lentes do Direito Civil7.
Para além deste contexto jurídico, reconstruído a partir da Constituição Federal de 1988, outro fator que interfere na responsabilidade civil da contemporaneidade é o contexto social, fruto de reiteradas transformações e influências de revoluções industriais, em que se manifestam descobertas e aperfeiçoamentos da tecnologia em vastas áreas, ralações econômicas complexas, realizadas em espaços virtuais, facilidade de comunicação e divulgação de dados, informações e notícias (ZANETTI, 2018, p. 36).
Logo, este conjunto de acontecimentos possibilitou inovações em vários setores, como o tecnológico, o científico, o médico, energético, de tal modo que os benefícios trazidos8 competem proporcionalmente com os consequentes riscos a que os seres humanos são expostos, que há pouco tempo não eram previstos.
Assim, Nelson Rosenvald (2017, p. 26) expõe que:
o direito civil clássico – tributo ao código napoleônico – não pode servir de modelo para aquilo que se pretenda da responsabilidade civil nos próximos tempos. Em uma sociedade plural e democrática, premida por questionamentos éticos que vão da biotecnologia à natureza, culminando na própria preservação da espécie humana, seria risível recorrer ao oráculo do legislador e ao direito privado dos contratos interindividuais e da propriedade privada, alicerçado no conceito de sujeito de direito como pessoa capaz de assumir direitos e obrigações, tal e qual ainda se lê no art. 1º do Código Civil de 2002.
A responsabilidade civil, portanto, necessita se adequar à pós-modernidade de modo que esteja apta a apresentar soluções adequadas aos danos que estão em eminência de surgimento ou que até já se manifestaram no mundo dos fatos. Ademais, quando da ocorrência de um dano injusto, tem-se como necessária a imputação de responsabilidade de seu causador9, afinal “numa sociedade realmente justa, todo dano injusto deve ser reparado” (FACCHINI NETO, 2010, p.26). O Código Civil acompanha essa ponderação, em especial em seu artigo 927, o qual expressa que aquele que, por ato ilícito, causa dano a outrem, deve repará-lo (BRASIL, 2002)10.
É com o objetivo de exigir que haja uma reparação do dano causado, ou seja, que se busque posicionar o lesado em uma situação equivalente àquela que desfrutaria caso o dano nunca houvesse ocorrido11, que a ciência jurídica se movimente criando e/ou analisando teorias que possam vir a ser aplicadas em casos concretos12, de modo a permitir que haja uma resposta do Estado para uma lesão injusta, para a qual o Direito Civil clássico estaria limitado, mas, a partir do atual contexto constitucional e social, poderia ser verificada a viabilidade de aplicação de teorias, como é o caso da teoria da perda de uma chance.
Para além de princípios aplicáveis quando se trata de responsabilidade civil, como o princípio da prevenção, da reparação integral, da solidariedade, da dignidade da pessoa humana13, deve-se ter em mente as funções da responsabilidade civil hodiernamente, em especial as funções compensatória (reparatória), punitivo-pedagógica14 e precaucional, com a finalidade de que os danos causados sejam reparados, que o causador seja repreendido e que haja um desestímulo à prática do ato ilícito, seja pelo próprio autor do ato, seja para os demais atores sociais. Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald (2019, p. 67) afirmam que:
[…] no direito brasileiro do alvorecer do século XXI, a conjunção dessas orientações permite o estabelecimento de três funções para a responsabilidade civil: (1) Função reparatória: a clássica função de transferência dos danos do patrimônio do lesante ao lesado como forma de reequilíbrio patrimonial; (2) Função punitiva: sanção consistente na aplicação de uma pena civil ao ofensor como forma de desestímulo de comportamentos reprováveis; (3) Função precaucional: possui o objetivo de inibir atividades potencialmente danosas. Certamente, há uma Função preventiva subjacente às três anteriores, porém consideramos a prevenção um princípio do direito de danos e não propriamente uma quarta função.
Deste modo, a responsabilidade civil é muito mais que meio de reparar danos, mas, também, um mecanismo de repreender o autor de ato ilícito, de modo a demonstrar que a sua conduta é reprovável e dissuadi-lo da prática do ato. Além disso, a responsabilidade civil assume a missão de evitar que se pratiquem condutas que eventualmente possam provocar prejuízos15.
A partir deste cenário contemporâneo da responsabilidade civil, é urgente que esteja clara a imprescindível simbiose do Direito Civil com os mandamentos constitucionais de modo a caminhar-se no sentido de garantir a implementação das normas constitucionais na conjuntura da sociedade de risco, em que, junto aos avanços proporcionados pelas revoluções industriais, deve assumir o compromisso de mitigar o prejuízo para a pessoa humana, e para o ambiente em que vive, em atenção aos princípios e funções da responsabilidade civil na contemporaneidade.
3 A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
Entre os debates concernentes à responsabilidade civil na contemporaneidade, a doutrina e jurisprudência nacional têm se debruçado sobre a análise crítica e discursiva de admissibilidade, pelo nosso ordenamento jurídico, da responsabilidade pela perda de uma chance16, a qual surge em um campo de probabilidades e possibilidades, que exige o respeito ao princípio da reparação integral dos danos (AMARAL; PONA, 2014, p.101).
A teoria exsurgiu em França, sendo que o primeiro caso de aplicação se deu pela Corte de Cassação, em 17 de julho de 1889, a qual entendeu ser uma hipótese de reparação, o fato de um oficial ministerial, culposamente, extinguir as possibilidades de determinada demanda ser exitosa, o que poderia ser diferente, caso o procedimento fosse o padrão (SILVA, 2013, p. 11)17.
A teoria da perda de uma chance evidencia nas hipóteses em que há um:
[…] processo interrompido com a aniquilação da oportunidade (de ganho, de evitação de resultado, de cura), e o ordenamento jurídico autoriza uma interpretação mais alargada do conceito de dano, para nele compreender também essa perda. Respeitável corrente de opinião entende que, entre o dano incerto, que não é indenizável, e o dano certo que merece reparação, situa-se, em posição intermediária, o dano que consiste na perda de uma chance (AGUIAR JÚNIOR, 2018, p. 440).
Logo, a teoria abarca casos em que se vislumbra uma possibilidade (séria e real) de êxito e um ato ilícito que subtrai parte da chance, até então existente, de modo a contribuir para que não se chegue ao resultado, havendo aí um dano, o qual é consequência de um ato ilícito que retira a esperança de um desfecho benéfico.
No âmbito doutrinário, o posicionamento favorável à admissão da teoria é uníssono no sentido de que não encontram guarida, na teoria em análise, as esperanças infundadas ou expectativas remotas de ocorrência de um evento benéfico, hipóteses de um mero dano hipotético. Portanto, as chances devem ser sérias e reais, de forma que para se considerar a perda de uma chance, para possível imputação de responsabilidade civil, “sempre há, porém, que apurar, no caso concreto, qual a consistência e seriedade da concreta ‘chance’” (MOTA PINTO, 2018, p.373).
Conforme elucidado por Daniel Carnaúba (2013, p.128), a oportunidade perdida, passível de indenização, é aquela que se revela, a partir da análise do caso concreto, como real e séria, configurando um interesse legítimo violado por terceiro.
Carmelo A. Castiglioni (2008, p. 94) leciona que
[…] debe quedar claro que lo que se resarciría como pérdida de chance es algo cierto y no hipotético. Si no se demuestra la chance no se puede indemnizar y si se demuestra es un daño cierto. Lo cierto es la probabilidad y lo hipotético es que esa probabilidad se cumpla, pero no es esto último lo que se resarce, sino la probabilidad perdida.
O referido autor adentra em outro aspecto da teoria que seria o que indenizar, de modo que deve restar claro que a pretensão reparatória é a chance que foi retirada em razão do ato ilícito, de modo que o mais adequado seria a utilização do critério de probabilidade matemática, em que “aplica-se sobre o resultado do aproveitamento da chance […] um percentual que corresponde à probabilidade que a vítima teria de sucesso caso a chance não tivesse sido frustrada” (SCHREIBER, 2011, p. 98).
Na construção dos preceitos gerais da teoria, tem-se destacado a atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O caso paradigmático de aplicação da teoria da perda de uma chance, no Brasil, ocorreu com o julgamento do Recurso Especial 788.459/BA, da relatoria do Ministro Fernando Gonçalves, conhecido popularmente como “Caso do Show do Milhão”, o qual admitiu a possibilidade de reparação pelas chances perdidas.
RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. PERDA DA OPORTUNIDADE.1. O questionamento, em programa de perguntas e respostas, pela televisão, sem viabilidade lógica, uma vez que a Constituição Federal não indica percentual relativo às terras reservadas aos índios, acarreta, como decidido pelas instâncias ordinárias, a impossibilidade da prestação por culpa do devedor, impondo o dever de ressarcir o participante pelo que razoavelmente haja deixado de lucrar, pela perda da oportunidade.2. Recurso conhecido e, em parte, provido (BRASIL, STJ, REsp 788.459/BA, 2006, p.1).
Outrossim, no julgamento do Recurso Especial 821.004/MG, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti, destacou-se que, nos casos de teoria da perda de uma chance, o órgão tem analisado a viabilidade do pleito indenizatório a partir de um juízo de probabilidade ao afirmar que as turmas do órgão “vêm reconhecendo a possibilidade de indenização pelo benefício cuja chance a parte lesada tenha perdido a oportunidade de concretizar segundo um critério de probabilidade” (BRASIL, STJ, REsp. 821.004/MG, 2010, p.8, grifo nosso).
De modo que, a partir do momento que se sabe quantas chances foram retiradas, o cálculo da indenização torna-se mais simples, bastando indenizar proporcionalmente as chances perdidas com relação ao montante que eventualmente se obteria. No entanto, a dificuldade encontra-se em determinar, quantitativamente, as chances perdidas, ou seja, examinar, de fato, quais/quantas chances de êxito foram retiradas em razão do ato ilícito.
A quantificação das chances perdidas somente se dará no caso concreto, conforme suas especificidades, devendo a parte interessada valer-se de todos os meios de prova lícitos para comprovar que as chances subtraídas eram reais e sérias18 19, passíveis portanto, de indenização. Sobre o tema, preleciona Rafael Peteffi da Silva (2014, p.396):
A indenização dos prejuízos pela perda de uma chance não escapa das condições elementares de direito comum, como a prova do dano e do nexo causal. Nesse sentido, é absolutamente necessário que o demandante comprove a perda da vantagem sofrida, indicando as probabilidades sonegadas pelo ato culposo do ofensor. Da mesma forma, as cortes podem impor como óbice à reparação a falta do nexo causal entre o ato culposo e o dano (grifo nosso).
Sobre o nexo causal, deve-se destacar que a causalidade deve restar comprovada entre a conduta culposa do agente e as chances suprimidas. Os casos em que se pleiteia indenização pela perda de uma chance caracterizam-se pela ausência de certeza de que o agente causou o dano final suportado pela vítima, sendo inviável imputar a ele um dever de indenizar pelo resultado final que era esperado. Contudo, demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta culposa e a perda de uma chance real e séria, deve-se responsabilizar o agente por violar um interesse legítimo configurando um dano atual e certo, passível portando de indenização.
Outra questão controversa, sobre a temática em estudo, diz respeito a dissenso doutrinário e jurisprudencial sobre a natureza jurídica da teoria da perda de uma chance.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que se trataria de uma espécie de dano autônomo. Exemplificativamente, cita-se o Recurso Especial 1.254.141/PR, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que evidencia o posicionamento do Tribunal:
A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou
[…]
a partir da percepção de que a chance, como bem jurídico autônomo, é que foi subtraída da vítima, o nexo causal entre a perda desse bem e a conduta do agente torna-se direto. Não há necessidade de se apurar se o bem final […] foi tolhido da vítima (BRASIL, STJ, REsp n.1.254.141/PR, 2013, p.9-11).
Em que pese o respeitável entendimento apontado, entende-se não ser necessário criar uma espécie de dano para enquadrar as chances perdidas, tendo em vista que o caso se amolda com perfeição ao dano patrimonial, em sua espécie danos emergentes. De modo que, há uma violação ao patrimônio da vítima, qual seja, a chance perdida, e não a um possível futuro resultado positivo, o que, de modo algum, afasta a possibilidade de condenação, se for o caso, a danos extrapatrimoniais, que se manifestariam em consequência ao dano patrimonial (perda da chance) suportado pela vítima.
Neste sentido, Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald (2019, p. 330) apontam que:
[…] na classificação dos danos, acreditamos que a perda de uma chance é um dano patrimonial. O dano injusto – seja ele a privação de uma vistoria judicial, de uma aprovação em concurso, ou de qualquer quebra de uma perspectiva real de lucros – representará uma ofensa a um interesse econômico. Não se nega que, excepcionalmente – tal como poderia ocorrer com danos emergentes ou lucros cessantes -, o dano possa repercutir em situações jurídica existenciais do ofendido ou de seus familiares. Todavia, se constatado o dano moral, será uma eventual consequência do dano econômico, a ele se agregando.
Destaca-se, ainda, que, embora a perda de uma chance se enquadre como um dano patrimonial, não é possível imputar-lhe a classificação de lucros cessantes, tendo em vista que os lucros cessantes são restritos àqueles casos em que, na normalidade, se teria determinado valor como lucro, o que difere da perda de uma chance, a qual se manifesta em um processo, por si só aleatório, inexistindo a certeza de um ganho no futuro, de tal modo que o ponto central da responsabilidade civil, ao aplicar esta teoria, será sempre indenizar as chances frustradas, dentro dos critérios que estão sendo apresentados, e não um benefício que não se tem a certeza se seria auferido.
4 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E A (IM)POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
De antemão, faz-se necessário diferenciar a responsabilidade civil pela perda de uma chance entre a clássica e a atípica. A primeira consubstancia-se pela “certeza quanto à autoria do fato que frustra a chance e incerteza quanto à extensão dos danos decorrentes do fato” (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 109), ou seja, não há dúvidas de que fora determinado sujeito quem retirou as chances de êxito da vítima, no entanto, por se tratar de probabilidades futuras, não é possível determinar com exatidão as consequências deste dano, ou seja, o quão lesivo fora o ato ilícito perpetrado.
De outro lado, a perda de uma chance atípica se manifesta pela conduta omissiva do agente, notadamente presente no âmbito médico, na hipótese em que o profissional deixa de interromper o curso do processo danoso ao paciente, a exemplo do diagnóstico tardio de uma doença pela não realização dos exames devidos, tornando-se de difícil apuração não somente a extensão do dano sofrido, mas também a própria autoria do ilícito civil, tendo em vista que não é possível afirmar, com juízo de certeza, que, se a doença tivesse sido diagnosticada previamente, o paciente teria sobrevivido.
Sob esse aspecto, o exercício da medicina mostra-se, desde os tempos remotos, extremamente desafiador, especialmente, por envolver diferentes fatores que podem causar o sucesso ou o fracasso da intervenção médica. A álea terapêutica20, portanto, é determinada pelas causas endógenas – ocasionadas pela reação do próprio corpo do paciente e/ou por doenças pretéritas e crônicas – pela eficácia bioquímica da medicação, pelo correto diagnóstico, pelo tempo hábil para tratamento, pelas tecnologias disponíveis, dentre tantos outros fatores, que devem ser analisados em conjunto para aferição de erro médico.
No entanto, não é adequado invocar a existência da álea terapêutica para concluir, só por este fato, que é impossível a responsabilização do médico, de modo que, a álea terapêutica apenas indica que, para aferição da responsabilidade civil, é necessário avaliar o grau de interferência danoso, decorrente do ato médico, que destoou da razoabilidade esperada no exercício de sua profissão.
Diante disso, configura-se a obrigação do médico como uma obrigação de meio, em que “o médico não se obriga a curar, mas se obriga a utilizar técnicas e métodos corretos e a empregar acurada diligência no exercício de suas atividades profissionais” (KFOURI NETO, 2018, p. 260), ou seja, se obriga a empenhar toda a técnica existente para atingir a cura, sem, contudo, se obrigar pelo resultado.
Dizer que o médico se obriga pelo resultado, em todas as intervenções a que se propõe, significaria negar a álea terapêutica como intrínseca à atividade médica, conduzindo a injustas e exacerbadas imputações de responsabilidade ao médico. Isso porque, no contexto da obrigação de resultado, caberia ao próprio médico comprovar que o resultado inesperado se deu por fato exclusivo da vítima ou por caso fortuito, ignorando o fato de que o sucesso da terapia não depende só do médico, e que a ocorrência de fatos inéditos ou raros na ciência são plenamente aceitáveis.
Uno de los problemas de la imprudencia médica estriba em la búsqueda del error. No puedo afirmasse que toda actuactión professional errónea puede resultar imprudente; por el contrario la premissa constitutiva debe ser el hecho de que la profesión médica es, por sí misma, uma función de alto riesgo. El acto médico lleva unido uma sobrecarga de riesgo clínico, em la medida em que, al existir incertitumbre, no puede disponer de elementos decisorios concretos y específicos, que permitan inferir um resultado exacto. Por eso que hay qye acotar el terreno incluyendo en el entorno jurídico sólo aquellos errores cuya cuantificación sea inexcusable y como consecuencia, deba ser demandado al infractor. (LÓPES; ÓRTEGA; 2006, p.41)
Considerando a obrigação do médico como de resultado uma exceção, a exemplo da cirurgia plástica embelezadora21, leciona Genival Veloso de França (2019, p.285), demonstrando que, a obrigação do médico
[…] é de meio porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem no entanto poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil em face da inexorabilidade do caso, quando o especialista agiu de acordo com a “lei da arte”, ou seja, se os meios empregados eram de uso atual e sem contraindicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma “obrigação de resultado” não seria apenas um absurdo. Seria uma injustiça.
Diante da incerteza de sucesso da intervenção médica, em muitos casos não é possível determinar, com grau de certeza, o nexo de causalidade entre o resultado danoso (final) para o paciente e o ato culposo do médico, surgindo a possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance.
Na hipótese em que o ato médico é oriundo de culpa (negligência, imprudência ou imperícia), e não houve o emprego de diligência razoável necessária ao exercício da profissão, deve-se avaliar a responsabilidade civil por dois aspectos: sendo o ato médico determinante para o resultado danoso, estar-se-á diante do dano direto e imediato, cabendo ao autor comprovar a culpa, o nexo de causalidade e o resultado sofrido, para, então, pleitear por indenização por danos morais e/ou patrimoniais decorrentes desta conduta.
Porém, torna-se um desafio para a vítima pleitear indenização no caso de o ato médico apenas influenciar o resultado danoso, sem, contudo, configurar-se como causa determinante para o dano final sofrido, tendo em vista que, nestas situações, o erro médico diminuiu as chances do paciente de alcançar o resultado pretendido.
Essas chances devem ser avaliadas sob um viés realista, em que o paciente tinha uma legítima expectativa de se recuperar ou de se curar, ou seja, uma probabilidade séria de ser alcançada se não fosse a ação ilícita do médico (SILVA, 2013, p.138), a exemplo do médico que diagnostica tardiamente um severo câncer de mama. Não é possível afirmar que a vítima teria sobrevivido se tivesse sido diagnosticada previamente, mas, sem dúvida, o erro médico retirou dela as chances sérias e reais de cura e do aumento da expectativa de vida, tendo em vista a probabilidade comprovada de recuperação de um câncer combatido no estágio inicial.
Inclusive, o STJ já reconheceu a aplicação da teoria da perda de uma chance na responsabilidade civil do médico, não obstante, exige que as possibilidades reduzidas sejam concretas e reais, o que pode ser constatado no Recurso Especial 1.662.338/SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, em que foi produzida a seguinte ementa:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. ERRO MÉDICO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. POSSIBILIDADE. ERRO GROSSEIRO. NEGLIGÊNCIA. AUSÊNCIA. 1. Ação ajuizada em 14/11/2003. Recursos especiais atribuídos ao gabinete em 25/08/2016. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal consiste em verificar a ocorrência de erro médico, em razão de negligência, imprudência ou imperícia, passível de condenação em compensar dano moral. 3. A teoria da perda de uma chance pode ser utilizada como critério para a apuração de responsabilidade civil, ocasionada por erro médico, na hipótese em que o erro tenha reduzido possibilidades concretas e reais de cura de paciente. Precedentes. 4. A visão tradicional da responsabilidade civil subjetiva; na qual é imprescindível a demonstração do dano, do ato ilícito e do nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e o ato praticado pelo sujeito; não é mitigada na teoria da perda de uma chance. Presentes a conduta do médico, omissiva ou comissiva, e o comprometimento real da possibilidade de cura do paciente, presente o nexo causal. 5. A apreciação do erro de diagnóstico por parte do juiz deve ser cautelosa, com tônica especial quando os métodos científicos são discutíveis ou sujeitos a dúvidas, pois nesses casos o erro profissional não pode ser considerado imperícia, imprudência ou negligência.6. Na espécie, a perda de uma chance remota ou improvável de saúde da paciente que recebeu alta hospitalar, em vez da internação, não constitui erro médico passível de compensação, sobretudo quando constatado que a sua morte foi um evento raro e extraordinário ligado à ciência médica. 7. Recurso especial interposto pelo médico conhecido e provido. Recurso especial interposto pelos genitores julgado prejudicado (BRASIL, STJ, REsp.1.662.338/SP, 2018, p. 1, grifos nosso).
O entendimento do STJ, como se pode ver, direciona a necessidade de, na hipótese de perda de uma chance, respeitar os critérios da responsabilidade civil subjetiva, em que se continua vinculado, a demonstrar o dano (a perda da chance), o ato ilícito e o nexo de causalidade.
Ademais, o dano só será avaliado após o fim do processo aleatório que sobreveio ao resultado negativo para a vítima (EHRHARDT JÚNIOR; PORTO, 2018, p.155), pois, por se tratar de chances, estando em curso o processo aleatório, ainda há a possibilidade da vítima conquistar o resultado almejado, hipótese em que a eventual conduta culposa do médico não foi suficiente para acarretar um resultado final danoso à vítima, e, portanto, não se falaria em responsabilidade civil pela perda de uma chance, mesmo tendo ocorrido o dano, compreendido como a retirada de chance, em razão de que, mesmo com este dano, não houve, ao final, uma repercussão negativa que justificasse determinada indenização.
Entretanto, há casos em que o próprio processo aleatório teve fim por influência da culpa médica22, aniquilando as chances do paciente atingir o resultado desejado, a exemplo do médico que prescreve, por erro de cálculo, uma dosagem relativamente alta de um medicamento, nunca usado pelo paciente, provocando uma reação alérgica incomum, que lhe causou a morte. Nesse caso, o ato culposo do médico influenciou o fim do processo aleatório, mas não se configurou com uma causa determinante, visto que a reação alérgica incomum do paciente poderia ocorrer mesmo se a dosagem tivesse sido prescrita corretamente.
Por todo o exposto, é bem verdade que, para que haja a responsabilidade civil pela perda de uma chance, a vítima deverá apresentar provas, tratando-se de tarefa difícil, sobretudo, se considerada a presunção de vulnerabilidade técnica existente na relação médico-paciente, no entanto, a prova técnica revela-se importante instrumento de comprovação do ato ilícito, de modo que o perito, a partir de critérios científicos, analisará a atuação do médico verificando se a sua conduta ou omissão ensejou a perda de chance, averiguando-se a potencialidade lesiva do ato.
Com relação ao nexo causal, este pode ser entendido como direto, ou seja, manifesta-se quando da verificação de uma conexão entre o ato ilícito do médico e o dano, que nada mais é do que a perda da chance e não o resultado danoso final.
Inclusive, para a teoria em estudo, o dano seria a própria retirada de chances consistes e sérias, e não um resultado danoso final. Nesse sentido, manifestou-se o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao relatar o Recurso Especial 1.677.083/SP:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. HOSPITAL. ATUAÇÃO NEGLIGENTE. ÓBITO. INDENIZAÇÃO PELA CHANCE PERDIDA. VALOR DA INDENIZAÇÃO. RAZOABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ.1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).2. A teoria da perda de uma chance comporta duplo viés, ora justificando o dever de indenizar em decorrência da frustração da expectativa de se obter uma vantagem ou um ganho futuro, desde que séria e real a possibilidade de êxito (perda da chance clássica), ora amparando a pretensão ressarcitória pela conduta omissiva que, se praticada a contento, poderia evitar o prejuízo suportado pela vítima (perda da chance atípica).3. Hipótese em que a morte da paciente não resultou do posterior agravamento da enfermidade diagnosticada a destempo, mas de um traumatismo crânio-encefálico resultante da queda de uma escada em sua própria residência um dia depois da última consulta médica realizada, não se podendo afirmar com absoluta certeza que o acidente doméstico ocorreu em razão das tonturas que ela vinha sentindo e que a motivou a procurar auxílio médico.4. À luz da teoria da perda de uma chance, o liame causal a ser demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final.5. Existência de laudo pericial conclusivo quanto à efetiva concorrência da enfermidade extemporaneamente diagnosticada para o resultado morte, tendo em vista que a baixa contagem de plaquetas foi determinante para que não fosse possível estancar a hemorragia intracraniana da paciente.6. Atuação negligente dos profissionais médicos que retirou da paciente uma chance concreta e real de ter um diagnóstico correto e de alçar as consequências normais que dele se poderia esperar.7. Na responsabilidade civil pela perda de uma chance, o valor da indenização não equivale ao prejuízo final, devendo ser obtido mediante valoração da chance perdida, como bem jurídico autônomo.8. Ainda que estabelecidos os danos morais em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) com base no sofrimento e na angústia do autor pela morte de sua esposa, não se mostra desarrazoada a quantia fixada a esse título, mesmo considerando que a indenização deve reparar apenas a chance perdida.9. Recurso especial não provido (BRASIL, STJ, REsp. 1.677.083/SP, 2017, p. 1, grifos nosso)
Ora, não se observa incongruência entre a responsabilização civil e a teoria da perda de uma chance23, de modo que a chance séria e real retirada da vítima mostra-se como uma legítima expectativa, que não poderia ter sido embaraçada por ato ilícito do médico, notadamente, diante do grau elevado de confiança que o paciente deposita em seu médico, passível de proteção jurídica, conforme se abstrai:
A posição subjetiva daquele que se encontra em um processo aleatório (situação fática), com legítima expectativa de um resultado que lhe seja favorável (efeitos jurídicos), não pode ser sempre valorada, de maneira apodítica, como algo insignificante, pelo só fato de ser incerta a obtenção do benefício visado. O interesse aleatório, como já afirmado, baliza decisões e mobiliza esforços, relacionando-se fortemente ao poder de autodeterminação do indivíduo. (GARCIA; GRAGNANO, 2015, p. 276)
Logo, a responsabilidade civil pela perda de uma chance é a concretização da proteção aos interesses aleatórios, em que se reposiciona a vítima antes do evento danoso e devolve-se a ela suas chances perdidas (CARNAÚBA, 2013, p.192), em pecúnia, com vistas à reparação pelo dano sofrido.
Para tanto, o autor da ação deve comprovar o dano sofrido, a culpa médica consubstanciada na negligência, na imprudência ou na imperícia, e de que maneira esta ação contribuiu negativamente para o resultado danoso, seja aniquilando todas as suas chances com a interrupção do processo aleatório ou retirando-as, avaliadas ao final do processo aleatório que sobreveio desvantagem à vítima.
Nesse diapasão, a reparação dos prejuízos causados à vítima não será calculada com base no interesse perdido (resultado), mas, sim na chance retirada da vítima de se recuperar sem sequelas. A lógica reparatória em questão se fixa no critério de proporcionalidade, em que se julga o prejuízo causado com base na potencialidade lesiva do ato determinado, que aniquilou ou reduziu as chances do acidentado se recuperar ou sobreviver.
Como não se trata de um dano concreto, obrigar o médico, causador do dano pela perda de uma chance, a reparar os prejuízos causados com base no resultado seria permitir o locupletamento sem causa, amplamente refutado pelo direito pátrio, conduzindo à notória desconformidade da sentença judicial com o Estado Democrático de Direito.
5 CONCLUSÃO
A responsabilidade civil mostra-se como um importante instrumento jurídico para manutenção da ordem social e para resguardar os interesses de todos os indivíduos, apresentando constantes evoluções de seus institutos com o objetivo de acompanhar as transformações sociais e garantir a sua aplicação de acordo com os desafios hodiernos.
Neste contexto, o Estado Democrático de Direito conferiu ao Direito Privado a incumbência de tutelar os direitos inerentes à condição humana, tais como a vida, a imagem, o nome, e não apenas os interesses patrimoniais, fruto de um amadurecimento da sociedade, que exige a tutela máxima aos Direitos Humanos, consubstanciado no redirecionamento do Direito à tutela integral e efetiva da dignidade da pessoa humana.
Observando as transformações sociais que originaram novas hipóteses e circunstâncias de dano, que não encontravam guarida nos institutos clássicos da responsabilidade civil, o Direito Francês iniciou a construção da Teoria da Perda de uma Chance, em que se analisa a atuação ilícita do agente que retirou ou diminuiu as chances da vítima de alcançar o resultado almejado, tratando-se, portanto, de uma avaliação, para o futuro, de desafiadora aplicação.
Para que se configure esta teoria, a intervenção ilícita do agente, no curso do processo aleatório da vítima, deve ter retirado dela chances sérias e reais, de tal forma que se indenizará a legítima expectativa do ofendido que não fora alcançada por ato ilícito do agente, ou, que teve sua ação ou omissão ilícitas como uma das causas de seu insucesso, traduzindo-se como um dano patrimonial causado pela violação à probabilidade de obter a vantagem esperada, em que pese o respeitável posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que entende tratar-se de dano autônomo.
Especificamente, no âmbito do Direito Médico, constata-se que a obrigação assumida pelo médico é de meio – ressalvado os casos de cirurgia estética embelezadora – em que que o profissional não se compromete com o resultado, mas com o emprego de todas as técnicas existentes para curar e recuperar o paciente, sendo necessária a demonstração de culpa perpetrada pelo médico, que retirou ou diminuiu as chances da vítima, para a configuração da responsabilidade civil pela perda de uma chance.
Contudo, a avaliação do dano pela perda de uma chance adquire relevantes contornos no que tange a seu aspecto probatório, sobretudo se considerado que a álea terapêutica, intrínseca à atividade médica, influencia diretamente a extensão do dano, pois representa os diversos fatores, além do ato ilícito, que podem contribuir para o resultado negativo do paciente.
Diante desta peculiaridade, a perícia judicial é de extrema relevância para garantir a razoabilidade e a proporcionalidade da decisão judicial, na medida em que o agente será compelido a indenizar as chances perdidas pelo ofendido na proporção de seu ato ilícito, a fim de afastar o locupletamento ilícito da vítima, jamais admissível no Estado Democrático de Direito.
Conclui-se, portanto, pela possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance na seara médica quando há a retirada ou a diminuição das chances sérias e reais de cura ou sobrevivência do paciente, devido à ocorrência de ato ilícito do médico, que atuou com culpa, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para o cálculo da indenização devida, de modo a recompor patrimonialmente a vítima ao estado em que se encontrava antes do evento danoso, garantindo a efetiva e integral reparação do dano, e, por consequência, a tutela da dignidade da pessoa humana nas relações privadas.
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NOSTAS DE FIM
1 Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito de Empresa pela PUC Minas. Coordenador do Programa de Pesquisa da Escola de Direito (PPED) do Centro Universitário Newton Paiva. Líder de pesquisa do Projeto de Iniciação Científica “A Teoria da Perda de uma Chance e o Direito à saúde” do Centro Universitário Newton Paiva. Líder do Grupo de Pesquisa “Perspectivas do Direito Civil-Constitucional na Contemporaneidade” na Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado. Mediador Judicial credenciado pelo TJMG.
2 Graduando pela Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/2019). Integrante do Projeto de iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva “A Teoria da Perda de uma Chance e o Direito à saúde”. Membro do Grupo de Pesquisa “Perspectivas do Direito Civil-Constitucional na Contemporaneidade”.
3 Graduanda pela Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Integrante do Projeto de iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva “A Teoria da Perda de uma Chance e o Direito à saúde”.
4 Graduanda pela Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Integrante do Projeto de iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva “A Teoria da Perda de uma Chance e o Direito à saúde”.
5 Segundo Federico De Montalvo Jääskeläinen (2006, p. 76): “El origen doctrinal de la pérdida de oportunidad debe establecerse en el Derecho francés (perte d´une chance) y en el Derecho anglosajón (loss of a chance of recovery), sin olvidar las importantes aportaciones que en esta materia han hecho muchos países iberoamericanos (pérdida de la chance)”.
6 Soa como óbvio, hoje, dizer que a Constituição Federal possui relação direta com todos os ramos do Direito, mas ocorre que: “mesmo certas leis – mais conhecidas e relevantes, como por exemplo o Código Civil – não dialogavam nos séculos passados com a Constituição. Pelo menos essa era a regra. Cada disciplina regia, soberana, determinada área, sem interdisciplinaridade. Cabia às constituições, apenas, definir a estrutura do Estado e traçar algumas linhas pertinentes ao direito público. Mesmo quando aludia a temas de direito privado, eles não eram tidos como vinculantes, não eram considerados como norma jurídica, não tinham impacto na interpretação e na aplicação do direito” (BRAGA NETTO, 2019, p. 34).
7 Sobre este fato, Rodolfo Pamplona Filho (2018, p. 418) demonstra que: “a retirada do patrimônio do centro do Direito Civil, erigindo a pessoa como valor supremo a ser protegido, ocasionou a sua repersonalização, decorrência direta da aplicação da cláusula geral de proteção a dignidade humana no sistema jurídico privado”.
8 Quanto a estes benefícios, “evidências convincentes mostram que o crescimento econômico e o avanço tecnológico gerados pela competição do mercado foram acompanhados, nos últimos dois séculos, de importantes melhorias na saúde, um grande aumento da longevidade e redução das doenças (…) os fatos evidenciam que o céu não está desabando: os humanos do mundo desenvolvido passaram por uma forma de evolução que é única não apenas para a humanidade, mas para as quase sete mil gerações de seres humanos que já habitaram a terra. Em 1950, existiam 22 democracias no mundo; hoje são mais de 130. A proporção de pessoas subnutridas no mundo caiu vertiginosamente, havendo evidente melhoria no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) das nações mais pobres do planeta” (FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, 2019, p. 30).
9 Felipe Peixoto Braga Netto (2019, p. 78) leciona que: “A responsabilidade civil está fundada no princípio do neminem laedere ou seja, a fórmula, de elaboração romana, que nos recomenda agir de forma a não lesar os direitos de outrem. Quando o dano ocorre – seja moral, material ou estético – busca-se compensar, ainda que parcialmente, o equilíbrio perdido. A responsabilidade civil centra-se, portanto, na obrigação de indenizar um dano injustamente causado”.
10 “Em outras palavras, aquele que praticar ato ilícito, fica obrigado a indenizar. O Código colocou aqui muito bem que o fato gerador da responsabilidade civil, da obrigação de indenizar é o ato ilícito, quer na responsabilidade subjetiva, quer na responsabilidade objetiva. Quem praticar ato ilícito, causando dano a alguém, vai ter que reparar, vai ter que indenizar. (CAVALIERI FILHO, 2003, p. 35)
11 Daniel Amaral Carnaúba (2013, p. 167) defende que “A reparação civil não busca recolocar a vítima no estado em que se encontrava antes do incidente, mas sim no estado em que ela se encontraria na ausência desse evento”.
12 Neste mesmo sentido, Roger Silva Aguiar (2013, p. 526) externa que: “Para conter a insistente insatisfação social com a ocorrência de danos, foi necessária então a desenvolução de novos remédios, à medida que os anteriores já não mais se prestavam para dissolver os pontos de tensão criados e assim manter a coesão do tecido social”.
13 Sobre os princípios da responsabilidade civil, ver: Braga Netto (2019, p.78-90); Farias; Braga Netto; Rosenvald (2019, p.41-58).
14 Segundo Rogério Donnini (2018, p.18), “Trata-se de função ainda vista com desconfiança por parte considerável da doutrina e jurisprudência posto indispensável em uma sociedade de massa, com lesões constantes e evidente dano social”.
15 Ressalta-se que “o homem prudente evita o perigo. A ideia de precaução busca através disso garantir algum grau de segurança a cenários de insegurança. Ao propor o enfrentamento desses riscos, que se incorporam de modo cada vez mais presente na sociedade pós-moderna” (CARRÁ, 2015, p. 61)
16 Paulo Henrique Ribeiro Garcia e Théo Assuar Gragnano (2015, p. 273) definem chance como “a possibilidade, a probabilidade de ocorrência de um evento que, favorável a alguém, configura uma vantagem potencial e desperta o interesse na sua concretização, frequentemente mobilizando esforços e balizando decisões”.
17 Sobre este caso, Daniel Amaral Carnaúba (2013, p. 95) comenta que: “curiosamente, muitos autores consideram que esse é o primeiro acórdão em que a Corte de Cassação teria adotado a técnica da reparação de chances. Em nosso ver, tal conclusão é absurda: no caso em questão, a reparação de chances jamais foi aventada por qualquer dos envolvidos; nem pelas partes nem pelos juízes”.
18 Afinal, “é possível a existência de indenização sem culpa (nos casos de responsabilidade objetiva), mas não de indenização sem dano, o que indicaria, sem dúvida, um enriquecimento sem causa para quem a recebesse” (SCHONBLUM, 2009, p.88).
19 Nessa esteira, em 2012, o Conselho de Justiça Federal (CJF), em sua V Jornada de Direito Civil, aprovou o Enunciado n.444 sobre a temática: “A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos (BRASIL, 2012, p. 73).”
20 A respeito da álea terapêutica e da culpa médica, Miguel Kfouri Neto (2018, p.256) leciona que “o exercício da arte médica envolve os médicos em frequentes riscos para combater as doenças. O resultado do tratamento não depende apenas de seus conhecimentos científicos e competência. Depende, igualmente, das características pessoais do doente, da eficácia dos medicamentos e de toda sorte de fatores imprevisíveis inerentes à atividade curativa. O dano resultante do ato médico não é, necessariamente, decorrente de culpa médica. O resultado danoso ocorre, nesses casos, independentemente da participação causal do médico – e o profissional não poderá ser responsabilizado e compelido a reparar”.
21 Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça publicou o Informativo nº 0484, que diz que: “nos procedimentos cirúrgicos estéticos, a responsabilidade do médico é subjetiva com presunção de culpa. Esse é o entendimento da Turma que, ao não conhecer do apelo especial, manteve a condenação do recorrente – médico – pelos danos morais causados ao paciente. Inicialmente, destacou-se a vasta jurisprudência desta Corte no sentido de que é de resultado a obrigação nas cirurgias estéticas, comprometendo-se o profissional com o efeito embelezador prometido. Em seguida, sustentou-se que, conquanto a obrigação seja de resultado, a responsabilidade do médico permanece subjetiva, com inversão do ônus da prova, cabendo-lhe comprovar que os danos suportados pelo paciente advieram de fatores externos e alheios a sua atuação profissional. Vale dizer, a presunção de culpa do cirurgião por insucesso na cirurgia plástica pode ser afastada mediante prova contundente de ocorrência de fator imponderável, apto a eximi-lo do dever de indenizar. Considerou-se, ainda, que, apesar de não estarem expressamente previstos no CDC o caso fortuito e a força maior, eles podem ser invocados como causas excludentes de responsabilidade dos fornecedores de serviços. No caso, o tribunal a quo, amparado nos elementos fático-probatórios contidos nos autos, concluiu que o paciente não foi advertido dos riscos da cirurgia e também o médico não logrou êxito em provar a ocorrência do fortuito. Assim, rever os fundamentos do acórdão recorrido importaria necessariamente no reexame de provas, o que é defeso nesta fase recursal ante a incidência da Súm. n. 7/STJ. REsp 985.888-SP, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012” (BRASIL, 2012).
22 Rafael Pettefi Silva (2013, p. 353) diferenciando os momentos da retirada de chances assevera que “A rigor, pretende-se propor aqui uma ruptura, porém não mais entre os casos “clássicos” e aqueles vinculados à seara médica. Também seria correto afirmar que todas as vezes que o processo aleatório em que se encontrava a vítima é interrompido, com a perda definitiva da vantagem esperada e a total aniquilação das chances da vítima, está-se diante de chances perdidas como dano específico e autônomo. Porém, quando o processo aleatório chegou até o final, como costuma acontecer na seara médica, a noção de causalidade parcial é chamada a depor. Neste último caso, a conduta do agente apenas retira algumas chances de a vítima auferir a vantagem esperada, fazendo com que esta ainda possa ser alcançada.”
23 Em sentido contrário, Eduardo Dantas (2017, p. 342) defende a existência de uma flagrante contrariedade entre os institutos da responsabilidade civil e da teoria da perda de uma chance, visto que essa imprescinde da demonstração do dano concreto, delimitado, enquanto esta adquire contornos incertos na seara médica, dependendo de uma série de outros fatores que impossibilitam a verificação da potencialidade lesiva do ato médico no evento danoso.