INC02 01 – IDENTIDADE DE GÊNERO FAMÍLIA POLIPARENTAL: POLIGAMIA E POLIANDRIA[i]

Geysa Parreira Silva[ii]
Carlos Augusto Teixeira Magalhães[iii]

William Ken Aoki[iv]
Raquel Abreu-Aoki[v]

 

RESUMO: O ordenamento jurídico brasileiro passou por mudanças inovadoras nas últimas décadas. Após o advento da Constituição de 1988 que remodelou o Direito brasileiro, houve a ratificação de tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos, os quais incluíram, expressamente, na legislação interna, as garantias fundamentais elevadas ao status de cláusulas pétreas. Contudo, apesar de tais inovações, o ordenamento jurídico brasileiro se distancia da realidade fática, revelando-se por diversas vezes um panorama não garantista. Dentre esses direitos suprimidos está a falta de reconhecimento da constitucionalidade das famílias poliparentais. Essas carecem da efetivação de seus direitos, pois tais estruturas familiares têm amparo legal – conforme será demonstrado no presente trabalho – mas não social, por ser um modelo de família minoritário. Contudo, o Estado Democrático de Direito tem o dever de efetivar socialmente tais direitos e garantias trazidos pela Constituição de 1988, não podendo oprimir a minoria sob consequência de estar violando a tão ponderada Democracia.

PALAVRAS-CHAVE: Família poliparental, identidade de gênero, princípio da dignidade humana, afeto, Constituição de 1988.

ABSTRACT: The brazilian legal system passed by through innovative changes in the last decades. After the advent of the Constitution of 1988 that reshaped the Brazilian Law, there was the ratification of international treaties whose specificity are human rights wich included expressly in internal law the fundamental guarantees to the status of immutable clauses. However, despite these innovations, the Brazilian legal system is too far from the factual reality several times, revealing itsel not so guarantor. Among those supressed right lies the lack of acknowledgment what concerns to the constitutionality of the families with more than one pole. These lack the realization of theirs rights because this family structure has legal grounds – as demonstration in this graduation work – but not social, because it is a minority life choice. However, the democratic state have a duty to implement those rights and guarantees brought by the Constitution of 1988, not allowing the minorities to be suppressed, under the charge of violation such a reasonable democracy.

KEYWORDS: poliparental family; gender indentity; human dignity; affection; Constitution of 1988.

1. INTRODUÇÃO

O advento da Constituição de 1988 inovou o Direito brasileiro consagrando direitos fundamentais e garantias que inseriu no ordenamento jurídico. Tais inovações, consequentemente, remodelaram diversos ramos do Direito, que tiveram que se adequar ao novo texto constitucional, dentre esses o Direito das famílias.

O Direito de Família que era focado nas questões patrimoniais, passou a ser movido pelo afeto devido a inserção de vários princípios, dentre eles o Princípio da Dignidade Humana e o Princípio da Afetividade.

Houve uma quebra de paradigmas. Se antes da CR/88 só se considerava família a relação que se submetesse ao casamento, após o advento da “nova” Constituição passou-se a considerar família as relações movidas pelo afeto. Tal inovação permitiu o reconhecimento de várias estruturas familiares, tais como a estrutura anaparental (que se caracteriza pela inexistência da figura dos pais, ou seja, constitui-se basicamente pela convivência entre parentes do vínculo da colateralidade), a estrutura familiar monoparental (ocorre quando apenas um dos pais arca com as responsabilidades de criar o filho ou os filhos), dentre outras.

Dessa forma, o que se passa a considerar são as famílias de fato, não há mais um modelo de família para se seguir. Contudo, apesar dessa nova concepção de família, há estruturas familiares que ainda são discriminadas. Dentre esses modelos estão às famílias poliparentais. A estrutura familiar poliparental é caracterizada pelo poliafeto, consiste na relação amorosa de mais de duas pessoas que dividem um único núcleo familiar.

A doutrina se divide acerca da constitucionalidade da família poliparental, no entanto, ao analisar as justificativas daqueles que entendem ser inadmissível essa estrutura familiar, percebe-se que esses são respaldados simplesmente por argumentos religiosos e morais, carecem, portanto, de argumentos jurídicos.

Ora, o art 226 da CR/88 ao dispor que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, gerou, consequentemente, o desaparecimento da cláusula de exclusão de qualquer estrutura familiar, deixando o Texto Maior de proteger apenas um tipo de família, passando a proteger toda e qualquer família. Com base nesse direito fundamental, a interpretação seguida pelo Supremo Tribunal Federal e pelos Tribunais Internacionais em matéria de Direitos Humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, leva em consideração o Princípio da Máxima Efetividade. Esse critério de interpretação deve levar em consideração a interpretação do preceito constitucional que dê a máxima efetividade do direito em questão, no caso a que amplia a concepção de família. Nessa hipótese, cabe ao Judiciário efetivar os direitos e garantias individuais trazidos pela CR/88 e reconhecer tal estrutura familiar, adequando os direitos já positivados à atual era social. O que não se pode admitir é a omissão legislativa e judiciária quanto à existência de novas estruturas de famílias, que estão em conformidade com os princípios e garantias constitucionais por caracterizarem a minoria, sob pena de se violar a democracia.

2. A FAMÍLIA poliparental no Brasil – RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA

Há registros que ao descobrir o território brasileiro os colonizadores que aqui adentraram puderam perceber a prática do poliafeto entre os índios. Na obra Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, há uma passagem em que a personagem Vespúcio narra que os índios tinham a quantidade de mulheres que queriam. (FREYRE, 1992).

Ocorre que, os colonizadores influenciados pela cultura cristã dominante nos países de suas nacionalidades, oprimiram a cultura indígena e inseriram a ideia da família tradicional cristã, comparando a cultura dos índios com a dos animais selvagens.

O modelo de família inserido no Brasil, desde os fatos supracitados, é o modelo da família hierárquica, patriarcal, com o objetivo de gerar filhos e constituir um patrimônio a ser herdado por eles. Marise Soares Corrêa (2009, p.81) completa:

Assim, deve-se comentar também que a família brasileira guardou as marcas de suas origens: da família romana, a autoridade do chefe de família; e da medieval, o caráter sacramental do casamento. Desta maneira, a submissão da esposa e dos filhos ao marido, ao tornar o homem o chefe de família – que, fincada na tradição, vem resistindo, na prática, a recente igualdade legal que nem a força da Constituição conseguiu sepultar – encontra a sua origem no poder despótico do pater famílias romano. Ainda, o caráter sacramental do casamento advém do Concílio de Trento, do século XVI. 

Ainda sobre tal questão, Chaves e Rosenvald (2008, p. 23) observam:

Sob a égide do Código Civil de 1916, cuja estrutura era exclusivamente matrimonializada (somente admitida a formação da família pelo casamento), dizia-se que o Direito de Família era o complexo de normas e princípios que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações entre pais e filho, o vínculo de parentesco e os institutos complementares da tutela, curatela e da ausência.

Apesar desse modelo familiar, desde os tempos primitivos já era comum a prática da bigamia e até mesmo do adultério, tais ações foram tipificadas como crimes no Código Penal brasileiro de 1940, o art. 240 – crime de adultério e o art. 235 – crime de bigamia. Uma vez que o direito é fruto do momento histórico-social vivenciado pela sociedade que o segue, eram coerentes essas tipificações penais naquele contexto. Contudo, tais condutas se tornaram tão frequentes e indiscretas, que começaram a ser aceitas socialmente, levando a diminuição da valoração como conduta reprovada ao nível da punição de normas de natureza penal, gerando a revogação do art. 240 que aconteceu em 2005, mesmo que tardiamente. Atualmente, o crime de bigamia ainda vigora, muito influenciado pela tradição religiosa de origem católica que é o principal motivo da manutenção do crime se casar duas vezes.

O Brasil, de forma incoerente, proíbe a bigamia, mas permite o adultério, tendo em vista que a conduta que não for expressamente proibida é juridicamente permitida.

Atualmente, a prática do “poliafeto” é comum dentre a sociedade, mas é repudiada pelas convicções morais e sociais de cada indivíduo. O Direito, portanto, não pode permitir a supressão de direitos da minoria por convicções não jurídicas, conforme demonstrado posteriormente.

3. O NOVO PARADIGMA DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O Brasil é caracterizado por ser um país de costumes tradicionais e conservadores, que ainda mantém tradições advindas da época da colonização. A estrutura de família matrimonializada e patriarcal é um exemplo desta tradição ainda mantida. Muitos modelos de família ainda não são reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo assim, diversos cidadãos ainda sofrem preconceitos e discriminações por construírem uma estrutura familiar que não é aceita pela sociedade. Nesse sentido, Talavera (2004, p. 33) adverte:

O Estado atrelado à concepção de função social, define os parâmetros que devem nortear a noção de família, institucionalizando as que convém ao modelo social majoritário e suprimindo da proteção estatal os grupos minoritários que pugnam por seu reconhecimento na órbita do Direito.

O Direito tem o condão de acompanhar as evoluções sociais e adequar a legislação baseando-se em casos concretos. Assim sendo, no cenário marcado pelo pós-positivismo, o fenômeno conhecido como “boca da lei” em que o magistrado deveria seguir a legislação à risca foi deixado de lado e ganhou espaço o ativismo judicial. Dessa forma, o julgador passou a ter liberalidade para adequar cada caso à sua realidade fática, interpretando a lei, bem como suas lacunas, de acordo com o cada caso concreto, recorrendo-se à hermenêutica jurídica. E dessa forma, a legislação antiga e já inadequada foi ganhando ajustes até chegarmos ao advento da Constituição Federal de 1988, grande marco histórico que inseriu as garantias no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse contexto, Silva (2010, p. 15) considera que,

A tarefa da hermenêutica constitucional consiste em desvendar o sentido mais profundo da Constituição pela captação de seu significado interno, da relação de suas partes entre si e, mais latamente, de sua relação com o espírito da época – ou seja, a compreensão histórica de seu conteúdo, sua compreensão gramatical na sua relação com a linguagem e sua compreensão espiritual na sua relação com a visão total da época. Em outras palavras, o sentido da Constituição se alcançará pela aplicação de três formas de hermenêutica: a) a hermenêutica das palavras; b) a hermenêutica do espírito; c) a hermenêutica do sentido – segundo Richard Palmer – que prefiro chamar de ‘hermenêutica contextual.

A partir deste ponto, o que passa a ser observado não é mais o modelo tradicional de família, mas as famílias de fato cuja principal característica é o afeto. A liberdade religiosa, possibilitando tantas pessoas a seguir a religião que se identifica; a liberdade de crença e de pensamento, deixando livre a escolha de acreditar ou não em dogmas religiosos cristãos ou em qualquer dos demais segmentos, permitem que as pessoas façam escolhas acerca da família que irá construir.

Ademais o paradigma patriarcal introduzido pelo Direito Romano se rompeu, a imagem do homem como pai e provedor não mais se sustenta. A realidade social é outra. Inúmeras mulheres que criam sozinhas seus filhos (família monoparental), mulheres que estão inseridas no mercado de trabalho afastam a família patriarcal, com o homem como eixo da relação parental.

A Constituição de 1988 remodelou diversos ramos do Direito, haja vista que inovou o ordenamento jurídico com seu conteúdo garantista, marcado pelos traumas oriundos da Ditadura Militar que acabara de assolar o país. Instaurou-se, assim, um Estado Democrático de Direito.

Antes desse contexto, somente o modelo de família matrimonializada era reconhecida juridicamente no Brasil. Com o advento da CR/88, houve a quebra desse paradigma de família. Passou-se a considerar família aquelas relações movidas pelo afeto e com esse intuito. Nesse momento, o Direito de Família, que até então se voltava à proteção do patrimônio e por isso, apenas reconhecia as famílias matrimonializadas, passou a se focar no afeto, “a família despe-se da sua condição de unidade econômica e passa a ser uma unidade afetiva, uma comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias” (SILVA, 2002. p. 451).

Diante disso, aquela legislação que traçava distinção entre filhos legítimos ou ilegítimos, biológicos ou adotivos; entre casados e aqueles que viviam sob o regime da união estável; dentre outras diferenças tanto quanto discriminatórias, foram afastadas do ordenamento jurídico. Não havia mais razão dessa legislação vigorar, uma vez que o afeto passou a ser o princípio basilar do Direito de Família.

Tais mudanças, portanto, foram positivadas no Código Civil de 2002, à luz da CR/1988, este também adotou severas mudanças, trazendo garantias e inovando a legislação de acordo com a realidade social. Assim nos esclarece Gonçalves (2005, p. 33 – 34):

Todas as mudanças sociais havidas na segunda metade do Século passado e o advento da Constituição Federal de 1988 levaram a aprovação do Código Civil de 2002, com a convocação dos pais a uma paternidade responsável, e a assunção de uma realidade familiar concreta, onde os vínculos de afeto se sobrepõem à verdade biológica, após as conquistas genéticas vinculadas e aos estudos do DNA. Uma vez declarada a convivência familiar e comunitária como direito fundamental, prioriza-se a família sócio-afetiva, a não discriminação do filho, a corresponsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar e se reconhece o núcleo monoparental como entidade familiar.

Os fatos históricos acontecidos juntamente com tais mudanças, no âmbito judicial, influenciaram tais mudanças, haja vista que o Direito acompanha tais evoluções.

A expansão da globalização, ampliou as possibilidades de se conhecer diversas culturas, em muitos países. Exemplos disso, encontramos na cultura holandesa, que em 2001 foi pioneira no reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo; Na cultura turca, em que o Estado coíbe a poligamia, mas a religião consente; E ainda, a cultura marroquina que aceita a poligamia amplamente – dentre outras culturas), nos trazendo a curiosidade de descobrir se aquelas, sejam mais democráticas ou mais ditatoriais, não podem contribuir para enriquecer a nossa cultura.

A revolução sexual, que através da globalização se fortificou, culminando nos movimentos sociais – tais como as paradas gays, dentre outros acontecimentos – fez com que a figura da gênese da família cristã, cultivada pelo Direito Canônico também entrasse em declínio.

Esses fatores afetam o Direito, que está sob a influência de todos os fenômenos histórico-sociais e revelam a necessidade de alteração das leis em conformidade com a Carta Magna e ao mesmo tempo com os acontecimentos sociais, de modo a adequar o Direito aos tempos atuais. Tendo em vista que seu maior objetivo é a organização social. Entretanto, Rodrigo da Cunha Pereira observa:

Com a alteração desses princípios estruturadores, que são a base e o esteio da organização jurídica de família, a Constituição da República revolveu mais de uma centena de artigos do Código Civil brasileiro. Mas isso, por si só, não solucionou o descompasso da lei brasileira com a nossa realidade social. Faz-se necessário, ainda, uma adequação do ordenamento jurídico ás novas representações sociais de família. (PEREIRA, 2001. p. 31).

Contudo, ainda se tem muito a evoluir. O Código Civil que entrou em vigor em 2003 já não é mais novo e as evoluções sociais, cercadas de garantias constitucionais num Estado Democrático de Direito, atribuem ao povo maior liberalidade, assim, abriu-se um leque de opiniões e de opções do que se entende viver com dignidade.

Nesse sentido, Rauls (2010, p. 202) considera que “(…) numa democracia constitucional a concepção pública de justiça deveria ser, tanto quanto possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas à controvérsia”.

Dessa forma, esse Estado que a partir de 1988 foi considerado garantista deve interceder por essas pessoas atribuindo a elas dignidade mediante os direitos da dignidade humana e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e assim, permitindo que essas sejam felizes, valendo-se do ativismo judicial como maior ferramenta para tanto, afinal, a partir do Código Civil de 2002, o que se considera para reconhecer uma estrutura familiar é o afeto dentre os seus membros.

3.1 O princípio da dignidade humana

O princípio da dignidade humana foi inserido no ordenamento jurídico com a CR/88, sendo um dos princípios basilar da democracia que possibilitou a quebra do paradigma da família matrimonializada e tradicional.

Isso porque, o princípio constitucional da dignidade, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal, “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Afasta a noção de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual” (MORAES, 2011.p 24.).

Sendo assim, as pessoas podem usufruir dos seus direitos, sobretudo o direito a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, de acordo com seus interesses e convicções individuas. Tais convicções não podem ser suprimidas em detrimento do interesse coletivo.

Contudo, uma vez que o princípio da dignidade humana confere ao indivíduo o usufruto de seus direitos de acordo com suas convicções pessoais, havendo afetividade entre as pessoas, essas têm o direito de constituir uma família dispersa de paradigmas. Sendo a família poliparental um dos modelos de família. Nesse sentido considera que:

Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram, por opção ou circunstância da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana (…). Onde houver numa relação ou comunidade, unida por laços de afetividade, sendo este sua causa originária e final, haverá família. (LÔBO, 2002 p. 46-47).

Da mesma forma que a família não pode ser limitada pela identidade do sexo, como brilhantemente decidiu o STF na ADI 4277, não é justificável rejeitar o reconhecimento do instituto familiar movido pelo poliafeto, sob pena de severa supressão de direitos individuais daqueles que optarem por esse modelo familiar.

4. O modelo de família poliparental

A união poliafetiva é a relação amorosa que envolve mais de duas pessoas com o intuito comum de constituir família.

Essa união pode ser estruturada através das famílias paralelas ou das famílias poliparentais. As famílias paralelas são as que formam dois ou mais núcleos familiares conjugais distintos; famílias poliparentais formam um único núcleo familiar conjugal, com mais de duas pessoas.

Contudo, uma vez que o Judiciário já apreciou diversos casos de família paralela, admitindo na minoria das vezes essa modalidade de família, limito este trabalho as famílias poliparentais das mais variadas espécies (dois homens e uma mulher, duas mulheres e um homem, duas mulheres e dois homens, etc) por entender que o reconhecimento da constitucionalidade dessa estrutura familiar é o primeiro passo para legitimá-la. A existência das famílias poliparentais ainda esta muito mais escondida que as famílias paralelas na jurisprudência.

Na apelação cível nº. 19048/2013 (728-90.2007.8.10.0115), o TJMA entendeu pela constitucionalidade das famílias paralelas. O relator Lourival Serejo assinalou que “entre as novas formas de famílias hoje existentes despontam-se as famílias paralelas. Se a lei lhes nega proteção, a Justiça não pode ficar alheia aos seus clamores. O enunciado normativo não encerra, em si, a Justiça que se busca. Não se pode deixar ao desamparo uma família que se forma ao longo de muitos anos, principalmente existindo filhos”. O brilhante entendimento do relator deve ser estendido às famílias poliparentais uma vez que essas são discriminadas por motivos similares às discriminações sofridas pelas famílias paralelas: o poliafeto, isto é, uma relação que se difere da monogamia.

4.1 Identidade de gênero

Primeiramente, importante se faz esclarecer o que se entende por identidade de gênero. Gênero é um conceito interligado ao sexo biológico, quais sejam masculino e feminino (GROSSI, 2008). Entretanto, os papéis do gênero são todas as condutas atribuídas a determinado gênero, essas atribuições irão variar de acordo com a cultura da sociedade em que o indivíduo é inserido e, por sua vez, vão se modificando ao longo do tempo. Miriam Grossi ainda completa:

(…) penso que, em linhas gerais, gênero é uma categoria usada para pensar as relações sociais que envolvem homens e mulheres, relações historicamente determinadas e expressas pelos diferentes discursos sociais sobre a diferença sexual. (GrossI, 2008. p.5)

Já a identidade de gênero é o sentimento que cada indivíduo traz dentro de si, trata-se de um conjunto de convicções subjetivas pelas quais se considera o que seria masculino e o que seria feminino. Ou seja, a identidade de gênero é o que cada indivíduo acredita que seria papel do seu gênero.

Assim, a identidade de gênero pertence ao psicológico de cada um e determina a que gênero as pessoas pertencem, é a certeza que cada pessoa tem sobre si, de qual gênero pertence.

Essas crenças, entretanto, podem oscilar. Pode um homem se enxergar com o gênero masculino e apenas em alguns pontos, se atribuir papeis comuns ao sexo oposto. Recorro ao exemplo do marido que não trabalha para se dedicar ao lar e aos filhos. Socialmente falando, este papel já pertenceu às mulheres, atualmente é incomum a mulher que se dedica exclusivamente ao lar. Entretanto, é perfeitamente possível que o marido acredite que este papel pertence ao seu gênero, ainda que fosse comum, nos dias atuais, que as mulheres se excluíssem do mercado de trabalho para se dedicar ao lar.

Em contrapartida, também é possível que uma pessoa que pertence a determinado gênero masculino tenha a consciência de que todos os seus papeis são do gênero oposto, havendo um confronto entre o gênero biológico e o gênero psicológico (identidade de gênero).

Assim, a explicação para a existência das famílias poliparentais é a identidade de gênero das pessoas que a compõe. Essas pessoas acreditam num complexo de ideias que diverge da maior parte da população, tal complexo de ideias forma a identidade de gênero de cada uma destas pessoas. Dessa forma, essas pessoas acreditam que determinados papeis cabem a elas.

Pegamos como exemplo a família poliândrica, em que mais de um marido gere economicamente a família, em contrapartida, a mulher tem deveres sexuais com todos os maridos. Tanto a mulher quanto os maridos acreditam nos deveres ao qual se prestam, crendo que realmente aqueles são papeis do seu gênero. Estranho para essas pessoas, muitas vezes, é a família que conta apenas com um marido e uma mulher, assim os deveres econômicos e sexuais são compartilhados apenas entre os dois.

Na mesma ótica se encontra a família poligâmica, nessa o marido tem mais de uma mulher. Este homem gere economicamente a família e tem várias mulheres com as quais compartilha amor e companheirismo. Estas acreditam que são papeis delas compartilhar o marido com as demais. Ainda que muitas vezes a convivência entre as mesmas se torne difícil, elas toleram porque acreditam que aquele papel de esposa deve ser compartilhado.

Dessa forma, desrespeitar o gênero psicológico de uma pessoa, isto é, a identidade de gênero, pode eclodir em graves problemas. Sobretudo pelo fato da formação psicológica ser uma longa construção. Muitas vezes a própria pessoa ao se deparar que tal formação se diverge do que é comum, tenta resistir aos seus próprios conceitos e princípios para não sofrer as penalidades impostas socialmente àqueles que são diferentes.

Entretanto, nem a própria pessoa consegue mudar suas convicções para se adequar ao que a sociedade impõe tampouco o Estado conseguirá mudar. A não aceitação das famílias poliparentais, portanto, só pode gerar sofrimento, discriminação e preconceito, haja vista que não é possível mudar as convicções de alguém se não for possível, de fato, convencê-la de que suas crenças são erradas – o que não é o caso da identidade de gênero.

4.2 Exemplos de famílias poliparentais

Sem a intenção de se esgotar as diversas modalidades de famílias poliparentais, mas com o intuito de ilustrar esse modelo familiar bem como demonstrar a benignidade do poliafeto, irei abordar a poliandria e a poligamia. Ademais, resta esclarecer que os institutos citados são modelos de casamento e, conforme já mencionado, a bigamia no Brasil não é permitida, ainda que de modo antiquado. Contudo, o que se defende é o reconhecimento da união estável pelo Judiciário entre as pessoas que compõe a família poliparental para, posteriormente, o legislador perceber que o art. 235 do CP há um bom tempo se tornou incompatível com a realidade social e revogá-lo.

Em algumas comunidades localizadas na região do Himalaia (compartilhada pela Índia, Nepal e Tibete) e nas Ilhas Marquesas – Ilhas no Pacífico Sul, é tradicional a união poliândrica; entende-se por poliandria a relação afetiva entre uma pessoa do gênero feminino e duas ou mais pessoas do gênero masculino, em que a mulher tem direitos sexuais compartilhados com seus maridos e esses, em contrapartida, têm deveres econômicos, para com a esposa. Há sociedades que acreditam que cada marido deve ter a sua casa, outras defendem o lar comum entre eles.

As causas histórico-culturais que culminaram nesse tipo de família são inúmeras, mas são singulares em cada sociedade que adota a legalidade dessa relação. Um dos motivos mais apontados é a escassez de terras, isto é, propriedades imóveis que representavam – e ainda representam – status, assim, é comum vários irmãos se casarem com a mesma mulher, garantindo a indivisibilidade da propriedade, haja vista que dividir o imóvel entre os irmãos constituiriam vários imóveis de pequeno valor econômico e social.

Outro fator gerador da poliandria é a baixa produtividade rural, visando às limitações da terra e da mão-de-obra, como não vai gerar boas rendas, às vezes é preciso dois maridos para garantir uma vida confortável à mesma mulher.

A pequena população de mulheres, tendo em vista o grande número de homens, é fator geográfico que muito contribui para a poliandria. Tais raízes culminam na relação de paternidade divisível para os filhos advindos da relação poliândrica o que, segundo pesquisas, garantem filhos mais educados, com uma estrutura familiar mais completa.

Outro exemplo de família poliparental seria a poligamia, que é uma estrutura familiar mais comum que a poliandria, mas não menos criticada. A poligamia era muito comum em âmbito internacional, basta analisar os vestígios das primeiras estruturas familiares existentes no mundo.

No Ocidente foi a expansão do Cristianismo que expulsou dos costumes a família poliparental, baseando-se na estrutura familiar bíblica de Adão e Eva e na estrutura Greco-Romana.

Ocorre que ao ler os textos bíblicos do velho testamento é possível observar várias passagens evidenciando a existência da estrutura familiar poliparental. Tais passagens tornam incoerente o argumento de que a estrutura familiar correta perante aos olhos de Deus é a família constituída por um homem e uma mulher, pois nas passagens bíblicas é possível observar que várias pessoas que viveram cronologicamente após Adão e Eva mantinham a poligamia. “Chegando a Hedron, Davi tomou ainda mais concubinas e esposas de Jerusalém e mais filhos e filhas nasceram para Davi” (SAMUEL, 1980, 5:13).

Em contrapartida, no Oriente, sobretudo na África, o Alcorão, que é a base religiosa, política e jurídica dos países que seguem a religião Islâmica. Os países de cultura islâmica defendem a estrutura familiar poligâmica:

“Casai com mulheres de sua escolha, duas ou três ou quatro vezes; mas se temerdes que não sereis capazes de conviver juntamente com elas, então casai somente com uma” (ALCORÃO, 4:13)

Atualmente, mais de cinquenta países aceitam a poligamia, dentre eles não só os que aderem a religião Islâmica. Santo Agostinho e Martinho Lutero não repreenderam a prática da poligamia, segundo eles, não contradiz a escritura sagrada. Em 726 d.C., o Papa Gregório II demonstrou certa simpatia às famílias poligâmicas mediante determina situação “(..) quando um homem tem uma esposa doente, incapaz das funções conjugais, pode tomar uma segunda, contando que tenha cuidado na primeira” (TARAVELA, 2002, p.9). Dessa forma, há seguidores e estudiosos do cristianismo que não encontram fundamentos religiosos para a vedação da família poliparental. Outras religiões como o Budismo, não repreendem nem incentivam a poligamia, mas a aceita desde que tal laço familiar não prejudique a terceiros e siga às regras morais religiosas.

Os cristãos que não concordam com a família poligâmica, sustentam sua crença dizendo que antes de Cristo as pessoas não tinham esclarecimentos religiosos, por isso várias personagens no velho testamento praticavam a poligamia. Salientam os críticos do poliafeto que tal a prática não é correta, apontando fundamentos morais e religiosos (mas não jurídicos) que fundamentam a opinião de que compartilham “o ciúme que as irmãs Raquel e Leia tinham do marido Jacó causou problemas familiares a elas, aos 30 filhos e ao patriarca” (GÊNESIS, 1980, 30.1-24; 37.1-4; 17-36).

Outros afirmam que a prática da poligamia é contrária à igualdade de gêneros, porque inferioriza a mulher em relação ao homem. Porém, temos as sociedades que defendem a poliandria, sendo assim tal argumento não merece prosperar.

 

5. A constitucionalidade da família poliparental no Brasil

Em meados do ano de 2012, foi nacionalmente divulgada a noticia que um homem e duas mulheres deram publicidade a união poliafetiva que mantinham. Tal publicidade ocorreu por meio de escritura publica, lavrada no Cartório de Notas e Protestos da cidade de Tupã/SP, cujo objetivo era atribuir a essa relação as mesmas regras atribuídas a um casamento. A divulgação da notícia gerou uma discussão entre os especialistas em Direito de Família. Alguns, como Maria Berenice Dias, concluíram que não há irregularidades nas famílias poliparentais, outros concluíram que a família poliparental carece de fundamentos legais para existir, como Regina Beatriz.

Apesar desse trio (conhecido como trio de Tupã) serem os primeiros a declarar, através de instrumento publico, a constituição de uma família poliparental, tal pratica não é novidade na sociedade brasileira. Basta analisar, brevemente, os casos em que o STJ analisa pedidos de rateio do beneficio previdenciário em razão de morte do companheiro em comum das demandantes.

Os argumentos mais utilizados para fundamentar a ilegalidade das relações poliafetivas, incluindo a ilustre Regina Beatriz Tavares da Silva, acima citada, são argumentos religiosos e morais afirmando que tal relação se compara com a orgia. Quanto a esses, não podemos nos esquecer de que, apesar do preâmbulo constitucional citar Deus, o Estado brasileiro é laico, garantindo, inclusive, a liberdade de crença (art. 5° VI); quanto aos princípios morais, desde que a união poliparental seja movida pela boa conduta e pelos bons costumes, não há que se falar em imoralidade. Juridicamente tais fundamentos são fracos e evasivos.

Paulo Lôbo afirma que o artigo 226°, caput, da CR/88, ao não repetir a redação do artigo 175 da CF/67-69 que condicionava a proteção da família à consagração ao casamento — dito dispositivo aduzia que “a família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção (…)” e inserir no ordenamento jurídico que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, gerou, consequentemente, o desaparecimento da cláusula de exclusão, deixando o Texto Maior de proteger apenas um tipo de família para se proteger toda e qualquer família (LÔBO. 2008, p. 60-61). Pois, conforme Carlos Cavalcanti de Albuquerque Neto, “não cabe ao Estado predeterminar qual a entidade familiar que se pode constituir, mas apenas, declarar a sua formação, outorgando-lhe a proteção social, por considerá-la base da sociedade” (CAVALCANTI; ALBUQUERQUE NETO. 2002, p. 150).

Entendimento em sentido contrário ou que interprete o rol de famílias descritas da CR/88 como taxativo configuraria o que o ministro Roberto Barroso chamou de “interpretação retrospectiva”. Que consiste na interpretação de um novo texto normativo da forma mais parecida possível com o antigo, contrariando a lógica segundo a qual a mudança do texto denotaria um desejo de mudança da norma jurídica dele decorrente (BARROSO, 2006, p. 71).

A Suprema Corte brasileira, ao julgar a Ação de Direta de Inconstitucionalidade 4277, em 05 de maio de 2011, brilhantemente decidiu que não deve se limitar o reconhecimento de uma família pela igualdade de sexo entre seus membros. Da mesma forma não é plausível limitar o reconhecimento de uma família pela pluralidade de membros que irá compor essa união.

O Relator na ADI 4277 – ministro Ayres Brito, inicia sua fundamentação dizendo que a sexualidade não é um fator de desigualdade jurídica, ou, pelo menos, não deveria ser. Coloca o direito à preferência sexual como direta emanação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Ainda acrescenta que a liberdade sexual é um direito potestativo (aquele que não admite contestação nem depende de comportamento de terceiros), pois é fruto de liberdades individuais tais como o direito à intimidade e à vida privada. Cita o art. 226 da Constituição Federal, que assegura que a família terá a proteção do Estado e afirma que o papel do estado em uma sociedade democrática é o de assegurar o desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um realize os seus projetos pessoais lícitos.

Pois bem, analisemos. Não seria a família poliparental uma opção de estrutura familiar, protegida pelas garantias constitucionais supracitadas? Sim. O reconhecimento da união estável poliafetiva, nada mais é que reconhecer tais direitos. Desde que seja uma união movida pela boa conduta social e que não prejudique a terceiros, esta união é lícita. Como reconhecido pelo ministro Brito, trata-se de direito potestativo, não cabendo a terceiros contestar esse direito.

Em seu voto, o Ministro Ayres Brito, apontou a consequência do não reconhecimento pelo Estado da identidade do indivíduo: discriminação, que gerará ódio materializado em violência física, moral e psicológica.

O Ministro Luiz Fux fundamenta seu voto com sábios argumentos, observa que o Estado não fica obrigado, apenas, a abster-se da violação dos direitos fundamentais, como também a atuar positivamente na proteção de seus titulares diante de lesões e ameaças provindas de terceiros, seja no exercício da atividade legislativa, administrativa ou jurisdicional.

Observa, ainda, que o que constitui uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável, além do amor e de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comunhão.

A posição do Estado quanto às famílias poliparentais ainda é inerte. Dessa forma, o Judiciário bem como as demais esferas de poder estatal devem deixar de se abster quanto à existência dessa estrutura familiar. O Estado tem o dever de atuar, protegendo essas famílias, fazendo valer as garantias que a própria Carta Magna lhes confere e oportunizando que as pessoas optem por esse estilo de vida sem medo de preconceitos e críticas.

Não respeitar a identidade do outro é sinônimo de não reconhecer o direito do outro à intimidade, à liberdade, à vida privada, à honra, tão pouco a igualdade e a dignidade.

A Ministra Carmem Lúcia em seu voto ponderou que a conquista de direitos é tão difícil quanto curiosa (…) e parece uma obviedade, quase que uma banalidade, para as gerações que os vivem como realidades conquistadas e consolidadas. Considera ainda que definir a união estável entre um homem e uma mulher e excluir outras opções contrariam preceitos constitucionais fundamentais, como os princípios de liberdade, da intimidade, da igualdade e da proibição da discriminação (BARROSO, 2006). Para ser digno há que ser livre, prossegue a ministra, e a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os seus aspectos, incluindo o da liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem. O que é indigno leva ao sofrimento socialmente exposto, e esse sofrimento abrigado pelo Estado é antidemocrático.

O art. 3° da Constituição da República inclui nos objetivos fundamentais da mesma promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ocorre que não se vê o empenho do Estado em cumprir tal objetivo, tendo em vista que as pessoas enxergam a liberdade com temor, pois se realmente revelarem sua identidade, irão sofrer diante da discriminação que lhes aguarda. Preferindo se reprimir quanto aos seus direitos de dignidade, de liberdade, de intimidade, de vida privada, da igualdade etc. Assim, o próprio Estado contribui para a discriminação, uma vez que não reconhece a união poliparental.

É inegável que a união poliparental existe e continuará existindo, as pessoas vivem em busca de seus direitos na constante luta pela cidadania. Atualmente, a estrutura de família poliparental já tem sido notada socialmente, porém, concomitantemente, vem crescendo uma corrente ideológica que repudia tal estrutura familiar; líderes cristãos são os maiores adeptos desta ideologia.

Na década de 30 era inimaginável a conquista obtida pelo movimento gay de reconhecimento das uniões homoafetivas e daqui a algumas décadas será algo comum, pois é nítido o direito de duas pessoas do mesmo sexo se apaixonarem e poder revelar sua identidade à sociedade. Não precisamos permitir que o mesmo aconteça com as uniões poliafetivas, somente as reconhecendo após as pessoas que optem por esse estilo de vida tomarem coragem por revelar sua identidade e lutarem pela conquista do reconhecimento.

Afinal, se for assim, estaremos provando que em nada evoluímos. Atualmente, para muitas pessoas é inimaginável tal reconhecimento, mas se tornará algo comum após certo lapso temporal, haja vista que tal prática já é comum em diversas regiões do Brasil, como se sabe. As pessoas não devem temer à revelação de sua identidade, ao contrário, pois têm expressamente direito à liberdade e a dignidade, portanto, devem se orgulhar da coragem de revelá-la.

O Ministro Joaquim Barbosa considerou, na ADI em análise, que houve um descompasso entre o mundo real e o Direito, que não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças não só no Brasil, mas em escala global. Tal descompasso insta em se repetir, em relação às famílias poliparentais.

6. A família poliparental no âmbito internacional

Analisando o paradigma de família em âmbito internacional é possível compreender que o surgimento de diversos modelos contemporâneos de família vem se sobrepondo às famílias tradicionais, ainda que cada cultura tenha suas peculiaridades. Como já demonstrado, a publicidade cultural provocada por diversos acontecimentos ao longo da história apresentou às pessoas diferentes maneiras de viver e encorajou a serem diferentes. Contudo, vários Estados soberanos vêm reconhecendo o direito à diferença.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada Pacto São José da Costa Rica – Tratado constitutivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos -, cujo objetivo é consolidar entre os países da América a justiça social e a liberdade pessoal com fulcro no respeito aos Direitos Humanos, ampliou a efetividade desses direitos inerentes ao homem.

O Brasil ratificou ao tratado em 1992, pelo Decreto 678, alçando o status de norma supralegal na ADI 1480/2001. O Supremo Tribunal Federal interpretando o conflito normativo do tratado com normas de natureza ordinária, entendeu que a norma emanada do tratado em matéria de Direitos Humanos está em um patamar superior a todas as normas ordinárias do ordenamento jurídico interno brasileiro. Esse fato gera uma consequência curiosa, pois a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o tribunal competente para interpretar as normas do tratado, e como consequência, as interpretações daquele tribunal acabam influenciando a aplicação normativa no ordenamento jurídico interno brasileiro. É importante pontuar que essa questão da identidade de gênero é um tema que já foi levado à discussão daquele tribunal internacional, muito antes do surgimento dessa temática no ordenamento interno brasileiro ou nos tribunais nacionais. As demandas são levadas por pessoas de nacionalidades distintas, o que prova que as quebras de paradigma dos modelos familiares tradicionais ocorrem em escala internacional.

É inegável, também, que ao levar tais demandas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, os autores revelam a insatisfação por ter de optar entre coibir sua identidade ou sofrer o preconceito por ser diferente daquilo que é imposto socialmente, apostando no Judiciário como a única esperança de viverem em paz e seguros.

Nesta senda, o conceito de família, cada vez mais, ganha amplitude e sinais de que tal extensão será cada vez mais célere. Para que se faça justiça, é imprescindível reconhecer os direitos humanos e efetivá-los, ainda que parte da sociedade não concorde, pois a opinião é algo pessoal, mas, apesar disso, o reconhecimento dos direitos inerentes ao homem alcança o âmbito de um dever social. Assim, o Direito deve ao cidadão a legitimação dos seus direitos, atribuindo a esses, consequentemente, uma vida digna.

6.1 Caso “Atala Riffo e filhas vs. Chile”

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2012) foi provocada para se posicionar em relação ao “caso Atala Riffo e filhas” que se relaciona com a responsabilidade internacional do Estado do Chile pela atitude discriminatória e pela interferência arbitrária na vida privada e familiar que havia sofrido a senhora Karen Atala Riffo devido a sua orientação sexual em um processo judicial que resultou na perda da guarda de suas três filhas.

Em novembro de 2002, a senhora Emma, companheira sentimental de Atala, começou a conviver na mesma casa com ela, suas três filhas e seu filho maior que adveio de um matrimônio anterior.

Em janeiro de 2003, o pai das meninas ajuizou uma ação requerendo a guarda das mesmas, sob as alegações de que o desenvolvimento físico e emocional das meninas estava em sério perigo e que a senhora Atala não estava capacitada pera cuidar e zelar pelas meninas devido sua nova opção sexual somada a uma convivência lésbica com outra mulher estaria produzindo consequências danosas para o desenvolvimento das menores. Alegou, ainda, que o incentivo dentro do ordenamento jurídico para casais do mesmo sexo irá desnaturalizar o sentido do casal, homem mulher, e, portanto, altera o sentido natural da família, o que afeta os valores fundamentais da família como núcleo da sociedade.

A senhora Atala apresentou contestação dizendo que a leitura das imputações feitas a ela e como descreveu seu relacionamento familiar e sua vida privada lhe causou tristeza. Disse ainda que as alegações apresentadas a comoveram por sua agressividade, pelo prejuízo, pela discriminação e pelo desconhecimento ao direito à identidade sexual e pela distorção dos fatos que expôs. Por último, ainda alegou o desprezo ao superior interesse de suas filhas e que as alegações que fez sobre sua identidade sexual nada tem a ver com sua função de mãe.

A Comissão, primeiramente, ponderou o desrespeito ao art. 11 da Convenção, que dispõe o direito à vida privada, o qual abarca várias esferas da autonomia e da intimidade, dentre elas a identidade e as relações sexuais e pessoais. Reconhece a Corte que a orientação sexual da autora em nada afeta o exercício do pátrio poder.

Prosseguindo a análise do caso, a Corte considera um dos argumentos centrais para a Justiça: a proteção da família, prevista no art. 17 da Convenção Interamericana de Justiça, segundo a qual insere a obrigação estatal de dispor e interferir diretamente na proteção dos filhos e do núcleo familiar. Mediante sua construção de opinião, a Corte cita os art. 11.2 e 17.1 da Convenção Interamericana, que positivam o direito de receber a proteção contra-acusações ilegais relativas à sua família, o que nada mais é que o direito a proteção da família. Sendo assim, a Sra. Atala também tem direito a receber a proteção familiar estatal. Declara, portanto, a Corte que o Chile violou os art. 11.2 e 17.1 do Pacto São José da Costa Rica.

Em seguida a Corte faz a brilhante consideração: “diversos órgãos de direitos humanos criados por tratados, vem indicando que não existe um modelo único de família, este pode variar” (tradução nossa) (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p.55), cita jurisprudência de outros Tribunais Internacionais que se posicionaram nesse sentido, tais como o tribunal Europeu de Direitos Humanos.

A Corte considera demais direitos como o direito à igualdade e a proibição da discriminação, direito a vida privada e as garantias judiciais. Dispõe, ainda, sobre a obrigação da sociedade em respeitar as garantias fundamentais com relação ao outro e esclarece que houve uma evolução na concepção do conceito de família, e que essas devem ser reconhecidas, desde que respeitem a Convenção.

Desse modo, a própria Corte Interamericana de Justiça, em sua ilustre jurisprudência, reconhece a legalidade dos variados modelos de família surgidos contemporaneamente que estão de acordo com o Pacto São José da Costa Rica, formando, assim, uma lacuna, haja vista que não elabora um rol para enumerá-los.

O modelo de família poliparental mais uma vez é nitidamente reconhecido, ainda que implicitamente, pois se encaixa nos princípios contidos nesse Tratado, dentre eles os considerados pela Corte no caso Atala Riffo e filhas vs. Chile.

A identidade de gênero nada mais é que um direito potestativo, que diz respeito somente ao indivíduo dentre sua intimidade e autonomia de escolha. Uma família que preza pelo respeito, pela sinceridade e pelo amor, como tantas famílias poliparentais, não pode ser desprezada, pois a estas, o Direito deve atribuir a proteção familiar.

O Código Civil brasileiro preza pela preservação da família. Entretanto, o Poder Judiciário interno vem desrespeitando a legislação vinculante bem como as demais fontes do Direito, dando margem ao preconceito e a indignidade das pessoas que optam por um modelo familiar diverso dos modelos aceitos socialmente. Ao tentar desconstituir essas famílias e as desestruturando, como fez a Suprema Corte brasileira ao proferir uma sentença de repercussão geral que negou o rateio da pensão por morte previdenciária entre a mulher casada com o falecido e a companheira do mesmo. Decisão, esta, que possibilita a credibilidade popular de “positivação” e apoio por parte do Poder Judiciário às críticas à família poliparental, ao preconceito e ao desrespeito aos demais direitos fundamentais dessas pessoas, que foram aniquilados pelo Poder Soberano que dispõe o Estado Democrático de Direito.

Os integrantes das famílias poliparentais, no cenário atual, são cobrados excessivamente pelos seus deveres e pelo disfarce da sua identidade, mas não dispõe de nenhum direito sob a ótica social. As garantias constitucionais bem como aquelas previstas nos Tratados internacionais não são a elas, efetivamente, garantidas.

O Poder Judiciário brasileiro, dessa forma, vem dilapidando o ativismo judicial, ao passo que em algumas decisões invés de utilizar sua autonomia para efetivar socialmente os direitos fundamentais, opta por coibi-los, se perdendo, os julgadores, em suas próprias convicções e em fundamentos políticos, enquanto deveriam se preocupar, apenas, com sua responsabilidade social na busca pela justiça. O Poder Judiciário tem o dever de utilizar a “Ditadura do Judiciário” para suprir a omissão legislativa no que tange a supressão de direitos dos integrantes das famílias poliparentais, utilizando do princípio da máxima efetividade para tanto.

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para valer intenções, mas para revelar realidades e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar novas realidades. (ARENDT, 2007, p. 212).

 

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado deve se atentar à efetivação das normas por ele positivadas, se tal cumprimento não se faz pelo Poder Legislativo, o Poder Judiciário deve suprir tais lacunas diante das demandas que diariamente batem a sua porta.

Atualmente, o ativismo judiciário confere ao Poder Judiciário, tanto ao Juízo “a quo” quanto ao Juízo “ad quem”, a possibilidade de arbitrar a máxima efetividade dos direitos fundamentais positivados. Entretanto, o Estado, incorretamente, ainda se prende nas convicções políticas, morais e religiosas presentes em grande parte da sociedade, o que provoca a efetivação dos direitos de alguns e a supressão dos direitos de outros, variando de acordo com a calamidade social que a demanda irá causar.

Sendo assim, o Estado que se afirma, a todo o momento, democrático, se demonstra desigual e opressor em diversos momentos em que lhe era oportuno exercer a democracia, de fato, agindo de maneira cruel e indiferente com aqueles cuja sua vontade seja compatível com a minoria.

A sociedade tampouco o Estado, ainda que compartilhe de opinião majoritária, não tem o poder de impor regras de conduta que delimitem e/ou oprimam a identidade de gênero do indivíduo. Ademais, utilizar do tripé do Direito (fato, valor e norma) para justificar tais discriminações, interpretando as garantias à luz da Constituição da República de maneira opressora, é monopolizar a sociedade, característica essa contrária a democracia.

Entretanto, as justificativas religiosas e morais são passíveis de sustentar os argumentos daqueles que são contra ao reconhecimento da família poliparental, afinal a liberdade de pensamento é uma das garantias constitucionais. Ocorre que o Estado jamais pode se valer de tais justificativas subjetivas para apurar o reconhecimento desse modelo familiar devido a todas as questões legais aqui já elencadas, sobretudo o princípio da dignidade humana e o princípio da afetividade.

Dessa forma, os ordenamentos jurídicos interno e internacional demonstram, implicitamente, que nada impede o reconhecimento das famílias poliparentais, sendo estas pautadas, equivocadamente, com muito mais deveres que direitos.

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NOTAS

[i] Este trabalho é vinculado à linha de pesquisa: “Direito Internacional dos Direitos Humanos” do Grupo de Estudos em Direito Internacional da Newton Paiva – GEDINP.

[ii] Graduanda do curso de Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva, integrante do GEDINP e bolsista da FUNADESP – geysaparreira.gp@gmail.com.

[iii] Doutor em Filosofia pela UFMG, professor do Centro Universitário Newton Paiva e colaborador desta Pesquisa – carlosatmagalhaes@gmail.com

[iv] Mestre em Direito Internacional pela UFMG, MBA em Direito Tributário FGV/RJ, coordenador do GEDINP (Grupo de Estudos em Direito Internacional da Newton Paiva) e desta pesquisa, Juiz Federal – williamkenaoki@gmail.com

[v] Doutoranda em Estudos Linguísticos pela UFMG, pesquisadora do CNPq e colaboradora desta pesquisa – abreuaoki.raquel@gmail.com