INC 04 05 UMA REFLEXÃO PRÁTICA A RESPEITO DA “INJUSTIÇA EXTREMA”: O DIREITO É A REALIDADE CUJO SENTIDO É SERVIR À JUSTIÇA?

Beatriz Bär Infante Duarte[1]

Gleison Junior Pereira da Silva[2]

Rafaela Cristina Alves Pereira[3]

Felipe Amore Salles Santiago[4]

Cristian Kiefer da Silva[5]

RESUMO: Este artigo faz uma análise substancial acerca da fundamentação do direito em Gustav Radbruch, procurando destacar, dentre outros aspectos, a injustiça extrema. O grande jurista alemão há muito já criticava a inconsistência que advém da falta de uma concepção adequada de justiça, quando dizia que a disciplina da vida social não pode ficar entregue, como é óbvio, as diversas opiniões dos homens que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses homens terem ou poderem ter opiniões e crença opostas, é que a vida social tem necessariamente de ser disciplinada duma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos. O problema da falta de justiça não aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida. De tal modo, o conceito de direito que serve de base à prática jurídica é postulado como evidente, e, em casos comuns, mesmo quando sua solução é contestável, considera-se desnecessário fazer reflexões acerca de tal conceito. O mesmo não acontece nos casos incomuns. Nestes, o conceito de direito que existe por trás de toda prática jurídica vem à luz e torna-se um problema premente.

PALAVRA-CHAVE: Direito; legitimidade; injustiça extrema.

ABSTRACT: This article makes a substantial analysis on the grounds of the law in Gustav Radbruch, seeking to highlight, among other things, the extreme injustice. The great German jurist had long criticized the inconsistency that arises from the lack of an adequate conception of justice, when he said that the discipline of social life can not be left as obvious, the various opinions of men who are in their reciprocal relationships. Because these men have or may have opposing opinions and belief, is that social life must necessarily be of a uniformly disciplined by a force that is placed above individuals. The problem of lack of justice not only afflicts the legal system. Other systems have social injustices, but it is wrong, anywhere, to destroy foundations when you can not propose a better or more solid base. In this way, the concept of law that underpins the legal practice is postulated as obvious, and ordinary cases, even when its solution is questionable, it is unnecessary to make reflections on the concept. The same is not true in unusual cases. In these, the concept of law that exists behind all legal practice comes to light and becomes a pressing problem.

KEYWORD: Law; Legitimacy; Extreme injustice.

 

1 INTRODUÇÃO

Em meados do século XX, devido à experiência com o positivismo nazista, Gustav Radbruch desenvolveu uma teoria de proteção aos direitos fundamentais que levava em conta a ausência, pelo positivismo de então, de uma percepção de valores jurídicos que sustentassem o direito positivo em um sentido não dependente dos poderes (governos) constituídos eventualmente totalitários nem afeito ao dogma da unidade do ordenamento de modo prioritário.

A tão referida fórmula radbruchiana foi criada em 1946, na tentativa de superar a separação entre Direito e Moral, defendida pelo positivismo e que, em sua concepção, teria propiciado ao regime nazista cometer seus atos de barbárie dentro da legalidade. Nesse sentido, destaca-se que o jusfilósofo alemão jamais nomeou sua construção teórica de fórmula (este foi um trabalho da doutrina e da jurisprudência que, posteriormente, ocuparam-­se de sua aplicação).

A publicação do texto Injustiça Legal e Direito Supralegal causou grande polêmica em sua época, principalmente porque evidenciava uma considerável modificação de posicionamento do autor, que antes da Guerra se dizia adepto do positivismo e, depois, passou a criticá-Io ferrenhamente, dentro de um contexto que ainda era predominantemente positivista.

Pois bem, impressionado com as atrocidades cometidas pelos nazistas, Gustav Radbruch denuncia o positivismo como culpado pela situação de arbítrio implantada na Alemanha durante o nazismo (Gesetz und Recht, 1947), e busca uma fórmula teórica de compatibilização entre a positividade e a justiça; em Injustiça Legal e Direito Supralegal (Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht, 1946), depois de reconhecer que o positivismo, com sua afirmação de que “lei é lei” deixou os juristas alemães sem defesa contra leis arbitrárias e criminosas.

Diante disso, Gustav Radbruch passou a compreender na segunda fase de seu pensamento (após a experiência nazista), que o mundo dos valores jurídicos, mesmo no âmbito de uma visão neokantiana, é voltado, em última análise, para a concreção do direito na sociedade, conferindo aos homens aquilo que eles necessitam como bens existenciais, afeitos à vida em sua expressão comum, e não a fins imaginários ou utópicos (como no pensamento jurídico nazista).

Porém, o positivismo, sintetizado sob a fórmula “a lei é a lei”, deixou os juristas e a magistratura da Alemanha indefesos diante de monstruosas crueldades e arbitrariedades, por terem sido praticadas pelos detentores do poder daquela época sob a forma de lei, assim como diante da subsequente necessidade de correção jurídica das consequências de tais ilícitos, a propósito da qual continuou a apresentar sempre novas dificuldades. Nesse contexto, depois de um século de positivismo jurídico, permanece a ideia de um direito supralegal, no qual as leis positivas podem ser consideradas injustas.

Com isso, é possível formular alguns questionamentos relevantes que direcionam a presente pesquisa, quais sejam: até que ponto pode-se afirmar que existe efetivamente justiça, quando se impõe considerar inválidas regras positivas? Ou mesmo, até que ponto pode ser exigível a segurança jurídica quando ela imponha que leis devam ser reconhecidas como válidas, apesar da injustiça de seu conteúdo? Ou ainda, é possível compreender sobre que bases se constituía a autoridade do direito e a que influencias políticas ele estava sujeito? Outrossim, até que ponto as medidas tomadas pela autoridade nazista alcançavam realmente legitimidade e eram respeitadas pelos cidadãos? Seriam elas válidas e de fato úteis? Quais as suas limitações?

2 O PROBLEMA ACERCA DO POSITIVISMO JURÍDICO

De fato, por toda a parte se levantava um combate contra o positivismo a partir da ideia de que há “leis que não são Direito e que há Direito acima das leis”. Não há dúvidas de que naquela época o positivismo jurídico com o seu lema “acima de tudo deve-se cumprir as leis” reinou de modo absoluto entre os juristas. Na visão de Gustav Radbruch:

O positivismo deixou […] desarmados os juristas alemães ante as leis de conteúdo arbitrário e injusto. […] Com isso se ficava sem a possibilidade de estabelecer a validez jurídica das leis. É certo que o positivismo pensa haver provado a validez de uma lei pelo fato de ter a força suficiente para lhe impor. […] É certo que, independentemente do seu conteúdo, toda lei positiva leva consigo um valor: porque sempre será melhor que a total ausência de leis, ao dar lugar à segurança jurídica. Mas a segurança jurídica não é o único, nem sequer o valor decisivo que tem de realizar o Direito. Ao lado da segurança jurídica, há outros dois valores, que são o da utilidade e o da justiça. A hierarquia destes valores assinala o último posto para a utilidade com respeito ao bem comum. De nenhum modo se há de admitir que é Direito tudo o que é útil ao povo, mas que ao povo é útil […] tão-só o que é Direito, o que traz segurança e tende à justiça. A segurança jurídica, que corresponde a qualquer lei já pelo fato de sua mesma positividade, ocupa um lugar intermediário entre a utilidade e a justiça; a exige, por um lado, o bem comum, e por outro, a justiça. (…) Quando há um conflito entre a segurança jurídica e a justiça, entre uma lei que falha em seu conteúdo, mas que é positiva, e um Direito justo, mas que não adquiriu a consistência da lei, estamos realmente frente a um conflito da justiça consigo mesma, um conflito entre a justiça aparente e a verdadeira (RADBRUCH, 1971, p. 159).

Pois bem, objeta-se que com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do Terceiro Reich, as cortes alemãs receberam o intenso desafio de se manifestar sobre o direito nazista e suas consequências. Em tal período, a lista de monstruosidades cometidas se enquadrava em um catálogo de horrores. Nenhum meio século testemunhou tanto massacre em escala, crueldades, desumanidades, condenação de povos inteiros à escravidão e aniquilamentos de minorias.

A perseguição implacável de adversários políticos, a selvageria na busca da vitória, o saque, o derramamento de sangue, o estupro e o assassinato por parte de uma soldadesca brutalizada, foram traços marcantes de um período onde reinava a “injustiça extrema”. É horrível que tivessem que ocorrer no século XX, e no coração da Europa, mas não estavam fora dos padrões reconhecidos do comportamento humano.

O processo sistemático, prolongado e burocraticamente controlado de exterminar milhões de vítimas que não ofereciam nenhum perigo e cuja morte não dava ne­nhuma vantagem aos assassinos, só podia ser interpretado como a manifestação de uma mente enferma; e toda a nação alemã parecia estar afetada pela doença imposta por um regime não democrático.

Nesse contexto, assinala Robert Alexy (2011) que o principal problema acerca do conceito de direito é a relação entre direito e moral, vez que apesar de uma discussão de mais de dois mil anos, duas posições fundamentais continuam se contrapondo: a positividade e a não positividade. Veja-se que todas as teorias positivistas defendem a tese da separação, pois esta determina que o conceito de direito deve ser definido de modo que não inclua elementos morais. Já a tese da separação, postula que não existe nenhuma conexão conceitualmente necessária entre o direito e a moral, entre aquilo que o direito ordena e aquilo que a justiça exige, ou entre direito como ele é e como ele deve ser.

Assim, o exame dos conceitos positivistas de direito mostra que, no âmbito do positivismo jurídico, posições muito distintas são defendidas. Comum a todas, é apenas a tese da separação entre direito e moral. Se houvesse certeza de que a tese positivista da separação é correta, a análise do conceito de direito poderia limitar-se inteiramente à questão acerca da melhor interpretação dos elementos da eficácia e legalidade, bem como da melhor forma de relacionar esses dois elementos. Por isso, cabe perguntar se um conceito positivista de direito é realmente adequado como tal.

3 O DIREITO É A REALIDADE CUJO SENTIDO É SERVIR À JUSTIÇA?

Toda ordem que encontramos na diversidade da existência, ou que nos empenhamos em fomentar, emprestou do direito o seu nome: falamos de leis da natureza, de leis da moralidade e de costume, de leis da lógica e da estética. Que posição ocupam entre todos esses tipos de leis, e portanto no todo, em nosso conhecimento de mundo, as leis no sentido primeiro da palavra, as leis do direito?

A respeito da lei, Gustav Radbruch assevera que:

A cada atividade básica do espírito humano corresponde um tipo especial de leis do dever: a lógica trata das leis do modo de pensar verdadeiro, correto, científico; a estética trata da maneira certa de vivenciar com sentimento a arte e a beleza; todavia, o dever ético, que apresenta sua lei ao nosso querer agir, é de natureza tríplice: as regras de um agir bom, adequado e justo produzem a moralidade, o costume e finalmente o direito. (RADBRUCH, 1999, p. 1).

Como enunciado de um observador, acredita-se que a fundamentação do direito em Gustav Radbruch é uma questão central e essencial a toda vida em sociedade. Por sua vez, o problema da aplicação da lei injusta é muito mais um problema prático; um problema, aliás, inevitável do agir humano, que pertence mais à ética do que o próprio direito. A ideia de direito proposta pelo autor não é outra coisa senão a justiça (o direito é a realidade cujo sentido é servir à justiça).

A ideia de justiça adotada pelo autor baseia-se no princípio da igualdade, fazendo transparecer as influências aristotélicas de Radbruch. O justo, assim como o bom, o verdadeiro e o belo, é absoluto, ou seja, é um valor que não deriva de nenhum outro valor. Mas esta noção de justiça como igualdade, embora absoluta, é uma ideia formal, razão pela qual Gustav Radbruch irá inserir, em seu conceito de direito, outros dois elementos: o fim e a segurança jurídica.

Sendo a justiça apenas a forma do direto, Gustav Radbruch acrescenta a este um princípio material, a ideia de fim ou finalidade, que toma seu conteúdo da ética. O princípio da finalidade atuará no conteúdo do direito de modo relativo, dependendo do valor moral a que fizer referência. A ética, que se divide em teoria dos deveres morais e em teoria dos bens morais, identifica três tipos de valores diferentes: os valores individuais, os valores supra-individuais e os transpessoais.

Embora já afirmado, o direito deve se basear em critérios fundamentalmente seguros e racionais, para só assim posicionar-se no sentido de afastar do meio social não só a sensação de incerteza, mas principalmente a sensação de injustiça. Nesse aspecto, o crescente valor que se atribui à segurança jurídica revela o reconhecimento de que ela é exigência fundamental até para as ideologias jurídicas orientadas exclusivamente pelo bem comum. E mais, ainda que uma lei positiva não se alicerce nas exigências da justiça ou da conformidade a fins, busca de alguma forma, um valor: a segurança jurídica.

De fato, é impossível traçar uma linha precisa entre os casos em que a lei escrita deve dar lugar à justiça e aqueles onde uma lei precisa ser reconhecida como válida a despeito de seu conteúdo danoso e injusto. Há, porém, uma linha distintiva que pode ser traçada com absoluta clareza: se a igualdade, que é o cerne da justiça, é repudiada deliberadamente ao editar-se uma regra de direito positivo, então a regra não só é injusta, mas não possui a verdadeira natureza de direito, porque este não pode ser definido senão como uma instituição ou ordem das relações humanas cujo sentido e propósito é servir à justiça.

4 A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO: ARBITRARIEDADE LEGAL X DIREITO SUPRALEGAL

Na concepção de Gustav Radbruch, o positivismo desarmou os juristas frente a leis de conteúdo arbitrário e delituoso. Utilizando-se do princípio (“a lei é a lei”), máxima do positivismo (que não conhecia qualquer limitação), o regime nazista manipulou seus juízes e perpetrou as mais terríveis atrocidades sob a proteção da legalidade. Termos como “arbitrariedade legal” ou “direito supralegal” eram contradições em si (RADBRUCH, 1980, p. 21-22).

De maneira geral, Gustav Radbruch analisa que o positivismo é incapaz de fundar, com suas próprias forças, a validade das leis, uma vez que confunde a validade com a mera confirmação da vigência. No entanto, isso não significa que deva ser de todo abandonado, pois “toda a lei positiva já traz consigo um valor – uma lei é sempre melhor que nenhuma lei -, independente de seu conteúdo, pois ao menos cria segurança jurídica” (RADBRUCH, 1980, p. 35-36).

Pois bem, o conflito existente entre segurança jurídica e justiça, ou seja, entre uma lei positiva discutível quanto ao conteúdo e um direito justo não positivado, se apresenta, em verdade, como um conflito da justiça consigo própria, pois trata-se de um conflito entre justiça aparente e justiça verdadeira. É através desta análise que Gustav Radbruch propõe, nos seguintes termos, sua reconhecida formulação:

O conflito entre a justiça e a segurança jurídica poderia ser bem solucionado no sentido de que o direito positivo estatuído e assegurado pelo poder tem prevalência, ainda que por seu conteúdo seja injusto e inconveniente, salvo quando o conflito da lei positiva com a justiça alcance uma medida tão insuportável que a lei, como direito injusto, deva ceder lugar à justiça (RADBRUCH, 1980, p. 37).

Na base dessas constatações, Gustav Radbruch esclarece que é impossível traçar uma linha exata quanto ao que difere a arbitrariedade legal de uma lei válida, porém com conteúdo injusto. Mas, há, sim, uma outra delimitação que pode ser feita com absoluta exatidão. E esta se refere aos casos em que não se pretende alcançar a justiça, nos quais a igualdade que constitui a medula da justiça é negada claramente pelo direito positivo. Nesses casos, não somente o direito é injusto, mas também carece de qualquer natureza jurídica (RADBRUCH, 1962, p. 38).

Entretanto, assinala o jusfilósofo alemão que as leis de conteúdo muito injusto, mesmo que vigentes pelos critérios do ordenamento jurídico a que pertencem, perdem sua natureza jurídica, deixando de ser direito. A modificação no status da lei não se dá na vigência, mas, sim, na validade.

Da mesma forma, não se pode definir o direito, inclusive o direito positivista, de outra forma que não como uma instituição que, por seu próprio sentido, está determinada a servir à justiça. Todavia, conclui-se que, adotando-se estes padrões, setores inteiros do direito nazista jamais atingiram a qualidade de direito.

Numa incursão histórica, assim como a personalidade de Hitler, o direito nazista se caracterizava por uma completa falta de sentido, de verdade e de direito, e estava baseado no exato oposto do elemento essencial à justiça: o tratamento igualitário. Como consequência disso, carecia totalmente de natureza jurídica, não era um direito talvez injusto, não era direito sob nenhum aspecto.

Isto é especialmente válido para todas as legislações que denominavam alguns homens de subhomens, negando-Ihes direitos humanos. Outro exemplo de legislações que sequer chegaram a possuir natureza jurídica eram as cláusulas que previam indistintamente as mesmas punições para os mais diferentes delitos, sem consideração de quaisquer variáveis, permitindo a aplicação da mesma pena (em muitos casos a morte) para o cometimento de delitos com as mais diversas naturezas e gravidades.

A esse respeito, Gustav Radbruch reconhece especialmente após doze anos de experiência nazista, que o conceito de arbitrariedade legal – e a negação da natureza jurídica que esta pode gerar em leis de conteúdo insuportavelmente injusto -, significa terríveis perigos para a noção de segurança jurídica (RADBRUCH, 1980, p. 40-41). Entretanto, pontua sua esperança de que as arbitrariedades cometidas sejam um desvio jamais repetido pelo povo alemão, e alerta que é preciso prevenir o retorno das arbitrariedades através da superação fundamental do positivismo.

5 A FÓRMULA TEÓRICA DE COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE A POSITIVIDADE E A JUSTIÇA

Gustav Radbruch nunca foi um positivista pleno, pois sempre considerou problemática a aplicação da lei com conteúdo injusto ou imoral. Prova disso é a sua afirmação, em 1914, de que “não se pode conceber nenhuma justificação para a vigência do direito manifestamente injusto” (KAUFMANN, 2002, p. 65-66).

Muitos autores defendem que Gustav Radbruch, apesar de abandonar o positivismo em 1945, nunca modificou suas noções acerca da filosofia e do conceito de direito. É certo que ele foi o responsável pela reabilitação da filosofia do direito, ao superar o conflito entre as posições estanques do positivismo e do direito natural.

Depois de 1945, Gustav Radbruch continuou a operar com o mesmo conceito de direito. Entretanto, a partir da constatação de que o positivismo é incapaz de explicar a validade do direito através da separação absoluta entre direito e moral e, verificando as consequências morais da aplicação desta teoria no contexto da Alemanha nazista, o autor fez uma importante inversão na relação existente entre os elementos de seu conceito de direto.

Robert Alexy, um dos autores contemporâneos que mais se ocupa da Fórmula Radbruch, afirma que aquele que sustenta a Fórmula abandona a tese positivista. Os ensinamentos de Radbruch são especialmente valiosos para a teoria da validade de Alexy, desenvolvida no Begriff und Geltunhgdes Rechts, onde a Fórmula Radbruch integra seu conceito de direito não positivista, sob a denominação argumento da injustiça.

Em seus textos, Robert Alexy utiliza-se de até quatro versões da fórmula, dependendo da extensão adotada. A forma mais breve e simplificada é “a injustiça extrema não é direito”; a mais extensa é:

O conflito entre a justiça e a segurança jurídica deveria poder solucionar-se no sentido de que o direito positivo afiançado pela promulgação e a força tenha também preferência quando seja injusto e inadequado quanto ao conteúdo, a não ser que a contradição entre lei positiva e justiça alcance uma medida tão insuportável que a lei deva ceder como “direito injusto” ante a justiça (ALEXY, 2004, p. 227-228).

Não é demasiado referir que Robert Alexy entende que a fórmula radbruchiana, em uma versão mais extensa, divide-se em duas partes ou subfórmulas (intolerância e negação). A fórmula da intolerância se dá pela afirmação de que as leis positivas perdem sua validade jurídica quando sua contradição com a justiça se dá em medida insuportável. A fórmula da negação surge com a idéia de que as leis que negam, de forma consciente, a igualdade, núcleo da justiça, perdem sua própria natureza jurídica (ALEXY, 2004, p. 228).

Enquanto a fórmula da intolerância, que é a mais aplicada pela jurisprudência, possui um caráter objetivo, pois aplica a fórmula da injustiça, a fórmula da negação possui um caráter subjetivo, pois diz respeito aos propósitos e às intenções do legislador. Por esta diferença, Robert Alexy assinala que é possível imaginar casos em que ambas as fórmulas levem a resultados diferentes. Por exemplo, um legislador que busca a igualdade e, entretanto, leva a cabo uma injustiça insuportável, e outro que deseja realizar o injusto, mas não o faz na medida do insuportável.

Em regra, ao se falar de uma injustiça insuportável, deveriam coincidir resultado e intenção, podendo-se falar, então, de uma sobreposição (overlapping) de ambas as fórmulas. Todavia, Robert Alexy entende que a fórmula radbruchiana pressupõe um direito suprapositivo, no sentido de que a aplicação da fórmula conduz a uma fundamentação que se utiliza de princípios jurídicos que não estão positivados (ALEXY, 2004, p. 217).

Em outras palavras, para Robert Alexy, a característica de destaque da fórmula radbruchiana é que esta não exige uma coincidência completa entre direito e moral, uma vez que permite que o direito positivado e eficaz seja válido mesmo que seu conteúdo seja injusto; já Gustav Radbruch não exige uma orientação da totalidade do direito à moral, mas, sim, incorpora ao direito um limite externo (ALEXY, 2004, p. 228-229).

Enquanto os positivistas (que adotam a teoria da separação entre direito e moral) trabalham com um conceito de direto baseado somente na legalidade conforme o ordenamento e na eficácia social, sendo indiferente o conteúdo do direto, como o prova a célebre frase de Hans Kelsen, “portanto, qualquer conteúdo pode ser direito” (ALEXY, 2004, p. 229); os não-positivistas que seguem a fórmula radbruchiana permanecem adotando a legalidade segundo o ordenamento e a eficácia social, entretanto, incorporarão um terceiro elemento ao seu conceito de direito, qual seja, a correção material do conteúdo como critério limitativo.

O abandono do positivismo em sentido axiológico teve como consequência mais radical a doutrina da subordinação da lei à justiça. No “Quinto minuto de Filosofia do Direito”, escrito por Gustav Radbruch, temos que:

Há também princípios fundamentais de todo direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em graves dúvidas. Contudo, o esforço de séculos conseguiu extrair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações de direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá levantar dúvidas (RADBRUCH, 1974, p. 474).

De tal maneira, Gustav Radbruch atinge o ponto máximo de seu racionalismo com a afirmativa conclusiva de que os direitos humanos estão abrigados em normas supra-estatais, a que qualquer Direito Positivo deve se coadunar, sob pena de ser considerado inválido.

Por fim, Gustav Radbruch critica a ordenação jurídica nazista com fulcro na respeitabilidade e imposição forçosas dos valores jurídicos e dos direitos humanos supra-estatais, os quais afastam de vez qualquer pretensão positivista de justificar todo totalitarismo. Ainda assim, a priorização material da justiça na segunda fase do pensamento radbruchiano foi uma necessidade histórica e social de honorabilidade aos direitos humanos a partir do reconhecimento de que só a justiça e o conjunto dos Direitos Humanos postos como prioridade efetivada pelo Estado, seriam capazes de realizar a correta acepção dos direitos humanos que deveriam ser positivados como fundamentais (legais) garantidos às pessoas humanas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em resumo, a fórmula radbruchiana, que foi criada na tentativa de superar a separação entre direito e moral, defendida pelo positivismo, bem como o conflito entre as posições estanques deste e do direito natural, adquire importância na medida em que se refere aos casos em que não se pretende alcançar a justiça, nos quais a igualdade, que constitui a medula da justiça, é negada claramente pelo direito positivo.

Nesses casos, não somente o direito é injusto, mas também carece de qualquer natureza jurídica, isto é, as leis de conteúdo muito injusto, mesmo que vigentes pelos critérios do ordenamento jurídico a que pertencem, perdem sua natureza jurídica, ou seja, deixam de ser direito. Disso resulta que a modificação no status da lei não se dá na vigência, mas, sim, na validade. Desta maneira, conclui-se que a injustiça extrema não é direito.

O ideal jurídico é ideal para o direito, e mais ainda para o direito de uma determinada época, de um determinado povo e para relações sociológicas e históricas muito específicas. Robert Alexy, através do seu conceito de direito, tem a pretensão de superar o modelo positivista da tese da separação total entre direito e moral e, para tanto, acrescenta aos já conhecidos elementos da legalidade conforme o ordenamento e da eficácia social, um novo e terceiro elemento, que possibilita a correção material do conteúdo jurídico, uma vez que o direito será permeado por elementos morais.

Independente do motivo escolhido, o qual não se tem aqui a pretensão de identificar, o tema em questão é, com absoluta certeza, um dos mais importantes trabalhos jurídicos do século XX e merece ser estudado em profundidade, como estudiosos de todo o mundo (à infeliz exceção do Brasil) têm feito há mais de meio século. De nossas considerações resultou que a justiça é a ideia específica do direito, suficiente para desenvolver o seu conceito, mas que, assim mesmo, a ideia de direito não se esgota na justiça, vai muito além do seu próprio horizonte.

 

 

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NOTAS DE FIM

[1] Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: bia_bar@hotmail.com

[2] Graduado em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: orionejunior@yahoo.com.br

[3] Graduada em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: rafacrisp@hotmail.com

[4] Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: lipeamore@gmail.com

[5] Professor orientador do Centro Universitário Newton Paiva. cristiankiefer@yahoo.com.br