Bernardo Gomes Barbosa Nogueira[1]
Diana Gonçalves Souza[2]
Taiara da Silva[3]
Clévio Lustoza dos Santos Leão[4]
Nathália Ventura[5]
RESUMO: Este escrito pretende apresentar as bases filosóficas e conceituais com as quais lidamos para a construção do roteiro do curta metragem “Onde o direito não toca”, que trabalha questões que perpassam desde a invisibilidade social até as discussões acerca da ética da alteridade de Emanuel Lévinas (em diálogo com realidades como as de travestis e garotas de programa).
PALAVRAS-CHAVE: Trans, Lévinas, travesti, amor, direito.
ABSTRACT: This writing aims to present the philosophical and conceptual basis with which we deal for the construction of the short film script “Where the law does not touch”, which work with issues that pervade from social invisibility to the discussions about the ethics of otherness of Emmanuel Levinas (in dialogue with realities such as transvestites and prostitutes).
KEYWORDS: Trans, Levinas, transvestite, love, right.
Introdução
O texto que segue é uma tentativa de discussão acerca do modus do pensamento acerca de uma certa ideia de iniciação científica, bem como, uma exposição do caminho e fundamentos que sustentaram a construção e execução do projeto intitulado “Onde o direito não toca”.
Não seguimos um caminho ortodoxo. A construção do pensamento científico requer também um olhar que não esteja “parado” dentro de determinados parâmetros, por isso mesmo questionamos se seria possível uma pesquisa trans.
Assim, uma pesquisa nesse sentido, procura uma interlocução entre o que restou “marginal” dentro do próprio estertor do pensamento científico e aquilo que se diz “centro”. Assim, nos constituímos dentro de um paradigma diverso no qual o conhecimento seria uma construção que se dá, e tão somente, dentro de uma concepção ética que acolhe a diferença, contudo, não uma acolhida aos moldes modernos na qual aquele que é acolhido se perde na ratio daquele que acolhe. Dar morada acabaria por ser impor uma morada. Não importando o olhar de quem chega.
Desta forma, uma pesquisa nos moldes aos quais nos propusemos, coloca-se como uma pesquisa que atende aos reclames de uma construção científica do impossível, posto que aquele que chega, o outro, que nos constitui, não “cabe” dentro de nossa razão, dentro dos próprios moldes que alicerçam a ideia de ciência. A ética é o que está para além do científico – o outro que estamos a nos referir supera a rigidez do reclame científico, quando ele traz para dentro do pensamento científico toda a sua dimensão, necessariamente alarga o que entendemos por ciência.
Uma ciência trans dá-se através do que chamaremos de ouvido ético e que nos permitiu a construção do roteiro e sua execução. Apesar de um filme mudo – roteirizado através dos poemas de Florbela Espanca – e talvez exatamente por isso mesmo, necessitamos aguçar o olhar, carecemos de ouvidos atentos. Há pessoas que se tornaram paisagem pela cidade, e por elas, para que elas sejam ouvidas em sua dimensão mais plural é que construímos esse roteiro. Nele observamos que “onde o direito não toca” também mora humano.
Pesquisa tem regra?
É necessário um salvo conduto institucional para que possamos falar de “onde o direito não toca”? Além desta questão, poderíamos perguntar se os formulários a que nos dispomos para escrever um trabalho de iniciação científica seriam desde já, necessários, meios, carimbos ou mesmo um limite? Iniciar à ciência seria, portanto, um dos primeiros pontos a que devemos debruçar por aqui. Um percurso de iniciação é aquele caminho no qual colhemos as bases para os próximos passos. Assim, iniciar cientificamente é o próprio pesquisar? Ou, de outro lado, aprendemos na escola aquilo que em verdade deveria ser des-aprendido? O conhecimento é um acúmulo de saberes a respeito de algo? Ou, ainda, conhecimento estaria ligado a seguirmos os métodos adequados para se chegar a uma questão cientificamente demonstrável?
Haveria apenas um caminho a ser buscado dentro desta questão? A construção do conhecimento, que aqui estamos a confundir com a própria palavra pesquisa, estaria ligado mais a uma “construção” ou “desconstrução”? Estamos preparados para o ouvido? Ou as instituições de pesquisa tornaram-se um local de tantos falantes, abalizados por mecanismo, por vezes, não muito claro de classificação, que sequer conseguem ouvir os próprios pares. Se não erramos, em bancas as mais variadas, cobra-se do aluno um domínio acerca daquilo que autores estrangeiros disseram sobre o tema.
É interessante pensar como no âmbito da pesquisa ainda estamos carentes de uma Aufklarung – para não deixar de citar um alemão. Assim, na pesquisa sem ouvido e com excesso de fala, um conteúdo importante é esquecido: o Outro. Esse mesmo que nos institui no mundo. Esquecidos do Outro, que é a própria ética, e porque não, a própria justiça, estamos distantes de alguma conclusão importante. Uma pesquisa que não visa um ato de alteridade, que não parte da própria noção de alteridade, talvez seja carente do principal componente do saber: a diferença. E pelo ouvido ela se nos chega. No entanto, as instituições que iniciam os alunos na pesquisa, parece-nos, não estão atentas a estas questões.
O ouvido é o ponto final e inicial da pesquisa. “O início, o fim e o meio”, diria o místico Raul Seixas – que por ser considerado como tal, não poderia comparecer entre os corifeus da construção do conhecimento. A razão, encenada pela saída da caverna de Platão, nunca mais cessou de criar margens que não devem ser exploradas pelo alto comissário do saber. Assim, restam estabelecidas, linguagem, método, prazos e esferas de pesquisa, daí que talvez o papel real da pesquisa não seja alcançado, o qual acreditamos ser o da própria invenção, pesquisa o impesquisável, explorar o que ainda não foi tocado e, sobretudo, deixar falar um idioma ainda não traduzido. Escutar. De uma maneira menos violenta, talvez buscar deixar vir, das ruas, do gueto, da favela, do escuro, da mulher, do gay, do bárbaro, de todo aquele que vem e que, por causas explicadas cientificamente, costumeiramente não têm vez nesse diálogo. Quase sempre sem cor, sem dor, sem cheiro, insípido e excludente como a injeção letal usada na pena de morte. Nem sempre a dor pode ser descrita pelas linhas da ciência. Quem sabe o percurso da iniciação não poderia ser desde já um a-caminho para a ética? Talvez pudéssemos pensar para além dos conselhos de ética inseridos quando os discentes fazem pesquisa com humanos. E o discente, qual ética o conduz? Qual comitê elabora o direcionamento ético das pesquisas? Há preocupação ética na pesquisa? Estamos a nos referir novamente à questão do ouvido. Ouvir é ético. Antes de tudo dizer, escrever e provar. Menos uma citação e mais uma invenção. Talvez esse devesse ser um dos pontos a discutir.
Temos plena dimensão de que a ideia da iniciação está em colocar o discente em contato com os aparatos que a própria ciência oferece para a pesquisa. No entanto, e o ouvido? Será que ainda iremos tratar os discentes do século XIX como a-lunos (sem luz) que necessitam da saída da caverna que é realizada quando acessamos a ciência através de um dito de professor?
Um mínimo de dialética é necessário para a construção do saber. Aliás, não trata-se mais, como queria Hegel, de um pensamento que opera com tese, antítese e síntese. Parece-nos que a rede na qual estamos inseridos, nas nuvens, não permite mais esse tipo de raciocínio a medir a criação. Importa mais o ouvido, como local de fecundação, do que propriamente o laboratório fechado. A abertura de softwares mostra que o tempo de guardar o conhecimento se foi.
Daí que nossa “caixa de Pandora” está feridade morte. Não iremos mais voltar a um tempo no qual o saber estava guardado. Ele toma formas distintas e não pode mais ser manipulado sem que haja de um outro lado um que questiona, imprime dúvida e constrói. Aliás, a construção do saber é agora um pleonasmo, ora, não cabe mais um saber que não seja construído, e construção se dá apenas, pelo, para e com o outro. A alteridade é o local do saber. Quando Assange (WikiLeaks) quebra os códigos e democratiza as informações, parece-nos está a nos dizer, o conhecimento é coisa de democracia. Parece-nos, estamos no fim da era da Tirania do conhecimento. O demos se voltou contra o rei. Ele agora está nu. As pesquisas agora precisam de alteridade. O outro clama com seu olhar, o pesquisador não pode mais ser o centro, aliás, apenas na tirania haveria o centro e a periferia. Agora, se não erramos, experimentamos uma ocupação comum do espaço. A própria relação com o espaço é outra, não há mais espaço para a exclusão, tampouco, para a hierarquia no conhecimento, o saber, é ele mesmo, diferença, fora dela, tudo é opressão. Assim, iniciar à ciência, iniciar à pesquisa seria, antes de tudo, um erro. Ora, desde sempre, estamos no mundo. Estamos sempre a-caminho da ciência. Ou em melhores palavras, não há um grau zero do conhecimento que precise se startado na IES. O humano é conhecimento, e por essa simples percepção, de que o Outro me constitui no mundo e alimenta meu horizonte com sua perspectiva, é que podemos afirmar que estamos sempre no gerúndio, “a caminho da ciência”. Criar será a última instância, que ademais, é a primeira, base para o próximo passo.
Onde o direito não toca
Por conseguinte, o que seria isso: “onde o direito não toca”? Muitas perguntas quedaram sem resposta se tivermos por base o escrito acima. No entanto, parece-nos, as respostas ocupam o cenário com toda força, temos respostas prontas para tudo. Porém, estaríamos a fazer as perguntas corretas? Por esta via, poderíamos dizer – de novo o dizer – que o Projeto de Iniciação Científica intitulado “Onde o Direito não toca”, trata daquilo que exatamente acreditamos faltar na pesquisa, na construção do saber, o ouvido ético.
Queremos antes de tudo dizer que entendemos por ouvido ético aquilo que Lévinas nos permite reconhecer a partir de sua ética primeira. O Outro, esse enigma, sempre inacessível será meu local de habitação no mundo, mesmo que impossível, mesmo que inalcançável. Assim, cumprimos nossos dizeres de que a pesquisa só o é se for uma pesquisa do impossível.
Nesse sentido, a pesquisa em questão trabalha exatamente com pessoas, formas de vida e sentimentos que estão para além do conceito. Para além do centro, e quiçá, para além do direito. Antes de iniciar a pesquisa é importante mostrar como o ouvido ético fora imponente para tanto.
A pesquisa está sustentada por uma nova linha de pensamento jurídico que de maneira ampla nomina-se Direito e Literatura (GODOY, 2008). Maneira de construir o direito alicerçado em obras literárias e em nosso caso, sustentado por uma construção de narrativa fílmica que nos abre a um pluralismo epistemológico, o qual, com sua faceta mais plural, nos permite encontrar com o pensamento de Emanuel Lévinas (2002, 2009) e Jacques Derrida(2011). Autores que se dedicaram a tratar de questões relevantes sobre ética, humanidade e suas possibilidades. O fundamento da pesquisa alia-se à uma nova e instigante maneira de refletir acerca do direito e da sociedade por ele construída. Maneira desafiadora pois essa descolonização do pensamento abre portas para o novo, ou aquele velho que sempre esteve ali mas que nunca fora enxergado. A sociologia de Boaventura de Sousa Santos também é aporte para sustentar nossa empreitada.
O desenvolvimento do trabalho dar-se-á de maneira tal que exista um envolvimento concomitante entre pesquisa empírica e teórica, ou seja, haverá a colheita de relatos que servirão como inspiração para a composição da narrativa e do roteiro. Esse trabalho prático se desenvolverá junto com as pesquisas acerca da discriminação em seus mais diversos motes: gênero, sexo, cor, raça, condição social.
Junto da pesquisa serão realizados encontros com os pesquisadores a fim de que sejam distribuídas as funções e discutidos os temas a serem abordados; Caberá aos participantes a entrega de pesquisas estatísticas dentro dos temas que a narrativa quer tratar; Dados técnicos sobre filmagem serão trabalhados por professores convidados e que auxiliarão na construção do curta-metragem.
O bairro de Santa Tereza, no qual eu residi em Belo Horizonte, durante os anos de 2012 e 2013, me encaminhava para a avenida Pedro II, ponte para chegar à Newton Paiva, que tem uma de suas unidades na Avenida Carlos Luz. Importa dizer que há, de pronto, várias cidades e várias ruas em uma cidade e em uma rua. De dentro dos carros observamos a rua passar, numa fração de segundos podemos perceber, ódio, discriminação, abandono e ao mesmo tempo amor e outono. Isso, por evidente, é uma observação poética, que talvez não estivesse descrita entre as mais festejadas fontes do conhecimento. Não será assim nessa pesquisa. O cheiro da avenida Pedro II era um durante o dia, e outro, durante a noite. A cor também. Contudo, e mais importante, as pessoas eram diferentes. Ai nasceria o problema da pesquisa. Estaria no ouvido ético o ponto para discutirmos se há locais onde o direito não toca?
A avenida Pedro II será nosso palco. Em verdade, isso que chamamos de escuta ética seria a própria ideia de concebermos uma escuta total, do solo, do clima, da rua, da noite, do dia, das pessoas em sua total relação com o outro. Da pessoa em suas diversas formas de existência. De uma colocação no mundo que transcende uma única maneira de se colocar perante o Outro. O ouvido ético é a constatação, antes e depois da razão, que a pluralidade do humano é além do conceito, da fala, do verbo. O humano apenas poderia ser compreendido em sua totalidade, pela questão do amor. O ouvido ético é o próprio amor.
O projeto não tinha como fim a produção técnica de conhecimento a respeito de um tema. O projeto é uma tentativa de resposta a uma questão quase infante que me consumiu durante todas as manhãs e noites que passava pela avinda Pedro II. De Santa Tereza desembocava na avenida Pedro II, e por lá podia ver alguns estabelecimentos comerciais iniciando seu dia de trabalho, pessoas comuns nos pontos de ônibus, eu comum dentro do carro, e por entre essa esvaziação comum do cotidiano, a pergunta: onde estão as pessoas que ocupam a avenida Pedro II à noite? Elas seriam pessoas da noite? Teriam elas acesso ao dia? E ainda, as pessoas que ocupam a avenida durante o dia, voltam à noite?
Da mesma maneira que ia, não voltava. À noite, ao fim das aulas, voltava pela avenida agora decorada por um número menor de pessoas, bares ao invés de oficinas, e mulheres comuns que não se via durante o dia, trabalhando. Mas, se estamos garantidos constitucionalmente quanto à igualdade, qual o motivo de algumas pessoas estarem obrigadas a um trabalho na penumbra? Este trabalho, por acaso, seria menor que os demais? E assim, onde estão essas pessoas que trabalham pela extensão da avenida Pedro II durante o dia? Essas pessoas talvez iluminem a escuridão com o brilho incoerente da esperança na próxima noite que vem.
Enquanto pesquisador de uma Escola de Direito, lancei-me a questionar acerca das pessoas que via à noite. Seu trabalho, condição social, vida, amigos, tristezas e alegrias. Percebi, de pronto, que mais uma vez estava a rondar aquelas pessoas com um olhar do cientista que sabe. Ora, dissemos, a pesquisa anda aqui pelo ouvido ético. Não poderia mais uma vez impor a essas pessoas questionários para auferir como elas viviam, como elas se portavam se bebiam, se amavam. Não! A ideia que não me deixava era aquela frase dita em sala de aula: “a avenida Pedro II à noite é onde o direito não toca”.
Andanças
Enquanto reunia os cacos das ideias para costurar o projeto, a aluna Nathália Ventura convidou-me a escrever o roteiro de um curta metragem. Como sempre acreditei em questões além da razão, entendi que o projeto estava ali nascido. Nunca escrevi um curta metragem. Nunca dirigi um curta metragem. Escrevi o roteiro e dirigi o curta. Insisto, o Outro aumenta nossa condição perante o mundo. O método aqui foi a alteridade. O ouvido ético, para mantermos o tom.
Liguei o som e com canções que variavam entre Chico Buarque, Caetano Veloso, Los Hermanos e Milton Nascimento, nasceu o amor de uma mulher trans que ganhava a vida com a prostituição e ao mesmo tempo enterrava nas palavras as mazelas da existência. Durante esse tempo em que escrevi, descobri, dentre várias questões que o amor é onde o direito não toca. A avenida Pedro II pode ser berço de amor, da falta, do excesso ou da perversão, mas sempre, do amor.
Percorremos a vida d’Ela e de X, desde o casamento até a relação comum, do café, do supermercado, do flerte, da flor. Da escrita que salva e da rua que chama. Por que as pessoas do dia não se confundem com as pessoas da noite? Seria o amor, esse enigma, o próprio sinônimo de alteridade?
Assim, decidimos por fazer um curta metragem como produto da iniciação científica. O a-caminho para a ciência permitiu aos alunxs participantes uma interação maior com a realidade fora dos livros. O Rosto do Outro, por vezes escondido nas próprias páginas dos livros aparece retumbante. Com toda sua beleza, diversidade, raiva, amor e simpatia. Viveu-se a ideia de igualdade na rua, ou a própria negação da constituição. Ausência de respeito à diversidade. Nulidade social. Ódio e desprezo. A frase de Caetano Veloso (VELOSO, 2012) de que “Narciso acha feio o que não é espelho” está enraizada na construção social. Que insiste em deixar para a noite o que é ódio durante o dia. O terror com a diferença é traço que restou evidente na construção e execução do projeto. O que não afasta também a constatação de que também há pessoas com esse ouvido ético atento, e recebe o outro com a hospitalidade que cria o amor.
Foi um curta metragem que mostrou o Rosto. Na verdade curta é só um nome, a pesquisa aqui foi infinita. Na acepção que Lévinas (2009) dá ao termo. Aquele que vê na pesquisa uma ida ao Outro, por ele. Uma pesquisa que não se responsabiliza não é sequer iniciante. Estar a caminho da pesquisa é sempre estar atento a partir do ouvido. O ouvido ético foi o que conduziu esta pesquisa. Desde laivos de cineastas, até roteiristas, músicos, contra regras, motoristas e pesquisadores, atrizes e atores.
Clévio, Diana, Taiara, Nathália, Eduardo, Brenda, Fabrício, Anyky, as meninas da casa da Brenda, a Lili e sua família, o Bibiço, Florbela Espanca e o amor, todos envolvidos para mostrar que a pesquisa, que a iniciação é um eterno estar a caminho de. Estivemos a caminho da relação amorosa de uma mulher trans, que vive da prostituição, que é apaixonada, que é apaixonante, dona de casa, mulher, traidora e amante – que mostra onde o direito não toca, que nos ensinou a todos que o método da escuta ética é o que aproxima a pesquisa da realidade.
Estivemos transformados após as gravações. A pesquisa se mostrará extensão quando levarmos ao grande público o nosso curta. Nele, todos fomos pesquisadores e amantes, éticos e transformadores. Quem na pesquisa não escuta o outro, seria talvez incapaz de uma transformação, e na pesquisa em questão, tudo que é trans nos importa, posto que o amor é trans, muito mais que o que é dito, é ouvido, e é clamor.
A avenida deixou de ser noite, para aquele casal, ali era dia, de casar e amar. E ainda estamos a caminho de perguntar onde estão as demais meninas, que amam e que são esquecidas, que são ignoradas e conceituadas. Onde estaria o direito ao amor? E o direito à visibilidade? Florbela Espanca será a trilha sonora do curta, que mostra em imagens e sons aquilo que o direito não toca. Foi mulher que lutou pela igualdade. O curta não clama por igualdade, mas por diferença, desde que no mesmo espaço, na noite, na rua, de fora e dentro do carro. Na calçada que habita a puta tem que haver respeito mesmo igual ao altar que ela se casa.
Nos propusemos a falar acerca de nós, dos nossos amores, tristezas e felicidades. O impesquisável é o elemento novo que nasce a partir do ouvido ético.
A seguir tens o roteiro do curta. Dentro dele, há vida e morte, alterações de clima, humor e tempo, coisa de pesquisa que procura pelo Outro, que toca, ama e trabalha, de dia e de noite. Na Pedro II ou no altar.
Sugerimos uma iniciação trans, para uma pesquisa que seja trans, para um olhar atento ao que nos enreda, para que não escrevamos para um mundo que não podemos tocar. Apenas para um mundo que seja trans…amor, trans-ético, trans-religioso, trans-parente, translúcido e transporte para que nossos ouvidos sejam sempre e também trans.
Conclusão
A pesquisa findou-se com a gravação do roteiro que segue. É impossível uma conclusão, pois o curta-metragem ainda não fora lançado. Tem data marcada para os fins do mês de julho do ano em curso. Aguardemos…
Anexos
ROTEIRO DE GRAVAÇÃO
“Onde o Direito não Toca”
Bernardo G. B. Nogueira
Belo Horizonte
2015
CENA1: Escritório
Três homens trajando terno e gravata em uma conversa amistosa entre funcionários e o patrão na mesa de reuniões – mesa com tampão de vidro transparente. Sala branca, insipiente de sinais.
Homem 1: chefe, branco e com barba bem feita; Homem 2: funcionário, pouca idade, estagiário; Homem 3: X, nosso personagem, negro, alto, bem vestido.
Há risos de todos os três envolvidos na prosa. Enquanto isso um deles – aparentemente o chefe – mostra fotos que insinuam ser de mulheres em uma festa prive.
Em um lance, X arranca o telefone das mãos do chefe. Olha para a tela, incrédulo. Não há rostos sendo focados em momento algum. X lança o telefone à mesa e sai da sala. Câmera focada na queda. Filmado bem devagar. Celular quebra.
Câmera colocada de maneira que apanhe bem o ar de superioridade do chefe. De bajulação do jovem e de indiferença de X.
Câmera apanhando os três sentados à mesa. Por detrás das cabeças. Não vê-se os rostos. Apenas o áudio das risadas. Celular de mão em mão. Até o momento em que X o arremessa ao chão.
CENA 2: Bairro Santa Tereza/Indo para a CASA da CARTOMANTE
A cena começa, ela sucede a porta que fecha na carta da cartomante, então fecha a porta da cartomante e a gente vai começar a cena de hoje com o Fabricio sentado fechando a porta do carro. Ele vai desfrouxar um pouco a gravata e vai rolar essa canção que eu te mandei, que é uma canção sobre uma dúvida, que envolve traição. Então ali eu acho que seria interessante a gente meter uma câmera que pegue ele do lado fechando a porta, depois uma câmera de frente para mostrar o ar dele reflexivo, pensando sobre o que ele acabou de presenciar que é a foto que chega no telefone celular lá no CEJU, e aí depois a câmera vai acompanhar, eu pensei de dentro do carro mesmo, com o carro em movimento, atravessando toda a extensão da praça como nós havíamos pensado. E eu não sei se é possível também a gente manter uma câmera tanto na frente quanto do lado dele para acompanhar essa caminhada. A gente até pensou em grua também, porque o Fabrício ficou amarradão na cena com grua… Então a cena com grua pegaria o carro indo embora assim… Então seria uma possibilidade. Ele simplesmente vai demonstra na cena toda a insatisfação e toda a angústia…
CENA 3: Cartomante
X entra em uma casa. Sem bater. Decoração que mistura hippie com coisas de religiões africanas. A casa tem incensos sendo queimados. Moveis velhos. Senta a mesa. É-lhe jogado taro. Ele sorri. Foco na carta do amor. Dedos da cartomante. Que é um homem. Velhos e cheios de anéis. Beijo na cartomante. Dinheiro lançado sobre a mesa.
A personagem aqui é a fé. Por isso as imagens da casa têm que ficar evidenciadas. Pouca luz e foco na fumaça dos incensos. O ar tem que ser quase sombrio. Mas aconchegante.
De novo câmera apanha X pelas costas. Em tomada ampla para apanhar a casa. Em um plano cheio de novo, a câmera abraça as costas de X, a mesa de tarô, o busto e as mãos da velha… Depois do foco na carta, no beijo e no dinheiro….
CENA 4: Casamento
Cenário com o casal. Alguns poucos figurantes. Talvez 10 pessoas. Vestidas de maneira despojada, mas com alguma sensualidade no ar. Gays são necessários! As travestis amigas, para mostrar a família nova. Companheira vestida de noiva e o companheiro vestido de bermuda e uma espécie de bata.
A Celebrante, mulher, vestida com um vestido comprido, com colares de religiões africanas.
A canção é tocada enquanto os noivos entram em direção ao altar. Quando o companheiro chega perto de segurar a mão da noiva, no minuto 50’’ até 1’06’’, a noiva faz um gingado, e sorri, ANTES de receber a mão do noivo. Câmera apanha todos de costas, inclusive os convidados e convidadas. Há pétalas de flores sendo arremessadas enquanto os noivos passam. Importante a câmera pegar que A CELEBRANTE SORRI quando ELES chegam ao altar. Ninguém se ajoelha.
1’45’’ da canção o foco é na noiva.
2’20’’ a celebrante coloca o anel nas mãos dos noivos, uma LÁGRIMA nesse momento. DO HOMEM, claro.
A personagem do casamento são os sorrisos. Nessa cena isso é o mais importante. Porque a canção é bonitinha. E eu quero mesmo esse sentimento aqui. Tudo muito bonitinho. No nível dos clichês iniciais do Woody Allen.
Câmera apanha o plano cheio que contempla o local do casamento. Daí já acompanha X que caminha em direção à noivA. Ela está só à sua espera. Câmera apanha a entrada incluindo todos os presentes. Chegando na celebrante. Eles são cumprimentados por ela com um beijo… A câmera apanha as mãos colocando as alianças.
CENA 5: Café da Manhã
Aqui inicia um momento novo em que o casal terá cenas de amor. É madrugada, há uma tomada da câmera no relógio para essa questão. São cinco da manhã…
Casal na mesa do café da manhã:
X sem camisa e apenas com um short; Ela de camisola transparente. O casal sempre troca caricias por sobre a mesa. As mãos são o principal aqui. Sempre haverá um toque na mao, uma caricia. O café é longo. X serve todas as refeições dEla:
São três: 1- suco de laranja; 2 – geléia de amora na torrada; 3 – café com leite.
Ela toma o café com um certo desdém. O interesse de X por agradar é o nosso mote nessa cena. Doação como sinônimo de amor.
4 – Os dois voltam pra cama. Antes a câmera para uns instantes na mesa posta e algo desarrumada pelo café tomado. Uma espécie de introdução ao amor. Na cama já, a cena é de um beijo demorado. Com insinuações de sexo. Nada explicito. A canção agora é “Samba e amor” do Chico Buarque. Que toca enquanto devagar eles se amam. Até adormecerem. Há uma atenção especial as ações de X que depois dEla dormir, fica entreolhando com olhos apaixonados… A canção encerra a cena…
Câmera apanha toda a cena cheia. Zoom acompanhando as mãos. Câmera passa pela mesa e acompanha o casal pelas costas. Câmera apanha os dois na cama. X vendo Ela dormir…câmera por cima dos dois…
CENA 6: Supermercado
Os dois. De bermudaX. De vestidoELA. MÃOS DADAS no corredor do supermercado. Há uma espécie de briga pelas mercadorias. Seguidas de risos. Uma coisa ou outra é colocada no carrinho de compras. Na hora de pagar, há uma flor que é apanhada próxima ao caixa. E daí um pouco do poema do Vinicius: “para uma menina com uma flor”, o som nós faremos. Eu irei recitar esse poema. ENTRE ESSE RECITAL AS COMPRAS SÃO PASSADAS NO CAIXA. Enquanto X passa as compras. ELA fica deslumbrada com a flor…Mostrando aos transeuntes…e também a moçadocaixa… Aqui a personagem é mesmo as coisas simples…uma cena leve…e um poema muito forte ao fim…
Sempre a câmera por detrás dos passos. A câmera agora flagra X a entregar a flor para Ela e depois Ela a cheirar a flor… A câmera foca nela mostrando a flor para a atendente…
Cena 7: De volta casa
X serve café e biscoitos para Ela que esta ao computador escrevendo seu livro. Ela está a escrever nua. A câmera apanha o corpo em silhueta e foca na tela do PC. A frase que é título do escrito é:
“Enquanto lá fora as chuvas molham os carros. Sofro de agreste imenso aqui dentro. Será que algum dia meus pés irão encontrar um chão de rosas? Será que sou uma tola que ainda vive uma adolescência? Será que no dia em que sai do quarto decorado pelos meus pais eu estava a deixar pra trás qualquer cor em minhas veias? Há sangue aqui?
Essa tomada demora na tela e silenciosamente X se retira da sala. ELA não toca no café. Olha para a bandeja decorada com uma flor. Salva o texto.
Esta cena é importante para mostrar a face DELA enquanto escritora. E de X de um homem apaixonado.
Câmera apanha X colocando uma bandeja ao lado do PC. Ele sai de cena. A câmera agora vai apanhar apenas o PC e mostra a tela em zoom…
CENA 8: BANHO/ELA INDO TRABALHAR
Um banho rápido.X dorme.ELA se apronta para sair.Vestido preto. Maquiagem acentuada, porém não vulgar… De soslaio a câmera pega; Um beijo em X que dorme; Um gole em uma garrafa de vodca; Um sinal da cruz feito por ela; Toca a canção: “1 de julho”de Cassia Eller até o minuto 3’05’’.
Câmera no banho (aqui mostramos que é uma mulher trans) e depois corte para o quarto mostrando X. Câmera mostra ela se arrumando rapidamente. Gole na garrafa em foco. Beijo em X. Ela sempre apanhada pelas costas.
CENA 9: RITUAL
A primeira tomada da volta se divide em duas:
1 – olhar parado na foto da mãe dela, coloca um vaso de violetas ao lado;
2 – olhar parado na foto do pai, retira uma navalha de dentro da bolsa, faz um corte no braço;
ELA dirige-se para a cama. Antes um olhar para a mesa posta por X. Canção do Chico Buarque: “Cotidiano”, 0,30’’ minutos. ELA, já sem som, retira a roupa. A câmera observa o sangue que corre pelo braço. No criado mudo há uma gaze para curar a ferida. ELA faz o curativo e se deita.
Câmera dentro de casa. Barulho da chave na porta. Ela apanhada de frente. Sem o rosto. Câmera devagar a acompanhar os passos: Foco no retrato da mãe..foco na flor ao lado da foto. Foco no retrato do pai…foco na gilete que corta o braço Câmera passeando por Ela enquanto retira a roupa. Enquanto limpa o sangue do braço e cura. Depois a cama…
CENA 10 – ELA escrevendo
ELA está pela manhã à frente do PC. Curativo no BRAÇO.X mais uma vez traz a bandeja de café, sempre decorada com uma flor. A canção é “Dançarina” de Chico Buarque… ELA não se trocou. Esta evidentemente bem arrumada. X está de TERNO E GRAVATA. Ele bate a porta. Ela liga o PC. Mais uma vez o foco recai sobre a tela. Quando o PC liga na tela do livro, a canção cessa. Câmera foca na tela do PC:
Enquanto ela digita rola a canção: “Paula e Bebeto, de Milton Nascimento”, até o minuto 2’.
“Será então que amor é isso? Ir-se acostumando aos corpos e almas que nos envolvem? Ser hospitaleiro feito mãe? Simplesmente receber? Uma mulher daquelas de Atenas do Chico Buarque? Enquanto os pensamentos se acumulavam mais uma cama seria desarrumada. E aquela ideia de um amor único e fiel? É a única?”
Câmera nas costas de novo. Vestido com as costas mostradas. Câmera a mostrar X com mais uma bandeja de café. Câmera em X saindo de casa. Som da porta junto com o som do PC sendo ligado. Câmera na tela do P
CENA 11: X saindo de casa
Enquanto ELA dorme, X se arruma para sair. A canção que rola é: “Milagreiro de Cassia Eller e Djavan” até o minuto 2’25’’. X sai de casa…
CENA 12 – Última cena/Pedro II
É o primeiro plano em que aparecem cores e sons. ELA está na calçada. X estaciona o carro. Um carro escuro. Ele abaixa o vidro. ELA se debruça. A câmera foca na tatuagem de uma flor que ELA traz no seio. A câmera vagarosamente passa por dentro do carro, para por um segundo nas pernas de X onde está um papel que tem como título: “CONTRATO DE PUBLICAÇÃO”. A câmera sobe até a face de X, é o primeiro e ÚNICO ROSTO QUE APARECE. É a ÚNICA FALA, ele diz com voz ao mesmo tempo altiva e medrosa: – ACABOU?! Canção de Caetano Veloso: “Nosso estranho amor”.
Câmera apanha algumas garotas de programa. Logo apanha o carro que para. Câmera filma a partir do lado do motorista. Apanha o rosto e a tatuagem no seio Dela… Câmera devagar mostra por dentro do carro até a perna de X onde está o contrato de publicação Câmera na face de X que diz: ACABOU… CORTA!
Referências
DERRIDA, Jacques. Da Hospitaldiade. Lisboa. Galimard, 2011.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. Direito e Literatura: ensaio de Síntese Teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
LÉVINAS, Emmanuel. De Deus que vem à ideia. Petrópolis – RJ: Vozes, 2002.
LEVINAS, Emanuel. Totalidade e Infinito. São Paulo. Vozes. 2009.
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VELOSO, Caetano. Site oficial. Disponível em:< http://caetanoveloso.com.br.> Acesso em: 22 dez. 2015.
NOTAS DE FIM
[1] Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva). Email: bernardo.nogueira@newtonpaiva.br
[2][2] Discente da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
[3] Discente da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
[4] Discente da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
[5] Discente da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.