INC04 03 JUIZ ADMINISTRANDO CIDADES: A BUSCA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS ATRAVÉS DA JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. ESTUDOS SOBRE A INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NO PODER EXECUTIVO COMO FORMA DE GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Bráulio Lisboa Lopes[1]

Lucas Ribeiro dos Santos[2]

Ana Paula Barbosa[3]

RESUMO: O presente estudo tem por objetivo analisar a crescente atuação judicial em sede de políticas públicas que tem por objetivo a efetivação e concretização dos direitos fundamentais instituídos na Constituição de 1988. Essa postura ativista do Judiciário vem causando grandes discussões e polêmica na esfera jurisprudencial e doutrinário no que desrespeito a legitimidade dessas intervenções, seus limites, e do seu papel na efetivação de direitos fundamentais. Considerando as causas que levam o Poder Público fracassar na implementação destes direitos, apontamos as possíveis consequências que podem surgir de um Judiciário ativista. Com isso, nosso intuito é buscar compreender qual deve ser a postura do magistrado nestes casos de colisão de direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Sociais – Estado Democrático de Direito – Judicialização de políticas públicas.

ABSTRACT: This study aims to analyze the growing judicial action in public policy locations which aim to make effective and promote the fundamental rights established in the Constitution of 1988. This activist stance of the judiciary has caused much discussion and controversy in the judicial and doctrinaire sphere, in disregard of the legitimacy of these interventions, its limits, and its role in the promotion of fundamental rights. Considering the causes that lead the Government’s failure to implement these rights, we point out the possible consequences that may rise from an activist judiciary. With this, our intention is to try to understand what should be the magistrate’s position in these cases of collision with fundamental rights.

KEYWORDS: Social rights – Democratic State – Public Policy Judicialization .

  1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagrou extenso rol de direitos individuais e sociais. Cabendo ao Poder Legislativo definir diretrizes e objetivos gerais para promoção de políticas públicas, já as medidas que confiram a efetividade, aplicabilidade, organização e concretização é função primordialmente conferida ao poder Executivo no sentido de promover, fomentar e viabilizar políticas de cunho social e econômico que visam oferecer condições mínimas de vida, assegurando a todos uma existência digna.

Todavia, devido à omissão ou deficiente da atuação dos poderes instituídos para tanto, o Judiciário tem sido chamado de forma reiterada a intervir, a fim de conferir efetividade aos direitos sociais elencados na Carta Magna, substituindo, desta maneira, os poderes instituídos precipuamente para tanto.

Entretanto, o caráter oneroso do objeto dos direitos sociais prestacionais, além de extenso rol de demandas dessa natureza, implicam custos orçamentários de elevada monta. Nesse diapasão, o princípio da reserva do possível surge como principal limitador no controle jurisdicional das políticas públicas, haja vista a necessidade de se analisar as possibilidades e limites dos recursos públicos.

Cumpre de início esclarecer que não discutiremos no presente estudo temas relacionados à corrupção ou maus feitos ao erário público. Não obstante reconhecermos a intima relação e as drásticas consequências políticas e sociais que tais práticas causam na Administração Pública, sobretudo em matéria de políticas públicas.

Dessa maneira, analisamos o fenômeno da judicialização das políticas públicas, o papel e os limites do Poder Judiciário na efetivação dos compromissos do Estado brasileiro a partir da perspectiva social e econômica. Nosso objetivo não é criticar a postura ativista do judiciário, muito pelo contrário, nosso propósito é atentar aos possíveis danos que estas intervenções podem causar na seara administrativa.

2. Uma análise da Teoria da Justiça de Michael J. Sandel

Em sua obra, “Justiça – O que é fazer a coisa certa”, Michael J. Sandel (2013) propõem três concepções de justiça: a utilitarista, a concepção liberal e a concepção de justiça associada à virtude.

A primeira concepção, elaborada por Jeremy Bentham, se alicerça na máxima efetividade, ou seja, ainda que algumas pessoas venham a sofrer com determinada decisão, se um número maior de pessoas se beneficiar, tal escolha seria moralmente justificável, pelo princípio da máxima efetividade em prol do bem da maioria. A primeira crítica que se faz ao utilitarismo se alicerça exatamente na sua desconsideração de direitos naturais fundamentais. Tomar decisões com o fundamento exclusivamente calculista sem levar em conta a dignidade inerente a todo ser humano é moralmente injustificável, ainda que tenha a finalidade de preservar o bem estar da maioria.

A segunda concepção de justiça, que liga está à liberdade, se contrapõe nitidamente à utilitarista, em virtude do fato de se fundamentar no respeito a direitos humanos individuais universais, direitos estes considerados de extrema relevância, tendo como pedra de toque o direito à liberdade. Para a teoria libertária, apenas um Estado mínimo, qual seja, aquele que faça cumprir os contratos, proteja a propriedade privada e mantenha a paz, permite que o ser humano seja verdadeiramente livre. Tal Estado não deve preconizar nenhuma espécie de paternalismo que possa interferir na liberdade individual. Ou seja, qualquer conduta é possível desde que não haja riscos para terceiros. Na mesma linha, a ideologia libertária repudia qualquer forma de legislação moralista.

Sob o viés econômico, o liberalismo é absolutamente contra qualquer redistribuição de riqueza. Em suma, não seria moralmente justificável que alguém que labutou por anos para conseguir adquirir bens e posses tivesse que dispor de suas propriedades para auxiliar os menos afortunados. Como exemplo para fundamentar tal ideologia, podemos citar o aumento de impostos. Aumentar impostos daqueles que possuem maiores condições financeiras com o fito de auxiliar à população de baixa renda é uma medida justa? Obviamente seguindo um pensamento libertário a resposta será não. Todavia, segundo uma ideologia utilitarista, a redistribuição de renda, através da cobrança de impostos, maximizaria o bem estar da população em geral.

Michael Sandel (2013), citando Robert Nozick em Anarchy, State, and Utopia (1974), explica que o autor faz uma defesa a tal impossibilidade. Para ele, apoderar-se do produto do trabalho de alguém, equivale a apoderar-se de seu tempo, ou seja, se você labuta por determinado período e deve dispor deste salário porque o Estado exige a redistribuição de renda. Por conseguinte, você estaria trabalhando para sustentar outrem a mando do Estado, perdendo, assim, o direito de propriedade sobre si mesmo, na medida em que o Estado atua como agente coator a fim de que o indivíduo trabalhe em favor de outrem sem receber nada em troca.

Por fim, a última concepção tem Aristóteles como precursor. A teoria de justiça do filósofo possui dois alicerces essenciais: a justiça é simultaneamente teleológica e honorífica. Para Aristóteles, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem. E para determinar quem é merecedor de quê, devemos perscrutar quais virtudes são dignas de recompensa. Logo, Aristóteles afirma que só é possível decidir de forma equânime, quando sabemos qual é a forma de vida desejável pela sociedade, ou seja, quais valores e virtudes tal sociedade considera essenciais. O cerne da questão é a finalidade, ou seja, o télos. Assim, em casos concretos, somente seria possível tomar decisões justas, se soubéssemos qual a finalidade daquela determinada prática social. Por exemplo, em uma comunidade hipossuficiente, existe apenas um violão disponível, quem deveria recebê-lo? Para Aristóteles, seria digno dar o instrumento àquele que tivesse um maior talento musical, pois a finalidade do violão, ou seja, seu télos, é proporcionar belas melodias.

Sob tal ótica, ao se perscrutar quais valores são dignos de honrarias para se promover justiça, Aristóteles diverge cristalinamente de John Rawls. Em sua teoria moderna, Rawls tenta separar as questões de equidade e direitos das discussões sobre honra, virtude e moral, ou seja, o autor visa buscar princípios neutros ao sedimentar sua teoria de justiça. Ao revés, Aristóteles afirma ser indissociável à noção de justiça, questões relativas à honra, virtudes e à vida boa.

3. Os direitos sociais como direitos fundamentais

Considerados indispensáveis à pessoa humana os direitos fundamentais sociais constituem garantias necessárias por proteger o indivíduo do poder do Estado, além de estabelecer condições mínimas de vida. Segundo Carvalho (2013) a expressão (direitos fundamentais), justifica-se por designar o direito das pessoas em face do Estado, que constituem objeto da Constituição.

A segunda dimensão de direitos fundamentais evidência a releitura do papel do Estado perante a sociedade, que segundo Mendes (2009) são também chamados de direitos sociais, por se ligarem a reivindicações de justiça social. Traduzem-se por meio de prestações positiva do Estado em propiciar acesso a os meios de subsistência visando o bem estar social, por meio dos quais se tenta estabelecer condições sociais adequadas para todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos. Conforme explica Andreas J. Krell (2002), os direitos fundamentais sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos por meio do Estado, já que exigem do Poder Público certas prestações materiais. São também denominados direitos de igualdade por garantirem justamente às camadas mais miseráveis da sociedade a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direito (RAMOS, 2014). Tais direitos são idealizados pelo Estado como instrumentos destinados à redução e/ou supressão de desigualdades, consoante a lógica de que se devem tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade.

Em regra, os direitos sociais são revertidos à sociedade, em forma de políticas públicas. Sua aplicabilidade está condicionada a uma atuação ativa e efetiva por parte dos Poderes Públicos, de modo que a obrigação do Estado recai em colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material, (representando o que Jellinek chamava de status positivos). As chamadas políticas públicas, na concepção de Eduardo Fernando Appio (2004), têm por finalidade garantir a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, assegurando-lhes as condições materiais para uma existência digna. São, em suma, instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade. Nesta ceara, cumpre, portanto, destacar o quanto é importante à atuação dos poderes Legislativos e Executivo no processo de criação e concretização destes direitos, que são elaboradas através de planos de governo pautados na lei, mediante uma escolha discricionária do administrador público.

A contrário sensu, ao se tratar do tema políticas públicas no cenário político institucional brasileiro, verifica-se uma crescente tendência à judicialização das referidas questões, ora por haver omissão total do Estado em relação a comandos constitucionais asseguradores de direitos fundamentais, ora pela omissão parcial na observância dos referidos comandos e, por fim, pela própria ineficácia das estruturas/instituições designadas pela lei como responsáveis pela implementação das referidas políticas públicas (LOPES, 2014).

3.1 Os problemas em efetivar os direitos fundamentais sociais mediante políticas públicas

 Muito embora tenham sido reconhecidos e positivados, inclusive a nível constitucional, a aplicabilidade dos direitos sociais é algo que ainda não alcançou um patamar substancial e eficaz dentre a sociedade. Com histórico de eficácia duvidosa muitas das normas constitucionais programáticas que versam sobre direitos sociais não produzem efeito algum em termos práticos, figurando apenas, em muitos dos casos, como meras recomendações.

Nas lições de Paulo Bonavides (2001, P. 564), os direitos sociais:

[…] passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios ou recursos.

De fato, não se pode negar que a implementação e eficácia dos direitos sociais prestacionais está vinculada a existência de recursos próprios para o seu financiamento. Assim sendo, o grande problema para a efetivação desses direitos fundamentais reside mesmo é na escassez de recursos para viabilizá-los. Educação, saúde, assistência social, cultura, etc., são exemplos de direitos sociais que demandam muitos recursos financeiros aos cofres públicos, recursos estes que muitas vezes o Estado não dispõe.

Diante da escassez natural de recursos, surge a inevitável limitação material de concretização dos direitos sociais, revelando uma necessária e indispensável conexão entre o direito e a economia. Em face desse limitativo fático, busca-se estabelecer prioridades dentre os direitos sociais, racionalizando a sua utilização, partindo da premissa de que determinados gastos, de menor necessidade social, podem ser substituídos em detrimento de outros, considerados indispensáveis e urgentes.

Nesta perspectiva, pertinente são as palavras do professor Bernardo Gonçalves Fernandes (2014), para o citado autor, os direitos sociais possuem um grau mínimo de eficácia, devendo estes serem observados com base na tese do mínimo existencial [4], com o argumento de que os direitos sociais são possuidores de um grau mínimo de eficácia, que está atrelada à dignidade da pessoa humana, tendo como referência o princípio da proporcionalidade. No mesmo juízo, Ana Paula de Barcellos (2002) percebe que a tarefa de determinar a eficácia do princípio da dignidade humana é, na realidade, uma tarefa de determinar as prioridades da distribuição dos bens sociais.

Aqui surge um problema relacionado à implementação e a eficácia desses direitos – prestações positivas por parte do Estado – visto que a referida prestação decorre de direitos que não são referenciados em recursos finitos e, na maioria das vezes, sua disposição exige uma tomada de decisão e escolha de quais valores e bens jurídicos serão distribuídos e quais serão sacrificados (CALIENDO, 2009). Nessa seara, a doutrina constitucionalista adotou como critério fundamental na solução desses casos difíceis a chamada teoria da reserva do possível (MANICA, 2007), Vorbehalt des Möglichen, servindo como critério para o Estado, em face de sua obrigação em concretizar direitos prestacionais.

3.2 Os direitos prestacionais em face da reserva do possível

 A teoria do “reserva do possível” fora aplicada pela primeira vez pelo Corte Constitucional Federal Alemão, em uma decisão que ficou conhecida como Numerus Clausus. Na ocasião a Corte alemã analisou demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido admitidos no curso superior público, em razão a política de limitação do número de vagas em cursos superiores adotada pela Alemanha em 1960. O pedido foi embasado na garantia da Lei Federal Alemã de escolha da profissão. A Corte Constitucional alemã julgou o pedido aplicando de forma inovadora a teoria da “Reserva do Possível”, com a justificativa de que o número de vagas nas universidades – o direito à prestação positiva – encontrava-se limitado a uma reserva do possível, estabelecendo posicionamento de que o cidadão só poderia pleitear do Estado aquilo que razoavelmente se pudesse esperar. Com isso, a expressão “reservado possível” revela o entendimento que não é possível conceder aos indivíduos tudo o que pretendem, pois há pleitos cuja exigência não é razoável (SILVA, 2002).

Com tudo, chama a atenção o fato de que a ideia de reserva do possível, em sua origem, na Alemanha, não se relaciona unicamente à existência de recursos públicos financeiros necessários para concretização de direitos sociais, mas relacionava-se, antes de tudo, à razoabilidade da pretensão destes direitos. Para o Tribunal, “o pensamento das pretensões subjetivas ilimitadas às custas da coletividade é incompatível com a ideia do Estado Social” (SCHWABE, 2005).

A reserva do possível rapidamente se propagou pelo Brasil. No entanto a interpretação dada à teoria em nosso país deixou de lado parte de sua acepção inicial. Aplicando-a de forma desvirtuada de seu conceito inicial, com o argumento de que a efetivação de um direito social estaria limitada à existência de um orçamento público preexistente. Ao adaptarem à teoria da reserva do possível a realidade brasileira o que se fez, em verdade, foi criar outra teoria, a reserva do financeiramente possível. (MÂNICA, 2007)

A aplicabilidade de um direito fundamental social, na nossa realidade, estaria condicionada à reserva do que é possível financeiramente ao Estado adimplir. A regra que se assenta é que, à disponibilidade orçamentária do Poder Público condiciona a aplicabilidade dos direitos fundamentais prestacionais, estabelecendo que apenas o mínimo existencial pode ser garantido, isto é, apenas os direitos sociais, econômicos e culturais mais “relevantes”, em face do caso concreto (ALEX, 1998).

Na precisa síntese de Eurico Bitencourt Neto (2010. p. 146):

[…] em sociedades com grandes carências sociais e dotadas de Constituições (como a brasileira) com extenso rol de direitos sociais, fatalmente não haverá recursos suficientes para assegurar máxima efetividade, simultaneidade a todos os direitos a prestações.

A dúvida que se coloca e que é de suma importância à nossa discussão reside nos efeitos práticos que está teoria pode ocasionar no cenário institucional brasileiro, considerando seus desdobramentos e consequências quando aplicada ao caso concreto.

Didático como sempre, o ilustre constitucionalista, José Gomes Canotilho(1997, p. 477), explica, de início que:

Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção da reserva do possível (Vorbehalt Des Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos.

Com tudo, no entender de Canotilho, um direito social sob a “reserva dos cofres cheios” equivale na prática, a nenhuma vinculação jurídica. Andreas Krell (2002), no mesmo sentido considera que os operadores do direito brasileiro importaram a doutrina da reserva do possível de forma acrítica.

É certo que, deve-se reconhecer a existência de tal limite, não obstante, isso não pode significar uma barreira plena à concretização dos direitos sociais, sob pena de esvaziar a própria existência de tais direitos. Lembrando que a finalidade do Estado ao obter recursos, é em seguida, revertê-los a sociedade, sob a forma de prestação de serviços, ou qualquer outra política pública. (BARCELOS, 2008)

Justificando o entendimento e a aplicação da teoria da reserva do possível no cenário institucional brasileiro, o Ministro Celso de Melo, em decisão na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF nª 45 (BRASIL, 2004), defende que a cláusula da “reserva do possível” está condicionada ao binômio: razoabilidade da pretensão versus disponibilidade financeira do Estado, sustentando que ambas devem se fazer presentes, em situação de cumulativa e ocorrência, uma vez que segundo o Ministro, ausente uma delas não será possível ao Estado à realização prática de tais direitos.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no entanto, não é pacifica quanto ao assunto, à análise tem sido feita casa a caso. Em decisão que reconheceu a existência de repercussão geral em recurso extraordinário nº 580252 RG/MS, [5] o STF se refere à “cláusula da reserva financeira do possível”, em face de pedido de indenização por dano moral, decorrente da excessiva população carcerária.

Noutro giro, em julgado ressente, o STF entendeu que princípio da reserva do possível não pode ser invocado pelo Executivo para deixar de cumprir decisão que o obriga a fazer obras de reforma em presídios. Está decisão foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário nº 592.581/RS[6], ao negar recurso ao estado do Rio Grande do Sul, que se dizia impossibilitado de fazer reforma em um presídio. Segundo o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, os princípios constitucionais, como se reconhece atualmente, são sempre dotados de eficácia, cuja materialização pode ser cobrada judicialmente, se necessário.

Para o eminente Ministro, a tese do reserva do possível não deveria ser considerada, pois tratava o caso do cumprimento da obrigação mais elementar do Estado, é justamente a de dar concreção aos direitos fundamentais. Na concepção de Lewandowski, sua decisão não tratava de implementação direta pelo Judiciário, de políticas públicas. Uma vez que os princípios constitucionais podem ser pleiteados judicialmente, se necessário. Não acarretando nesta hipótese interferindo na esfera dos outros poderes a decisão Judicial que determina a obrigação de fazer em face da Administração Pública. [7]

A dependência de recursos específicos na concretização dos direitos sociais revela o problema da possível ilegitimidade do Judiciário na determinação de previsão e aplicação orçamentária, em detrimento da atuação política, o que levanta a questão dos limites e competência do Judiciário em realizar esta função. Instaura-se, nesta hipótese, um verdadeiro dilema, de um lado, os direitos sociais e fundamentais, de outro, a escassez de recursos (reserva do financiamento possível).

Problema esse que, a nosso entender, deve ser resolvido seguindo modelo proposto por Robert Alexy (2008), mediante a ponderação dos princípios da liberdade, da competência legislativa, da separação dos poderes, dentre outros. Considerando que não há uma única resposta correta ou “legitima” na interpretação do texto constitucional. Em casos que envolvam decisões sobre princípios constitucionais que positivem direitos de segunda geração, por dependerem da definição de meios, recursos e prioridades em uma situação de inevitável escassez de bens públicos, dificilmente comportarão uma única solução. Por isso concordamos com o posicionamento de Alexy, entendendo que o Juiz, no caso concreto, não pode, a sua vontade, sopesar e decidir de acordo com seu subjetivismo. Muito pelo contrário, sua metodologia de decisão deve ser pautada pela regra da proporcionalidade, considerando as causas econômicas, política, social e jurídica de sua decisão.

4. A JUDICIALIZAÇÃO E O ATIVISMO JUDICIAL

O fenômeno do ativismo judicial e da judicialização da política e algo controverso e ao mesmo tempo complexo. A postura ativista do Judiciário na tomada de decisões envolvendo questões de largo alcance político e nacional, sua atuação intensa e volumosa no intuito de efetivar políticas públicas levanta a questão, sobre si e em qual extensão compete o Judiciário este dever. A prática tem causado intensa divergência no âmbito doutrinário e jurisprudencial, exigindo uma reflexão cuidadosa.

Os conflitos travados entre os poderes Legislativo e Executivo versus Judiciário não é, registre-se desde logo, uma realidade vivida apenas no Brasil, muito pelo contrário, situação igual a essa tem sido identificada em diversos países, em épocas diversas, de modo que podemos afirmar que se trata de uma tendência global, e não apenas desta ou daquela sociedade (SOARES, 2010).

Antes de qualquer coisa deve-se estabelecer a distinção entre judicialização da política e ativismo judicial, expressões que muitas vezes são utilizadas, de forma errada, como sinônimas, mas que na prática possuem significados distintos, merecendo maior atenção. Judicialização da política, de acordo com Vallinder e Tate (1995) ocorre a partir da ampliação da atividade do Judiciário na análise e julgamento de temas ligados à atuação de outros poderes. A judicialização tem a ver com a transformação de questões políticas em jurídicas, sobretudo diante dos direitos e garantias fundamentais, cuja integridade compete ao juiz manter (SOARES, 2010).

Em contrapartida, o ativismo judicial está associado a uma participação intensa do Judiciário na busca da positivação dos fins constitucionais, o que acaba por interferir no âmbito de atuação do Legislativo e Executivo. Nesse sentido, Arcênio Brauner (2011, p. 279), explica que, “A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.”

Ao estabelecer a diferença entre esses dois fenômenos jurídicos, Luís Roberto Barroso (2001, p. 279) elucida que “[…] a judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou”. “[…] Ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance.”

4.1 O fenômeno da Judicialização

Judicialização equivale à transferência de poder político para o Judiciário. Significa que questões de ampla repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo.A redemocratização recuperou as garantias da magistratura, assim o Poder Judiciário “[…] se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes.”(BARROSO, 2001, p. 276-277).O segundo efeito da Judicialização desrespeito à forma da Constituição de 1988, que abarcou em seu texto “[…] inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária.” (BARROSO, 2001, p. 275) Por fim, a respeito do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, Barroso (2001, p. 275), com propriedade, sintetiza que,

O modelo analítico e ambicioso da Carta brasileira, desconfia do legislador. Explica o autor que constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial.

Em alternativa, o ambiente democrático reavivou a cidadania, conferindo maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. (BARROSO, 2001)

Para Barroso (2015), três são as causas que justificam o fenômeno no Brasil: i) a redemocratização do país, com promulgação da Constituição Federal de 1988; ii) constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária; iii) e a estruturação do sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil, que combina aspectos dos sistemas americano e europeu.

 […] desde o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem como entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF.

Em analise ao tema, podemos identificamos uma crescente tendência à judicialização no cenário institucional brasileiro. Nos últimos anos, o STF pronunciou-se ou iniciou a discussão em temas como: a) Políticas governamentais, envolvendo a constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência; (contribuição de inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça); b) Relações entre Poderes, com a determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebras de sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; c) Direitos fundamentais, incluindo limites à liberdade de expressão no caso de racismo (Caso Elwanger) e a possibilidade de progressão de regime para os condenados pela prática de crimes hediondos. (BARROSO, 2015)

 4.2 Ativismo judicial

 A noção de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais. Para Robert Juul (2000), o ativismo judicial ocorre quando o judiciário ultrapassa a linha que separa as esferas judicial e legislativa. Nestas mesmas razões, Arcênio Brauner (2011) acrescenta que o ativismo judicial ocorre de forma intersubjetiva ao se interpretar a Constituição, ex­pandindo, ou, até mesmo, restringindo o seu sentido e alcance.

Segundo Barroso (2001, p. 279), a postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem:

[…] (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

O Judiciário brasileiro vem nos últimos anos demostrando uma postura claramente ativista. Não é difícil sustentar a tese. Um primeiro exemplo que merece ser destacado é o da declaração de inconstitucionalidade da obrigatoriedade do regime inicial fechado para crimes hediondos, previsto no artigo 2º, da Lei n° 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos). Segundo o STF, o referido dispositivo viola o núcleo essencial do direito à individualização da pena, e, também, da proporcionalidade, contraria o princípio constitucional da individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI). [8]

Outra postura ativista do Supremo Tribunal Federal pode ser percebida na questão da implantação da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio democrático, declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criando, assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se encontram expressamente previstas no texto constitucional. (BARROSO, 2015)

O STF, também foi ativista ao editar algumas súmulas vinculantes que trouxeram regulações a determinadas matérias que, até então, não haviam sido objeto de lei, como por exemplo, as restrições ao uso de algemas[9], a vedação da cobrança da taxa de matrícula em universidades públicas[10] e a vedação do nepotismo no âmbito dos três poderes da República[11].

Por fim, na categoria de ativismo mediante imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, destaca a situação da saúde. A distribuição de medicamentos, determinação de terapias e tratamentos médicos mediante decisão judicial vem chamando atenção, seja pelo elevado número de casos, seja pela questão financeira envolvendo estas decisões. Os gastos gerados por estas condenações, na maioria das vezes, não costa no orçamento prévio dos Municípios, Estados e União, o que acaba por revelar um problema financeiro muito grave aos estes da Federação. O tema sem dúvidas é divergente merecendo maior análise.

4.2.1 A questão da Saúde em face do Ativismo Judicial

 Com advento da Constituição da República de 1988 houve um crescente aumento de demandas judiciais destinadas a exigir dos entes públicos as mais diversas prestações materiais. Desde então, o Poder Judiciário, em muitos casos, vem determinando como a Administração Pública deve agir em casos específicos. Situação emblemática nessa questão tem ocorrido no setor de saúde. Não raras vezes, inclusive em cognição sumária, determina-se aos entes públicos que providenciem, em tempo ínfimo, medicamentos, tratamentos e outros insumos judicialmente pleiteados.

Nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e Municipais. (BARROSO, 2015)

Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos (BARROSO, 2009). Tais medidas causam descontrole nos orçamentos dos entes estatais na medida em que privilegiam uma individualidade em detrimento da coletividade, ou seja, a verba que seria usada para um plano de ação coletivo, por exemplo, após determinação judicial é destinada a custear tratamento de uma minoria que recorreu à justiça.

Insta salientar, que ao proferir decisões que compelem à Administração Pública a obrigação de fazer, o próprio Poder Judiciário determina o ente a descumprir a lei, já que para executar a sentença o Administrador Público, necessariamente deixará de cumprir com a previsão da Lei de Diretrizes Orçamentárias e com o Orçamento Público ao qual está, ou pelo menos deveria estar adstrito, para cumprir com a determinação judicial. O não cumprimento do Orçamento Público acarreta em prejuízo para a sociedade num geral, gera instabilidade do sistema que passa a atuar em meio a falhas, pois retira determinada verba que seria utilizada para atender o interesse público para satisfazer pretensões individuais.

A Constituição estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. No entanto, o seu acesso deve se dar em igualdade de condições, tudo em consonância com o princípio da igualdade que deve existir entre todos os que recorrem ao serviço público de saúde. Compete à Administração Pública a tarefa de organizar e oferecer a prestação deste serviço. Eventuais intervenções Judiciais nesta questão só se legítima quando houver flagrante ilegalidade no sistema. O Poder Judiciário ao intervir na Administração Pública – condenando-a a realizar esse ou aquele tratamento médico em alguém, ou mesmo, obrigando que determinado hospital atenda um doente em detrimento de outro – viola os princípios da isonomia e da separação dos poderes (art. 2º, da CRFB/88). [12]

São muitas as deficiências no sistema de saúde do país, constitui uma infeliz realidade e desafiam ações do Poder Público, no entanto, isso não legitima eventuais intervenções judiciais, que impactam negativamente nas políticas estabelecida pelos governos na área da saúde, causando um grave problema financeiro e orçamentário, comprometendo todo o sistema e todos aqueles que dele necessitam.

A questão em comento pode facilmente ser analisada à luz da “teoria dos jogos”. Aproposito, esta interpretação foi dada pela Juíza Federal Gisele Chaves Sampaio Alcântara, no artigo “Judicialização da Saúde: uma reflexão à luz da teoria dos jogos” (ALCÂNTARA, 2015, s/n). Neste artigo, Gisele explica que

Não se pode olvidar que a implementação dos direitos sociais exige a alocação de recursos, que são, por natureza, limitados. Sendo assim, para que a isonomia seja assegurada é necessário que o magistrado desenvolva uma visão pragmática centrada na análise dos efeitos prospectivos e concretos operados por parte de cada decisão judicial sobre a realidade socioeconômica, sob pena de, com a multiplicação desordenada de demandas judiciais maximizadoras do espectro de proteção dos direitos, tornar impossível a realização do seu núcleo essencial para a coletividade.

Neste contexto, a teoria dos jogos revela que as demandas judiciais não são realidades insuladas, fatores anódinos sobre a realidade coletiva. Funcionam, sim, como estratégias ou linhas de ação adotadas por diversos agentes que interagem entre si, e que, como tal, têm o poder de contribuir sobre os rumos das relações de toda a coletividade. (Grifo nosso).

 

Diante de toda está situação, entendemos que o melhor caminho seja mesmo a da cautela por parte da atuação do Judiciário frente às demandas de saúde. É indispensável que cada julgador leve em conta, que ele está inserido em um sistema necessário, fundamental, ao mesmo tempo falho, mas que na maioria das vezes conta com recursos financeiros finitos, o que em muitas vezes inviabiliza o serviço. Sua decisão, à vista disso, acarretará na interferência do funcionamento de todo um processo, que conta com orçamento financeiro prévio, gestão pública, políticas públicas, administração específica no setor da saúde, de competência da Administração Pública. Sem falar do elevado número de pessoas que conta com o serviço.

Cabe ao Juiz ou Tribunal, portanto, tomar consciência do seu papel e assumir a responsabilidade de ser, mesmo nas demandas individuais, um agente com poder de interferir sobre as relações coletivas. Para demonstrar a veracidade desta asserção, aplique-se a Teoria dos Jogos às ações de fornecimento de medicamentos (ALCÂNTARA, 2015).

Tal formulação é utilizada para demonstrar que, em determinados processos em que se pleiteiam intervenção judicial no setor da saúde, o fato de que cada indivíduo buscar o melhor para si leva a uma situação que pode não ser a melhor para todos. A Teoria dos Jogos comunica diretamente com o Direito, em especial, no campo da judicialização dos direitos sociais. A relação com essa ideia demostra claramente os efeitos gerados pela multiplicação de várias decisões individuais, proferidas em casos concretos nos mais diversos juízos e tribunais do País, sobre as relações sociais e econômicas da coletividade.

Não podemos negar as enumeras deficiências do sistema público de saúde do país, a precariedade no atendimento à população e a superlotação nos hospitais públicos são notórias. A necessidade é muito maior do que a disponibilidade física, entretanto, tais problemas devem ser solucionados com a melhoria das políticas públicas de saúde e não apenas em favor de quem pede por meio de intervenções judiciais. Todos estes problemas, infelizmente, não serão resolvidos em âmbito Judiciário, muito pelo contrário, sua atuação volumosa pode agravar ainda mais o sistema único de saúde nacional. A solução deste problema, a nosso entender, passa pela Administração Pública, que deverá buscar, por meio de ajustes pontuais no sistema e politicas publicas eficientes à melhoria constante no serviço oferecido ao cidadão. Este, aliás, é o entendimento dado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.[13]

4.2.2 O problema do Ativismo Judicial em matéria de Políticas Públicas

Com relação à postura ativista do Judiciário, sobretudo no campo da judicialização de políticas públicas, vimos que a prática vem crescendo, não por acaso após a Constituição de 1988, que ampliou os canais de participação social e positivou diversos fins econômico-sociais (BADIN, 2013). Essa tendência, em muitas das vezes, pode promover resultados socialmente indesejados do ponto de vista político e econômico. De forma que a pergunta que se coloca neste momento e que é crucial para o desfecho da questão é se a substituição do juiz ao legislador como órgão criador do direito seria constitucional.

De um lado, o argumento de falta de legitimidade democrática dos juízes (por não serem eleitos nem arcarem com a responsabilidade política de suas decisões), do outro, o da defesa das minorias não representadas no processo político (que valeriam do Poder Judiciário para fazer incluir seus interesses no desenho final das políticas públicas). A este argumento, opõe-se a objeção da captura (interesses minoritários, porém mais influente sobre o Judiciário, teriam condição de enviesar as decisões em seu favor). Em face deste argumento seriam invocados os direitos sociais e econômicos consagrados na Constituição, a inafastabilidade da apreciação judicial e a “eficácia plena” das normas consagradas constitucionalmente. Em resposta à aplicação dogmática das normas constitucionais, fala-se em incapacidade institucional do processo adjudicatório em lidar com questões sociais e distributivas, assim como a falta de compromisso com a avaliação das consequências das decisões judiciais (o que tornaria o judiciário prejudicial ao desenvolvimento econômico). Em contrapartida, a quem defenda a legitimação do judiciário como powerbroker (atribuindo a importância de sua atuação justamente à quebra do status quo e à catalisação de transformações sociais) (BADIN, 2013)

Questiona-se, ainda, se a prática ativista dos magistrados não afrontaria o princípio da separação dos poderes previsto no artigo 2º da Constituição da República de 1988. Considerando que, a princípio, em um estado de bem-estar social, cabe ao administrador público providenciar a implementação das leis, criadas em âmbito Legislativo, que garantam os direitos individuais, sociais, difusos e coletivos. Onde estaria então a legitimidade dos tribunais e do Juiz no desempenho deste poder político, inclusive o de intervir nas esferas dos outros dois poderes.

Segundo Bráulio Lisboa Lopes (2014), a elaboração das políticas públicas pressupõe uma atuação prestacional positiva estatal objetivando a concretização de um mínimo existencial a ser assegurado ao cidadão. A efetivação dessas políticas públicas envolve uma colaboração entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, sendo uma das atribuições principais do primeiro ente estatal a aprovação da peça orçamentária, onde constarão os recursos necessários para viabilizar a execução do planejamento dos serviços sociais que o segundo ente estatal procedeu.

A escolha das prioridades a serem implementadas em sede de políticas públicas deve ser fruto de uma escolha racional efetuada pelo administrador público, sempre pautado pelo interesse público. A implementação das políticas públicas impõe a utilização de certa margem de discricionariedade e hierarquização dos objetivos a serem alcançados, sendo fruto de um processo político de escolha de prioridades a serem implementadas a partir de um conjunto de ações dos governantes e da sociedade civil, em verdadeira simbiose.

A atuação estatal ineficiente leva ao ativismo judicial, fazendo com que os magistrados passem a tutelar os direitos essenciais ao bom funcionamento da democracia através da construção da uma lei para cada caso concreto, passando a atuar em seara que, a priori, deveria ser exclusiva do Poder Legislativo, através da edição de normas de cunho geral.

Para que a atuação do Poder Judiciário seja legítima, torna-se necessário o estabelecimento de balizas de acordo com o grau de implementação das políticas públicas adotadas pelo Estado. Essa atuação é tanto mais legítima quanto menor for o grau de implementação das políticas públicas realizadas pelo Estado. Quanto mais abstrata for a lei, mais espaço haverá para a omissão estatal (ineficiência) e para a atuação judicial, na tentativa de correção desta omissão estatal.

A intromissão do judiciário em certas hipóteses, atuando como legislador positivo, pode mostrar-se nefasta à consecução das políticas públicas planejadas pelo Estado- Administração a longo prazo, por redirecionar recursos estatais a um ou alguns indivíduos inicialmente não contemplados nas ações da referida política pública. Haveria, nessa hipótese, verdadeira substituição do mérito administrativo pela sentença

Judicial. Não se afigura legítimo, pois, a atuação judicial substituindo o Poder Legislativo quando se tratar de normas programáticas que não envolvam o mínimo existencial, devendo o judiciário adotar uma postura de self restraint (autocontenção) em sua forma de atuação.

Já nas situações em que a implementação das políticas públicas foi formalmente atendida, mas materialmente verifica-se incompatibilidade com o texto constitucional, surge a necessidade de intervenção do Poder Judiciário no intuito de repor a integridade normativa da constituição, de modo que a referida lei ou ato normativo sejam eliminados por incompatibilidade com o texto constitucional. Trata-se de hipótese em que a atuação do Poder Judiciário está prevista no texto constitucional, ficando caracterizada a sua legitimidade, pois sua atuação foi prevista pelo Constituinte e inserida no texto constitucional, com vistas a resguardar os interesses da coletividade.

5. CONCLUSÃO

A análise da atual realidade do Estado constitucional deve ser feita a partir da concretização da segunda dimensão dos direitos. Que revolucionou o papel do Estado em relação ao indivíduo, estabelecendo direitos e garantias fundamentais que tem por objetivo assegurar a todas condições mínimas de vida. Para que o Estado – Poder Público – cumpra com essa função constitucional, sua atuação se dá de maneira positiva, criando e executando políticas públicas de cunho prestacional. Por meio de leis e atos administrativos o Estado deve definir, executar e implementar, sempre de acordo com o interesse público, as políticas públicas que atenderam as necessidades e anseios sociais.

Na prática, sabemos que infelizmente nem todas estas políticas sociais são efetivas, ou conseguem atender de maneira devida a todos os que delas se beneficiam ou recorrem. O problema faz parte da realidade vivida pela maioria dos brasileiros, os motivos dessa ineficiência institucional residem, em grande parte, pela falta de recursos financeiros necessários para sua efetivação e pela omissão do Poder Legislativo e Executivo em instituir e regulamentar políticas públicas que facultem o gozo efetivo dos direitos constitucionalmente protegidos. A incapacidade do Estado no oferecimento de serviços públicos, somado a má gestão das políticas públicas tem levado a judicialização destes serviços, prática cada vez mais crescente. Diante do descaso público, o cidadão busca a efetivação de seus direitos através da judicialização de políticas públicas.

Está atuação omissa e ineficiente por parte dos Poderes Legislativos e Executivo em atender às metas constitucionais de implementação de políticas públicas fez com que o Judiciário assumisse um papel cada vez mais ativo, na tentativa de correção desta omissão estatal, seja na solução de problemas de grande repercussão social, seja na solução de casos concretos que envolvam direitos fundamentais sociais. Dando ao magistrado a opção de criar o direito em cada caso concreto, passando este a atuar na esfera que, a princípio, deveria ser exclusiva dos outros poderes do Estado, em edições e execuções de leis.

É notável que a judicialização e o ativismo judicial são fenômenos importantes que em muito contribui para a sociedade, tendo em vista sua uma intima relação com os direitos fundamentais e com os princípios constitucionais democráticos. No entanto, o excesso desta postura ativista pode causar impactos negativos na organização dos serviços públicos, pondo em risco a atuação governamental, e no mínimo comprometendo o princípio da separação dos poderes. O que revelando que a atuação ativista do judiciário pode não ser a melhor forma de correção das falhas do Poder Executivo em cumprir com seu dever constitucional de prestar serviços públicos de cunho prestacional de qualidade.

A nosso entender, o Judiciário pode, mas nem sempre deve interferir. Em se tratando de violação aos direitos fundamentais – para garantir o mínimo existencial – ou clara afronta a alguma outra norma constitucional a intervenção judicial se justifica, já que sua atuação se dá pela garantia e guarda da integridade normativa da Constituição. Caso contrário, caberá ao judiciário adotar uma postura de self restraint (autocontenção) em sua forma de atuação.

REFERÊNCIAS

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NOTAS DE FIM

[1] Advogado da União (AGU), Mestre em Direito, Professor do Centro Universitário Newton Paiva.

[2] Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.

[3] Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.

[4] Para Ana Paula de Barcellos o mínimo existencial corresponderia a “um elemento constitucional essencial, pelo qual se deve garantir um conjunto de necessidades básicas do indivíduo”. A autora compreende o mínimo existencial como um núcleo irredutível do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual incluiria um mínimo de quatro elementos de natureza prestacional: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça.

[5] RE 580252 RG/MS. Repercussão Geral No Recurso Extraordinário. Relator: Min. Ayres Britto. Julgamento: 17/02/2011. RECTE.: ANDERSON NUNES DA SILVA. RECDO.: ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. EMENTA: LIMITES ORÇAMENTÁRIOS DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. EXCESSIVA POPULAÇÃO CARCERÁRIA. PRESENÇA DA REPERCUSSÃO GERAL. Possui repercussão geral a questão constitucional atinente à contraposição entre a chamada cláusula da reserva financeira do possível e a pretensão de obter indenização por dano moral decorrente da excessiva população carcerária.

[6] Decisão proferido no RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº 592.581. Relator: Min. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 13/08/2015, RECTE.(S) MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

[7] Idem.

[8] HC 106153, Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgamento em 22.11.2011, DJe de 19.12.2011.

[9] Súmula Vinculante n° 11.

[10] Súmula Vinculante n° 12.

[11] Súmula Vinculante n° 13.

[12] Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Apelação Cível n° 2011.51.01.008337-2.

[13] Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Apelação Cível n° 2011.51.01.008337-2.