André Luiz de Carvalho[1]
Aline Aparecida Tenório Rodrigues[2]
Myrella Carvalho Silva[3]
Maria do Carmo de O. M. dos Santos[4]
“Prá lá você vai, se não for, a vida há de lhe custar.”
RESUMO: A pesquisa que deu origem a este artigo teve como objetivo apresentar uma reflexão sobre as narrativas de idosos, abrigados em asilos públicos, a fim de investigar a visão de mundo desse segmento social, observando o processo de exclusão e resistência à exclusão, tendo como referência a cena enunciativa de seus relatos. Partindo do princípio de que muitos idosos hoje vivem fora do seio familiar e “à margem da sociedade”, abrigados em ILPs (Instituições de Longa Permanência públicas ou filantrópicas), é pertinente pesquisar, pois, como se configura o imaginário de pessoas idosas social e economicamente excluídas. Os relatos demonstraram a complexidade do lugar a eles delegado por nossa sociedade.
Palavras-chave: Idoso. Narrativas. Sociedade. Exclusão. Resistência.
ABSTRACT: The research that led to this article aims to present a reflection on the narratives of elders sheltered in public nursing homes in order to investigate the worldview of this social segment, noting the process of exclusion and resistance to exclusion, with reference the expository scene of their reports. The assumption that many elderly people, today, live outside the family environment and “in the margins of society”, housed in ILPS (Institutions of Long Permanence, public or philanthropic), it’s relevant to search for, as you configure the imagination of elders socially and economically excluded. Reports showed the complexity of the place they delegated by our society.
Keywords: Elderly. Narratives. Society. Exclusion. Resistance.
APRESENTAÇÃO
O grupo de pesquisa “Estórias contam Histórias” constituiu-se a partir da coleta de histórias contadas por idosos abrigados em Instituições de Longa Permanência (ILPs), públicas ou filantrópicas. O objetivo principal, a priori, era coletar histórias ficcionais narradas por esse segmento social e, através das narrativas, perceber o processo de exclusão e resistência à exclusão, vivenciado pelo idoso. Os entrevistados tinham, em média, de 60 a 104 anos, sexo masculino e feminino. No momento, entendemos por idosos, pessoas que, apresentando características de envelhecimento e consequentes falências físicas, encontram-se morando nas “ILPs” e vivem limitadamente afastados da sociedade. Mesmo porque ao questionarmos quem pode ser chamado de idoso percebemos que, “[…] as tentativas de definição são sempre contrapostas com alguma objeção que faz valer a tese de que algo escapa àquilo que se constitui a velhice” (MUCIDA, 2004, p. 27).
Talvez porque, hoje, existe uma clara negação do envelhecimento. Isso se tornou uma questão cultural em nossa sociedade. Haja vista os eufemismos utilizados para nos referirmos a esta etapa da vida, tais como: melhor idade, adulto maduro, meia idade, idade madura, maior idade, idade legal, terceira idade etc. (NERI e FREIRE, 2000). O uso de termos e expressões que se referem à velhice ratifica o medo e a negação do envelhecimento, fenômeno chamado de gerontofobia, que só acontece porque sentimos a problemática do lugar social a eles delegado em nossa sociedade, razão pela qual tememos os reveses e as vicissitudes da vida.
Sabemos pela própria experiência que a sociedade capitalista valoriza o cidadão em sua fase produtiva e com potencial de consumo. Ao entrar para a “terceira idade”, se o indivíduo não atende a essa demanda do mundo capitalista, ele é alijado da sociedade. Já há algum tempo que Néstor Cancline, em “Cidadãos e consumidores”, alertou-nos para essa falácia social, dizendo que somos considerados mais ou menos cidadãos dependendo de nossa capacidade de consumo. Nessa perspectiva, precisamos ter ciência de todas essas distorções, pois, segundo Neri e Freire (2000, p. 14), “Se as várias realidades da velhice e do processo de envelhecimento fossem bem conhecidas, não seria necessário temê-las, evitá-las ou negá-las.”
Papaléo Netto (1996) também comenta que a questão de ser velho é um fenômeno mundial. Porém, no Brasil, a discussão sobre envelhecer é algo novo e aparece como preocupação a partir dos anos 70. Hoje, a expectativa de vida está aumentando por causa dos programas de prevenção às doenças, como a hipertensão, controle dos problemas cardíacos e outros. Além disso, a prática de exercícios físicos iniciada mais cedo e se prorrogando ao longo da vida leva as pessoas a viverem mais.
Acrescentamos a isso o consciente controle de natalidade, fazendo com que a camada social composta por pessoas de mais idade torne-se mais significativa. O último censo (2010) mostrou que há dez anos, o número de idosos representava 8% da população brasileira. Hoje, o Brasil tem 12% de pessoas acima dos 60 anos de idade. [5] Este processo está acontecendo desde o final da década de 1960, “quando o declínio da mortalidade passou a ser acompanhado por uma redução também das taxas de fecundidade”, sendo preciso buscar uma maturidade sociocultural para acompanhar essa novidade demográfica, pois histórica e culturalmente, o Brasil é marcado por desigualdades sociais e culturais.
Nesse contexto, Papaléo Netto (1996) questiona: Que lugar os idosos ocupam na sociedade brasileira? Que lugar as pessoas idosas construíram para si e os demais na sociedade brasileira? O autor diz que o papel da família é importante em dois estágios da vida: no período educativo e na senectude. Muitos idosos não estiveram ligados ao sistema previdenciário e estas pessoas hoje estão totalmente dependentes de parentes ou de ações do Estado. O teórico enfatiza que é importante considerar que não existe um só envelhecer, mas processos de envelhecimento e que estes variam de acordo com o gênero, a etnia, a classe social, a cultura e outros aspectos. Essa constatação também instigou a pesquisa, uma vez que refletir sobre esse segmento social levou os acadêmicos a conhecer melhor a realidade imutável da vida: o envelhecer. Repensar, pois, o lugar social destinado às pessoas nesta fase da vida constituiu um aspecto positivo e pertinente deste trabalho.
Quanto à metodologia, utilizamos a pesquisa teórico-metodológica a fim de nos ajudar nas coletas e nas análises das narrativas. No início da execução do projeto, vários encontros foram feitos, para estudo e discussão do referencial teórico. Em “Aprendendo a entrevistar”, Valdete Boni e Silvia Jurema Quaresma (2005) abordam a importância do método de entrevista “aberta” para coleta de histórias de vida na perspectiva científica. Além de ouvir as estórias, o aspecto observação também fez parte da investigação. Assim, os iniciantes aprenderam a técnica de ouvir, mas sem muitas interferências para manter a distância necessária a “objetividade científica”, como explicam as autoras.
Após a preparação dos componentes do grupo sobre a forma de abordagem, a partir da leitura de textos sobre tipos de pesquisa, especialmente sobre a pesquisa qualitativa, iniciamos as entrevistas que foram aplicadas em instituições de Belo Horizonte e Região Metropolitana.
Na fase exploratória, foram discutidos os objetivos gerais e específicos e algumas questões nortearam nossa pesquisa, tais como: quem são esses idosos? Suas “histórias” apontam para uma possível ruptura e esfacelamento de laços sociais? De que forma suas narrativas relacionam-se com a situação de marginalização ou exclusão? Quais os movimentos de resistência à exclusão são apresentados em seus discursos?
Desse modo, motivados por esses e outros questionamentos, partimos para a pesquisa de campo. Esse momento foi inteiramente enriquecedor, pois aprendemos muito sobre a vida dos idosos que vivem em ILPs. Conhecemos, inclusive, uma casa que fica no centro da cidade, em que as pessoas com mais idade, que ainda preservam sua saúde mental e física, podem sair e voltar, desde que respeitem regras que garantem a segurança dos abrigados. Constatamos que a prática asilar tem crescido cada dia mais na cultura brasileira e, juntamente com esta prática, observamos que, muitas vezes, essas pessoas vivem afastadas da vida familiar, social e cultural.
Dessa maneira, o fato de muitos idosos viverem, hoje, fora do seio familiar e “à margem da sociedade”, instigou-nos a pesquisar como se configura o imaginário de pessoas idosas social e economicamente excluídas. Os relatos, ficcionais ou não, serviram de objetos de análises e apontaram “o lugar a eles delegados por nossa sociedade.” Lugar este muitas vezes mascarado por um discurso social de “direitos humanos”. Sabemos que todo discurso é ideológico e marca um lugar de fala, porque é atravessado por “vozes”, no sentido bakhtiniano. Os discursos considerados, assim, denunciam conflitos, tensões, misérias nesta fase de vida.
O território densamente simbólico e descritivo da realidade de vida dessas pessoas levou-nos a perceber o sentimento de exclusão e resistência à exclusão, denunciados por seus discursos. Nessa perspectiva, a análise das narrativas teve como propósito desvelar os dilemas vivenciados pelos asilados. Os relatos, aqui, para ficar no universo bakhtiniano, são tomados como práticas sociais e, por isso mesmo, são sócio/histórico/culturalmente construídos. Dessa maneira, ao ler nas entrelinhas das histórias, usando como ferramenta operacionalizadora a análise do discurso, percebemos a exposição da miséria humana, e que ao relatar imbricadamente o factual e o ficcional, esses cidadãos deram-se a ler em seus sentimentos de abandono e carências afetivas. Nesse contexto, a pesquisa voltou os olhos para este grupo também como minorias, não em relação a números, mas em termos de força perante a sociedade, assim como o processo de envelhecimento e suas implicações.
Ao analisarmos a produção cultural do grupo idoso e o papel de narrar a sociedade em seus movimentos de exclusão e resistência, analisamos as histórias no centro das discutidas relações entre texto e sociedade, por isso não perdemos de vista a questão do contexto sócio-histórico, uma vez que nos permitiu delinear a constituição dos sujeitos textuais e sociais, como norteia Antonio Candido (2010) em “Literatura e sociedade”. É sobre isso e outras constatações que iremos discorrer na exposição da parte analítica a seguir. Os relatos aqui analisados foram registrados apenas com as iniciais dos entrevistados, a fim de preservar a identidade dos idosos.
Em primeiro lugar, precisamos relatar nossa surpresa durante o percurso da coleta das histórias. O grupo percebeu que, longe do universo ficcional, (no projeto, pensávamos que os entrevistados facilmente contariam histórias ficcionais), os entrevistados estavam impregnados de suas histórias de vidas, a ponto de, no universo de 40 entrevistas, 10 histórias não serem consideradas pelo comprometimento cognitivo dos entrevistados, entre 30 histórias registradas, apenas 3 fizeram referência ou alusão a alguma história ficcional por eles ouvida ou contada. Contudo, isso não invalidou o trabalho, pois sabemos que contar histórias de vida (99% dos inquiridos falaram de histórias passadas), também é uma forma de desvelar seus conflitos, tensões e percursos.
Pertinente lembrarmos aqui Walter Benjamim (1993) ao defender que a memória não seria uma mera recordação, mas uma forma particular de juntar “cacos da história” particular e ou coletiva. A memória resgata, pois, acontecimentos, trazendo o passado para o presente e mostrando esse passado de modo inacabado, inesgotável, passível de novas leituras. No recontar suas histórias, o sujeito que narra identifica-se em um espaço e em um tempo, categorias também relacionadas ao imaginário, como percebemos no relato da Sra. M.: “Eu num sei nada de histórias […] sei só da vida […]”. Saber da vida, nesse caso, é presentificar um passado que os mantém vivos.
A partir disso, há duas ponderações importantes a fazer: a linguagem não dá conta da realidade, apenas a representa. Muito menos podemos afirmar que as reminiscências sejam fieis ao fato narrado, pois são construídas por fragmentos de memória. Nessa perspectiva, as narrativas aqui foram consideradas nesta imbricação do factual/imaginário/ficcional. Assim, podemos também lembrar
Derrida (2001) quando diz que o arquivo tem um lugar, um lugar da falta originária e estrutural chamada memória. Podemos recorrer a este conceito de Derrida (2001) para estabelecer uma analogia do funcionamento da memória com a atividade dos arcontes que, além de guardar, também interpretam os arquivos. Nessa função árquica, o arquivo abriga, dissimula, reúne signos. A memória também “abriga” e “dissimula”, e foi nesta prática que a subjetividade, calcada na experiência comum do sujeito, manifestou-se, revelando os problemas cotidianos dos idosos asilados, representando também suas percepções sobre o “estar no mundo”.
Em algumas ILPs moram pessoas, muitas vezes, de idade avançada, aposentadas ou não, cuja capacidade de autonomia já se encontra corroída pelos anos e pelas vivências. Como é o caso do Sr. J., de apenas 62 anos:
Eu mesmo pensei que nunca eu vinha morar aqui […] A vida a gente não sabe […] A gente não sabe o fim da vida […] Eu tenho dois filhos, e pensei que eles fosse cuidar de mim […] Eles estão trabalhando, estudando […] Num pode cuidar de mim. Eu não tenho histórias […]
Eu trabalhava com divisória, eu sofri um acidente de carro, o carro capotô, eu bati a cabeça […] Lá nu anel.
Esse discurso ambíguo, que ao mesmo tempo denuncia, mas também isenta os familiares da responsabilidade de seu abandono, aparece de forma contundente. Foram poucos aqueles que têm filhos, parentes próximos que não repetiram argumentos referentes ao fato de os familiares não poderem cuidar deles por causa do trabalho. A Sra. M. J. (88 anos) também relatou:
Sou viúva, tive 5 fios. Um morreu, os outros tão bem […] trabaiam […] já tenho netos […] mas eles trabaiam muito […] de vez em quando vem aqui me vê […] mas num vem muito porque aqui é longe e eles num tem tempo […] ganhar a vida tá difícil […].
Em outro relato, o Sr. M. diz: “Eu tô com a saúde muito abalada […] Eu era porteiro de prédio e gostava, mas depois aposentei […]. Aí eles me colocaram aqui[…]. Os mininos […] Eu tava vivendo sozinho, eles me colocaram aqui, minha esposa faleceu […]”. O físico sente o envelhecimento e o estado de saúde agravado por doenças que comumente acometem as pessoas idosas, levam-nos à necessidade de cuidados especiais. Porém, a impossibilidade de uma pessoa da família disponibilizar seu tempo para os devidos cuidados faz os familiares optarem pela internação.
[…] é. eu tenho minha casa, meu filho que trata de mim é o B. cabeleireiro. E ele vive só com esse casal de cachorros, e aí eu vim pra cá, porque ele vive sozinho, faz tudo […] e […] não pode cuidar de mim, por isso ele me pôs aqui […] pra me cuidar, porque ele não tem jeito, ele é cabeleireiro e tem os negócios dele pra fazer, tem a casa, tem a roupa pra lavar, tem as coisas dele pra fazer, num tem tempo de cuidar de mim..(Sra. J.)
Duas ideias estão implícitas nessa fala. Primeiro, a Sra. J. reconhece representar um “peso” na vida do seu filho, que a leva a um certo conformismo quanto à situação de ficar longe do filho, apesar de sentir a falta dele. O discurso, contraditoriamente, traz marcas de caráter identificador da ingenuidade de sua percepção. O próprio estado senil propicia uma limitação das forças propulsoras da vida, levando ao conformismo, causado por uma pseudoingenuidade.
“Dentro desse campo – o social- e, principalmente, nas terras do Ocidente, o velho caminha com dificuldade, impossibilitado pelos assim chamados passos sociais” que os levariam ao fim do percurso de forma menos carente (SENE, 1998, p. 50). A estudiosa diz que, no início, sua pesquisa foi desacreditada, pois os psiquiatras acreditavam que o aparelho psicofísico do idoso está estruturado de tal modo que qualquer intervenção seria estéril. Mas a autora defende firmemente que:
[…] por mais que o homem envelheça, por mais que a sociedade determine sua idade e classifique-o como velho, enquanto viver, ele não deixará de existir como pessoa e ter direito a um espaço na sociedade”. Não podemos, assim, ignorá-los. (SENE, 1988, p. 50)
Nos últimos anos, o número de idosos triplicou no Brasil, e segundo o IBGE ainda não existem políticas públicas que consigam oferecer recursos necessários para a melhoria da qualidade de vida do idoso. Sendo bem assistido, o idoso poderia, entre outros aspectos, ter acesso a um possível entendimento de suas necessidades. Conhecendo a dinâmica de suas vidas, as pessoas diminuem o sofrimento causado pela ausência de seus entes queridos. Na medida em que justificam para o outro o distanciamento dos familiares como comentávamos, essas pessoas não necessariamente estão aceitando passivamente o distanciamento.
Ao contrário, há nos discursos uma consciência do abandono, negada por não saberem lidar com o sentimento de rejeição. Não é fácil admitir que não somos amados por quem mais queremos. Por essa razão, a negação revela a dialética da resistência entre a estória/história e a realidade. Vejamos mais dois exemplos: a Sra. M. D. (88 anos) diz: “Sou viúva, tive 5 fios…um morreu, os outros tão bem…trabaiam…já tenho netos…mas eles trabaiam muito…de vez em quando vem aqui me vê…mas num vem muito porque aqui é longe e eles num tem tempo…ganhar a vida tá difícil…” E a Sra, R.P.S. revela: “Eu vim pra cá por necessidade, né? Porque eu não tenho mais família, né? Morreu toda. Tenho um sobrinho, mais sobrinho… cada um tá cuidando da sua vida, né?” A repetição do “né”, chamando o interlocutor a concordar com sua fala, mostra uma tentativa de dar um tom de “normalidade” ao afastamento dos familiares. A nossa percepção a esse respeito é que o sujeito que fala tem clareza de seu abandono, porém, ouvir ou falar sobre isso só aumenta sua dor. Por essa razão, repetem o argumento de que seus entes precisam trabalhar, não disponibilizando tempo para eles.
Mais adiante, a senhora resolve se abrir e revelar, inclusive, a noção de que seria explorada: “Sobrinho… eu tenho bastante sobrinhos, mas eles tá lá e eu tô cá. Porque os sobrinhos têm as mulheres deles, os filhos deles. Eles quer tia velha, tia sem dinheiro, tia pobretona prá ser empregada da mulher deles… isso eu não aceito… eu trabalhei, ganho pouco mais é meu…”(Sra. R. P. S. – 88 anos). É a palavra que liberta quando se debruça sobre o descompasso do sentimento de exclusão e descaso. O fato de considerar aí a escolha de não aceitar a exploração como objeto de troca para se obter o convívio familiar comprova a clareza de sua percepção.
São histórias como essas que nos permitem vislumbrar o olhar melancólico do idoso diante de sua realidade, isto é, na contingência da exclusão social e familiar. Assim também corroborada pelas palavras de outra entrevistada: “Eu fui criada e fiquei só/// Uma tristeza morrer assim/// E queria ir pra casa… Prá casa, mas não tenho…” A casa representa o lar, a família e, simbolicamente, é o lugar seguro. As palavras casa, família, filhos, netos, pai, mãe, irmão aparecem repetidamente em todos os relatos. Vejamos alguns exemplos: “Eu não tenho quase que … Nem família, nem irmão… Eu não tenho… É ruim…(…) Eu to aqui…Tinha uns menino… Tudo morreu… Tinha pai, mãe… (Sra. M., 87 anos).” Outro relato marcante foi o de um senhor de 86 anos:
Eu tô aqui esperando meu irmão que vem me buscar… Ele me trouxe aqui pra mim fazer um exame da minha vista… Mas eu não sei o que aconteceu, ele me deixou aqui falo que ia no centro da cidade resolver uns negócios… Eu to esperando ele… Ele não veio me buscar, eu já to aqui há uma semana e ele não veio eu pedi pra ligar pra ele, mas eu não entendo… Um lugar deste tamanho num tem um telefone pra gente ligar… Eu sinto muita falta dele. A gente ficava conversando muito… Na casa era só eu, ele e a filha dele. Eu não sei, porque na casa tinha um telefone, mas o pessoal daqui falô prá mim que ninguém atende… Num sei o que aconteceu ele também deve tar sentindo muito a minha falta, porque a gente só ficava coversando… Então eu fico aqui, mas eu não posso sair daqui, porque senão ele vai chegar e me procurar…
Ah, eu to muito triste, eu sinto falta do meu irmão… (Sr. E.)
Esta história comoveu-nos muito, pois todas as vezes em que estivemos nesta instituição para fazermos as entrevistas, este senhor estava sentado no refeitório, no mesmo lugar. Pelo seu relato, percebemos que o “lugar” representa o elo que ele mantém com o irmão. “Então eu fico aqui, mas eu não posso sair daqui, porque senão ele vai chegar e me procurar…” Na esperança de que o irmão venha buscá-lo, o Sr. E. não se afasta daquela mesa, perto dos banheiros. O cheiro forte de urina, que exalava durante nossa conversa, somado às suas palavras, contribuiu para a percepção do cenário de solidão e abandono. Ainda que bem tratados nas clínicas de repouso, muitos percebem o asilo como um lugar onde são despejados para não se tornarem um fardo pesado para família.
Dessa maneira, os relatos analisados respondem à nossa questão: Os idosos têm percepção crítica quanto aos dilemas da discriminação, da exclusão, da cidadania ou eles se colocam como observadores passivos da sociedade contemporânea? Parece-nos que eles percebem as falácias a que estão submetidos, mas não possuem forças, nos mais diversos sentidos, de lutar contra elas. Assim, o que precisa ser mudado é o olhar da sociedade em relação a essa etapa de vida. Na verdade,
É necessário entender a velhice como um tempo de vida, com todas as suas implicações individuais e mudanças biológicas, psicológicas e também como um fato social, enquanto implicações sociais e culturais e sua repercussão no coletivo. (HERÁDIA e CASARA, 2000, p. 31).
Logo, a senilidade é um fato social que não pode ser percebido isoladamente e nem ser entendido como um problema. Ao contrário, as famílias precisam reconhecer a senilidade como contingência inevitável da vida e se prepararem para lidar com o envelhecimento de seus entes. Os cuidados com os idosos são prescritos pelo “Estatuto do idoso”, Art. 3o, assim determinado:
É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.” E a lei é bem claro no parágrafo “V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência”. Mas, quando as pessoas se veem sozinhas nesta fase, depois de muitas perdas, agravados pelos problemas da decrepitude, a tendência é surgir a baixa da autoestima, acompanhado da depressão, como podemos notar em vários relatos:
Eu to aqui… Tinha uns meninos… Tudo morreu… Tinha pai, mãe… Eu fui criada e fiquei só… Uma tristeza morrer assim… E queria ir pra casa… Pra casa, mas não tenho… Você já veio aqui uma vez… Eu sinto muita dor… Dói tudo…Sabe como é, né? A gente fica muito triste… Eu tomo muito remédio. Hoje eu queria ficar deitada… Tive… É que não gosto de ficar quietinha no meu canto… Ah… A vida é só isso… Quando acordo eu fico na cama, mas vem a moça e fala… Eu tenho que comer… É muito triste… A gente ‘sozinha…(Sra. M., )
“Tudo morreu…Tinha pai, mãe”. A figura paterna remete à ideia da origem da vida. O “pai”, simbolicamente, é o começo de tudo, inclusive de nossa civilização. Ao lembrar o pai, a mãe, a entrevistada diz querer voltar para casa. A palavra “casa” abre-se novamente para o “lugar de origem”.
Pai, casa, família representam o lugar do acolhimento, da identificação, da segurança. Podemos notar uma certa tristeza em seu discurso, denotando a experiência da falta de sentido para a vida. Mesmo vivendo no meio de várias pessoas e recebendo os cuidados necessários para sua sobrevivência, a idosa fala com “dor” desse sentimento.
“Entrevistadora: Mas a Sra. Não está sozinha…não tem muita gente aqui…os amigos? – É que num gosto…num tenho encanto…Entrevistadora: Não tem encanto? É…encanto….a vida passou… nem me lembro mais…”(Sra. M.).
Neste caso, perder o encanto significa a entrega ao sentimento de carência e solidão. Para ela “a vida passou” e nem a lembrança a alimenta. A dor de que comumente falam, é a dor de se sentirem abandonados pelas mais diversas razões, justificáveis ou não.
O tempo para os idosos é ponto de análise instigante, a menção ao passado é constante em seus discursos. A nostalgia e a saudação da antiga época revelam-se expressões tristes para o ouvinte. As lembranças de outras épocas são recorrentes no discurso das pessoas de mais idade, como explica Pretti (1991, p. 62):
As informações sobre o passado, que transparecem constantemente no discurso dos idosos, muitas vezes são expressas por um léxico em que aparecem vocábulos, expressões, estruturas fórmulas arcaicas, formas de tratamento, relacionados com sua época.
Neste mesmo estudo, o teórico além de falar sobre a questão do tempo nas narrativas do idoso, também nos traz um importante estudo sobre a linguagem dos idosos.
Em “A linguagem dos idosos”, esse autor chama-nos a atenção para aspectos observados nas entrevistas, tais como o excesso de pausas, os gaguejamentos, os lapsos de memória, as hesitações, as repetições (PRETTI, 1991). Essas disfluências comprometem o diálogo com os mais jovens, que não têm paciência para ouvi-los. Isso pode levar ao distanciamento entre as gerações, acarretando a depressão no velho. Por isso, a linguagem do idoso é o ponto de análise importante em nossa pesquisa. As limitações também na fala decorrente da idade acentuam os preconceitos. Pretti (1991) alerta para o tratamento estigmatizado, sofrido pelo ancião.
Talvez seja essa a razão para que, em muitos, o tom de revolta fique literalmente verbalizado, como nas palavras do Sr. A. (92 anos): “Este é o problema, o lado das coisas. O problema é que eu sou casado… É um problema… Minha mulher é FDP… Ela quis separar de mim e me colocou aqui… Ficou com minha casa, meu dinheiro, ficou com tudo… Eu não tenho nada.” É clara a denúncia de ter sido surrupiado pelos próprios familiares, “ o lado das coisas”, desabafa o Sr. A. A que “lado das coisas” este senhor se refere? Poderíamos entender aqui o fato de as “coisas” terem muitas perspectivas. Considerando sua ótica, a família que deveria amá-lo e considerá-lo rouba-lhe tudo, deixando-o sem nada.
Não mais sendo um provedor e consumidor, a família o rejeita e o deixa numa ILP, ficando ainda com seus bens. Aqui fica explicitada a coisificação do sujeito em nossa sociedade. Vale citarmos Bauman (2008, p. 108) que nos diz:
“O processo de auto identificação é perseguido e seus resultados são apresentados com a ajuda de ‘marcas de pertença’ visíveis, em geral encontráveis em lojas.”
O teórico faz referência à sociedade do consumo, que exclui aquele que não pode pertencer ao grupo do consumismo.
É a lei do mercado determinando também as relações familiares. Talvez o bem maior considerado por ele, que é o carinho familiar, não é o mais valorado pelos mais jovens. Quando o idoso deixa de ser economicamente ativo, ele próprio inicia um processo psicológico de baixa estima, através de sentimentos de exclusão social. Pois, na cultura atual, da Era Industrial-Tecnológica, quem não produz e/ou não tem forças para trabalhar, parece não estar ativo para opinar e muito menos para conviver no meio da sociedade, inclusive da família. Ao perceberem as transformações da fase adulta, na qual são ativos, capazes, participantes e independentes, para a fase idosa, na qual sente a perda da vitalidade, essas pessoas tornam-se sensíveis, frágeis e impotentes. Isso os leva à baixa da autoestima, como relata Simone de Beauvoir (apud PAPALÉO NETTO, 1996, p. 74):
A velhice, como todas as situações humanas, tem uma dimensão existencial: modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, com o mundo e com sua própria história. “Por outro lado, o homem não vive nunca em estado natural; na sua velhice, como em qualquer idade, seu estatuto lhe é imposto pela sociedade a qual pertence.” Ela ainda complementa: “A sociedade destina ao velho seu lugar e seu papel levando em conta sua idiossincrasia individual: sua impotência, sua experiência; reciprocamente, o indivíduo é condicionado pela atitude prática e ideológica da sociedade em relação a ele.” Não basta, portanto, descrever de maneira analítica os diversos aspectos da velhice: cada um deles reage sobre todos os outros e é afetado por eles; é no movimento indefinido desta circularidade que é preciso apreendê-la.
O agravante disso é que o envelhecimento é muito mais visto pela sociedade contemporânea por seus aspectos decadentes, relacionados à improdutividade do que por sua experiência de vida e sabedoria, como acontecia em outras sociedades. Sabendo que nossa identidade se constrói a partir da alteridade, da relação com o outro, o movimento de reflexibilidade acontece na medida em que os idosos assim também se veem por seus aspectos decadentes, sentindo a “menos valia”.
Uai… Tenho quatorze filhos, meu filhos moram pro lado de Vista Alegre… Eu não tenho família…
– Mas, e os filhos?
-Ah, meu pai e minha mãe já morreram. (Sr. A)
As palavras do Sr. A. parecem contraditórias, pois ao mesmo tempo em que ele diz ter 14 filhos, ele nega a sua geração. Quando perguntado sobre os filhos, ele desconversa falando da perda dos pais. O pai e a mãe não abandonam, pelo menos não deveriam abandonar, como ensina nossa cultura.
É interessante notar que esta foi a única circunstância em que ouvimos a palavra “morte”. Mesmo sentindo o fim da vida, os entrevistados não falam sobre a perspectiva da própria morte. “A leitura de Freud sobre a morte encontra sua originalidade a partir de pulsão de vida e de morte.” (MUCIDA, 2004, p. 132). Assim, nas entrelinhas a morte aparece na relativa perspectiva morte/vida. Não falar a palavra morte é negá-la, porém ela desponta no discurso na medida em que percebemos que, como afirma Mucida (2004, p. 134), “Cada um morre de seu próprio modo, acentua Freud, ao que poderíamos acrescentar: cada um morre em conformidade à sua forma de gozar.”
Dessa forma, se para alguns ficar velho é um processo evolutivo da vida, para muitos é um pesadelo, há muitos desafios a serem enfrentados. Um deles é admitir, naturalmente que ela comporta limitações, mais ou menos acentuadas, mais ou menos localizadas. Outro desafio é a pessoa admitir que esteja envelhecendo.
Os idosos, por constituírem hoje grupo etário politicamente frágil, não tiveram vez ou voz no atendimento a suas reivindicações mais elementares. A sociedade, que hoje os exclui do contexto social, deverá viver num futuro bem próximo uma situação ainda pior. (PAPALÉO NETTO,1996, p.5).
A propósito, essa intolerância em relação às diferenças é algo que precisa ser combatido. E a certa altura da conversa, o Sr A completa: “A vida a gente não sabe… A gente não sabe o fim da vida…” A voz arrastada parece ruídos abafados. Negando a pergunta da entrevistadora, responde com tristeza que os pais já haviam morrido. Essa manobra parece-nos entrever que, para esta pessoa, parente de fato é somente pai e mãe. Logo após, em um discurso fragmentado, mas muito significativo, ele revela que existe um problema e que existe também o outro “lado das coisas”: o abandono da mulher, que lhe levou tudo, até os filhos, e o seu discurso sintetiza a sua condição: “É…a gente num sabe no que vai dá a vida…agora eu to assim”. Não há conformismo nesta fala, nem revolta.
Entretanto, há nessas palavras a consciência da sua incapacidade de (re)ação. Há aqui um impasse: não basta a consciência de sua condição, uma vez que está desmotivado e limitado para mudar sua realidade. A questão é nos perguntarmos se seria utópico pensarmos, como diz Papaléo (1996, p. 76), que o fato de saberem não incluídos no modelo ideológico de velhice indica que uma “…parte do longo caminho começou a ser trilhada pelos indivíduos idosos.”
Não sei se podemos dizer que começamos uma mudança, pois para
“…mudar a concepção negativa da velhice, supõe-se como fundamental, mais que os diálogos, mais do que a troca de significados, uma mudança cultural para que velhos tornem-se sujeitos do seu próprio destino.” Como ressalva o próprio autor. (PAPALÉO, 1996, p. 76).
O que nos pareceu é que estamos muito longe dessa concretização.
Todavia, há que considerarmos: mesmo neste universo frágil e ameaçado, as formas de resistências inerentes ao ser humano acontecem e nessa brecha as pessoas precisam descobrir um “outro lado das coisas”. Diferentemente do relato acima, a entrevistada seguinte, aos seus 87 anos, demonstra alegria de viver:
“Eu tenho um louro que chama fofinho. Eu chamo ele de dengoso e ele ri. Este louro é da casa, eu resolvi cuidar dele… Não deixo ele sem água, sem comer… Eu tenho quase cem anos, diz a Sra. G.
Apegada à ave por estima, esta relação denota não entrega ao abandono. Para tanto, mantém-se ativa, cuidando do “dengoso”, das plantas e do ambiente, como diz:
“Eu gosto de barrê, gosto de lavar roupas, gosto de cuidar das plantas. À noite eu assisto televisão, eu não gosto de ficar parada… Quando eu sento, as cadeiras começam a doer…”.
É interessante notar a capacidade de ludibriar os reveses da vida. A dor só aparece quando fica parada. Contudo, em sua condição de idosa, engendra um mundo seu, cercado pelo papagaio e pelas plantas. Assim, a Sra. G. cria estratégias adequadas para sobreviver à exclusão. Logo a seguir, ela nos conta de seu passado:
Eu não sei contar historia nenhuma, eu num sei nem assinar meu nome, não sei contar historia não… Eu sou analfabeta. Eu alembro quando morava na roça, eu saia com escuro, e voltava com escuro.
Minha mãe falou que ela trabalhava numa fazenda como cozinheira pros homem, que trabaiava na roça. E aí ela falou pra minha irmã, que ela não podia mi levar com ela, porque tinha muita maldade lá…
Ah, não sei não, ela só falo assim… Por isso eu fui morar com minha irmã… Meu cunhado sempre me respeitou.(Sra. G.).
É claro que ela sabe que a mãe a deixou com a irmã para protegê-la. Está implícito na sua narrativa que havia uma ameaça de abuso por parte dos homens no ambiente em que a mãe trabalhava. Para não ser objetificada pelo desejo dos homens, ela foi criada pela irmã e pelo cunhado que a “respeitava”. Talvez esse reconhecimento do amparo e o fato de ter sido preservada das experiências traumáticas, a tenham levado a mais tarde saber se defender também de outras situações da vida. Essa constatação nos leva a crer que quando o indivíduo é amparado solidamente durante suas primeiras fases, ele ganhará em qualidade de vida. ‘
É necessário, assim, que para o sentimento de exclusão existam forças reativas. Esse é um movimento natural de sobrevivência. Nas casas visitadas, as pessoas são estimuladas a desenvolverem trabalhos, a participarem de terapias de grupos, a praticarem atividades diversas para se sentirem úteis, capazes, vivos. Por isso, durante as visitas aos asilos, foram alvo de nossos olhares alguns idosos que buscavam algum tipo ocupação, pois se percebe neles um movimento de resistência à exclusão. Os asilados empenham-se na criação de novas perspectivas através dos artesanatos, através da música, da dança, da religião, e até mesmo do estudo.
Embora os idosos estejam sujeitos à influência de fatores da idade, como certa lentidão e menor aceitação para aderir a novidades, essas alterações não os incapacitam, afirma a Psiquiatra Elisabeth Maria Sene (1998). Para a autora, é possível desenvolver alguma atividade, mesmo considerando suas debilitações. Sene (1998) comprova, através da prática intitulada “Psicodrama”, constituída de uma abordagem sócio-psicoterápica, que os idosos podem adquirir conhecimentos novos para resolverem conflitos até então sedimentados e estruturados. Muitas vezes, as intervenções podem ocorrer mediadas por alguma atividade que faz o idoso se superar. Citamos como exemplo as palavras de uma anciã: “Quando eu alembro, o que eu passei na vida… E to aí… Eu já passei…” A certeza de ter vencido e superado as intempéries do viver resulta a calmaria, como bem ilustra a foto abaixo:
A escolha desta foto, acompanhada da frase, “…faço colcha de retalhos, faço pano de prato”, deu-se por duas razões: primeiro por percebermos a importância dos trabalhos manuais como forma de resistir à exclusão. Manter-se ocupado faz as pessoas sentirem-se úteis; segundo, porque a “colcha de retalhos” pode ser usada como metáfora dos relatos aqui registrados. Costurar esta colcha, feita de fragmentos de histórias, significou para nós uma tentativa de retratar a realidade dos idosos na luta para se manterem vivos. Os retalhos são metáforas das histórias. As histórias são metáforas dessas vidas:
Mas xô te falar: então, a vida é essa: tem que lutar, tem que vencer, né André?
A minha vida é só costurar.[…] É, porque essas aqui são muito bonita, ne? Tá escondida. Não dá tempo não, depois ocê vem ver. Tem Natalia… não, primeiro Bianca, a pequenininha, loirinha dessas cor, lindinha, a mãe Natalia, desse tamanho, tem o nome bordado. Tem a… Luana e a Camila. (Sra. C. – 72 anos).
No cerzimento das histórias, a Sra. C. conta sobre sua arte de costurar os vestidos de suas bonecas. As roupas imitam a moda das personagens dos contos de fadas: saias longas com rodas, rendas e babados. Tecidos coloridos e enfeites detalham seu olhar para a vida. Ela se envolve com essa atividade, relembrando que sempre costurou os próprios vestidos. Da mesma forma, mas buscando outro entretenimento, o Sr. D, de 79 anos, apresenta-nos uma longa aula de Português:
O “S” entre vogais tem o som de “Z”. Mas tem um “Q” aí. Os catedráticos têm uma cartilha. Tem uma letra aí, isso vai mudar toda a biblioteca brasileira. Essa tal da reforma. Tem os deputados, os políticos que tem um interesse nisso. Mas ninguém sabe nada, por um acaso o menino falô: Nem sei o que é pronome direito.
Se Deus quisé eu quero relembrar isso… Isso é muito bom. Acho que temos que corrigir os erros graves primeiro. A vogal mágica é só no Inglês. Pra nós é mágica…
A gramática inglesa é muito fraca, você sabe disso, em termos de vocabulário.
Exemplo: A vogal “A”e “O” elas serve para singular e plural. Para nós isso é vogal mágica.
Eu fiquei mais de mil anos sem mexer com isso. Antes de ficar cego eu lia muito. Sem querer eu fazia uma coisa boa. Eu pegava o jornal de domingo, de quem já tinha lido e lia.
Os principais jornais do Brasil são: São Paulo e Rio. É preciso, eu prá formar minha opinião. Atualmente, eu tenho visto aí as pessoas ficam muito na Tv. E Tv é muita matéria paga… Uns de direita outros de esquerda… E se você não sabe você pergunta pro seu vizinho, seu amigo… As coisas que você vê, uai.
Se o motor do carro der problema, você pergunta um especialista… até pelo o ronco do motor ele sabe. Se você não sabe é só perguntar. O que eu acho esquisito, os meninos na escola não querem saber das coisas. Agora o professor de Português, que mexe com isso todo dia, deixa passar.
Exemplo: defasagem… Tem um sentido de um lado e um de outro. Por isso que hoje escreve errado. É porque hoje escreve com letra batida. Não é escrita na mão. O Português é mais nosso do que de Portugal… O Brasil é maior que Portugal… Eu lembro que tinha um livro, não sei se de ciência…era vermelhão… isso é jogada que fizeram: no livro de ciência tava escrito: “O átomo é a parte indivisível da matéria. Depois os alemães disseram que o átomo é super divisível”. (Sr. D. ).
Ter estudado e ainda se interessar pela Língua Portuguesa enche o Sr. D. de orgulho. Esse senhor, muito falante, assume o lugar do Professor no sentido amplo da palavra: professa seu conhecimento, diz orgulhoso que o Brasil é maior do que Portugal, denotando a importância quanto ao sentimento de pertença. Pela articulação dos elementos discursivos neste enunciado, podemos perceber a vida em movimento, quando o Sr. D. diz que precisa lembrar as regras do Português, antes dominadas pela leitura.
A lembrança, então, toma a dimensão da resistência. Não se entregando às limitações causadas pelo envelhecimento, o entrevistado procura estabelecer o diálogo com os entrevistadores e diz: “Vô te contar uma coisa. Vai pintá beleza pro cê. Você sabia que Guimarães Rosa era médico? Assim que formou ele foi para o norte de Minas. Ele veio antes de nós… ele é caso de noventa, cem anos prá trás.” Este Sr., ao perceber que estávamos fazendo um trabalho com ‘histórias”, imediatamente fez questão de associar a imagem de Guimarães Rosa.
Ao lembrar Rosa, o Sr. D. quis estabelecer a interação pela via do conhecimento, uma vez que os entrevistadores disseram que estavam fazendo um trabalho de pesquisa para a Universidade. Além disso, ele tenta um diálogo mais próximo quando utiliza da expressão jovial “…vai pintá beleza.” A esse respeito, em “A linguagem dos idosos”, Pretti (1991) observa também que muitas pessoas de mais idade tentam de toda forma inserir-se, muitas vezes substituindo vocábulos arcaicos por vocábulos mais ‘’modernos’’ para interagir com outros grupos. De acordo com Pretti (1991, p. 15),
[…] características individuais de natureza psicológica, uma pessoa é tão velha quanto julga ser. E, portanto, alguns indivíduos se entregam muito cedo a um sentimento de marginalização por causa da idade, enquanto outros, apesar das profundas marcas físicas da velhice, persistem em mostrarem-se jovens, acomodando-se aos novos comportamentos, inclusive na linguagem.
Esse pesquisador chama a atenção para um conjunto de ações que visa a um único objetivo: manter-se incluído na sociedade. O teórico fala também que a imagem que a sociedade muitas vezes tem dos idosos é formada pela mídia, instrumento crucial na formação de opiniões, que coloca a questão da “terceira idade” de forma caricata e distorcida, influenciando a visão que os jovens têm dessas pessoas. Assim, Pretti (1991) pontua que, independentemente da idade, cada ser humano tem o seu valor e que envelhecer é algo inevitável. Por essa razão, precisamos rever nossos conceitos a respeito do envelhecimento. Precisamos resgatar o valor dado para o ancião em outras sociedades.
Enquanto isso, os idosos vão resistindo às marginalizações. Nesse contexto, outra forma de resistência à exclusão percebida foi a forte presença da religião nos relatos. Podemos observar que praticamente todos os entrevistados usaram expressões religiosas em meio ao discurso. Parece-nos que a religião é tomada pelos idosos como válvula de escape para não se entregar às impotências e debilidades. Mesmo considerando que a religião pode ser algumas vezes “castradora”, no sentido da dominação, nessa fase da vida há que se considerar sua importância. A religião eleva a estima, alimenta a esperança e reforça o discurso destas pessoas, como nos trechos da entrevista da Sra. M.:
Entrevistadora: Que mais a senhora tem para contar?
-Ah… Gosto de ver na televisão missa, o terço e só… Novela não.
A vida sabendo levar, ela é boa… Eu gostava de escutar as histórias, mas não guardava na cabeça.
As veias ficam só cochilando, eu que sou esperta, não paro… É a natureza da gente. Tem gente que gosta de ficar sentada… “
“Isso é uma benção, trabalhei na enxada, chegava com escuro, com lombo dueno… É uma benção morar aqui… Graças a Deus… É como dizem: ‘Depois da tempestade, vem à bonança… Eu já passei por muita tempestade.
O seu momento de hoje é visto como calmaria. Relembrando também a fé e as práticas religiosas da vida inteira, ela se sente integrada com o mundo da fé, que também tem a função de mantê-la viva. Quando lembra o tempo em que trabalhou na enxada, termina dizendo que depois “vem a bonança”. Assim também a religião está muito presente na narrativa do Sr. A.:
“Entrevistadora: Como vai o Sr.? -Na paz de Deus está tudo bem… Não está tudo bem não, porque minha vista escureceu, mas Deus está clareando ela prá mim… Deus é o único que pode.”(Sr. A).
Primeiro ele repete o discurso religioso, como aprendeu em catequese. Depois diz que nem tudo está bem, mas que Deus irá resolver o seu problema. Através da fé em Deus, ele crê na cura, representação própria da manifestação do fenômeno religioso. Sem perder as esperanças, entrega-se às dificuldades da perda da visão. As palavras “escurecer e clarear” aludem à dualidade cristã mal/bem, pecado/pureza, material/espiritual. Ter fé e buscar a religião é não “viver na escuridão”. Claramente é observada a força da fé e da religião, na vontade de viver de vários idosos. Logo a seguir o entrevistado lembra o Natal:
-Tá tudo bem, tudo na paz de Deus///
O natal, tô na expectativa de comemorações… Agradecer a Deus por mais um Natal. Vem o Natal e depois outro, e ano novo também… É o novo ciclo, né?
Eu gosto do Natal, é a melhor festa que temos. Todo mundo quer agradecer, organizar, o novo Jesus que nasce… Todo ano Jesus nasce…(Sr. A.- 84).
O Natal, festa Cristã, fortalece o vínculo com uma comunidade. Como ritual “Jesus nasce a cada ano”, momento de se refazer. Na história do ocidente cristão, a perspectiva de um paraíso perdido pode ser superada pela renovação. Daí a importância de se viver esse rito renovador. Esse movimento messiânico pode ser visto, neste caso, como movimento de resistência uma vez que alimenta a esperança de dias melhores. Talvez, por essa razão, o discurso religioso apareça quase na totalidade das entrevistas. Podemos citar também a Sra. G. cantando trecho de música religiosa no meio de seu relato: “De porta em porta, desejo entrar se alguém me acolhe com gratidão, faremos juntos a refeição.” (Sra. G.)
Muitos carregam símbolos religiosos, como medalhas, santinhos, imagens, e o mais interessante é o uso do terço dependurado no pescoço. A representação da fé, assim, torna-se explicita, tanto no discurso, como nos hábitos. Selecionamos mais algumas passagens, mostrando como o pensamento religioso permeia o discurso dos idosos:
-Graças a Deus aqui é muito bom, muitos funcionários, funcionários muito bem treinados enfim aqui é uma casa de Deus, uma casa muito boa.
A vida a gente ganha… Não tem muito o que contar, não… Só Deus…
-Quando a gente era pequeno, a gente contava história e falava muita mentira, mas agora tamos no caminho de Deus, devemos falar a verdade.
-Eu sou católico, mas eu não acredito em imagem de escultura. Coisa feita por homem eu não acredito… Acredito que existe Deus no céu e na terra… Mas adorar a imagem, eu não faço isso porque é um grande erro do homem praticar uma coisa dessa. Adorar a imagem, escultura…
Ah…meu Pai do céu…eu só acredito em N.S. Jesus Cristo, é o único que dá a vida, é o único que tira a vida, a não ser que tira com as próprias mãos..
-Muita gente matano, roubano…fazeno maldade…num tem Deus, né?/
-É …eu sou devota de Santa Terezinha das rosas…ela carrega rosa nos braços..você já viu, que beleza? Eu gosto de rosas…vc gosta de flores?
Esse fervor é reatualizado todos os dias pelas missas, pela reza do terço. Não sabemos se há uma obrigatoriedade quanto à participação nesses momentos de oração. Porém, podemos afirmar que esses momentos são frequentados também por se tornarem um momento de interação. Pena que o mesmo não acontece, por exemplo, com a organização de um momento para contar histórias. Ocasiões como estas poderiam ser extremamente ricas, já que as narrativas ficcionais podem servir de catarse para os medos, as angústias, para as inquietações da vida.
Sobre este assunto, durante o X Congresso Internacional de História Oral, intitulado “História Oral: Desafios para o Século XXI”, realizado no Rio de Janeiro em junho de 1998, os conferencistas direcionaram suas reflexões para a importância da história oral e a sua relação como instrumento de ação social. Para Alistair Thomson,
“é fundamental garantir o envolvimento da história oral como propostas comunitárias que possam mapear a realidade e fornecer instrumentos de ação para políticas de saúde, educação e assistência social.” (apud FERREIRA, FERNANDES, VERENA [orgs], 2000, p. 12)
Sabemos que a narrativa ficcional manifesta numa espécie de avaliação da história vivida por aquele que conta, assim como numa revelação do seu “lugar de fala” no presente. Sendo assim, as narrativas revelam elementos constitutivos da subjetividade e da identidade.
“Para a criança e para um adulto que, como Sócrates, sabe que ainda existe uma criança dentro do indivíduo mais sábio, os contos de fadas exprimem verdades sobre a humanidade e sobre a própria pessoa.” (BETTLHEIM, 1980, p.83), podendo representar uma denúncia ou um desejo.
Observemos uma das poucas histórias que conseguimos nas entrevistas:
– ah…sei…a da cinderela…que a madrasta dela era muito malvada…não queria que ela fosse ao baile porque o príncipe ia escolher uma moça prá casar com ele. A madrasta queria que ele casasse com uma das fias dela….aí a fada madrinha ajudou cinderela e ela foi toda bonita…é que ela já era muito bonita, né? Mas tinha a condição …ela tinha de voltar antes da meia noite…aí quando deu meia noite, ela saiu correndo e perdeu o seu sapatinho de cristal. O príncipe que tinha gostado dela saiu procurando a dona do sapatinho e fazia todas as moças da cidade experimentar ele. Até que ele descobriu que o sapato era da cinderela e se casou com ela e foram felizes para sempre….rs..
– Bonita a história, D. G. …e a senhora acredita em amor assim?
-É acreditá, acreditá não, né, mas que é bom saber que pode aparecer um príncipe, isso é bom…kkkkkkkkk
Vô falá uma coisa prá você, menina…a vida se a gente não acreditá em nada, fica muito triste…por isso eu namoro…
– a lá o bonitão que eu falei…oh…vamo lá conversá com ele também…
Bettelheim (1980, p. 46) diz que os acontecimentos dos mitos e dos contos de fadas exprimem nossos sonhos, como “– a realização de desejos, a vitória sobre todos os competidores, a destruição dos inimigos -”, tudo aquilo que por alguma razão não deixamos chegar à consciência. Na história da Cinderela, a personagem vence a exclusão social, vence seus inimigos e é compensada ganhando o amor do príncipe.
A imagem do “príncipe encantado”, com toda sua força simbólica, ainda permeia o imaginário da Sra. G., que diz namorar. Gostar de namorar e não reprimir seus desejos pode ser a forma encontrada para resistir à exclusão, consequentemente, à solidão. Ela se alimenta de seus devaneios, o que impede o estabelecimento da tristeza e a faz sentir bem onde mora. Em outra entrevista, essa senhora revelou agradecida por morar ali. Por não ter família, ela temia a sua velhice. Agora ela reconhece este espaço como seu abrigo e seu amparo. Ali ela convive, faz terapia, namora, sonha e, por essa razão, não tem depressão, conforme relata.
Outra entrevistada lembrou-nos a famosa fábula “A formiga e a cigarra”. Nessa história, a formiga que sempre trabalha não passa necessidade. Como a linguagem é concebida de um ponto de vista sócio-histórico-cultural, essa fábula, lembrada pela entrevistada, reafirma a importância dada, por nossa sociedade, à capacidade produtiva do homem, vejamos:
-Ah …a formiga só ficava trabaiando e a cigarra cantano…vc já ouviu como a cigarra gosta de cantá…canta até estourá….enquanto a cigarra cantava as formiguinhas, em fila, carregavam as comidas prá dentro do buraco…aí chegou o inverno e a cigarra que ficou só cantano e não gostava de trabaiá ficou sem ter como sair pá buscá alimento e teve que pedir a formiga…aí a formiga falô: enquanto eu trabaei vc ficou cantano…agora vc tá com fome e vem tirar meu alimento…é assim….
-A formiga deixou a cigarra com fome?
– uai…deixou, né…quem mandou ela não trabaiá….kkkkkk
A palavra instaura o símbolo ideológico, neste caso a ideologia do trabalho. A imagem da vida social, idealizada por este relato, torna-se o espaço para confrontarmos os valores impingidos pela sociedade. A alienação pelo trabalho tem sua recompensa: a garantia da fartura. Por outro lado, esquece o lado fraterno do discurso religioso, pois não existe a partilha. O que nos revelaria esta história no contexto do idoso? É preciso sacrificar para merecer o descanso. Pelo seu relato, o abrigo é um descanso merecido: “Isso é uma benção, trabalhei na enxada, chegava com escuro, com lombo dueno…depois da tempestade, vem a bonança… Eu já passei por muita tempestade”.
As histórias em forma ficcional também desvelam relatos de vida, circulam em espaços também marginais, pois normalmente não são ouvidas. Talvez seja esta a razão do ficcional ter desaparecido do universo dessas pessoas. Uma vez que fizeram parte de uma sociedade que cultuava o contar histórias, o natural seria que essas lembranças viessem no momento das entrevistas. Todavia, isso não aconteceu. Poderíamos interpretar, a partir deste dado, que quiçá o ficcional não perpassa mais o as narrativas por diversas razões. Entre elas citamos o fato de vivermos impregnados da “realidade”. Lembramos também a força que possui a televisão no mundo contemporâneo. O ficcional está nas imagens televisas. Outro fator, que vem em consequência deste, seria o fato de as histórias orais não encontrarem mais espaço nos momentos de interação. Comentam-se muito as novelas, mas nunca histórias ficcionais.
Contar histórias da “carochinha” perdeu o seu valor e ganhou o tom pejorativo. Isso é coisa do passado. Dessa maneira, não toleramos mais nem a repetição das lembranças passadas. Assim, o discurso do idoso, muitas vezes desprezado pelos mais jovens, tem cada dia menos espaço em nossa sociedade. Nesse contexto, acentua-se a vital necessidade de resgate do passado.
A repetição das histórias vividas também teve importância em nossas análises, pois consideramos que a memória constrói-se pelo lembrado, atravessado pela imaginação. Ou seja, não podemos negar que uma parcela importante da população idosa no Brasil vive em condições de extrema carência, presos ao passado, quase única forma de sobreviver, viver da recordação. Porém, quando abrimos este espaço de reflexão, queremos chamar a atenção para o fato de que, em um mundo de movimentos frenéticos, em busca da desmedida capacidade de produção, para alimentar o mundo capitalista, o contexto da exclusão e da violência, mascarados pelo discurso politicamente correto da sociedade, também camufla o descaso. Vejamos:
“Quando eu alembro, o que eu passei na vida… E to aí… Eu já passei… A vida a gente ganha… Não tem muito o que contá, não… Só Deus…A gente de velho é até custoso… Num se alembra não, de nada.”
São frases ditas pelos entrevistados que corroboram a falta de espaço comunicativo. Eles resistem em falar, quem sabe por reconhecerem-se incompreendidos.
Este silêncio também foi captado pelas inúmeras fotografias[6] durante as entrevistas. As imagens podem falar tanto quanto as palavras[7], pois se dão a ler em seu universo representativo. Fotografia e literatura: essa leitura interdisciplinar torna-se propícia uma vez que as fotos constituem-se verdadeiras narrativas de histórias de vidas em seus diferentes aspectos. A figura humana, o cenário do seu cotidiano, o velho expressando o abandono da vida são imagens recorrentes, retratadas de maneira sensível. De acordo com Barthes (1984), o gesto essencial do operador da câmera é o de surpreender quem será retratado, pois o mesmo ao sentir-se observado preparar-se-ia para a pose e passaria a ser um ator, metamorfoseando-se em imagem. Esta observação serviu-nos de norteadora para que as imagens fossem capturadas com o mínimo de interferência de nossa parte, não causando desta forma qualquer constrangimento para os idosos além de capturarmos expressões significativas e naturais.
Para Dubois (2007), na fotografia a necessidade de ver para crer é satisfeita. A fotografia é percebida como uma espécie de prova que atesta a existência daquilo que mostra. O advento da fotografia e o desenvolvimento dos meios fotográficos permitiram vislumbrar uma nova relação da imagem fotográfica com o “real”, a lógica do índice. Outro ponto também importante desta questão é o exame da objetividade fotográfica, pois a imagem designa duas coisas diferentes, sendo uma a que produz a semelhança de um original, não sendo necessariamente sua cópia fiel, mas apenas algo que seja suficiente para tomar o seu lugar. Já a segunda produz aquilo que chamamos de arte, ou seja, uma alteração da semelhança. (RANCIÈRE, 2012).
As fotografias, muitas vezes, surpreenderam por captarem mais do que se pretendia. Mesmo considerando que os processos mecânicos são, na realidade, pontos de partida também subjetivos, como a nossa percepção, refletindo o caráter pessoal de cada artista, as fotos são ricas para as interpretações. Os ângulos escolhidos falam tanto do retratado como daquele que retrata. Assim, nossas lentes captaram instante como o abaixo apresentado:
Nessa imagem, a Sra., com 104 anos, passa a mão pelo rosto como demonstração de cansaço e vergonha. Para além das evidentes correspondências entre as imagens e os relatos, as fotos aqui assumem um caráter textual quando se dão a ler. São de elementos sutis que estamos tratando, perscrutando os gestos e as fisionomias. Essa forma de contar a história em imagens faz do fotodocumentarismo uma possibilidade de reproduzir o tempo e o espaço miraculosamente, capturando instantes. Os elementos da linguagem fotográfica, “letras” de luz e sombra, acentuam as marcas do longo tempo vivido. Nessa perspectiva, a foto revela o que muitas vezes não queremos ver:
Exatamente por não sabermos o fim da vida é que precisamos ser previdentes no que tange uma melhor atenção para o futuro. Para tanto, precisamos rever nossos conceitos a respeito da decrepitude da vida. A imagem acima bem a representa. Olhando-a, podemos pensar em como desenvolver uma cultura histórica de modo crítico e criativo, cultivando um espaço de valor em nossa sociedade para esta fase da vida. Devemos enfrentar o desafio de desarticular as lógicas capitalistas que excluem estas pessoas e lhes restituir sua condição de sujeitos plurais, experientes, com um acervo rico sobre o viver. Isto implica reconhecê-los como sujeitos, ouvindo suas experiências, deixando aflorar suas vozes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se o nosso país envelhece a passos largos, como já comentamos, é indispensável que a cada instante um novo movimento de conscientização se faça presente através dos meios de comunicação, das escolas, das entidades de classe ou no meio familiar. Efetivamente, não percebemos políticas de inclusão, por isso a pertinência desta pesquisa está no fato de este estudo criar um espaço (multiplicador) de discussão sobre este segmento social, assim como para repensar os conceitos de identidades, de democracia, de cidadania, de direitos humanos e de respeito com os mais velhos. Motivados, pois, por estas questões, propomos refletir sobre as narrativas dos idosos, a fim de perceber de que maneira as histórias poderão nos levar a entender melhor esse segmento social, já que as dimensões simbólicas da realidade, nelas representadas, revelaria significados outros, muitas vezes desveladores de elementos não perceptíveis, como uma suposta forma de lidar com a exclusão social.
Não podemos nos ilhar no nosso mundo, como se fossemos eternamente produtores e consumidores, como quer o mundo capitalista, sem pensarmos nas especificidades do imutável: estamos também envelhecendo. Precisamos nos ater ao fato de que historicamente os desvalidos sempre estiveram entregues à própria sorte e mudar esta realidade. Essa mudança só poderá ocorrer na medida em que conscientizarmos nossa sociedade, nossos jovens, que ainda há nessas pessoas uma riqueza guardada, que se chama experiência e que nossa cultura precisa dela para construirmos uma sociedade com valores importantes para o nosso convívio.
Desde então, percebemos que há espaço para uma interessante investigação sobre as narrativas de idosos, uma vez que a pesquisa citada, tratou somente dos abrigados em ILPs e não se estendeu aos que, na terceira e quarta idade, estão por aí sofrendo outras formas de exclusão. Reafirmamos o momento de emergência desta reflexão, enquanto objeto cultural que deve ser desenvolvido entre os brasileiros. Questionamos as práticas sociais que resvalam na ética humana, uma vez que somos omissos quanto à situação do segmento social idoso.
Nosso objetivo principal foi incitar as pessoas, especialmente os jovens estudantes, a refletir sobre as situações adversas, responsáveis por comportamentos que impedem a vida digna na senilidade. Esperamos ainda, com esta pesquisa, desenvolver nos participantes o olhar crítico para o segmento social idoso, assim como o gosto pela pesquisa. Assim, ao realizar um estudo crítico sobre os segmentos sociais excluídos, a sociedade também se beneficia, uma vez que os pesquisadores tornar-se-ão agentes multiplicadores de consciência sobre o lugar delegado a essas pessoas no seio de nossa sociedade.
Pesquisar, estudar, debater, pois, na tentativa de conhecer melhor a senectude foi uma experiência enriquecedora para todos os componentes do grupo. O ato de ouvir como mediação entre o viver/o vivido desse cidadão pode representar nossa pequena contribuição, contudo relevante no sentido de ser mais um de muitos outros estudos. Relatos, biografias, confissões, estórias e histórias formam as letras “catadas” nesta etapa. Caminhamos a passos ainda trôpegos no desejo de lhes dar alguma atenção.
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NOTAS
[1] Discente do curso de psicologia, aluno do programa de iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva.
[2] Discente do curso de psicologia, aluno do programa de iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva.
[3] Discente do curso de psicologia, aluno do programa de iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva.
[4] Coordenador da pesquisa, docente do Centro Universitário Newton Paiva.
[5] http://portaldoenvelhecimento.org.br/noticias/longevidade/censo-aponta-crescimento-da-populacao-idosa-inspira-cuidados.html
[6] As fotografias foram realizadas, assim como esta parte da produção escrita, pelo aluno André Carvalho.
[7] Por sabermos da importância das imagens como representações, fizemos uma exposição de fotos tiradas durante nossa pesquisa de campo, a fim de socializarmos a pesquisa e começarmos o trabalho de conscientização dos jovens em relação à exclusão social do idoso.