Izamara Barbosa Arcanjo Ferreira Silva [1]
Elias Rodrigo da Costa [2]
Laís Cristina de Oliveira Souza [3]
RESUMO: Este trabalho pretende discutir as representações sociais presentes na narrativa de si da primeira mulher a ter o registro profissional de jornalista em Minas Gerais, Maria de Lourdes Boechat Cunha. Buscou-se identificar por meio de índices linguísticos argumentativos presentes no discurso da jornalista as representações da mulher e do jornalismo praticado na capital mineira, nas primeiras décadas do século passado, especificamente, entre as décadas de 1930 e 1960. A jornalista nasceu em 1911, no estado do Rio de Janeiro, mas era ainda bem jovem quando sua família se fixou na Zona da Mata mineira. A partir de 1934, começou a trabalhar no jornal Folha de Minas, em Belo Horizonte, onde fez sua trajetória profissional. A metodologia empregada neste trabalho consiste em analisar a entrevista concedida pela personagem em 1995, que passou a integrar o acervo “História do Jornalismo Mineiro”, que se encontra abrigado no Museu da Imagem e do Som (MIS), vinculado à Fundação Municipal de Cultura. O acervo videográfico conta com 19 depoimentos cuja duração varia de 55 minutos a 4h e 25 minutos. Como exemplos, entre os jornalistas entrevistados, também integram o arquivo os depoimentos de Ayres e Edgar da Mata Machado, Celius Aulicus, João Etienne Filho, Fábio Martins, José Mendonça, José Maria Rabelo, Gerson Sabino, Alaíde Lisboa e Salomão Borges. Nos depoimentos, identificam-se variadas narrativas discursivas que, acreditamos, terem ajudado a consolidar a construção de um imaginário sobre o universo jornalístico da cidade de Belo Horizonte enquanto um espaço de sociabilidades intelectuais, sobretudo entre os anos de 1930 e 1960. As narrativas de si nos revelam diferentes olhares sobre a cultura urbana e a prática jornalística da jovem capital nas primeiras décadas do século passado.
PALAVRAS-CHAVE: representação social- narrativa de si- jornalismo- discurso
ABSTRACT: This paper intends to discuss the social representations present in the self-narrative of the first woman professional journalist in Minas Gerais, Maria de Lourdes Boechat Cunha. It was sought to identify, through linguistic argumentative indices present in the journalist’s discourse, the representations of women and the journalism practiced in the mining capital in the first decades of the last century, specifically between the 1930s and 1960s. The journalist was born in 1911 in the state of Rio de Janeiro, Brazil, but she was still very young when her family settled in Minas Gerais. On 1934, she began to work in the newspaper Folha de Minas, in Belo Horizonte, where she made her professional career. The methodology used in this work is to analyze the interview granted by the character in 1995, which became part of the collection “History of Journalism in Minas Gerais”, which is housed in the Museum of Image and Sound (MIS), linked to the Municipal Foundation of Culture. The videographic collection counts with 19 testimonials. As examples, among the interviewed journalists, the testimonies of Ayres and Edgar da Mata Machado, Celius Aulicus, João Etienne Filho, Fábio Martins, José Mendonça, José Maria Rabelo, Gerson Sabino, Alaíde Lisboa, and Salomão Borges are also part of the archive. In the testimonies, we identify several discursive narratives that, we believe, have helped to consolidate the construction of an imaginary about the journalistic universe of the city of Belo Horizonte as a space of intellectual sociabilities, especially between the years 1930 and 1960. The narratives of themselves reveal different views on the urban culture and journalistic practice of the young capital in the first decades of the last century.
KEYWORDS: social representation – self-narrative – journalism- discourse
Introdução
O Museu da Imagem e do Som, vinculado à Secretaria de Cultura de Belo Horizonte, guarda atualmente o acervo intitulado “Memória do Jornalismo Mineiro”. Ao todo, dezenove narrativas de vida de jornalistas que ajudaram a consolidar a centenária história da imprensa mineira compõem o arquivo. Os depoimentos começaram a ser coletados, em uma primeira etapa, no ano de 1982 e, posteriormente, em 1995, em uma segunda fase, graças a um convênio firmado entre o Sindicato dos Jornalistas, PUC/MG e UFMG. Dentre as personagens que compõem o acervo destacam-se Aires e Edgar da Mata Machado, a escritora Alaíde Lisboa, Maria de Lourdes Boechat, primeira mulher jornalista sindicalizada de Minas Gerais, José Maria Rabelo, criador do Binômio, jornal símbolo da resistência contra a Ditadura Militar de 1964 e José Mendonça, idealizador do curso de Comunicação Social da UFMG. Também estão presentes no acervo as narrativas de vida de Gerson Sabino, João Etienne Arreguy Filho, Fábio Martins, Ney Otavianni Bernis, Adelchi Ziller, Lindolph Spechit, Eliana Aouagui, Michel Aouagui, Salomão Borges, Geraldo de Oliveira Simões, José Bento Teixeira de Salles, Hélio Silva, Léa Delba, dentre outros. As narrativas foram gravadas em formato H8 e VHS e têm duração variada de 55 minutos a 4h e 25 minutos ao longo dos quais os sujeitos que enunciam os discursos falam sobre sua infância, relações familiares, atuação profissional nos principais jornais da capital, resistência à censura ao governo Getúlio Vargas entre 1937 e 1945, rotina de trabalho do jornalismo, vida intelectual e cultural da cidade de Belo Horizonte, além da resistência à ditadura militar de 1964.
A importância do arquivo “Memória do Jornalismo Mineiro” reflete-se, primeiramente, pelo prestígio cultural, político e acadêmico alcançado pelos personagens que fazem as narrativas captadas pelas lentes das câmeras.
O conteúdo do material audiovisual do acervo transita por meio a temas que demonstram a diversidade que perpassava o fazer jornalístico nas primeiras décadas do século passado, principalmente, na cidade de Belo Horizonte. Marcam as narrativas a atuação desses jornalistas nos primeiros veículos de imprensa da incipiente capital de Minas Gerais, dentre eles, “Folha de Minas”, “O Diário”, “Diários Associados”, a “TV Itacolomi”, Rádios “Guarani e “Inconfidência”.
Na perspectiva da Análise de Discurso (AD), o trabalho com esse corpus também nos parece abrir possibilidade para perceber como determinados imaginários sociodiscursivos 4 e suas representações dão significado às narrativas e aos temas que aparecem com mais frequência nos relatos dos jornalistas. Especificamente nesse artigo, vamos trabalhar com a narrativa de si da jornalista Maria de Lourdes Boechat, primeira mulher a ter o registro de jornalista profissional em Minas Gerais.
Outra questão, que procuraremos abordar, trata de quais são os diferentes ethés que fazem parte do processo de constituição identitária da enunciadora que se narra frente às câmeras.
As narrativas mencionadas na introdução deste trabalho e que estão sob a guarda do Museu da Imagem e do Som, até este momento, não foram estudadas por nenhum pesquisador, quer seja sob a luz da Análise de Discurso (AD) ou de qualquer outro campo teórico. O ineditismo das fontes ajuda a justificar a relevância que atribuímos para esta proposta de pesquisa. Acreditamos que a documentação inédita oferecida pelo acervo Memória do Jornalismo Mineiro deve ser divulgada para a sociedade uma vez que as narrativas que constam no acervo consolidam em grande medida a história da nossa cidade e fazem parte da cultura jornalística da capital.
Acreditamos que desenvolver uma pesquisa no acervo em questão pode ser uma contribuição, mesmo que embrionária, para redimensionar a importância da imprensa mineira no contexto nacional, uma vez que para Marialva Barbosa (2007), pesquisadora da história do jornalismo e autora de obras como “História Cultural da Imprensa – Brasil 1900-2000”5, a imprensa no país se consolida tendo como base especialmente os jornais do Rio de Janeiro.
Para a historiadora, o que era feito na imprensa do Rio de Janeiro refletia um grande contraste do que acontecia em Minas, sobretudo na região da Zona da Mata. Enquanto em Minas, o jornalismo se nutria das questões essencialmente políticas, na imprensa carioca da década de 1910 do século passado, já era possível se observar o uso de informação sensacionalista “os jornais passam a exibir manchetes, em páginas em que se editam, em profusão, ilustrações e fotografias, os horrores cotidianos”. (Barbosa,2007). Além disso, segundo a autora, a imprensa mineira era local e com baixa tiragem. De 1887 a 1940, foi a Zona da Mata a região com o maior número de publicações. Somente em 1920, 82 jornais circulavam pela região.
Em Belo Horizonte, os primeiros jornais da capital que nascia eram muito modestos e, em geral, tinham uma pequena duração. De acordo com Castro (1995),6 Joaquim Nabuco Linhares7, ao analisar as primeiras publicações jornalísticas mineiras, afirmava que “estas eram espécies de “folhas ao vento”, feitas sem nenhum investimento financeiro e quase sempre sem nenhuma perspectiva de remuneração econômica”. Ainda de acordo com Castro (1995), as primeiras publicações buscavam agregar, ligar as pessoas dispersas na nova capital do Estado e ainda apresentar à população belo-horizontina as aspirações dos grupos que formavam a imprensa que engatinhava. Essa primeira fase da imprensa belo-horizontina, segundo Castro (1995), durou até 1926.
Um exemplo emblemático de periódico panfletário, utilizado como um espaço de manifestação das opiniões de grupos específicos na década de 1930, foi o jornal “O Diário”, conhecido popularmente como “Diário Católico”, o jornal conseguiu tornar-se o mais importante periódico católico da América do Sul” e se fez muito importante para o movimento restaurador católico, embora, assim como muitos outros, tenha enfrentado durante sua existência constantes problemas financeiros. Era nesse contexto que se dava a formação do “jornalista”, ou seja, o aprendizado acontecia durante a realização do próprio ofício, conforme narrados em vários dos depoimentos que integram o acervo.
Ao remontar a um passado, por meio do discurso, trabalharemos com a hipótese de que as narrativas dos jornalistas, que atuaram entre o período demarcado pela pesquisa, ajudaram a consolidar um conjunto de práticas de natureza simbólica que dizem respeito à tradição cultural e intelectual da cidade de Belo Horizonte. Nesse sentido, as personagens do acervo estariam “inventando uma tradição” a partir do ano de 1982, data em que começaram a ser gravados os depoimentos, sobre a das práticas socioculturais da cidade, entre elas a prática jornalística dos anos de 1930 a 1960 do século passado. O conceito de “invenção das tradições” foi por nós apropriado de Eric Hobsbawm (1984). Para o autor,
“A invenção das tradições é um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado”. (HOBSBAWM, 1984, p.9)
Em “A tessitura da memória: a perspectiva do trabalho historiográfico nas ciências da linguagem”, Jean-Jacques Courtine (1994) inicia o texto problematizando que o lugar que a história ocupa está relacionado à linguagem. Destacamos que o conceito de memória discursiva foi abordado por Courtine, pela primeira vez, em 1981. Sob essa perspectiva, Courtine (1994) propõe que a abordagem sobre a memória se constitua a partir da articulação entre as questões relativas à linguagem e à história. Ou seja, a noção de memória, concebida por Courtine (1994), tem como base aspectos inscritos na sociedade. Sendo assim, podemos dizer que tal autor postula que o “domaine de mémoire” perpassa a dimensão social e coletiva de certa cultura. Qual seria a dimensão da memória presente nas narrativas que integram o corpus em questão?
É nesse sentido, que acreditamos que o corpus documental, fundado nas narrativas de vida dos jornalistas, é elemento que pode trazer traços reveladores da cultura urbana e da sociedade de Belo Horizonte nas primeiras décadas do século. As opiniões de caráter muito pessoal presentes nos depoimentos podem revelar um mundo que não é comumente explicitado pela história da imprensa, pois, muitas vezes, essa se pautou nas obras sobre a técnica e a teoria do fazer jornalismo, silenciando ou não revelando outros posicionamentos importantes sobre os próprios jornalistas, sobre as rotinas da profissão, suas visões de mundo.
Além de contar com as figuras predominantes do jornalismo de Belo Horizonte entre os anos 1930 e 1960, supomos que estes jornalistas não produziram apenas materiais informativos e, é, no discurso destes intelectuais, que queremos identificar importantes posições históricas que ajudaram a consolidar os imaginários e as representações que se faziam presentes na cultura urbana da nova capital. Nas entrelinhas de suas escolhas, estão implícitos valores culturais e posicionamentos políticos que são preciosos indícios para uma leitura dos significados histórico-culturais da intelectualidade e do significado do fazer jornalístico daquela sociedade.
Assim, acreditamos que as diferentes escolhas argumentativas desses sujeitos mobilizadas em seus discursos podem revelar muito mais que valores técnicos e formais. Por meio dessas, podemos perceber leituras do passado cultural mineiro, bem como os diálogos travados por importantes nomes do cenário jornalístico, sobretudo, dos anos 1930 a 1960. Nesse jogo linguageiro pautado entre o que foi dito e o não dito, faz-se urgente perscrutar, tentar identificar, por meio do discurso, os elementos que dizem respeito à memória e historicidade dos posicionamentos expressos nos diversos depoimentos desses jornalistas que se transformaram também em construtores de suas próprias identidades e da identidade na recém-nascida cidade de Belo Horizonte.
Discurso, memória e narrativas de si
A partir de uma perspectiva interdisciplinar, consideramos que a história se configura de memórias documentadas e vamos assumir também que são os acontecimentos ou fatos, inclusive os jornalísticos, que fazem emergir o acervo ou o arquivo. É na narrativa do acontecimento que a história se consolida como uma maneira de experimentar algo concreto ao longo da existência humana.
No âmbito da Análise de Discurso, ao estudar o arquivo, Pêcheux (1997, p. 57) considera que ele seja de uma forma mais genérica, como o conjunto de “documentos pertinentes sobre uma questão”. Essa perspectiva de arquivo está diretamente relacionada com a noção de gêneros do discurso, uma vez que trata de um grupo de documentos nos mais variados suportes, mas com um conjunto de regularidades. Para Bakhtin (2003, p. 262), os gêneros do discurso “são determinados tipos de enunciados, que são diferentes de outros tipos, mas têm como estes uma natureza verbal (linguística) comum”.
Diferentemente de Pêcheux (1997), Foucault (2004), ao considerar a descontinuidade no processo de construção da história, abre novos caminhos para definir o que seja arquivo. Para ele,
“Ao invés de vermos pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo”. (FOUCAULT, 2004, p.146)
Nesse sentido, pretendemos nos apropriar da noção de arquivo em Foucault, na qual o autor analisa os arquivos como “existência acumulada de discursos” (Foucault, 2004, p.72). Ao desestabilizar conceitos naturalizados, ele dará ao arquivo uma existência nova, reinventada. Nas suas palavras, “o arquivo deve ser entendido não como um conjunto de documentos, mas sim como lei que organiza o campo do enunciável”.
À Análise de Discurso (AD) caberia a tarefa de buscar um conjunto de regras que sistematizassem essas dispersões, as desestabilizações propostas por Foucault, às quais o autor chama de “regras de formação”. A formação discursiva seria um conjunto de regras anônimas constituídas historicamente.
Nesse artigo, o arquivo composto pela série de narrativas de si, entre elas a da jornalista, Maria de Lourdes Boechat, não será entendido, então, como um conjunto de documentos que representam vestígios de verdade de um tempo que já passou, mas como a lei que organiza a dispersão do discurso em conjuntos de “acontecimentos enunciativos”. Ainda para Foucault, o arquivo não é algo fechado, estático como o que parece a visão pêcheutiana, mas, o arquivo trata do sistema de enunciabilidade discursiva, o que nos permite perguntar como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar. Foucault (2004, p. 147) não entende por arquivo a soma de todos os textos que uma cultura ou que um grupo de pessoas guardou, como documentos de seu próprio passado ou como testemunho de sua identidade. Para ele,
“[…] O arquivo é de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. […] o arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido, é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade”. (FOUCAULT,2004, p. 146-147)
Na nossa perspectiva, estudar as narrativas de vida dos jornalistas que compõem este acervo ou arquivo sob o prisma da Análise do Discurso (AD), buscando compreender os processos de produção de discursos através do gênero audiovisual, requer uma adequação a novos paradigmas.
A compreensão de uma narrativa como relato dos fatos, descrição do mundo real, feito através da busca da verdade e com objetividade, é contrária à perspectiva que a análise de discurso abre. O que está em jogo, neste caso, é a ilusão referencial da linguagem. A linguagem não apenas descreve, ela constitui o que representa, produz sentido. É, portanto, processo produtivo.
É preciso, então, entender o sentido como efeito de um processo de relações entre enunciado e enunciação de um sujeito histórico submetido às condições de produção, em que os interlocutores estão situados em lugares, ocupando posições. Michel Foucault prenuncia essa ideia, que será desenvolvida por Michel Pêcheux também em 1969, dizendo que se devem tratar os discursos “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. Assim, entender a narrativa como um processo produtivo de sentido permite situá-lo num lugar de constituição histórica.
Além das noções de arquivo e de formação discursiva acima já abordados, alguns outros conceitos que fazem parte do quadro teórico da Análise de Discurso (AD) também serão fundamentais para o desenvolvimento deste artigo, dentre eles o que podemos chamar de “narrativa de vida”, “relatos de vida”, “relato biográfico” ou autobiográfico. Além da Análise de Discurso, vários outros campos como o da Psicologia, Sociologia, História e da Literatura mostram interesse pela questão, mas sempre destacando aspectos peculiares do fenômeno biográfico que lhes interessam.
Para Kaufmann, (2004), por exemplo, a narrativa de vida é uma fonte importante para a construção da identidade do sujeito, mas ela não exprime fielmente a realidade da vida que é narrada. O que importa para este autor é a identidade que é projetada a partir do processo de narrar-se. Narrar sua história de vida é um processo de construção de sua identidade. Diz o autor: “ L’ identité a pris une apparence plus ouvert et dynamique, et une forme s’est progressivement imposée: le récit, l’identité est l’histoire de soi que chacun se raconte”. (Kaufmann, 2004, p.151)
Narrar uma história de vida seria a possibilidade que o sujeito elabora para recontar sua experiência de fatos vividos no passado, utilizando de estratégias discursivas que visam marcar ou projetar uma identidade, uma imagem de si.
Bakhtin (1997; 2006) discute os textos biográficos a partir do processo de criação artístico do texto literário, o que o autor vai definir como um ato estético. Bakhtin apud Lessa (2015) afirma que: “Nesse ato, é o escritor quem dá acabamento a uma obra literária, é ele quem, a partir de um exterior (de uma posição exotópica), molda o herói, as personagens que povoam seus romances, reconstitui as diversas vozes sociais que se confrontam em uma conjuntura sociohistórica. Assim, tempo, espaço e o sentido que se dá ao herói, em um romance, tornam-se significantes esteticamente” (LESSA, 2015, p.162)
Para a pesquisadora Ida Lúcia Machado (2012), narrar uma história de vida seria a capacidade que os sujeitos desenvolvem, utilizando algumas estratégias de organização discursivas que têm como objetivo construir uma imagem de si, reconfigurar uma identidade, inclusive pelo viés da emoção. Para a autora:
“Este pode ser um objetivo a ser utilizado em estudos sobre Narrativa de Vida: a intenção de comover, captar o auditório por parte de quem ‘se conta’[…] A narrativa de vida pode realmente ser considerada como uma estratégia argumentativa, da qual, na sociedade atual, poucos de nós conseguimos escapar. (MACHADO, 2012, p.81)
Já o conceito “imagens de si” nos leva ao trabalho desenvolvido pela pesquisadora Ruth Amossy em 2005, intitulado “As imagens de si no discurso: a construção do ethos”. Nesse trabalho, é abordada a construção da imagem do sujeito enunciador em seu discurso. A obra de Amossy ainda revela que “ a retórica clássica designava pelo termo ethos a construção de uma imagem de si destinada a garantir o sucesso durante a oratória”.
Atualmente, o conceito de “ethos” e, consequentemente, o de “imagem de si” é muito mais amplo. O que se percebe nos estudos dos analistas do discurso é também o aspecto dialógico e polifônico, ou seja, fundamentalmente interativo e orientado no que diz respeito ao locutor/interlocutor e à natureza híbrida do conceito de ethos, correspondendo à articulação entre uma situação de comunicação e um espaço/tempo específico, ou seja, uma dada situação histórica.
O ethos passa a ser visto, como algo criado de maneira consciente ou não de acordo com estratégias de elaboração do discurso ou com a disposição da recepção pelo sujeito receptor desse mesmo discurso, o que nos permite dizer que o ethos, construído pelo sujeito no discurso, varia em função das situações comunicacionais.
As representações e imaginários sociodiscursivos
Para a pesquisadora Denise Jodelet (2001) as representações sociais são o conjunto de explicações, crenças e ideias que nos permitem evocar um dado objeto. Essas representações são resultantes da interação social, pelo que são comuns a um determinado grupo de indivíduos. São fenômenos complexos, marcados por elementos, sempre ativos na vida em sociedade.
Como campo de saber, ela nasce de uma perspectiva crítica ao conceito tradicional que considerava o sujeito separado do seu contexto social. Forte postulado presente na América do Norte e Grã-Bretanha.
Os primeiros estudos ligados às representações foram inicialmente creditados a Émile Durkheim, sociólogo, psicólogo social e filósofo francês, em 1912. Ele identificou os elementos organizadores da representação social como produções mentais sociais. Isso a partir de um estudo de ideação coletiva que investigava as práticas religiosas das tribos primitivas em sociedades australianas. Foi nesse período que ele desenvolveu a tese de que a religião faz parte da natureza fundamental do homem e que essa prática afeta as representações coletivas, mas o conceito “representações sociais” foi fundado em 1961, por Serge Moscovici, psicólogo social romeno, radicado na França.
Inspirado pelos trabalhos a respeito das representações coletivas de Durkheim, Moscovici renovou o conceito, com a publicação da obra “La psychanalyse, son image et son public” (A psicanálise, sua imagem e seu público), não apenas em uma perspectiva crítica, mas também especificou os fenômenos representacionais nas sociedades contemporâneas (essa caracterizada pela fluidez da informação, pelo desenvolvimento das ciências e mobilidade social.).
A teoria lança um novo olhar aos objetos aos quais se propõem compreender. Da à luz elementos importantes para esse exercício e contribui para a formação de novas hipóteses, sobre os vários problemas contemporâneos.
Para Jodelet (2001), as representações sociais como propostas por Moscovici (1961) têm sempre um conjunto de características: “É sempre representação de um objeto, tem um caráter imagético e a propriedade de deixar intercambiáveis a sensação e a ideia, a percepção e o conceito; tem caráter simbólico e significante; tem caráter construtivo; tem caráter autônomo e criativo. ”
Para a autora, “São uma forma de conhecimento elaborado e compartilhado socialmente com o objetivo prático que concorre para a construção da realidade comum a um conjunto social – saber ingênuo, senso comum, natural. Apesar de se distinguir do saber científico, é tão legítimo quanto.
As representações, na perspectiva de Jodelet (2001), enquanto sistemas de interpretações nos fazem reagir com o mundo e com os outros, além de organizar as nossas condutas e as comunicações sociais. Dessa forma, as representações são capazes de intervir em processos variados como a difusão e assimilação dos conhecimentos, no desenvolvimento individual e coletivo, na definição das identidades pessoais e sociais, na expressão dos grupos e nas transformações sociais.
Já como fenômenos cognitivos, a autora revela serem as representações “capazes de ajudar a fazer a associação do pertencimento social às implicações afetivas e normativas, às interiorizações das experiências, das práticas, dos modelos de conduta e de pensamento, socialmente inculcado ou transmitidos pela comunicação social. ”
Para Charaudeau, essas representações sociais constituem um ponto importante, pois para firmar contratos de comunicação, por exemplo, são necessários os conhecimentos sobre a situação de comunicação e sobre as circunstâncias nas quais um ato de linguagem acontecerá. É preciso, para o sucesso dos contratos de comunicação, saber, por exemplo, quais os papéis dos parceiros, quais estratégias usar, etc. O problema é que esses saberes, em muitos casos, se apresentam de forma implícita, ou seja, são saberes pressupostos e, ao mesmo tempo, não-tematizados. Na tentativa de esclarecer um pouco mais a questão, Charaudeau (2006, 2007) propõe a utilização da categoria de “imaginário sociodiscursivo” como forma de descrever os saberes partilhados explícita e implicitamente pelos sujeitos participantes do ato de linguagem. Charaudeau (2007) nos mostra que o termo “imaginário” apresenta diferentes sentidos, de acordo com a sua aparição no decorrer do pensamento filosófico:
a) diferente de fantasioso, no pensamento clássico;
b) a intersecção entre a dualidade do eu, isto é, “eu-individual” e o “eu-coletivo”;
c) como os diversos discursos que testemunham uma determinada sociedade.
Outro conceito de Charaudeau (2007) que imaginamos ser muito caro ao trabalho que se pretende desenvolver será o de imaginários sociodiscursivos. Para que uma comunicação se estabeleça de maneira satisfatória é necessário que os sujeitos que detalhamos acima e que estarão diretamente envolvidos no processo de comunicação compartilhem os mesmos contextos histórico-sociais. Assim Charaudeau (2007) define os imaginários sociodiscursivos:
[…] um modo de apreensão do mundo que nasce na mecânica das representações sociais, que, como dissemos, constrói a significação dos objetos do mundo, os fenômenos que são aí produzidos, os seres humanos e seus comportamentos, transformando a realidade em real significante. (CHARAUDEAU, 2007, p.53)
Ainda, segundo o autor, a construção dos imaginários sociodiscursivos está relacionada aos saberes de conhecimento e aos saberes de crença. No primeiro caso, estaria ligado aos fatos do mundo e não às subjetividades. No segundo, ao contrário, toda a experiência dos sujeitos é levada em conta. Em resumo, os imaginários constituíram as representações de ordem discursiva que circulam em uma determinada sociedade.
Outro conceito de Charaudeau (2007) que imaginamos ser muito caro ao trabalho que se pretende desenvolver será o de imaginários sociodiscursivos. Para que uma comunicação de estabeleça de maneira satisfatória é necessário que os sujeitos que detalhamos acima, e que estarão diretamente envolvidos no processo de comunicação, compartilhem os mesmos contextos histórico-sociais. O conceito tem para Charaudeau (2006) suas bases no conceito de “imaginários sociais” de Cornelius Castoriades que coloca os imaginários como a capacidade de simbolização da realidade por um determinado domínio de prática social (artísticas, política, jurídica, etc.) por um grupo social. Assim Charaudeau (2007) define os imaginários sociodiscursivos:
[…] um modo de apreensão do mundo que nasce na mecânica das representações sociais, que, como dissemos, constrói a significação dos objetos do mundo, os fenômenos que são aí produzidos, os seres humanos e seus comportamentos, transformando a realidade em real significante. (CHARAUDEAU, 2007, p.53)
Ainda segundo o autor, a construção dos imaginários sociodiscursivos está relacionada aos saberes de conhecimento e aos saberes de crença. No primeiro caso, estaria ligado aos fatos do mundo e não às subjetividades. Esses imaginários procuram estabelecer uma verdade sobre o mundo, constituindo um saber exterior ao homem.
No segundo, ao contrário, toda a experiência dos sujeitos é levada em conta. Em resumo, os imaginários constituíram nas representações de ordem discursiva que circulam em uma determinada sociedade, daí um engajamento daquele que enuncia em relação ao conhecimento enunciado. Com isso, o homem se impõe ao mundo, que passa por um filtro interpretativo do sujeito. Pode se apresentar na forma de uma revelação e de opinião.
A narrativa de si: Maria de Lourdes Boechat
A narrativa de Maria de Lourdes Boechat, mais conhecida no meio jornalístico como Lourdes Boechat, foi gravada em vídeo, no formato Hi-8, no dia 6 de junho de 1995. No relato, todo feito em primeira pessoa, a jornalista, então, com 84 anos, revela que nasceu aos 26 de novembro de 1911, em Portela, distrito de Três Irmãos, no Estado do Rio de Janeiro, à margem do rio Paraíba, de onde saiu ainda bebê com a família que se fixou em Carangola-MG, na Zona da Mata. Boechat revela ainda que foi alfabetizada em Carangola e fez o curso de normalista em um colégio interno. Em Belo Horizonte, toda a sua carreira como jornalista foi vivida no extinto Jornal Folha da Manhã, a partir do ano de 1934. A seguir, passamos a transcrever alguns trechos do discurso de Boechat:
Entrevistadora: A família da senhora trabalhava? O pai da senhora trabalhava?
Boechat: Olha, vendo agora essa sua pergunta, me ocorre que essa coisa de ser pioneira é uma constante em minha família, é uma praga sabe… meu pai implantou na região de Carangola, em todas as cidades limites como Faria Lemos, todas aquelas cidades o cinema que até então era mudo.
“ …. Então, ele foi o pioneiro, né? Levando coisas no lombo de mula, aquelas latas de filme para passar em Manhumirim, recolhendo em Manhumirim e indo até Manhuaçu, para passar também em Manhuaçu e descendo ali a fora, então, eu acho que foi dali que eu herdei esse negócio de me antecipar ao meu sexo. ”
O pai da narradora era dono de um cinema mudo na cidade de Carangola. Percebe-se que na reconstrução de flashes de sua vida, que a narradora seleciona alguns fatos que foram significativos para a formação de sua subjetividade.
A discursivização sobre esta parte da infância aparece como uma força naturalizada e que corrobora com o fato da narradora se colocar como uma pioneira. Ela atribui um acento valorativo ao fato de ser pioneira.
“É, participava em festas, assim… de datas históricas ou datas religiosas e comungava todo santo dia e ia a missa todo santo dia, confessava de 8 em 8 dias, né? E dessa maneira, atravessei assim… vontade de ser freira, depois atravessei a vontade de casar e de fugir do colégio, essas coisas todas de qualquer adolescente, pré-adolescente. ”
Nesta seleção, a narradora avalia e reinterpreta seu passado. Os fragmentos da narrativa sublinhados sinalizam uma indexação às representações ou uma aceitação de representações sociais que definem quais são as funções que devem ser desempenhadas por mulheres naquele período, ou seja, nos anos 20 do século passado, quais os papéis sociais elas deveriam assumir. Fica pressuposto no texto que é considerado natural que as mulheres casem, sejam freiras. O mesmo anunciado parece subentender a ideia de que as mulheres da época deveriam estar de certa maneira ligadas aos rituais religiosos como ir à missa e comungar.
“ Olha eu sempre tive muita vocação para o estudo, não um estudo assim… hermético, mas um estudo aberto, lia demais, lia escondido. Então era considerada assim… uma das primeiras de minha classe e com isso tirei o primeiro lugar… “Não, nunca pensei em ser professora, tenho horror de ser professora e cumpri, e paguei essa minha aversão lecionando em Carangola quando eu me formei. Eu me formei no dia 8 de dezembro de 1928, no dia 2 de fevereiro de 1929 eu comecei a lecionar em Carangola, lecionei no grupo aí já existia grupo escolar. Lecionei em escola particular e lecionava na escola normal e lecionava no ginásio Carangolense, lecionava o dia inteiro, amaldiçoando o dia inteiro as coisas, esse processo de vida. ”
Entretanto, a narradora apresenta novamente um ethos de transgressora ao deixar que seu discurso revele um outro aspecto de sua subjetividade. Apesar de ser usual que as mulheres daquela época tivessem acesso à educação após o ginásio ingressando no magistério, Boechat repudia essa condição de vida, o que pode ser percebido nas seleções feitas no texto
Ao discursivizar suas memórias, nos parece que a jornalista tenta, pela trama narrativa, dar coesão para sua vida. Ela refuta ou denega índices das representações sociais que, muitas vezes, têm valor prescritivo e coercitivo para determinar as visões de mundo das mulheres de sua época. Lourdes Boechat refuta os acentos valorativos incorporados a essas representações.
Ela não apresenta em seu discurso nenhuma relação de identificação com as representações sociais, a modelos de ser, a pontos de vista ligados à sua época.
(4 )“ …E fui para a Folha de Minas e depois de discutir o salário, ainda me dei o desplante de discutir o salário, fui admitida para secretariar o departamento de Publicidade, mas naquele tempo, as redações de jornal, o jornalista era… não tinham seções delimitadas, e quem tivesse bom texto… Que eles chamavam, fulano tem um bom texto, fulano tem um bom texto é.…, era aproveitado. Eu comecei a ficar num híbrido entre Departamento de Publicidade e a redação, lá e cá, e acabei ficando na redação, porque eu tinha um bom texto na opinião deles, né? E fiquei, sempre que faltava uma secretaria na administração, uma secretaria no departamento pessoal, uma secretaria, ia eu fazer o negócio. Acabava, voltava eu para a redação, fiquei nesse vai e vem.
No tempo, era a Associação dos Jornalistas Profissionais e eu era considerada por todos os meus colegas como da redação, eu também me considerava da redação, e me inscrevi na associação. Meu número é 136. Foi o primeiro nome de mulher na Associação dos Jornalistas Profissionais e daí passei a me dedicar à redação exclusivamente. ”
A sequência selecionada no texto acima reitera a condição na mulher no mercado de trabalho do jornalismo profissional no início dos anos 30 do século passado.
Ela se “deu ao desplante de discutir o salário”, algo impensável para uma mulher naquele tempo”. Boechat revela que se submeteu ao acúmulo de funções no desempenho das atividades profissionais, marcadas pela expressão “ficava neste vai e vem” e em momento algum o discurso da jornalista parece revelar uma subjetividade de alguém que se recusou e se recusa a aceitar as classificações, as designações e as avaliações dos colegas de redação.
(5) “ A crônica diária do Félix Fernandes Filho, que se chamava Praça 12, era uma crônica de mais ou menos 30 cm por duas colunas… Ele trabalhou comigo 17 anos escrevendo diariamente uma crônica sobre os mais diversificados assuntos”. Eu substituí o Félix Fernandes um ano e meio porque ele ganhou uma bolsa de estudos para ir para os Estados Unidos e eu fiquei com a coluna dele o tempo todo. Era comum ouvirmos dizer que compravam a Praça 12 e vinha a Folha da Manhã, tamanha era a importância da crônica. Não convinha que a Praça 12 parasse de sair, assim como não convinha que fosse outra pessoa a redigi-la, a não ser o Félix Fernandes Filho. Já tinha bastante tempo que eu estava na Folha, já tinha bastante experiência, eu trabalhava, eu trabalhei com ele na mesma sala 17 anos, né? Então eu tinha bastante experiência e foi um motivo pra mim assim… de muita felicidade substituir uma pessoa que eu admiro tanto e que tinha um prestígio tão grande, porque no fim de mais ou menos uns 6 meses, muitas pessoas já sabiam, as mais íntimas, né? Que era eu quem escrevia Praça 12, mas o jornal exigia que o nome fosse Felix Fernandes Filho e quando ele voltou reassumiu a crônica. ”
(6) “Mas eu tinha uma agilidade mental muito grande, eu não suportava aquela limitação das mulheres naquele tempo que era cricri né? Só foi criada- criança, criada- criança, não tinha outra coisa, a minha casa, receita de doce, e aquilo não tinha, eu não tinha menor atrativo naquilo, era a mulher daquele tempo. “Hoje não, hoje eu admiro muito as mulheres, né? Porque agora elas também já se libertaram desse tormento de criança x criada, né? Mais também não fui muito masculinizada não, tá?
Nos fragmentos destacados na seleção 5 e 6, podemos perceber que, ao mesmo tempo em que se coloca como capaz e pioneira, fazendo saltar ao seu discurso um ethos de transgressora, ao ser a primeira mulher a ter registro de jornalista em Minas Gerais, Boechat acaba se submetendo às imposições de seu tempo, como escrever por mais de um ano e meio o texto de maior sucesso do jornal Folha da Manhã, mas assinar esse mesmo texto como se fosse outra pessoa. Percebemos que o discurso da narradora ser organiza entre a tradição e a transgressão, o que pode ser perfeitamente compreendido se levarmos em conta que o depoimento da mesma foi gravado em 1995, mas remonta um tempo passado e fala da condição de trabalho da mulher no início do século XX.
Conclusões iniciais
Nas narrativas de Lourdes Boechat, uma das muitas que compõem o Acervo Memória do Jornalismo Mineiro, é possível ouvir as ressonâncias das vozes dos outros que marcaram indelevelmente a carreira da jornalista no Jornal Folha da Manhã. No plano de enunciação presente, percebe-se que a narradora desdobra em sua enunciação uma consciência crítica, autorreflexiva e avalia as representações sociais que constituíram e constituem sua subjetividade: o senso comum, as crenças e os imaginários. Nesse rememorar, nessa reconstituição de enunciações passadas, Boechat recontextualiza os discursos de uma época e imprime neles acentos valorativos muitas vezes refutando-os com veemência.
Nesse sentido, esperamos ter contribuído para mostrar como uma tentativa de dar coesão e coerência a uma vida pode estruturar as narrativas de si. Em um fluxo de uma existência que não se esgota na multiplicidade das experiências, das lembranças fragmentárias, esparsas o sujeito, por meio da trama narrativa, do artifício da linguagem, busca atribuir um sentido, uma coerência para sua vida, reunir em um todo coeso sua trajetória. Projeta, assim, uma identidade discursiva, narrativa provisória, ligada ao ato de enunciação presente.
Referências
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NOTAS
[1] Professora coordenadora do Projeto de iniciação científica “ Jornalismo e Memória Discursiva: a narrativa simbólica sobre a cidade de Belo Horizonte presente no acervo “Memória do Jornalismo Mineiro”.
Mestre em Linguística pela UFMG
Doutoranda em Linguística pela UFMG
[2] Graduando do Curso de Comunicação Social do Centro Universitário Newton – bolsista de iniciação científica.
[3] Graduanda do Curso de Comunicação Social do Centro Universitário Newton – bolsista de iniciação científica.
[4] Termo adotado por Patrick Charaudeau, sobre o qual discorreremos na parte teórica deste projeto.
[5] História Cultural da Imprensa – Brasil 1900-2000. p.49
[6] Castro, Maria Céres P. S. de. Estudo crítico e nota biográfica. In: Linhares, Joaquim Nabuco. Itinerário da imprensa de Belo Horizonte: 1895 – 1954. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Editora UFMG, 1995
[7] Joaquim Nabuco Linhares nasceu em Ouro Preto em 1880 e mudou para Belo Horizonte quando a nova cidade passa a ser a capital mineira. Ele coletava exemplares de jornais e revistas que surgiram e desapareceram durante o tempo em que residiu na cidade. À medida que reunia as publicações, Linhares se dedicava cuidadosamente à catalogação do material, descrição, formato, propriedade, periodicidade, redação e duração. Até sua morte em 1956, a coleção somava 839 títulos, inclusive o primeiro jornal publicado em 1895 (Belo Horizonte). Abrangendo publicações de 1895 a 1954, a “Coleção Linhares” foi digitalizada pela Escola de Ciência da Informação da UFMG em 1995.