Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Ludmila Castro Veado Stigert 1

Marlene Mendonça Martins 2

RESUMO: O presente artigo buscou elucidar de uma forma sintética o conceito de povo nos moldes de um Estado que se diz Democrático e de Direito. A análise buscou centrar as suas referências dentro do contexto brasileiro, principalmente nas perspectivas atuais de total diversidade política, social, econômica e cultural e buscou como referencial os ensinamentos de Frederich Muller em sua obra Quem é o Povo (2013). Ao final, destacou a necessidade de se buscar a efetividade dos direitos fundamentais para a construção de um regime político democrático. 

PALAVRAS-CHAVE: Povo. Democracia. Direitos fundamentais. 

ABSTRACT: This paper aims to elucidate a synthetic form of the concept of people along the lines of a State which says Democratic and Law . The analysis sought to focus its references in the Brazilian context , especially in the current prospects of full diversity policy , social , economic and cultural and sought as a reference the teachings of Friedrich Muller in his work Who is the People (2013 ). Finally, stressed the need to seek the effectiveness of fundamental rights for the construction of a democratic political regime . 

KEYWORD: People. Democracy. Fundamental rights. 

ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional

1 INTRODUÇÃO

Esse artigo visa analisar o conceito de povo adquirido e construído na era moderna, relacionando-o a ideia de povo à existência de um regime constitucional democrático, sobretudo no sistema brasileiro, bem como a sua importância com o surgimento da ideia de Estado Democrático de Direito e de efetividade dos direitos fundamentais.

O povo, no Estado Democrático deve ser concebido como instância de legitimidade dos atos estatais, pois possui legitimidade e soberania para escolher seus representantes que, de forma direta passará a agir em nome deles, bem como para atuar diretamente e participativamente na construção das decisões políticas da sociedade.

A obra do autor Friedrich Müller (2013) Quem é o Povo nos oferece uma reflexão acerca do conceito de povo no regime democrático levando o leitor a uma análise crítica, pois a atuação do povo diante da atuação do Estado merece algumas considerações. Para tanto, o autor articula quatro conceitos de povo, encaixando-os na realidade do regime democrático que na realidade precisa de atenção.

Nas ultimas décadas é de se perceber no Brasil uma crise de legitimidade das instituições e um profundo mal-estar com a democracia no país. O problema central, portanto, mostra-se na falta de legitimidade das instituições de representação bem como na falta de efetividade dos direitos fundamentais dos cidadãos. Há um esgotamento e uma descrença nas democracias representativas de uma maneira geral e especialmente em relação aos partidos políticos. Existe assim uma crise da própria democracia representativa.

Essencialmente, os cidadãos não se sentem representados nem pelos partidos e muito menos pelos governantes que são eleitos por eles. È necessário que o povo como titular do poder constituinte seja levado á sério por seus representantes, pois, diante de tantas situações catastróficas vivenciadas pela sociedade em toda esfera administrativa do Estado, há de se pensar que esse “povo” expresso no texto constitucional encontra-se desvalorizado e sem as devidas oportunidades de participação. E, por isso, defendemos a ideia de que a democracia só existe na perspectiva de um Estado que se preocupe em adotar políticas que busquem efetivar os direitos fundamentais dos seus cidadãos. 

 

2 O POVO E O CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO

Em sua obra Quem é o Povo, do filósofo e jurista Friedrich Müller (2013), foi feito um discurso de lançamento no dia de sua publicação com a existência de vários questionamentos quanto à questão fundamental da democracia, e, ficou bem esclarecido o que é o povo, mas quem é esse povo?

Segundo o jurista, esta pergunta nunca é formulada para ser examinada criticamente, com suas próprias intenções e valores, dando a entender que todos sabem quem é esse povo. Mas, refletindo sobre a temática, algumas indagações são levantadas: Quem é o povo? As pessoas que vivem legalmente no país? Os titulares dos direitos de nacionalidade? Os titulares dos direito civis? Os titulares dos direitos eleitorais ativos e passivos? Apenas os adultos? Apenas os membros de determinados grupos étnicos, religiosos ou sociais?

A obra de Müller (2013) publicada no Brasil faz algumas referencias sobre o direito constitucional brasileiro e nos leva a tirar a venda dos olhos quanto ao conceito de povo. Há quem designe povo como população que significa mera expressão numérica, demográfica, ou econômica, que abrange o conjunto das pessoas que vivem ou está temporariamente no território de um Estado.

Outra expressão colocada como sentido de povo é nação, que, segundo historiadores, ganhou no século XVIII efeito de se tornar a expressão povo, unidade homogenia, ganhando ênfase durante a Revolução Francesa, levando a introduzir a terminologia jurídica o termo nacionalidade. Portanto, nenhuma dessas expressões é adequada para qualificar uma situação jurídica, não sendo correto o uso das expressões com o sentido de povo.

A noção de povo vem sendo questionada desde a antiguidade clássica por vários estudiosos em matéria de teoria política e de direito público. Os gregos com o ideal de liberdade para todos forneceram as raízes para contribuição do que entendemos hoje como democracia. Estimulados nos ideais de que tudo deveria ser debatido e decidido de forma consensual, os iluministas pensaram a substituição das relações feudais de poder pelo (demo (gr.) povo + cracia (gr.) poder), formando a expressão democracia, que significa o governo do povo para o povo.

Porta voz dos novos tempos, o iluminismo projetou, com as luzes da razão, os princípios em que se basearia a sociedade prestes a se consolidar: igualdade de direitos, liberdade de pensamento, Estado constitucional, democracia representativa, livre escolha dos governantes. A história relata as revoluções que ocorreram objetivando a formação de um Estado de Direito. .

Silva (2014) discorre que a democracia não precisa de pressupostos especiais. Basta a existência de uma sociedade, pois se o seu governo emana do povo, é democracia; se não, não o é. Não podemos deixar de falar de povo, estando diante de um Estado Democrático, pois o povo deve ser assunto de grande relevância no direito constitucional.

Assevera Müller (2013, p. 87) que “O Estado Constitucional foi conquistado no combate contra uma história marcada pela ausência do Estado de Direito e pela falta de democracia e esse combate continua”.

É necessária a continuação desse combate, pois, o povo é invocado nas Constituições na posição como se fosse um assunto que se vai desenvolver, com um caráter representando mais símbolo do que realidade. Aparece na teoria jurídica da democracia como um conjunto de homens livres que agem racionalmente, mas na verdade tudo não passa de historinhas.

O discurso de Gettysburg é o mais famoso discurso do presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln. Foi proferido na cerimónia de dedicação do Cemitério Nacional de Gettysburg na tarde do dia 19 de Novembro de 1863, onde Lincoln invocou os princípios de igualitarismo da Declaração de Independência e definiu o final da Guerra Civil como um novo nascimento da Liberdade que iria trazer a igualdade entre todos os cidadãos, criando uma nação unificada em que os poderes dos estados não se sobrepusessem ao “Governo do Povo, Pelo Povo, para o Povo”.

Mas que povo é esse? Müller (2013) busca analisar o conceito de “povo” partindo da seguinte divisão: povo como povo ativo, povo como instância global de atribuição de legitimidade, povo como ícone, povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado.

Segundo Müller (2013), entende-se como povo ativo aquele titular de nacionalidade de acordo com as prescrições normativas do texto constitucional. “Por força da prescrição expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de nacionalidade” (p. 56). Tal nacionalidade estabelecida pelo direito positivo concretiza-se na totalidade dos eleitores de um Estado. Vejamos cada um desses conceitos articulados pelo autor.

Müller (2013), com objetivo de fortificar o conceito de povo ativo, faz menção à situação dos estrangeiros na União Europeia:

Tradicionalmente esse dimensionamento para os titulares da nacionalidade é matéria de direito positivo, mas não se compreende por evidência. Estrangeiros, que vivem permanentemente aqui trabalham e pagam seus impostos e contribuições pertencem à população. Eles são efetivamente cidadãos. (faktisch Inlander), são atingidos como cidadãos de direito (rechtliche Inlander) pelas mesmas prescrições ‘democraticamente’ legitimadas. A sua exclusão do povo ativo restringe a amplitude e a coerência da justificação democrática. Especialmente deficitário em termos de fundamentação é o princípio da ascendência (ius sanguinis), que representa uma construção de fantasia, não uma conclusão fundamentável pela empiria (sangue). Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexequível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político (p.57).

O autor ao afirmar que o conceito de povo das constituições atuais não deveria ser qualificado por meio das regulamentações do direito eleitoral, ele expressa com ênfase e conclui que “o Povo ativo não pode sustentar sozinho um sistema tão repleto de pressupostos” (p.58). Segundo sua reflexão, o povo ativo atua sozinho frente ao Estado, que possui um sistema duvidoso e incerto, o Estado se possisona como se esse povo ativo fosse todo o povo que pertence à nação.

Seguindo, Müller (2013) analisa o conceito de Povo como instância global de atribuição de legitimidade, que aceita todas as imposições do estado sem questiona-lo, fica de plateia, somente se justifica quando presente ao mesmo tempo a figura do povo ativo, apesar de, num sistema autoritário, o povo seja fartamente invocado como instância de atribuição. Assevera o autor “depois só tem (des) valor ideológico, não mais função jurídica” (p. 61).

O referido conceito torna-se mais acessível a partir da compreensão da ideia de estrutura de legitimação. Segundo o autor (2013), o povo ativo decide diretamente ou elege os seus representantes, para ser a voz do povo, nas assembleias, nas deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, tais normas, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo, enquanto população. As normas são publicadas e aplicam-se às relações entre o indivíduo e o Estado e entre os particulares de forma geral, ou seja, o povo ativo elege representantes que elaboram normas que, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo. Salienta Muller (2013) com relação à estrutura de legitimação,

Tudo isso forma uma espécie de ciclo (Kreislauf) de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado estrutura de legitimação. […] Parece plausível ver nesse caso o papel do povo de outra maneira, como instancia global de atribuição de legitimidade democrática. É nesse sentido que são proferidas e prolatadas decisões judiciais em ‘nome do povo (p. 60).

Segundo o autor, o direito de legitimar do povo não funciona no caso das atividades dos Poderes Executivo e Judiciário, que devem ser democraticamente justificadas e fundamentalmente estão interligados com a noção de Estado de Direito e democracia. Para ele, em termos do Estado de Direito, há uma contradição no discurso da democracia quando diz que o povo ativo ainda estaria atuando por intermédio de seus representantes.

Diante disso, o ciclo da legitimação foi rompido, ainda que de forma democrática; mas ele foi rompido tirando do povo ativo o autentico e completo direito de legitimação na esfera administrativa e judicial.

Müller (2000) conceitua o povo como ícone dando a essa representação uma ideia de povo intocável, sua figura não se compara ao povo ativo nem ao povo de atribuição, uma imagem que só existe no domínio das ideias e discursivamente construída como una e indivisível. Não diz respeito a nenhum cidadão ou grupo de pessoas. Pelo contrário. É um povo abstrato na vida real. E é exatamente este povo, o povo ícone a figura invocada pela minoria detentora do poder; historicamente as políticas repugnantes, discriminatórias e violentas são respaldadas por discursos como em nome do povo. Com suas palavras, Muller (2013) discorre:

O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ (entrealisieren) a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral em instituí-la assim, como padroeira tutelar abastrata, tornada inofensiva para o poder-violência – ‘notre bom peuple” (p. 67).

Conforme argumenta o autor, quando se diz o governo do povo para o povo, dando a ele uma posição de poder, já espelha ilusoriamente o uno. Sendo a população composta de um povo de diferente atuação na luta social, a iconização consiste em torna em povo a população diferenciada, ou seja, os grupos dominantes têm em suas mãos parcela do povo que ainda estão presos na caverna deixando que a escuridão os impeça de sair enxergar a potência que juntos possuem. Os dominantes os têm como constituintes mantenedores da Constituição em seus discursos domingueiros, pois:

O povo e o seu poder, sem os quais a sociedade nem seria capaz de receber uma constituição não pode permanecer uma metáfora citada em discursos domingueiros inofensivos. Muito pelo contrário, o poder constituinte do povo deve tornar-se práxis efetiva. Faz-se mister delimitar inequivocamente essas diferenças na utilização do conceito de povo (Muller, 2013, p.35).

Finalmente, na analise da divisão do conceito de povo, Müller (2013) ao elaborar um conceito perfeito de povo, no sentido de mais democrático, denominou povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado afirmando que:

A função do “povo” que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigentes, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de “demos”, de categorias distintas. […] Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima […]. Ideia do “povo” como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal – totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encontram no território do respectivo Estado (p.76).

Quando um indivíduo reside, trabalha, estabelece laços pessoais e materiais dentro do território de um Estado constitui um fenômeno capaz de originar obrigações (tributárias, civis, administrativas), mas, além disso, ele também é capaz de gerar direitos subjetivos, ou seja, eleva-se o posicionamento deste indivíduo ao posto de cidadão competindo-lhe juridicamente direito de atuação em toda esfera do Estado.

Argumenta o autor que “o mero fato de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo, menos irrelevante” (Muller, 2013, p.75). E adverte ainda que, “podemos denominar essa camada funcional do problema “o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado (zivilizatorische Staatsleistungen)”, como “povo-destinatário” (p.77).

Democracia é direito positivo, escrito, gravado nas Leis, Códigos e na Constituição e deve ser respeitada pela sociedade como um todo, no âmbito da sua cracia. Nesse contexto, aqueles que não consideram o problema da exclusão social, usam a expressão povo de forma puramente icônica; eles não são partidários da democracia, não pertencem à classe popular, não participam do discurso democrático.

Percebe-se ao longo do estudo que o autor não se preocupou em dar o significado da palavra povo, mas como ela é utilizada e sua intimidade com o Estado de Direito que se define como democrático. Para ele, a legitimidade do sistema democrático não está somente na busca de uma conceituação jurídico política de povo, mas principalmente em levar o povo a sério; povo este considerado como uma realidade viva em um mundo concreto. Sendo assim os quatro tipos de povos apresentados pelo autor ou conceito de povo é apenas uma forma de representar a postura do povo que vive num regime democrático. (Müller, 2013).

3 QUEM É O POVO BRASILEIRO? 

Müller (2013) sustenta que a referência ao povo é indispensável, sendo o sistema estruturado com base na soberania popular, na autodeterminação do povo, na igualdade de todos e no direito de decidir de acordo com a vontade da maioria.

Diante de tal circunstância, podemos concluir que o conceito de povo está intimamente ligado ao conceito de democracia, especialmente porque é o povo quem legitima o poder político estatal.

Nesta direção, assinala Müller (2013) que a ideia fundamental de democracia reside na “determinação normativa do tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo” (p. 57). Frisa ainda o autor que a democracia avançada vai muito além da estrutura de meros textos; e diz, significa:

Um nível de exigências, aquém do qual não se pode ficar – e isso tendo em consideração a maneira pela a qual as pessoas devem ser genericamente tratadas nesse sistema de poder – violência [Gewalt] organizados (denominado “Estado”): não como subpessoas [Unter – Menschen] não como súditos [Untertanen], também não como caso de grupos isolados de pessoas, mas como membros do Soberano, do “povo” que legitima no sentido mais profundo a totalidade desse Estado (p. 115).

Todo o povo, indistintamente, é detentor do poder constituinte, possuindo o direito de participar diretamente do governo, como preconiza o art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, mais especificamente no parágrafo único do artigo 1º, o constituinte fez constar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição” (REPÚBLICA, 1988).

Portanto, diante as argumentações de Muller (2013), podemos dizer que em qualquer sistema democrático, assim como no sistema democrático brasileiro, podemos utilizar os quatro conceitos de povo delineados pelo autor. Nota-se que não existe complexidade em sua aplicação, no entanto, os atributos particulares do sistema democrático brasileiro faz tornar-se difícil a aplicação de tais conceitos.

No tempo presente, se restringíssemos à classificação de povo como povo ativo, estaria excluindo milhões de brasileiros, pois, o artigo 14 da Constituição Federal estabelece que a obrigação atinja os brasileiros alfabetizados que têm entre 18 (dezoito) e 70 (setenta) anos de idade; para os analfabetos, os maiores de 70 (setenta) e os que têm entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos, o voto é facultativo. E mais, os estrangeiros, os condenados e os militares constritos são proibidos de votar. Com isso, o povo ativo se limitaria a 2/3 da população brasileira, ou seja, o povo está atuante no eleitorado por frações e não por totalidade.

Vemos também que parcela do povo não tem interesse pelas questões públicas, a política não é uma dimensão que atrai, citam crítica aos políticos, ou motivo ideológico, para a escolha. A maioria fala em não ter interesse, não fazer diferença se votam ou não.

Comparando o povo como instância global de atribuição de legitimidade, que é aquele que se sujeita ao ordenamento jurídico, parte-se da ideia de um povo que só se justifica quando presente ao mesmo tempo a figura do povo ativo, os quais elegem seus representantes, e são responsáveis pela formação do ordenamento jurídico. Sendo assim, onde se encaixa aqueles que residem no Brasil, se sujeitam às nossas normas, mas são estrangeiros? Sendo que num sistema democrático povo entende-se como um todo. Para onde vai o direito de legitimidade deles que faz parte desse todo? Pois possuem obrigações e estão sujeitos as normas do Estado, como qualquer outro brasileiro nato, além do mais, eles beneficia dos benefícios existentes no Estado.

Partindo da comparação de um povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado deveriam ser todos aqueles, ativos ou não, legitimados ou não, mas, que se encontram no nosso território. Contudo, nesse conceito não se inclui os excluídos e as minorias.

No ponto de vista de Müller (2013), numa sociedade avançada existe uma anomalia no padrão normal de uma função setorial provocada por uma divergência nos segmentos da ordem social e jurídica. Assevera o autor:

Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencialmente e difusamente dos sistemas prestacionais […] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa “marginalização” como subintegração (P. 91).

Levando para uma reflexão que trata da exclusão social brasileira é deparar com a realidade de milhões de pessoas, cujo acesso aos serviços básicos de saúde, educação, informação e desenvolvimento social são seriamente limitados, por vezes inexistentes. A desigualdade social é uma expressão que dentro de um Estado, possui uma extensão tão grande e abrange a miséria que envolve grandes grupos populacionais que para Muller, são os desprivilegiados, os excluídos e diante de tal situação se vê a pobreza da política.

Se igualar como povo ícone, pode-se dizer que esse povo participa do processo democrático, porém essa participação é manipulada, forçada e comprada por governantes que através de programas sociais insuficientes, passam a imagem de representantes preocupados com a desigualdade e exclusão social, tais programas não passam de pretextos que domina consideráveis parcelas da população dando a entender em seus discursos eleitorais que são prioridade em suas agendas. Muller (2013) afirma que, “o poder – violência encara o povo como seu aliado; o povo encontra-se sob o poder violência de um Estado, que mantém o povo para si – seu povo do “poder constituinte”, de um santinho de forte luminosidade” (p. 70).

Segundo Comparato (2012), ainda há muita diferença entre o que está estabelecido na lei e o que está posto na prática. Assim aduziu em uma reportagem reproduzida pelo Jornal Brasil de Fato:

E o que caracteriza a vida política brasileira é a duplicidade, com a existência de dois ordenamentos jurídicos: a organização oficial e a organização real. E também no sentido figurado há duplicidade, ou seja, o verdadeiro poder é dissimulado, é oculto. Nós encontramos na Constituição a declaração fundamental no artigo 1º, parágrafo único de que todo poder emana do povo que o exerce diretamente por intermédio de representantes eleitos. Mas na verdade, o povo não tem poder algum. Ele faz parte de um conjunto teatral, não faz parte propriamente do elenco, mas está em torno do elenco. Toda a nossa vida política é decidida nos bastidores e para vencer isso não basta mudar as instituições políticas, é preciso mudar a mentalidade coletiva e os costumes sociais. E a nossa mentalidade coletiva não é democrática. O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é isso. Não sabe que é um regime político em que ele tem o poder em última instância e que ele deve decidir as questões fundamentais para o futuro do país. Não sabe que ele deve não somente eleger os seus representantes, mas também poder de destituí-los. O povo não sabe que ele deve ter meios de fiscalização contínua dos órgãos do poder, não apenas do Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário, que se verificou estar corrompido até a medula, com raras e honrosas exceções. Assim nós chegamos ao século 21 numa situação de duplicidade completa. Todos acham que nós vivemos numa democracia e república, mas nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma declaração que até hoje permanece intocável, dizendo que nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular. Não existe a possibilidade de democracia sem que haja uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses particulares. E o chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem de séculos essa mentalidade de submissão, de passividade. Procuram resolver os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou através do desvio da lei. Nós vemos isso cotidianamente, nunca nos insurgimos contra uma lei que consideramos injusta, mas simplesmente nós desviamos da proibição legal (COMPARATO, 2012).

Através das histórias vivenciadas na busca de um estado democrático, podemos dizer que a democracia é um mero conceito que encontra-se em um processo de constante construção e aperfeiçoamento, pois não existe um conceito universal aplicável a toda forma de democracia.

O povo com um espírito totalmente democrático não existe, ou, quando muito, encontra-se em processo de construção. Nos dias atuais percebemos a um total desinteresse de uma boa parcela do povo brasileiro, que não acredita mais nos representantes que eles escolhem e nas instituições, além do mais nota-se que é raro ver a juventude o futuro de um país, se interessar por questões públicas e políticas. Há também descrença, no poder Judiciário, nas instituições que cuida da segurança da sociedade o que, traz uma sensação de insegurança de certa afasta, ainda que discretamente, a essência da democracia, que é o governo do povo para o povo.

 

4 CONCLUSÃO 

Com o intuito de analisar as ideias introduzidas na obra do autor Friedrich Muller (2000), e aplicá-las ao conceito que entendemos de povo, percebemos que o autor não se preocupou em trazer a reflexão um significado ao conceito de povo, mas mostrar a importância e a necessidade de um regime democrático em levar o povo a sério como um povo titular de legitimidade e possuidor de direitos fundamentais, principalmente os ligados à participação e comunicação.

No Brasil, todo o povo, indistintamente, é titular do poder constituinte, possuindo o direito de participar por meio de representantes eleitos ou mesmo diretamente do governo, porém o povo destacado no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, não é dotado de uniformidade, e, mesmo se houvesse possibilidade de classificá-lo como povo ativo, instância global, como ícone ou como destinatário das prestações civilizatórias, seríamos criticados, pois, o nosso sistema democrático é atípico devido às inúmeras divergências nos segmentos da ordem social e jurídica.

Na perspectiva da Constituição Brasileira de 1988, a expressão povo como canal de legitimação precisa ser repensada por seus representantes, pois afinal são eles que lhes dão o poder para representá-los, no entanto consta muitos governante não honra sua representação.

Corroborando ainda tal heterogeneidade, destaca-se os resultados obtidos nas últimas eleições presidenciais ocorridas em nosso país, onde percebemos uma linha divisória em nosso território entre centro-sul e norte e nordeste. Ou seja, dentro do nosso próprio país existe uma grande diversidade ideológica política no que concerne às perspectivas futuras da nossa Nação. Falar então em um consenso acerca do povo brasileiro é uma questão utópica, pois somos marcados por uma grande diversidade não apenas social, mas ideológica, política e cultural.

Nesta direção, conclui-se que no regime democrático, é percebida a impossibilidade de chegar a um conceito fechado e analítico de povo, sabendo que cada pessoa tem suas próprias especificidades, limitações e potencialidades, e mais, que cada uma delas constitui uma parte do todo povo brasileiro.

Nesse contexto, diante das adversidades ocorridas em nosso governo, o povo tem se distanciado cada vez mais das questões públicas e políticas do país. Porém, ainda que excluído e marginalizado e ou alocado em minorias, vislumbra no Judiciário uma forma de alcançar o equilíbrio provocado pela ausência de representatividade no Parlamento e no Executivo, independente da individualidade de cada um o povo merece respeito e deve ser ouvido e seus argumentos levados a sério.

REFERÊNCIAS 

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COMPARATO, Fábio Konder. Disponível em:www.brasildefato.com.br/node/10784‎ Visualizar postagem compartilhada03/10/2012 – imprensa alternativa pode O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é isso. Acesso 23/02/2014.

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NOTAS DE FIM

1 Professora de Direito Constitucional do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Mestra em Direito Público. Advogada.

2 Bacharel em Direito. Pós graduada em Direito Público pela PUC-Minas (IEC- Instituto de Educação Continuada).