Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Júlia Reghin Gomes da Costa1
Arthur Magno e Silva Guerra2 

RESUMO: A cassação de Prefeitos é matéria extremamente polêmica no atual contexto constitucional brasileiro. O processo político-administrativo, para desconstituição do seu mandato é regida por um Decreto-lei, editado em plena época da ditadura militar brasileira: o de número 201/1967. Este estudo realiza análise preliminar de alguns aspectos primordiais relacionados às denominadas infrações político-administrativas que podem ensejar a perda do mandato de Prefeito. Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988, a interpretação, leitura e aplicação da referida norma deve ser coadunada com a exigível principiologia democrática, com especial foco, na incidência do princípio do devido processo legal, durante as etapas regentes do julgamento. Nesse sentido, analisa o supra-referenciado instrumento normativo, abordando aspectos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema. 

PALAVRAS-CHAVE: Cassação de mandato de prefeito; infrações político-administrativas; Decreto-lei nº 201/67. 

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A autonomia municipal; 2.1. Os poderes municipais: Executivo e Legislativo; 2.2. A responsabilidade dos Prefeitos; 3. Crimes de responsabilidade; 3.1. Terminologia adequada: “crimes de responsabilidade” ou “infrações político-administrativas”?; 3.2. Decreto Lei 201/67 à luz da CF/88; 4. Análise das condutas e as penas cabíveis; 5. Julgamento político; 5.1. Tribunal Político: a Câmara de Vereadores; 5.2. O devido processo legal; 5.2.1. Atos do processo: a ordem adequada; 5.2.2. Legitimidade; 5.2.3. Quóruns de deliberações; 5.2.4. Citação, Notificações e Intimações; 5.2.5. Validade e nulidade dos atos: os vícios formais; 6. Devido Processo legal nos Tribunais; 7. Considerações Finais; Referências. 

ÁREA DE INTERESSE: Direito Administrativo

 

1 INTRODUÇÃO

O Decreto-lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967, dispõe sobre a responsabilidade de Prefeitos e Vereadores, elencando hipóteses, em que esses agentes políticos podem sofrer punição pela prática de atos não condizentes com o exercício de sua função. Ele traça as normas de julgamento, tanto nos casos de ‘infrações político-administrativas’, quanto nos casos de cometimento de denominados ‘crimes funcionais’.

Ocorre que o Decreto-lei nº 201 foi editado na vigência da Constituição de 1967, em pleno regime ditatorial e autoritário. Por conseguinte, existem dúvidas quanto à forma de sua aplicabilidade, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, principalmente no que diz respeito ao princípio constitucional da separação dos Poderes3.

Seus artigos 4º e 5º dispõem, especificamente, sobre as infrações político-administrativas, cabendo àquele relacionar hipóteses de infrações, de forma exemplificativa; e, a esse, determinar o procedimento que deve ser seguido pela Câmara dos Vereadores, quando do julgamento político do Prefeito.

O procedimento é formal, contudo se difere do processo judicial já que se trata na realidade de um julgamento ‘político’ assemelhando, muito, ao do impeachment de Presidente da República, previsto na Constituição Federal de 1988.

Apesar de se tratar de julgamento com essa natureza, Vereadores são vinculados ao procedimento4 fixado pelo Decreto-lei nº 201/67, não podendo desrespeitar também os princípios constitucionais norteadores do ordenamento jurídico, sob pena de ser o julgamento anulado por meio de processo judicial. O Judiciário apenas não tem competência para (re)analisar o mérito da questão, mas tem plena aptidão para anular o processo, bem como o julgamento, por presença de vício formal.

Nunca é demais lembrar que o Judiciário tem o poder-dever de examinar os atos do Poder Legislativo no tocante aos aspectos da legalidade, já que se tratam de questões que envolvem erros, na forma e no rito de um processo administrativo, com grave conseqüência para a democracia: cassação do mandato público de um mandatário.

Segundo a lição de Hely Lopes Meirelles (2001):

O processo e o julgamento das infrações político-administrativas competem exclusivamente à Câmara de Vereadores, na forma prevista na lei municipal pertinente, e os trâmites da acusação e da defesa devem atender não só aos preceitos das normas pertinentes, como as disposições regimentais da corporação, para validade da deliberação do plenário. Trata-se de um processo político-administrativo (e não legislativo), de natureza parajudicial e de caráter punitivo, por isso mesmo sujeito aos rigores formais legais e à garantia de ampla defesa. É processo autônomo e independente da ação penal do crime de responsabilidade, mas vinculado (e não discricionário) às normas municipais correspondentes e ao regimento da Câmara quanto à tramitação e aos motivos ensejadores da cassação do mandato do acusado, pelo quê se torna passível de controle judicial sob esses dois aspectos, ou seja, quanto à regularidade do procedimento e à existência dos motivos (MEIRELLES, 2006, p. 768-769). 

Assim, para que o esforço da Câmara de Vereadores no sentido de averiguar a ocorrência de infrações político-administrativas por parte do Prefeito não sejam em vão ou, seqüencialmente, arbitrários, devem os membros da Casa Legislativa  se atentarem a todos os detalhes procedimentais, previstos do Decreto-lei nº 201/67, em observância ‘Devido Processo Legal’. Afinal, como se verá mais adiante, o desrespeito ao referido princípio é o principal fator de anulação do julgamento político pelo Judiciário, via mandado de segurança.

 

2 A AUTONOMIA MUNICIPAL

O conceito de Município se modificou diversas vezes ao longo da história do Brasil conforme se alteraram as Formas de Estado e de Governo adotadas. Embora todas as Constituições do Brasil previssem em seus textos a autonomia municipal, esta apenas se concretizou a partir da Constituição de 1946. Desde então, os municípios são independentes dos governos Federal e Estadual, dotados de rendas próprias para prover os serviços locais, promover a eleição de seus governantes, dentre outras atribuições.

A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 1º e 18, integrou o Município na Federação, já que se caracteriza como peça essencial da organização político-administrativa brasileira (MEIRELLES, 2006, p. 44). Além disso, ampliou a autonomia dos Municípios nos aspectos político, administrativo e financeiro. O capítulo IV da Carta Magna é dedicado exclusivamente à organização dos Municípios, concedendo-lhe poder de elaborar sua própria lei orgânica, manteve a eleição direta para vereadores e extinguiu a possibilidade de nomeação para prefeitos de qualquer Município5.

O artigo 30 da Constituição de 88 elencou as matérias de competência privativa dos Municípios, dentre elas, legislar sobre assuntos de interesses locais (inciso I), suplementar a legislação federal e estadual no que couber (II) e instituir e arrecadar tributos de sua competência (III). Além de competências exclusivas, o artigo 23 trouxe as matérias de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entre as quais podemos ressaltar: zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público (I) e cuidar da saúde e assistência pública bem como da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (II).

Assim, nas palavras de Hely Lopes Meirelles,

A atual Constituição da República, além de inscrever a autonomia como prerrogativa intangível do Município, capaz de autorizar até a intervenção federal, para mantê-la ou restaurá-la, quando postergada pelo Estado-membro (art. 34, VII, “c”), enumera, dentre outros, os seguintes princípios asseguradores dessa mesma autonomia: a) poder de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); b) poder de autogoverno, pela eletividade do prefeito, do vice-prefeito e dos vereadores; c) poder normativo próprio, ou de autolegislação, mediante a elaboração de leis municipais na área de sua competência exclusiva e suplementar; d) poder de auto-administração: administração própria para criar, manter e prestar os serviços de interesse local, bem como legislar sobre seus tributos e aplicar suas rendas6.    

Apesar de todas essas atribuições conferidas ao Município pela Carta Magna, este não tem competência para traçar normas sobre a responsabilidade de seus agentes bem como os procedimentos para aplicação de eventuais penalidades. Isso porque, somente à União compete legislar sobre direito civil, penal e processual, nos termos do artigo 22, I, da Constituição.

Dessa forma, o Município fica adstrito às leis criadas pela União a respeito da responsabilidade civil e penal de seus agentes públicos, não podendo inovar nesse âmbito sob pena de desrespeito à Constituição da República.

 

2.1. Os Poderes Municipais: Executivo e Legislativo

O princípio da ‘Separação dos Poderes’ está previsto nos arts. 2º e 60, §4º, III da Constituição da República de 1988, aí consagrado como cláusula pétrea. Segundo este princípio, os poderes denominados de Executivo, Legislativo e Judiciário, são independentes e harmônicos entre si, e existem para evitar um tendência centralizadora e autoritária do Poder Público (COSTA, 2005, p. 137). Esse modelo prevalece tanto no âmbito Federal, como Estadual e Municipal7 e nada mais é que um sistema de distribuição de funções o que implica quem, for das hipóteses constitucionais de atipicidade, um poder não pode exercer as atribuições do outro.

Os órgãos somente são independentes no que se refere à organização de seus serviços e ao exercício das atribuições que lhe são próprias, mas se entrosam e se subordinam mutuamente na consecução da contenção do poder pelo poder. O que significa que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário desempenham as suas funções de modo preponderante e não exclusivo, podendo cada um deles realizar excepcionalmente uma função material do outro Poder, de maneira acessória (FIÚZA; COSTA, 2007, p. 193).

Na esfera municipal o Poder Legislativo é exercido pela Câmara de Vereadores e tem como funções precípuas a criação de leis, bem como a fiscalização. Hely Lopes Meireles (2006) esclarece que

A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos municípios no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito (MEIRELLES, 2006, p. 605).  

Já o Poder Executivo é chefiado pelo Prefeito, destacando-se entre suas funções os atos de governo (indelegáveis) e as administrativas (delegáveis). As funções de governo compreendem o exercício político do mandato, ou seja, a representação do Município bem como a condução dos negócio públicos municipais, além das funções co-legislativas, quais sejam: iniciar projetos de lei, sancionar, vetar, promulgar leis e enviar mensagens à Câmara (CASTRO, 2006, p. 172).

As funções administrativas do Prefeito, nas palavras de José Nilo de Castro

(…) encarnam a maior parte de suas atividades, desde a execução de leis, a movimentação da maquina administrativa, a arrecadação dos tributos municipais, a guarda dos bens municipais, a execução dos serviços públicos, diretamente ou por seus auxiliares (CASTRO, 2006, p. 172). 

 

2.2. A Responsabilidade dos Prefeitos

O Prefeito, como pessoa pública, chefe do Poder Executivo Municipal, detentor de inúmeras atribuições, deve zelar belos bens públicos, não podendo usufruir destes como se seus fossem. Pelos seus atos o Prefeito pode ser responsabilizado penal, político-administrativo ou civilmente, dependendo da natureza do ilícito. Ensina Nelson Nery Costa (2005) que:

A responsabilidade penal resulta do cometimento de crime ou de contravenção, podendo ser crime funcional, especial ou comum. Os crimes funcionais podem ser gerais, previstos nos artigos 312 e 327, do Código Penal, ou específicos, crimes de responsabilidade, tipificados no art. 1o do Decreto-lei nº 201, de 27.02.1967, ou crimes de abuso de autoridade, previstos na Lei Federal nº 4.898, de 9.12.1965 (COTA, 2005, p. 160)8.

Já a responsabilidade político-administrativa origina-se da violação de deveres funcionais pelo Prefeito, sujeito a controle da Câmara de Vereadores conforme artigos 4o e 5o do Decreto-lei nº 201 de 19679. Falaremos a seguir sobre os tipos de infrações que pode incorrer o Prefeito Municipal. 

 

3. CRIMES DE RESPONSABILIDADE 

3.1. Terminologia Adequada: “Crimes de Responsabilidade” ou “Infrações Político-Administrativas”?

Existia na doutrina e jurisprudência uma divergência quanto à correta terminologia a ser utilizada para as infrações cometidas pelos Prefeitos que poderiam ensejar a perda do mandato. Alguns doutrinadores, dentre eles, José Rubens da Costa (2000), sustentavam que: 

a denominação de ‘crimes de responsabilidade’ aos fatos jurídicos que causam a cassação do mandato não é correta tecnicamente, porque reserva-se a dicção crime aos ilícitos punidos com a restrição ao direito de liberdade (=prisão) (COSTA, 2000, p. 05). 

Essa divergência se arrefeceu, em 1994, quando do julgamento do HC 70.671.1-PI pelo Supremo Tribunal Federal, em que o então Ministro Carlos Mário da Silva Veloso consignou em seu voto:

(…) Sensibilizou-me, entretanto, o voto que proferiu o Sr. Ministro Paulo Brossard, a demonstrar que a jurisprudência da Casa ‘tem como supedâneo um equívoco decorrente da equivocidade da locução crimes de responsabilidade; o Dec-Lei n. 201 a emprega em sentido diferente com que ela é empregada pela Lei 1.079/59, e o foi pela Lei n. 30, de 1892, bem como pela Lei 13.528, de 1959, revogada pelo Decreto-lei mencionado.’ Ponho-me de acordo com a tese esposada pelo eminente Ministro Brossard. É que, conforme esclareci no voto que proferi no MS 21.689-DF, o Dec-lei n. 201, de 1967, estabelece, no seu art. 1o, os crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara. Seguem-se, então, os incs. I a XV, a tipificarem os crimes de responsabilidade dos prefeitos. Acontece que esses crimes são, na verdade, crimes comuns: são julgados pelo Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores (art. 1o), são de ordem pública e punidos com pena de reclusão e de detenção (art. 1o, § 1o) e o processo desses crimes ‘é o comum do juízo singular, estabelecido pelo Código de Processo Penal’ com, algumas modificações (art. 2o, incs. I a III). No art. 4o, o Dec-lei n. 201, de 1967, cuida das infrações político-administrativas dos prefeitos, sujeitos ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato. Essa infrações é que poderiam ser denominadas, na tradição do direito brasileiro, de crimes de responsabilidade. Aqui, tem-se o impeachment; lá, relativamente aos crimes do art. 1o, ação penal pública. (…)” (BRASIL, 1995) 

Assim, entendemos que a terminologia mais correta a ser utilizada, para atos que podem resultar na cassação do mandato de Prefeito é, de fato, “infração político-administrativa”. No que tange aos delitos elencados no art. 1o do Decreto-Lei n. 201, de 1967, adequado chamá-los de “crimes funcionais”, já que nada mais são do que crimes comuns, praticados no exercício de função, julgados, portanto, pelo Judiciário.10

 

3.2. Decreto Lei 201/67 à Luz da CF/88

Antes de adentrar propriamente na análise das infrações político-administrativas em espécie, cabe entender a origem do referido Decreto-lei e sua aplicabilidade ante a promulgação da Constituição de 1988.

Durante o período de Ditadura Militar, mais especificamente o período entre a promulgação da Constituição de 1967, em 24 de Janeiro, até o início de seu vigor, que só se daria em março, foram editados mais de 200 Decretos-leis, dispondo sobre diversas matérias (LÔBO, 2003, p. 90), dentre eles o Decreto-lei nº 201. Nesse contexto de Ditadura Militar, na vigência do Ato Institucional nº 4, de 1966, a edição do Decreto-lei nº 201, de 1967, visava certamente a centralização do poder, uma vez que não se limitava a traçar as diretrizes básicas do processo de cassação de mandato eletivo, mas regulava-lhe até os pormenores e os imprevistos (CARVALHO, 2012).

Ressalte-se que, durante o período de Ditadura Militar, não havia qualquer preocupação com os direitos individuais; porém, o Decreto-lei nº 201 teve o falo condão de respeito a princípios basilares do due processo of Law, inconcebíveis à época, já que a intenção era mesmo possibilitar a “caça”, àqueles prefeitos que não coadunassem com o sistema instaurado.

Ocorre que, após o advento da Constituição de 1988, surgiu grande discussão de ordem doutrinária a respeito da aplicabilidade ou não do Decreto-lei 201, de 1967 (FERREIRA, 1996, p. 120). Sobre o art. 29, X da Constituição Federal11, renumerado do inciso VIII, pela Emenda Constitucional nº 1, de 1992, diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1996):

Julgamento do prefeito. Estabelece-se aqui um privilégio de foro em favor do prefeito municipal. É de se discutir o alcance desse privilégio. Abrangerá ele também o julgamento dos crimes de responsabilidade? E das chamadas infrações político-administrativas (Dec.-Lei n. 201/67, art. 4o)? Deve-se entender que sim. A função de julgar é inerente ao judiciário no sistema da “separação dos poderes”, que a Constituição erige em princípio intocável (v. art. 60, §4o, III). Assim a atribuição dessa função a outro poder exige norma expressa e excepcional (FERREIRA, 1996, p. 120). 

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Edilene Lobo (2003), asseverou que:

Quanto às aduções dos cultos juristas que defendem a vigência do Decreto-lei 201/67, temos que não procedem. O Decreto-lei era inconstitucional já no regime de exceção da Carta de 1967, porque o AI 4/66 só admitia normas dessa natureza para matérias afetas à segurança nacional e questões administrativas e financeiras. Como se sabe, o diploma em pauta versa matéria penal e político-administrativa.

O principal vício reside na origem. A edição da norma, usurpando-se a função normativa do Poder Legislativo, colide com os comandos do art. 2o da Constituição Federal. Só por aí se vê que é insustentável a tese de recepção tácita (LÔBO, 2003, p. 95).  

José Nilo de Castro (2006, p. 484-493) resume a opinião dos defensores da constitucionalidade do Decreto-lei 201/67 afirmando que à vista do fenômeno da recepção tácita, houve absorção das normas do Decreto-lei referido, não se podendo ver a contradição com a Constituição de 1988. Acrescenta que a competência para legislar sobre infrações político-administrativas é da União, porque a respectiva, natureza jurídica é de caráter punitivo. Sustenta ainda que a autonomia do Município é limitada ante a supremacia do Estado e da União, e que, em respeito ao principio da simetria com o centro existe legislação específica dispondo a respeito das infrações político-administrativas.

Castro (2006, p. 486), ainda, ressalta que, como o art. 85 da Constituição remete à Lei Federal, dispor a respeito dos crimes de responsabilidade no âmbito Federal e Estadual, não há razão para afastar da Lei Federal a definição das infrações político-administrativas no âmbito municipal. E conclui:

As mesmas razões de ordem constitucional que vicejavam a favor do Decreto-lei n. 201/67, sob a Constituição de 1967, não desapareceram sob a atual.

(…)

Não se faz aqui, evidentemente, apologia do Decreto-lei n. 201/67, fruto do autoritarismo, como tantos outros decretos-leis que disciplinam, em plenitude, atos, fatos e relações jurídicas sob a nova ordem constitucional. Defende-se-lhe a vigência, por não se encontrar, na sua abrangência, incompatibilidade vertical com a Constituição da República. Porquanto está ele vigente, não prevalecendo, data venia, teses de que o Prefeito só pode ser julgado pelo Tribunal de Justiça, de que a definição das infrações político-administrativas se inseririam no âmbito dos poderes reservados dos Estados-membros e de que possuiria a Câmara Municipal competência para definir as infrações político-administrativas, em seu regimento interno ou na Lei Orgânica, e para criar a figura do impeachment local12 

Diante das divergências entre as duas correntes – uma que afirma; outra que nega a vigência do Decreto-lei nº 201/67 – o Supremo Tribunal Federal se manifestou no sentido de sustentar a vigência do Decreto-lei 201/67 sob os seguintes argumentos, que elenca Edilene Lôbo a partir dos Habeas Corpus 69.850-RS, de 1993 e 70.671-PI, de 1994:

o ordenamento anterior validou a integridade não só dos atos institucionais baixados pelo governo militar, como acervo normativo produzido por aqueles atos, com base no art. 181, III da EC de 1969 e 173, III, da Carta de 1967. Assim, a inconstitucionalidade do Decreto-lei em tela foi editada com os dispositivos colacionados;

mesmo versando tipos penais, na sistemática constitucional extinta era possível que decretos leis assim o fizessem;

os vícios são menos do texto do Decreto-lei em exame do que da sua época. Seria muito o que na jurídica ordinária teria que ser derrubado, em homenagem à Carta de 1988, se se fizesse por causa da gênese dos textos e não pelo seu conteúdo;

o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 496, que declara: “são válidos, porque salvaguardados pelas Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1967, os decretos-leis expedidos entre 24 de janeiro e 15 de março de 1967 (LÔBO, 2003, p. 93).

 

4 ANÁLISE DAS CONDUTAS E AS PENAS CABÍVEIS

As infrações político-administrativas, segundo Tito Costa (1998):

são as que resultam de procedimento contrário à lei, praticadas por agente político, ou quem lhe faça legitimamente as vezes, e relativas a específicos assuntos de administração. O Prefeito, tanto quanto o Governador ou o Presidente da República,  é um agente político; desempenha um múnus público, sem qualquer ligação profissional ou de emprego em relação ao Município (COSTA, 1998, p. 150-151).  

Acrescenta ainda CASTRO (2006, p. 480) que as infrações provêm de violação de deveres éticos, funcionais e governamentais locais, cujo objetivo é a perda do mandato eletivo que se pode dar pela cassação e extinção.

O art. 4º do Decreto-lei nº 201, de 1967, traz em seu caput a regra de que as infrações político-administrativas cometidas por Prefeitos municipais são sujeitas ao julgamento pela Câmara de Vereadores e punidas com a cassação do mandato (BRASIL, 1967). Trata-se, portanto, de julgamento político pela Câmara de Vereadores que pode resultar na cassação do mandato. Hely Lopes Meirelles (2006) distingue a cassação da extinção do mandato13:

Cassação é a decretação da perda do mandato por ter o seu titular incorrido em falta funcional, definida em lei e punida com esta sanção. Extinção é o perecimento do mandato pela ocorrência de fato (morte), ato ou situação que torne automaticamente inexistente a investidura eletiva (renúncia, perda dos direito políticos, condenação criminal com inabilitação para a função pública, etc).

A cassação de mandato compete ao plenário da Câmara, por ser ato constitutivo acentuadamente deliberativo e de índole político-administrativa (MEIRELLES, 2006, p. 700).  

Os incisos do artigo 4º do Decreto-lei nº 201/67, apenas exemplificam atos que, quando praticados por Prefeitos, no âmbito de suas atribuições, são imputadas como infrações político-administrativas. Conforme ensina Wolgran Junqueira Ferreira (1996):

Servem apenas, unicamente e somente como exemplos a serem seguidos pelas Câmaras Municipais e não como lei a ser aplicada de imediato, fato que ocorre com os artigos 1º, 2º e 3º do Decreto-lei nº 201, anteriormente comentados (FERREIRA, 1996, p. 129).  

O inciso I do art. 4º guarda simetria com o art. 34, IV14 e art. 85, II15 da Constituição ao dispor que SE trata de infração político-administrativa impedir o funcionamento regular da Câmara. Considera-se que o Prefeito impede o regular funcionamento da Câmara de Vereadores quando se opõe ao livre desempenho de qualquer representante, deixa de repassar valores devidos, de acordo com o orçamento municipal ou dificulta o acesso dos Vereadores ao edifício da Câmara.

Já o inciso II do mesmo artigo, dispõe que impedir o exame de livros, folhas de pagamento e demais documentos que devam constar dos arquivos da Prefeitura, bem como a verificação de obras e serviços municipais, por comissão de investigação da Câmara ou auditoria, regularmente instituída também trata-se de infração político-administrativa. Isso porque, cabe à Comissão de Inquérito Parlamentar nomeado pela Câmara Municipal, a verificação de atos e fatos que estejam transcritos em livros da Prefeitura ou quaisquer outros documentos que lá se encontrem, por esse motivo, tem livre acesso a todos os documentos. O mesmo direito possui o Tribunal de Contas, que atua como órgão auxiliar do controle externo, quando da realização da auditoria anual (FERREIRA, 1996, p. 132).

Também, trata-se de infração político-administrativa, prevista no inciso III do art. 4º, desatender, sem motivo justo, as convocações ou os pedidos de informações da Câmara, quando feitos a tempo e em forma regular. Parte da doutrina entende este inciso como inconstitucional já que, não se pode pretender que o chefe de um dos poderes, no caso, do Poder Executivo, submeta-se como mero subordinado caso convocado pela Câmara de Vereadores, não cabendo às Leis Orgânicas dos Municípios estabelecer a obrigatoriedade de comparecimento do Prefeito para dar explicações (LÔBO, 2003, p. 111).

Há quem entenda que as Leis Orgânicas dos Municípios podem, sim, estabelecer a obrigatoriedade do Prefeito comparecer à Câmara para dar explicações sobre fatos constantes do próprio requerimento de convocação, podendo, inclusive, fixar prazo para o seu comparecimento (FERREIRA, 1996, p. 133).

Já quanto aos pedidos de informação dos quais também trata o inciso III, a doutrina majoritária entende serem regulares, desde que devidamente aprovados pelo plenário e formalmente encaminhados pelo Presidente da Câmara e, apenas justo motivo pode justificar o seu desatendimento (LÔBO, 2003, p. 112).

A publicação da lei é essencial para torná-la íntima do público e, quando efetivada, torna-se obrigatório o seu cumprimento. Cabe ao Prefeito Municipal tomar as medidas cabíveis para efetivar a publicação das leis dentro do prazo de 15 dias, prazo este que, apesar de não ser estabelecido diretamente, conclui-se pela lógica do processo legislativo e pela simetria com o art. 66, §1º16 da Constituição Federal (FERREIRA, 1996, p. 134). Portanto, o inciso IV também elenca como infração político-administrativa do Prefeito retardar a publicação ou deixar de publicar as leis e atos sujeitos a essa formalidade.

Deixar de apresentar à Câmara, no devido tempo, e em forma regular, a proposta orçamentária, dispõe o inciso V do art. 4º. Trata-se de infração político-administrativa porque tem o Prefeito prazo determinado e forma regular para apresentar proposta orçamentária à Câmara. O prazo é fixado pela Lei Orgânica do Município, e, quanto à forma, existe uma série de elementos prefixados, como por exemplo na Lei nº 4.320/64, que devem ser observados para a apresentação do orçamento (FERREIRA, 1996, p. 135).

O inciso VI prevê como infração político-administrativa descumprir o orçamento aprovado para o exercício financeiro. Explica Edilene Lôbo (2003) que:

No que tange às despesas, subdivide-se [o orçamento], grosso modo, em categorias às quais correspondem dotações orçamentárias assentadas em elementos de despesas: pessoal, material de consumo, material permanente, serviços e encargos, etc. Os comandos para essa classificação advêm da Lei 4.320/64, a qual possibilita, ainda, que o orçamento contenha mecanismos de remanejamento parcial das dotações orçamentárias. Fora desses limites, o Prefeito corre o risco de cometer a violação do orçamento, rompendo não só a lei, como também o pilar da Administração Pública, qual seja: o “princípio da legalidade” (LÔBO, 2003, p. 119)  

Assim, apesar de o orçamento não ser totalmente rígido, ele deve ser observado no tocante às dotações fixadas, sob pena de incorrer em infração o Prefeito.

Já o inciso VII do art. 4º dispõe tratar-se de infração político-administrativa praticar, contra expressa disposição de lei, ato de sua competência ou omitir-se na sua prática. Wolgran Junqueira Ferreira esclarece que este inciso prevê duas hipóteses: a) praticar, contra expressa disposição de lei ato de sua competência; b) omitir-se, na prática, de ato de sua competência (FERREIRA, 1996, p. 139).

A primeira trata-se de infração por ato comissivo e caracteriza o denominado excesso de poder, em que o Prefeito possui a competência para praticar determinado ato, mas ao fazê-lo se excede diante dos parâmetros conferidos pela lei (FERREIRA, 1996, p. 139). Trata-se de uma espécie de ato ilícito. 

A segunda versa sobre o Prefeito que deixa de praticar determinado ato que, por fixação legal, lhe compete. A omissão é tão grave quando a comissão, tanto que esta infração político-administrativa é a mesma tipificada pelo Código Penal, em seu artigo 31917, sob a epígrafe de Prevaricação (FERREIRA, 1996, p. 140-141).

Edilene Lôbo (2003) acrescenta que a norma do inciso VII reprime, na realidade, a possibilidade de violação ao princípio da legalidade, espinha dorsal da administração pública e continua:

Toda conduta tendente a desafiar esse mandamento é refutada com veemência, chegando mesmo a ser tratada como criminosa, a teor do inciso XIV do art. 1º do Decreto Lei 201/67.

Mais do que a proteção à lei, pretendeu-se proteger o núcleo do sistema. Operar contra a lei em conduta omissiva ou comissiva, quebrando um dos elos, tende a abalar toda a cadeia normativa. (LÔBO, 2003, p. 121-122) 

Trata-se também de infração político-administrativa, prevista pelo inciso VIII do art. 4º omitir-se ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do Município sujeito à administração da Prefeitura. Tal dispositivo visa à proteção dos bens públicos, rendas, direitos ou interesses do Município, tentando evitar o descaso, alcançando também aqueles de propriedade do Estado e da União que estejam sob a administração do Município. Edilene Lôbo (2003) elucida que:

O dever de cuidar do patrimônio público é de matriz constitucional, elevando aos píncaros a proteção aos bens e interesses públicos e exigindo dos Administradores constante vigilância. Eles vão desde as ruas, praças, prédios até os títulos, dinheiro, automóveis, edifícios, papéis, móveis, máquinas, animais e outros (LÔBO, 20013, p. 123-124).  

O inciso IX prevê como infração político-administrativa ausentar-se do Município, por tempo superior ao permitido em lei, ou afastar-se da Prefeitura, sem autorização da Câmara dos Vereadores. É sabido que o chefe do Município precisa deslocar-se da sede, a fim de tratar de interesses municipais, normalmente, em viagens aos centros de poder político. Por este motivo, é comum a previsão de ausência do Prefeito por tempo determinado nas Leis Orgânicas Municipais e, caso ultrapassado o prazo determinado, o Prefeito incorre em infração (LÔBO, 20013, p. 124).

Também pode o Prefeito afastar-se da Prefeitura, mas, para tanto, deverá estar devidamente autorizado pela Câmara de Vereadores, cabendo o exercício do cargo, na duração do afastamento, ao seu substituto legal, conforme FERREIRA (1996, p. 143) que complementa:

Não pode [o Prefeito] afastar-se do cargo sem licença do Legislativo, assim como, se seu substituto legal aceitar o cargo, os atos praticados por este são eivados de nulidade absoluta. Isto, porque, o substituto é incompetente e os atos praticados por pessoa incompetente são plenamente nulos e a sentença que assim o considerar será declaratória.  

Proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo, dispõe o inciso X do art. 4º do Decreto-lei 201/67. Previsão semelhante está contida no art. 55, II da Constituição da República, porém, na visão de Edilene Lôbo é um dos dispositivos mais difíceis de se dar cumprimento, pela subjetividade dos dois núcleos: “decoro” e “dignidade”, afinal, a conduta pode ser indecorosa para uns e regular para outros (LÔBO, 20013, p. 125).

Wolgran Junqueira Ferreira (1996, p. 144) define o decoro como “decência, respeito de si mesmo e dos outros”. E elenca três elementos objetivos, apontados por Tito Costa e Miguel Reale, que, se não forem constatados, não imputam determinada atitude como falta e decoro, mas apenas exercício normal de poder inerente ao mandato político, são eles:

a) existência de dolo, isto é, de manifesto propósito de denegrir a instituição legislativa ou outro órgão do Estado merecedor de respeito; b) gratuidade da crítica, isto é, total ausência de fundamento para legitimar o juízo formulado, bastando para legitimá-lo a simples ocorrência de indícios quanto à conveniência ou à irregularidade do ato impugnado; c) agressividade dispensável, com descortesia incompatível com o alegado objetivo de defesa do bem público FERREIRA (1996, p. 144).  

Edilene Lôbo (2003) ainda acrescenta que

Para detectar a ausência de decorro ou de dignidade no desempenho do cargo, é preciso senso comum, imparcialidade e sentimento de justiça sob pena de tentar impor um modelo de “moral social por atacado”, desrespeitando-se as peculiaridades de cada qual (LÔBO, 2003, p. 127-128). 

Ressalte-se que, como já dito anteriormente, as hipóteses de infrações político-administrativas elencadas no art. 4º são meramente exemplificativas, cabendo à Câmara dos Vereadores identificar as demais condutas que podem ser consideradas com infrações.

 

5 JULGAMENTO POLÍTICO  

5.1. Tribunal Político: a Câmara de Vereadores

Apontados indícios de prática de infração político-administrativa, caberá à Câmara de Vereadores processar e julgar o Prefeito, conforme as disposições do art. 5o do Decreto-lei nº 201, de 1967: “Art. 5º. O processo de cassação do mandato do Prefeito pela Câmara, por infrações definidas no artigo anterior, obedecerá ao seguinte rito, se outro não for estabelecido pela legislação do Estado respectivo”.

Trata-se, portanto, de julgamento eminentemente político, já que compete ao órgão Legislativo Municipal. Meirelles (2006, p. 700) explana:

Na cassação o plenário decide se o titular do mandato deve perde-lo, ou não, em face da falta cometida ou da situação de fato que se apresente em conflito com as disposições legais que regem o exercício do cargo ou função eletiva;(…)

Para a cassação há necessidade de quórum e observância da tramitação legal e regimental estabelecida para essa deliberação (…)  

No mesmo sentido, Edilene Lôbo (2003) aclara que o julgamento político, assim como o jurídico, é extremamente vinculado, não deixando margem à discricionariedade, não se admitindo, portanto, atos e procedimentos à margem da lei.

Só porque político, não se pode admitir a parcialidade,  a arbitrariedade, nem a injustiça. Assim como o judicial, o julgamento político deve ser fundamentado. É da fundamentação que se extraem os motivos, os argumentos que demonstrem, com base nas provas, que o réu tenha praticado a conduta imputada (LÔBO, 2003, p. 141). 

José Nilo de Castro (2006, p. 480) explica que a cassação de mandato eletivo, por ser ato vinculado, deve ser apreciado pelo Poder Judiciário no que diz respeito à formalidade do procedimento de cassação e à legalidade intrínseca dos elementos internos do ato ou fato motivadores da medida punitiva. Mas conclui:

O que, entretanto, é interdito, subtraído ao Judiciário é invadir o campo próprio dos atos interna corporis, valorando função política que a ordem jurídica conferiu ao Legislativo, com exclusividade, indo ao mérito da cassação, rivisando-a por esse motivo. O Judiciário não pode substituir o julgamento político-administrativo da Câmara pelo seu. A teoria dos motivos determinantes se impõe aqui, no particular, pela qual todo ato, quando tiver sua prática motivada, fica vinculado ao motivo exposto. Daí não se busca no Judiciário, saber se foi justa, injusta, inconveniente ou severa a deliberação da Câmara, se esta deveria perdoar ou não o acusado, pois este juízo é de mérito, e a Justiça não pode substituir a deliberação da Câmara Municipal por um pronunciamento de mérito do Judiciário (CASTRO, 2006, p. 480-481).

 

5.2. O Devido Processo Legal

O devido processo legal é princípio previsto no art. 5º, LIV da Constituição da República e consiste em garantia de todos os litigantes, seja em processos judiciais, administrativos ou legislativos. De acordo com esse princípio, deve o processo ser regido em obediência à lei, entendida aqui como as regras previstas no ordenamento jurídico (GAVIORNO, 2013), não podendo o julgador inovar quanto ao procedimento que deve ser observado.

A Constituição Federal de 1988, ao explicitar a observância do devido processo legal para a limitação da liberdade ou de bens, em seu artigo 5º, inciso LIV, alcança o processo administrativo, o que é reiterado quando trata da ampla defesa e do contraditório no inciso seguinte (ANJOS FILHO, 2008). 

A norma constitucional não traz limitação funcional, pelo contrário, é dirigida ao Poder Público como um todo, já que a garantia do devido processo legal visa proteger o cidadão contra o arbítrio das autoridades, independente de sua se sua função é típica do Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário (LIMA, 1999, p. 16).

Hoje o devido processo legal é tratado tanto sob o aspecto procedimental, reconhecido antes mesmo da positivação do princípio na Constituição de 1988, quanto sob o aspecto substantivo, que atua não apenas perante o judiciário na resolução de litígios, mas também frente aos poderes Executivo e Legislativo (LIMA, 1999, p. 189).

Uma vez demonstrado que os atos componentes do processo político-administrativo de cassação do Prefeito estão diretamente atrelados às ilegalidades e irregularidades do Processo como um todo, macula-se-lhe, o Direito a um “devido Processo Legal”.

 O dispositivo que traz o princípio do devido processo legal está inserido na Constituição no rol dos direitos fundamentais, ou seja, todas as normas previstas no art. 5º foram consideradas pelo legislador como essenciais para a existência do Estado Democrático de Direito (PAMPLONA, 2004, p. 76-77).

Dessa forma, é inegável a importância do devido processo legal para que se possa haver julgamento correto e justo do acusado e, independente do procedimento ou do órgão julgador, ele deve ser observado, sob pena de ser anulado.  

5.2.1. atos do processo: a ordem adequada

O procedimento para julgamento de Prefeito é insaturado a partir de denúncia encaminhada ao Presidente da Câmara de Vereadores18. O autor deverá produzir petição formal, clara, articulada e descritiva do ilícito, devidamente instruída com as provas do alegado, porém, como se trata de procedimento administrativo, dispensa a presença dos requisitos da peça judicial previstos no art. 282 do Código de Processo Civil (LÔBO, 2003, p. 129).

Edilene Lôbo (2003) explica que as denúncias serão consideradas ineptas, quando:

não forem apresentadas por cidadão brasileiro; não descreverem fatos que tipifiquem infrações político-administrativas; não apresentarem provas; e, na ausência delas, não justificarem a impossibilidade de exibi-las, nem indicarem o local onde possam ser encontradas (LÔBO, 2003, p. 1300).   

De posse da denúncia, o Presidente determinará a leitura da denúncia e consultará a Câmara sobre o seu recebimento. A denúncia será recebida caso a maioria dos presentes na sessão delibere nesse sentido.

Havendo o recebimento da denúncia, será constituída, na mesma sessão, uma comissão processante composta por três Vereadores sorteados entre os desimpedidos, já que, caso a denúncia seja feita por Vereador este fica impedido de compor a comissão. Dentre os três componentes sorteados serão eleitos o Presidente e o Relator19.

O inciso III do art. 5º do Decreto-lei nº 201, de 1967 dispõe que o Presidente da Comissão, ao receber o processo, iniciará os trabalhos em cinco dias. O denunciado será notificado, com a remessa de cópia da denúncia e documentos que a instruírem, para que, no prazo de dez dias, apresente sua defesa prévia. A defesa prévia deve ser feita por escrito e indicar as provas que pretende produzir, bem como rol de testemunhas, até o máximo de dez.

É possível que a notificação do acusado seja realizada por meio de edital caso esteja ausente do Município. Nesse caso, deverá ser publicada duas vezes, no órgão oficial, com intervalo de três dias, pelo menos, contado o prazo da primeira publicação. Decorrido o prazo de defesa, a Comissão processante emitirá parecer dentro de cinco dias, opinando pelo prosseguimento ou arquivamento da denúncia. Se entender pelo arquivamento, o parecer será submetido ao Plenário para deliberação. Mas, se a Comissão opinar pelo prosseguimento, o Presidente designará desde logo, o início da instrução, e determinará os atos, diligências e audiências que se fizerem necessários, para o depoimento do denunciado e inquirição das testemunhas.

Concluída a instrução, será aberta vista do processo ao denunciado, para razões escritas, no prazo de cinco dias, e, após, a Comissão processante emitirá parecer final, pela procedência ou improcedência da acusação, e solicitará ao Presidente da Câmara a convocação de sessão para julgamento. Na sessão de julgamento, serão lidas as peças requeridas por qualquer dos Vereadores e pelos denunciados, e, a seguir, os que desejarem poderão manifestar-se verbalmente, pelo tempo máximo de quinze minutos cada um. Ao final, o denunciado, ou seu procurador, terá o prazo máximo de duas horas para produzir sua defesa oral20.

Concluída a defesa, será feita a votação pela Câmara. Para cada infração relacionada na denúncia será realizada uma votação, devendo o resultado ser proclamada imediatamente pelo Presidente da Câmara. Caso haja a condenação, será expedido decreto legislativo de cassação de Prefeito. Mas, se houver absolvição o Presidente determinará o arquivamento do processo, sendo que, em qualquer das hipóteses, o Presidente da Câmara deverá comunicar o resultado à Justiça Eleitoral21.

O processo de cassação de Prefeito deve ser concluído no prazo máximo de noventa dias, contados da efetivação da notificação ao acusado. Caso não seja realizado o julgamento dentro desse prazo, o processo será arquivado, sem prejuízo de nova denúncia ainda que sobre os mesmos fatos (art. 5º, VII, do Decreto-lei 201/67). Wolgran Junqueira Ferreira (1996) entende que:

Este prazo de noventa dias é absolutamente inaceitável, pois tudo leva à sua prescrição.

Assim, o advogado de defesa poderá arrolar testemunhas residentes na Capital Federal, ou na Capital do Estado, para que se transcorram os noventa dias que ensejam o arquivamento do processo (FERREIRA, 1996, p. 158).  

Por este motivo, o ilustre autor defende que haja o afastamento do Prefeito, desde que seja aceita a denúncia, por um prazo de cento e oitenta dias. Transcorrido tal prazo o Prefeito retorna ao cargo sem prejuízo de sua continuidade (FERREIRA, 1996, p. 159).  

5.2.2. legitimidade

No que tange à legitimidade para a apresentação da denúncia, Edilene Lôbo aclara que, apesar de o inciso I, do art. 5º do Decreto-lei 201/67 mencionar que será do eleitor, na realidade, é de qualquer cidadão que prove tal condição. Isso porque:

Cidadania não se confunde com o título de eleitor. Não só os que podem votar têm direito a governo íntegro, probo e transparente. Assim, a razão assiste àqueles que afirmam poder a denúncia ser feita por cidadão nato ou naturalizado, analfabetos ou maiores de setenta anos, mesmo não incluso no rol de eleitores (LÔBO, 2003, p. 130).  

Posição diversa adotam alguns autores, como Wolgran Junqueira Ferreira (1996, p. 150) que entende necessária a condição de eleitor já que apenas este tem o poder de escolher seus governantes, cabendo também somente a ele a faculdade de apresentar denúncia para seu afastamento do cargo.

Quanto à possibilidade de a denúncia ser apresentada por Pessoa Jurídica, é comum o entendimento de que não é admissível, da mesma forma em que não se admite o denunciante travestido por interposta pessoa (LÔBO, 2003, p. 130).

Admite-se que a denúncia seja apresentada por Vereador, que, se assim o fizer, ficará impedido de votar sobre a denúncia bem como de integrar a Comissão processante, podendo, apenas, praticar atos de acusação. Isso porque, como ressalta Edilene Lôbo, a imparcialidade é princípio que deve ser observado a teor do caput do art. 37 da Constituição da República e, nessa esteira, não só o Vereador denunciante deverá ser impedido, mas também os parentes, amigos íntimos ou inimigos do denunciado, assim como o Vereador arrolado como testemunha (LÔBO, 2003, p. 131).

Interessante notar que, quando a autoria parte de vereador que, anteriormente já se tenha manifestado politicamente como um adversário ferrenho do Prefeito ou, até mesmo, já tenha aviado ao Parquet alguma espécie de denúncia formal, com intuito oposicionista ao denunciado (natureza inquisitiva) ou na Comissão Processante (natureza decisória) vê-se maculada a garantia constitucional do devido processo legal, já que “retira a imparcialidade, a neutralidade e a isenção do julgamento do processo que pode resultar na cassação do mandato de prefeito pela Câmara Municipal”.22  

5.2.3. quóruns de deliberações

Em apenas dois momentos serão os Vereadores chamados a deliberar no curso do processo: quanto ao recebimento da denúncia e ao final, para julgar pela condenação ou absolvição do Prefeito. O art. 5º, II, do Decreto-lei nº 201/67 dispõe que a deliberação plenária pelo recebimento da denúncia poderá ser por maioria simples dos presentes. Ocorre que, existe grande divergência doutrinária, quanto a esse quórum.

Edilene Lôbo (2003, p. 132) sustenta que tal determinação é equivocada já que o art. 86 da Constituição a República, em idêntica correspondência com o instituto da cassação municipal, só admite a “acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados”. Assim, em respeito ao princípio da simetria com o centro, o quórum para recebimento da denúncia é qualificado, ou seja, de dois terços dos membros da Câmara de Vereadores, caso contrário a denúncia será arquivada. 

Já Wolgran Junqueira Ferreira argumenta que o quórum para recebimento da denúncia de maioria simples é adequado, não existindo a necessidade de observância do quórum especialíssimo previsto no art. 86 da Constituição no processo de impeachment do Presidente.

Já quanto ao quórum para a cassação do mandato de Prefeito, a doutrina é unânime em aceitar o de dois terços dos membros da Câmara fixado no art. 5º, VI do Decreto-lei nº 201/67.  

5.2.4. citação, notificações e intimações

A comunicação dos atos processuais ao acusado tem ligação direita com o principio da ampla defesa, mandamento constitucional inserto no art. 5º, LV da Constituição da República. Isso porque, se o processo correr sem o conhecimento do acusado, não terá ele meios para se defender das acusações. 

Assim, o inciso IV, do art. 5º determina que o denunciado deverá ser intimado de todos os atos do processo, pessoalmente, ou na pessoa de seu procurador, com a antecedência, pelo menos, de vinte e quatro horas, sendo lhe permitido assistir as diligências e audiências, bem como formular perguntas e reperguntas às testemunhas e requerer o que for de interesse da defesa.

Wolgran Junqueira Ferreira explica que, por este dispositivo, fica garantido ao acusado, sob pena de cerceamento de defesa:

a) intimação de todos os atos processuais com antecedência de vinte e quatro horas;

b) direito de assistir às diligências e audiências;

c) formular perguntas e reperguntas às testemunhas;

d) requerer o que for de interesse da defesa, requerimentos que devem ser deferidos e providenciados pelo Presidentes da comissão processante.23  

A respeito da notificação a qual se refere o inciso III, do art. 5º, do Decreto-lei nº 201/67, esta guarda correspondência com a citação no processo comum já que serve para cientificar o acusado da existência da denúncia e do prazo de dez dias de que dispõe para apresentar defesa prévia. Portanto poderá ser realizada pessoalmente, por meio postal ou por edital, se porventura o denunciado estiver fora do Município ou se esquivando de seu recebimento. Neste último caso, o instrumento notificativo será publicado duas vezes no órgão de imprensa oficial, com intervalo mínimo de três dias entre uma publicação e outra. Ressalte-se que, pela dificuldade que acarreta ao réu, a notificação por edital deve ser usada em último caso (LÔBO, 2003, p. 134), assim como no processo judicial.  

5.2.5. validade e nulidade dos atos: os vícios formais

Conforme já foi dito, cabe ao Poder Judiciário se pronunciar sobre a regularidade do procedimento de cassação de mandato de Prefeito, bem como declarar a nulidade de atos processuais e até mesmo do julgamento, caso seja apurado algum vício procedimental, não observância ao Decreto-lei nº 201/67 ou aos princípios constitucionais como da ampla defesa e contraditório.

Pela análise da jurisprudência, percebe-se comum a anulação do processo de cassação de Prefeito por vício no procedimento ou inobservância das regras processuais pelos Vereadores. Dessa forma, podemos dizer que a presença de vícios formais no procedimento caracteriza-se como uma “tábua de salvação” dos Prefeitos.

Muita vez, existe a prática de infração político-administrativa pelo Prefeito, a apresentação da denúncia, mas a partir desse ponto, os responsáveis pelo andamento do processo e julgamento, no caso os membros da Câmara de Vereadores, não se atentam para a forma como os atos processuais devem ser praticados e, por esse motivo, não é rara a anulação do julgamento que cassa o mandato de Prefeito, via mandado de segurança, em especial, dada a ofensa a direito líquido e certo à observância do devido processo legal lato sensu.

 

6  DEVIDO PROCESSO LEGAL NOS TRIBUNAIS

Cabe, a essa altura, examinar alguns posicionamentos adotados pelos Tribunais pátrios, para exercer o controle externo do processo de cassação de mandato de Prefeito, já que, como explicitado anteriormente, o julgamento pode ser apreciado pelo Judiciário no que tange à formalidade do procedimento e à legalidade dos atos ou fatos motivadores da medida punitiva.

O Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, já se manifestou diversas vezes a respeito de cassações de mandatos de Prefeitos pela Câmara de Vereadores, no sentido de que é necessária a estrita observância do procedimento previsto no Decreto-lei nº 201/67 para que seja válido o julgamento e a conseqüente cassação do mandato, conforme ilustra o julgado do Mandado de Segurança 1.0000.11.073097-5/000:

O processo para cassação de Prefeito Municipal deve estar isento de irregularidades formais, devendo ser observada pela Comissão a formalidade insuperável do procedimento previsto no DL nº 201/67, cuja desobediência invalida, por vício formal, o julgamento da respectiva infração político- administrativa.24 

O Relator do referido julgamento, Des. Edilson Fernandes, deixou bem claro na fundamentação de seu voto, ao final acompanhado pelos demais Desembargadores responsáveis pelo julgamento, o dever do Judiciário em verificar a regularidade do procedimento de cassação e julgamento de Prefeito, argumentando que:

Cabe ao Poder Judiciário apenas o pronunciamento sobre a regularidade do processo de cassação de mandato do Prefeito, velando pela observância dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, sendo-lhe defeso o ingresso no mérito administrativo, principalmente no que se refere à imputação de determinada conduta ao acusado, sob pena de violar cláusula pétrea da Constituição Federal (art. 60, §4º, III), que determina independência e separação dos Poderes (art. 2º). 

Ao final, foi concedida a segurança para declarar a nulidade dos atos praticados pela Comissão Processante, isso porque, o procedimento previsto no Decreto-lei nº 201/67, determina que a Comissão seja formada por três vereadores sorteados e não indicados. De forma que a escolha de um representante de cada partido fere a impessoalidade e burla a previsão de sorteio contida no referido Decreto-Lei, maculando o procedimento de nulidade.

No sentido de obediência ao due processo of Law, esta mesma Corte entende, quanto ao impedimentos na constituição de comissão processante:

ADMINISTRATIVO E CONSTUTICIONAL – PREFEITO – INFRAÇÃO POLÍTICO ADMINISTRATIVA – INSTAURAÇÃO DA COMISSÃO PROCESSANTE – CONSTITUIÇÃO MEDIANTE INDICAÇÃO E NÃO POR SORTEIO – INOBSERVÂNCIA DO ART. 5º, I, DO DL Nº 201/67 – NULIDADE.

O processo para cassação de Prefeito Municipal deve estar isento de irregularidades formais, devendo ser observada pela Comissão a formalidade insuperável do procedimento previsto no DL nº 201/67, cuja desobediência invalida, por vício formal, o julgamento da respectiva infração político administrativa. No caso de processo de cassação de mandato do Prefeito pela Câmara, por infrações político administrativas, existindo hipótese de impedimento de qualquer Vereador de participar do sorteio para compor a comissão processante, deve ser convocado o respectivo suplente, condição sem a qual a deliberação não poderia ocorrer, pena de verificar a nulidade do procedimento (art. 5º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67). (TJMG – 6ª Cciv)  

Importante lembrar que as regras do Regimento Interno da Câmara de Vereadores, igual modo, vinculam a ocorrência do processo. Sua desobediência, macula de morte o andamento, levando à conseqüente nulidade.

“EMENTA: RECEBIMENTO DE DENÚNCIA CONTRA PREFEITO. PROCESSO DE APURAÇÃO DE INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA. NECESSIDADE DE INVESTIGAÇÃO PRÉVIA E ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO. EXIGÊNCIA DO REGIMENTO INTERNO. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. – A questão da responsabilidade administrativa do Prefeito se insere nas matérias de interesse local de competência legislativa do Município. – O regimento interno da Câmara Municipal deve dispor sobre a atuação dos Vereadores e o desenvolvimento do processo de apuração de infração político-administrativa de Prefeito. – Estando previsto no Regimento Interno que a instauração do processo dependeria de providência preliminar de investigação do conteúdo da denúncia e elaboração de relatório por Comissão Especial, sujeito à aprovação do plenário, a falta da sua realização acarreta a nulidade do ato de recebimento da denúncia e enseja ofensa a direito líquido e certo do acusado. – Hipótese em que a norma do regimento interno não ultrapassa o poder regulamentar, apenas disciplinando o modo pelo qual deveria ocorrer o recebimento da denúncia pelo Plenário da Câmara, prevendo medida que visa evitar o desvio de finalidade do processo de CASSAÇÃO de mandato e o desperdício de recursos com incidentes manifestamente infundados, servindo como instrumento de eficiência da atuação legislativa. – SEGURANÇA concedida.  (…)

A inobservância do procedimento regimental acarreta ofensa ao devido processo legal, por não poder o acusado ser surpreendido em relação ao rito a ser observado para a apuração dos fatos relatados na denúncia, devendo a forma de processamento ser estabelecida previamente. (…)

Outra exigência que foi olvidada no caso, diz respeito ao ato de recebimento da denúncia, que, segundo estabelecido no art. 104 do Regimento Interno da Câmara Municipal, por ter se realizado no período noturno, iniciando-se às 18 horas, teria natureza de SESSÃO EXTRAORDINÁRIA.

Essa forma de reunião dos membros da Câmara exige CONVOCAÇÃO especial pelo Prefeito, o Presidente da Câmara ou a requerimento da maioria absoluta dos seus membros, com prévia declaração de motivos (art. 105 do Regimento Interno).25 

No C. Superior Tribunal de Justiça, igual modo, privilegia-se a observância dos princípios constitucionais, principalmente, do devido processo legal e da ampla defesa. A título exemplificativo:

3. Na fundamentação do aludido ato anulatório, considerou-se que a deliberação do plenário afrontou a Constituição da República, o Decreto-lei n. 201/67 e o Regimento Interno da Câmara, tendo sido reconhecidos a não-observância do prazo para a conclusão do processo apuratório, o cerceamento de defesa do acusado, a não-observância do devido processo legal, o vício na intimação do acusado e a designação da sessão de julgamento do processo de cassação em dia em qua não havia expediente. Amparou-se o mencionado ato, ainda, na citada decisão do Tribunal de Justiça que concedera liminar ao Prefeito cassado (fl. 165).26 

O referido julgado é referente a Medida Cautelar que, em última análise, teve como objetivo promover a manutenção do mandato de Prefeito cassado pela Câmara de Vereadores cuja validade ainda está sendo discutida no Judiciário. Argumentou-se:

Observa-se que está em jogo é o exercício de mandato outorgado através de eleições populares, que garantiu à população municipal a soberania na escolha do Prefeito.

Ressalte-se que, no Estado de Democrático Direito, o mandato eletivo deve ser respeitado, sendo aconselhável, em regra, que o titular da investidura popular espere, no exercício do cargo, o julgamento de processo judicial pendente – salvo em casos de evidente excepcionalidade -, para que não seja comprometido o direito constitucional ao livre exercício do mandato eletivo e a soberania popular. 

Conclui-se, portanto, que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se preservar o Prefeito no exercício do mandato até que se decida, em definitivo, pela cassação, isso porque, o Prefeito fora devidamente eleito pela maioria dos cidadãos, de forma democrática, devendo ser respeitada a soberania popular.

Esse Colendo Tribunal, também, entende que em casos excepcionais, em que houver evidente prática de infração político-administrativa, o Prefeito pode ser afastado de seu cargo até julgamento final pela Câmara, mas, ressalte-se, mais importante é que o próprio Município não tenha prejuízos diante do afastamento do Chefe do Executivo, por esse motivo não pode ser banalizado, já que pode embaraçar o “funcionamento” normal do Município.

Enfim, quanto ao Supremo Tribunal Federal, percebe-se igual zêlo pela aplicação dos princípios e normas constitucionais. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 687/PA, ob relatoria do Ministro Celso de Mello, julgada em 02/02/1995, entendeu o Pretório Excelso que a Constituição estadual não pode impor, ao Prefeito Municipal, o dever de comparecimento perante a Câmara de Vereadores, isso porque, apesar de o Estado-membro ter poder de organização, que lhe permite possui a própria ordem constitucional, esse poder não é irrestrito.

A Constituição estadual, portanto, representa, no plano local, a expressão jurídica mais elevada do poder autônomo que a Lei Fundamental da República atribuiu aos Estados-membros no âmbito da organização federativa consagrada na Constituição Federal.

Essa eminente prerrogativa constitucional, contudo, não se reveste de caráter absoluto. Acha-se submetida, ao contrario, quanto ao seu exercício, a expressivas limitações jurídicas impostas pela própria Carta Federal, que, no “caput” do seu art. 25, preceitua:

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

(…)

Tal prescrição normativa também implica clara transgressão ao principio da separação dos poderes, pois expõe o Chefe do Executivo a u estado de submissão institucional ao Poder Legislativo municipal, sem guardar qualquer correspondência com o modelo positivado na própria Constituição da República.  

Assim, sendo essa norma declarada inconstitucional, não pode o Prefeito ficar submetido a ela e, muito menos, ter seu mandato cassado em virtude de sua aplicação.

 

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca pela cassação de um Prefeito, pelas Câmaras Municipais, com fundamento no Decreto-lei nº 201/67, vem acentuando-se diuturnamente. Mesmo sendo editado no período de Ditadura Militar, com objetivo certo de concentração do poder, o referido Decreto-lei tem seus méritos, principalmente, se analisado à luz do atual ordenamento constitucional-democrático, para efetivar ampla defesa ao denunciado, que possui, durante o processo, vários momentos para apresentar e sustentar suas alegações, embora, ao final, seja mesmo política  decisão.

Ocorre que, apesar de não ter as formalidades do processo judicial, o procedimento político-administrativo traçado pelo Decreto-lei nº 201/67 tem suas especificidades, com fixação de quóruns, prazos e atos procedimentais, o que, muitas vezes, passam despercebidos pelos edis, acarretando a nulidade do processo. Por esse motivo, essencial a possibilidade de controle judicial de forma a impedir o julgamento do Chefe do Executivo sem a observância ao devido processo legal e demais princípios constitucionais basilares do ordenamento jurídico.

Como pudemos ver, nosso tribunais, entendem que o Decreto-lei nº 201/67 está em plena vigência, diante de sua recepção pela Constituição de 1988, e zelam pela observância do procedimento nele previsto, em todos os pormenores. Por inúmeras vezes já foi declarada a nulidade de procedimentos e julgamentos tendo em vista a verificação de vícios formais durante os atos processuais.

Feitas essas considerações, constata-se que o julgamento político por parte dos Vereadores, com muita freqüência, mostra-se inútil, quando da sua necessária invalidação pelo Judiciário que, hoje, tem se mostrado como a “tábua de salvação” de prefeitos infratores, o agir dentro do preceito constitucionais de observância da garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, em especial. 

 

REFERÊNCIAS

ANJOS FILHO, Robério Nunes dos; RODRIGUES, Geisa de Assis. Breves Anotações Sobre a Garantia do Devido Processo Legal no Processo Administrativo. In Revista Baiana de Direito, v. 1, p. 201-227, 2008. Disponível em: <http://s3.amazonaws.com/manager_attachs/cms/downloads/2013/07/11-Roberio_Nunes_e_Geisa_de_Assis_-_Breves_anotações_devido_processo_legal_e_processo_administrativo_revisto.pdf?1372870052>. Acesso em: 12/10/2013.  

BRASIL, Decreto-lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0201.htm>. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27/02/1967. Acesso em: 02/08/2013.  

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 02/08/2013.  

CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 6ª Edição Revista e Atualizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.   

COSTA, José Rubens. Infrações político-administrativas e impeachment. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 

COSTA, Nelson Nery. Direito Municipal Brasileiro. 3ª Edição Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2005.  

COSTA, Tito. Responsabilidade de prefeitos e vereadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 

FERREIRA, Wolgran Junqueira. Responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores: Decreto-Lei nº 201/67, comentários, legislação, jurisprudência de acordo com a Constituição Federal de 1988. 7 ed. São Paulo: EDIPRO, 1996.  

FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros; COSTA, Mônica Aragão Martiniano Ferreira e. Aulas de Teoria do Estado. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

GAVIORNO, Gracimeri Vieira Soeiro de Castro; GONÇALVES, William Couto. O devido processo legal e o processo justo. Disponível em: <http://www.fdv.br/publicacoes/periodicos/revistadepoimentos/n10/6.pdf>. Acesso em: 12/10/2013.

LÔBO, Edilene. Julgamento de Prefeitos e Vereadores. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.  

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª Edição Atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgar Neves da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. 

PAMPLONA, Danielle Anne. Devido processo legal: aspecto material. Curitiba: Juruá Editora, 2004.

  

NOTAS DE FIM

1 Advogada. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. 

2 Doutorando em Direito Público, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado, especialista, com Pós-Graduação lato senu, em Direito Público Municipal, pela F.E.S. do Minitério Público de Minas Gerais. Professor de Direito Constitucional e Direito Eleitoral do Curso de Graduação em Direito da Centro Universitário Newton Paiva; Professor de Cursos de Pós-Graduação e Cursos Preparatórios para Concursos das carreiras jurídicas. 

3 Apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter se manifestado no sentido de entender pela recepção do Decreto-lei, ainda há autores com entendimento divergente. 

4 Eventuais irregularidades envolventes de erros procedimentais, rituais e processuais nos autos de uma Cassação, apontam, irremediavelmente, para o comprometimento do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. 

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª Edição Atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgar Neves da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. Pg. 45. 

6 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª Edição Atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgar Neves da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. Pg. 93.  

7 Cabe lembrar que, no âmbito municipal, inexiste a previsão de organização do Poder Judiciário 

8 A denominação “crimes” de responsabilidade não é pacífica, especialmente, para os penalistas que preferem reconhecer as condutas como “infrações” político-administrativas. A polêmica será tratada adiante neste estudo. 

9 COSTA, Nelson Nery. Direito Municipal Brasileiro. 3ª Edição Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Pg. 162.

10 Ressalte-se que o objeto de análise deste trabalho são as infrações político-administrativas que têm como conseqüência direta a perda do mandato e, apesar de muitos autores ainda se referirem a elas como “crimes de responsabilidade”, utilizaremos a terminologia “infrações político-administrativas”. 

11 Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de       dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará,      atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

X – julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça; (Renumerado do inciso VIII, pela Emenda Constitucional nº 1, de 1992). 

12 CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 6ª Edição Revista e Atualizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. Pg. 495. 

13 E completa afirmando que a cassação do mandato pela Câmara por infringência das hipóteses de proibições e incompatibilidades no exercício da prefeitura tornam o agente inelegível para as eleições que se realizarem no período subseqüente ao seu término (MEIRELLES, 2006, p. 706). 

14 Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…)

IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; 

15 Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (…)

II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; 

16 Art. 66, §1º – Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas,  ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.  

17 Prevaricação – Art. 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo  contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

     Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. 

18 art. 5º, I do Decreto-lei nº 201/67 

19 art. 5º, II, do Decreto-lei nº 201/67 

20 Art. 5º, V, do Decreto-lei 201/67, com redação dada pela Lei nº 11.966, de 2009

 art. 5º, VI, do Decreto-lei nº 201/67 

21 art. 5º, VI, do Decreto-lei nº 201/67

22 TJMG – MS 1.0000.08.477153-4/000. Relatora: Des. Maria Elza. DJ: 10/12/2008. Bem se sabe que não se confunde a natureza das atuações… Isso é óbvio. Mas o que se diz aqui é que a parcialidade política de vereador integrante da Comissão Processante que, anteriormente, já estivesse providenciando alguma maneira de punir o Prefeito, deve-se apurar com cautelas a sua imparcialidade.

23 FERREIRA, Wolgran Junqueira. Responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores: Decreto-Lei nº 201/67, comentários, legislação, jurisprudência de acordo com a Constituição Federal de 1988. 7ª Edição. São Paulo: EDIPRO, 1996. Pg. 154. 

24 EMENTA: ADMINISTRATIVO E CONSTUTICIONAL – PREFEITO – INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA – INSTAURAÇÃO DA COMISSÃO PROCESSANTE – CONSTITUIÇÃO MEDIANTE INDICAÇÃO E NÃO POR SORTEIO – INOBSERVÂNCIA DO ART. 5º, I, DO DL Nº 201/67 – NULIDADE – ORDEM CONCEDIDA.[…]. No caso de processo de cassação de mandato do Prefeito pela Câmara, por infrações político-administrativas, a indicação de um representante de cada partido sob o argumento de assegurar a representação partidária na escolha dos membros da comissão processante, fere a impessoalidade e burla a previsão de sorteio contido na lei de regência. Existindo hipótese de impedimento de qualquer Vereador de participar do sorteio para compor a comissão processante, deve ser convocado o respectivo suplente, condição sem a qual a deliberação não poderia ocorrer, sob pena de verificar a nulidade do procedimento (art. 5º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67). (Mandado de Segurança 1.0000.11.073097-5/000. Rel Des.Edilson Fernandes. Data da publicação: 16/03/2012).

 O processo de cassação do mandato do Prefeito pela Câmara, por infrações político-administrativas obedece a rito próprio previsto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 201/67, sendo que demonstrada qualquer violação que comprometa o formalismo do procedimento e o exercício de sua ampla defesa no curso do procedimento tal fato é passível de correção pelo Judiciário, conforme orientação jurisprudencial pacífica desta egrégia Sexta Câmara Cível (MS nº 0306349-60.2010.8.13.0000, da minha relatoria, DJE: 15/10/2010 e MS nº 5026944-05.2009.8.13.0000, Rel. Des. Antônio Sérvulo, DJE: 11/06/2010).

25 TJMG. MS nº 1.0000.08.481769-1/000(1). Rel: Des. Heloísa Combat. DJ /01/2009 

26 STJ. MC 14089 / MG Medida Cautelar 2008/0082470-6. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Data da Publicação: 16/09/2009: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO PARA RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS AUTORIZADORES DE PROVIMENTO DA CAUTELAR. PREFEITO. DECRETO LEGISLATIVO DE CASSAÇÃO. IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA. ANULAÇÃO DO ATO LEGISLATIVO. PERDA OBJETO DA AÇÃO JUDICIAL. REEDIÇÃO DO ATO DE CASSAÇÃO POSTERIORMENTE AO INÍCIO DO JULGAMENTO QUE DEFINIU A PERDA DE OBJETO. RESTABELECIMENTO DA LIMINAR CONCEDIDA NO MANDAMUS ORIGINAL. POSSIBILIDADE.

1. O recurso ordinário ao qual se pretende dar efeito suspensivo através da presente medida ataca acórdão que julgou prejudicado mandado de segurança ajuizado em razão de processo administrativo-político ensejador da cassação do mandato de Prefeito, ora requerente, por meio do Decreto legislativo n. 7/2006, datado de 12 de agosto de 2006 (fl. 111).

2. Impetrados mandado de segurança contra o referido ato, foi deferida liminar, pelo relator, em decisum datado de 15.9.2006 (fls.138/141). Tendo sido, posteriormente àquela decisão, editado o Decreto legislativo n. 8, que declarou nulo o citado Decreto legislativo n. 7/2006 – cassando, portanto, o mandato do Prefeito. […]

7. Malgrado inexista nos autos cópia do Regimento Interno daquela Câmara – para que seja aferida a procedência da fundamentação do Decreto legislativo n. 1/2007, que anulou o Decreto legislativo n. 8/2006 -, é certo que tal providência – que talvez possa afastar vício quanto ao quorum exigido – não é bastante para elidir, por si só, a nulidade do Decreto legislativo n. 7/2006, permanecendo, portanto, os vícios de origem, a justificar o restabelecimento do provimento liminar outrora deferido. […]

10. Outro não é o sentido do art. 216 do Código Eleitoral, do art.15 da Lei Complementar n. 64/90 (Lei das Inelegibilidades) e do art. 20, caput e parágrafo único, da Lei n. 8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa).

11. No que tange ao periculum in mora, verifica-se que a ocorrência de perigo de lesão irreversível revela-se manifesta, pois o mandato eleitoral é conferido a prazo fixo não sendo possível a sua prorrogação pelo tempo em que o seu detentor esteve dele afastado, caso obtenha um provimento judicial favorável, o que também indica a excepcionalidade da hipótese a justificar o conhecimento da presente cautelar.