Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Janice Silveira Borges1
Michael César Silva2
Sergio de Abreu Ferreira3
 

RESUMO: O pensamento tópico, enquanto técnica de pensar o problema para construir a solução, apresenta-se como alternativa, para o Direito em seus trabalhos hermenêuticos, que irão embasar o estudo das diversas questões polêmicas que envolvem o Biodireito. 

PALAVRAS-CHAVE: Bioética. Biodireito. Pensamento Tópico. 

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Bioética e o Biodireito; 3 O pensamento tópico de Theodor Viehweg 4; A Tópica e o Biodireito; 5 Conclusão; Referências.  

ÁREA DE INTERESSE: Biodireito

 

1 INTRODUÇÃO

Os avanços da Biotecnologia e da Biomedicina favoreceram o desenvolvimento da Bioética e do Biodireito. Diante da nova realidade, o pensamento formal-positivista do Direito teve que ser revisto, pois os casos concretos apresentados não se encaixavam na “moldura” positivista de premissas em que a premissa maior (lei) se amolda à premissa menor (fato). Necessário foi, e ainda é, reestruturar as normas jurídicas para atender a nova realidade. Diante disso, o pensamento tópico pode ser apresentado como uma opção para se iniciar a construção de soluções para casos concretos diante da ausência legislativa normatizadora. Segundo Bruno Torquato, “a crise do positivismo permitiu questionamentos acerca de verdades pré-concebidas e alterou a lente observadora, focando-se primeiro no caso concreto e utilizando de princípios construídos na situação fática.”

 

2 A BIOÉTICA E O BIODIREITO

O neologismo Bioética é originado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética) e foi, pela primeira vez, utilizado em 09 de novembro de 1962, em um artigo publicado na revista Life intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre”. Esse artigo abordava o programa de hemodiálise da cidade de Seattle, EUA. O número de pacientes que sofria de insuficiência renal crônica era maior que a capacidade de atendimento do centro especializado. Tentando resolver o problema, foi criada uma comissão de pessoas não médicas para selecionar quem iria ser submetido ao tratamento, contrariando a ética da vida.

Perante a comunidade internacional, o termo Bioética foi reconhecido quando o médico oncologista Van Rensselaer Potter, da Universidade de Wisconsin, em Madison, publicou em janeiro de 1971, a obra “Bioethics: bridge to the future”. (DINIZ, 2001, p.12). Na referida obra, utilizou-se o termo Bioética para expressar uma nova disciplina, que empenha a Biologia, em prol, de uma melhoria da qualidade de vida do ser humano em relação ao ecossistema, preservando, assim a harmonia universal. (DINIZ, 2001). André Hellegers, fundador do “Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study”, em julho de 1971, fez uma releitura dos textos de Van Potter e conceituou Bioética como a ética das ciências relacionadas à vida (DINIZ, 2001), sendo, portanto, o primeiro uso institucional do termo, utilizado para abordar a relação médico/paciente.

Em 1991, foi criado o Comitê Internacional de Bioética, pela Unesco, que se destinava a elaborar a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos do Homem, apresentada em 25 de julho de 1997. O documento vinculou a Bioética, a genética e os direitos humanos no seu mais amplo aspecto, tendo sempre como parâmetro a dignidade da vida humana, que se desdobra na não discriminação fundamentada, nas características genéticas do indivíduo, no consentimento prévio, livre e informado dos objetivos da pesquisa e tratamento ou diagnóstico relacionados com genoma humano, na confidencialidade da informação genética, no acesso irrestrito dos progressos da biomedicina, dentre outros.

Em julho de 2000, na cidade de Gijón, Astúrias, foi apresentada a Declaração Bioética de Gijón, que defendeu o uso da Biotecnologia, somente em prol do bem estar da humanidade, do desenvolvimento sustentável, da conservação do meio ambiente e da paz mundial. Diante da Declaração Bioética de Gijón, várias instituições sentiram a necessidade de ter uma Comissão de Ética, que pudesse orientar os profissionais filiados a tomar decisões frente a casos concretos de natureza conflitiva de aspectos éticos.

Atualmente, o conceito de Bioética passou a abranger a luta pela qualidade de vida, desde o nascimento até a morte, de forma a sistematizar o tratamento de temas relacionados ao aborto, ao genoma humano, à clonagem, à fome, à reprodução assistida, entre outros, impondo limites à Biotecnologia e à experimentação que se relacionam, direta e indiretamente, com a vida humana digna, que é a motivação maior do Estado Democrático de Direito e com uma garantia jurídico-constitucional dos direitos fundamentais. Dentre os vários conceitos atribuídos à Bioética pode-se destacar: “conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares tendentes a solucionar questões éticas que o avanço das tecnologias biomédicas tem provocado.” (MEIRELLES, 2001. p.87).

Os questionamentos da Bioética não se limitaram ao âmbito da Biologia e da Medicina, mas também ao da Filosofia, da Sociologia e do Direito. Este sentiu a necessidade de construir e elaborar uma nova disciplina: o Biodireito, que se refere ao “ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana face aos avanços da biotecnologia e da medicina.” (BARBOZA, 2001. p.2).

A Bioética apresenta ao Biodireito casos práticos sem soluções jurídicas legalmente positivadas, o que faz com que os estudiosos do Direito realizem um trabalho hermenêutico na construção de uma resposta. Em uma tentativa de nortear a solução para os casos concretos ligados aos avanços biotecnológicos, em 1974, a National Commission for the Research (DINIZ, 2001) apontou os princípios da autonomia, da beneficência (não maleficência) e da equidade como sendo princípios fundantes da Bioética.

Apesar das diferentes interpretações que a análise dos princípios proporciona, há um consenso em torno destes, enquanto norteadores da Bioética, e conseqüentemente do Biodireito, podendo ser vistos como “pontos de partidas” para a solução das questões polêmicas sobre o tema.

Na realidade, a organização social vem refletindo sobre seus próprios valores, conceitos, questões, chegando a alguns pontos comuns, que não possuem o caráter de verdade absoluta, pois o avanço da biotecnologia é mais rápido do que a formação da opinião social, e diante da descoberta de uma nova questão, poderá esta rever, novamente, seus ideais, para assumir posicionamento diverso do anteriormente adotado. Diante disso, apresenta-se o pensamento tópico como uma alternativa para iniciar os trabalhos de busca de soluções.

 

3 O PENSAMENTO TÓPICO DE THEODOR VIEHWEG

Theodor Viehweg (1979) começa sua obra Tópica e jurisprudência, analisando os estudos de Gian Batista Vico. Esse estudioso propõe uma conciliação do tipo de estudo antigo com o moderno; tal conciliação pressupõe conhecimento das contraposições desses tipos de estudos. Dentre essas contraposições, a mais relevante refere-se aos métodos científicos: o antigo caracterizado como tópico (herança da Antiguidade) e o moderno como crítico ou cartesiano. Segundo Vico, ao método cartesiano deveria ser intercalado o método tópico.

A Tópica é o quarto livro das seis obras do Organon de Aristóteles. A finalidade desse tratado é encontrar um método que garanta argumentar sobre todo e qualquer problema colocado e evitar, na sustentação de um argumento, que se diga algo que lhe seja contrário. (ARISTOTELES apud CHAUÍ, 2002. p.480).   

Aristóteles defende que a tópica é uma alternativa de pensamento para a construção do método argumentativo. A tópica seria, assim, um raciocínio dialético (e não apodítico), no qual parte-se de um problema qualquer para se chegar a uma solução, mas essa será dada por uma tarefa de análise de proposições (premissas) que parecem verdadeiras, com base em uma opinião reconhecida, de forma a evitar contradições, que possam ser sustentadas no discurso. Assim, propõe Aristóteles, que “quando se quer fazer uma pergunta, o que se deve descobrir primeiro são os topos que se deve empregar para se obter o raciocínio dialético; em segundo lugar, deve-se colocar as perguntas concretas, em si mesmas […]” (ARISTOTELES apud VIEHWEG, 1979, p.27), em uma determinada ordem, dirigindo-as adequadamente ao interlocutor.

Nessa linha de raciocínio, os “topoi”, são pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade; quando enumerados podem ajudar, em relação a cada problema, a obter raciocínios dialéticos. De acordo com uma fundamentação filosófica profunda, pode-se obter um catálogo de “topoi” que se orientam por áreas de problemas e que possuem uma considerável quantidade de pontos de vistas que, em si mesmos, não têm mais consequência conceitualmente determinada. (VIEHWEG, 1979, p.27).

Em uma análise da teoria de Aristóteles, observa-se que a dimensão dada à tópica é política, vez que o autor preocupa-se com a decisão do problema e com a adesão a essa por parte do auditório; daí o uso de opiniões comuns (aceitáveis) para solucionar um problema.

Apesar da grande abrangência do pensamento tópico aristotélico, Aristóteles não admitia a aplicação desse pensamento ao Direito, porque para ele a tópica é uma alternativa de pensamento, quando não se trabalha com a verdade, com a busca da verdade. O Direito dever buscar é a verdade (“epistenie”).

Aristóteles entedia que a tópica estava voltada para a Ágora (plenário de discussão política), sua preocupação era com a decisão e a adesão a essa decisão, que não se poderia alcançar pelo Direito. Em Aristóteles, a “doxa” (dúvida) não pode ser admitida, mas pode ser considerada com o fim de se produzir a adesão desejada, porquanto serve com um referencial possível, como afirmações que parecem verdades, portanto, verossímeis.

      O pensamento tópico desenvolvido por Cícero vê os “topoi” como “loci”, isto é, sedes, lugares comuns. A tópica seria um procedimento de busca de premissas. Em Cícero,

a tópica surge precisamente no campo da invenção, da obtenção de argumentos; e um argumento é, para Cícero, uma razão que serve para convencer de uma coisa duvidosa (rationem quae rei dubiae faciat fidem); os argumentos estão contidos nos lugares ou locus – os topoi gregos-, que são, portanto, sedes ou depósitos de argumentos; a tópica seria a arte de achar os argumentos […]. (ATIENZA, 2002. p.64-65). 

Cícero vê o Direito como algo inventado a partir de problemas. Portanto, admite o uso da tópica no Direito, dando, inclusive, um caráter mais prático à tópica; para tanto, ordena os “topoi” ou “loci” em forma de catálogos ou repertórios, agrupando-os “em função de termos técnicos que se ligam a determinado assunto, promovendo-lhes a qualidade de “topoi” científicos; e outros, mais gerais ou ‘atécnicos’ que sevem a qualquer tipo de problema […].” (CAMARGO, 2003, p.149). No entanto, todas as modalidades de “topoi” possuem a função de servir à discussão de problema, enquanto os catálogos visam fixar e construir um entendimento comum.

Após o estudo sobre o pensamento tópico de Aristóteles e de Cícero, Viehweg começa a desenvolver seu próprio pensamento tópico, defendendo que a tópica é uma técnica (“techne”) do pensamento problemático, que permite nos casos de “falta de um caminho” (lacuna, contradição, ausência, etc…) indicar comportamentos para tais situações, para não ficar preso, sem saída. Para tanto, propõe interpretar o Direito sob a perspectiva de um sistema aberto, não exaustivo em si mesmo, que busque a solução dos conflitos de forma casuística com base na argumentação retórica.

O intérprete parte da percepção do problema, analisando as várias possibilidades dentro do sistema (aberto), em busca da solução para o caso concreto. Nesse contexto, Lorenzetti assevera que “[…] o Direito não é um sistema meramente dedutivo, e sim um sistema dialético, orientado ao problema, uma recompilação de pontos de vista sobre o problema em permanente movimento; é aberto e pragmático.” (LORENZETTI, 1998, p.80).

Assim, o problema atua sempre como guia, podendo ser considerado como toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer, necessariamente, um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há de levar a sério e para aquela há de buscar uma resposta como solução. (VIEHWEG, 1979, p.34).

Viehweg, em uma crítica ao formalismo positivista, constata que “a constante vinculação ao problema impede o tranqüilo raciocínio lógico para trás e para diante, que dizer, a redução e a dedução.” (VIEHWEG, 1979, p.39).

Segundo Viehweg, os “topoi” têm sentido quando vistos a partir do problema, na medida em que cada um deles pode ser considerado como “mais adequado” ou “menos adequado”, em um entendimento que nunca é absolutamente imutável. Pode-se afirmar que diante de um problema, há vários “topoi” (isto é, pontos comuns verossímeis) que podem ser utilizados para a solução do problema, mas qual o topo deverá ser utilizado será um trabalho retórico. Assim,

a tópica assume uma estrutura dialógica que desponta sobre uma base retórico-argumentativa de feição intersubjetiva. Suas premissas legitimam-se na aceitação do interlocutor, da mesma forma que o comportamento dos autores é orientado pela previsibilidade de oposição do adversário. Para a tomada de decisão, é necessário o consenso; e que em disputa fica provado, em virtude de aceitação, passa a ser admissível como premissa para outros raciocínios de ordem dialética. […] A abertura para o diálogo sujeito à crítica traz transparência e legitimidade às decisões não apenas por que suas premissas gozam de respeitabilidade, mas também pelo poder de persuasão de suas teses, à medida que elas conseguem sobreviver ao ataque das críticas e erradicar progressivamente equivocidades. Não existe, pois respostas corretas ou verdadeiras, mas argumentos que se impõem pela força do convencimento. (CAMARGO, 2003, p.154). 

Desenvolver um pensamento que possa ser considerado tópico significa fixar o problema, analisar pontos de vista próximos e pontos de vista contrários, mantendo “princípios, conceitos, postulados com caráter problemático, no sentido de que jamais perdem a sua qualidade de tentativa” (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p.328) e, ao final, por meio da argumentação (retórica) obter a solução do problema.

Os princípios, conceitos e postulados, afinal, podem ser considerados pontos de partida (topo), pois são ligados ao consenso comum e podem ser revistos ao longo da argumentação, no intuito de eliminar contradições dentro da pluralidade do sistema jurídico.

Um outro ponto importante do pensamento tópico de Viehweg é a sua rejeição pelos valores. Buscam-se soluções que se pautem em sistemas axiomáticos, não permeados de valoração, isso é uma tentativa de evitar parcialidade do julgador na decisão. Por esse raciocínio, também seria evitada a construção de sistemas fechados, eivados de valoração, e previamente elaborados pelo legislador para conceber todas as situações do cotidiano.

Para que sejam possíveis construções desse tipo, que é condição, segundo Viehweg, para que o direito realize a justiça, é preciso que o problema, e não um sistema axiomático prévio, absoluto e perfeito, tome a primazia no processo de argumentação, permitindo a construção de sistemas móveis em torno de casos concretos a partir do problema da justiça. (GALUPPO, 2003, p.178). 

Com base em tudo que fora dito, Viehweg construiu seu próprio modelo tópico de jurisprudência, que deverá obedecer aos seguintes pressupostos:

1) a estrutura total da jurisprudência só pode ser determinada a partir do problema; a aporia fundamental é o problema de determinar o que é o justo aqui e agora. 2) As partes integrantes da jurisprudência, seus conceitos e proposições, precisam e só podem ser compreendidas a partir dele. 3) Os conceitos e as proposições da jurisprudência só podem ser utilizados numa implicação que conserve a sua vinculação com o problema. É preciso evitar qualquer outra. (VIEHWEG apud ATIENZA, 2002, p.70). 

Apesar da enorme importância do pensamento tópico, não se encontra este isento de críticas. Os críticos apontam suas análises, afirmando que o pensamento tópico é impreciso e equívoco em noções conceituais. Segundo Atienza, “o conceito de topos foi historicamente equívoco […] e é usado em vários sentidos: como equivalente a argumentos, como enunciados de conteúdo e como formas argumentativas […].” (ATIENZA, 2002, p.71). Além disso, os críticos afirmam que

o modelo de funcionamento da jurisprudência proposto por Viehweg é ingênuo. Ele praticamente se limita a dizer que a jurisprudência deve buscar soluções justas. Mas ‘o problema, naturalmente, não consiste em fazer proclamações vazias sobre a justiça, e sim em criar algum tipo de método – ou pelo menos algum elemento de controle – que permita discutir racionalmente as questões de justiça.’ (ROBERTO, 2003, p.90).

Contudo, a principal crítica que é feita ao pensamento tópico, segundo Atienza, é o fato deste não ver o papel importante que a lei, a dogmática e o precedente desempenham no raciocínio jurídico; pois a tópica fica na estrutura superficial dos argumentos padrões e não analisa a sua estrutura profunda, permanecendo num nível de grande generalidade. (ATIENZA, 2002. p.75).

Essas críticas, no entanto, acabaram por contribuir para a elaboração de um novo pensamento denominado de novíssima retórica que, nos dizeres de Boaventura Santos, “deve privilegiar o convencimento em detrimento da persuasão, deve acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados.” (SANTOS, 2002, p.104).

O referido autor defende que a novíssima retórica deverá intensificar a dimensão dialógica interstical da nova retórica e convertê-la no principio regulador da prática argumentativa, pois assim, as premissas da argumentação (“topoi”) podem ser analisadas e debatidas mais profundamente. (SANTOS, 2002). Nesse contexto, pode-se dizer que o pensamento tópico é democrático, pois obedece ao diálogo entre a pluralidade de comunidades, vez que há diversos tipos de auditórios, que estão em constante rotação.

Nessa perspectiva, “o mérito fundamental de Viehweg é não ter construído uma teoria, e sim ter descoberto um campo para investigação.” (ATIENZA, 2002, p.78-79). Assim, o que, inicialmente, expunha apenas o ponto de partida do processo argumentativo que finalizava a construção de uma decisão passa a ser utilizado e desenvolvido por outros juristas, como Perelman (1998), embora com fundamentos e conclusões diferentes dos de Viehweg.

No pensamento desenvolvido por Perelman, a tópica é reverenciada como um elo entre a argumentação e a retórica. Em Perelman, a argumentação ganha em importância, na medida em que o orador tem diante de si um auditório que o convida a se expressar a partir de lugares comuns, aceitos por todos e identificados pelo seu sentido amplo.

Viehweg, por seu turno, teve a oportunidade de descrever as diferenças entre a tópica de primeiro grau e a tópica de segundo grau, as quais se referem aos lugares ditos comuns e específicos. Desse modo, a retórica revela-se como a capacidade de dizer argumentativo que pressupõe a adesão do auditório, qual será o “topoi” que irá prevalecer no contexto do discurso, para que o mencionado orador procure convencer seus ouvintes. (PERELMAN, 1998).

Destaca-se no pensamento de Perelman (1998) que os lugares-comuns desempenham função análoga ao dos axiomas no sistema formal, mas com esses não guardam o mesmo sentido, pois necessitam de um tipo de adesão que não se confunde com a evidência, pois na dialética prevalece a dúvida, sugerindo a necessidade da argumentação. Viehweg, a seu turno, expõe que

en general, habrá que conceder que, cuando se busca una fundamentaçión que incluya la determinación de los axiomas, uno se encuentra, por así decirlo, automáticamente, con la retórica. Posiblemente, en su desarrollo ulterior, ella es adecuada para retrotraer toda nuestra actividad intelectual a un contexto práctico, en el cual se vinculan las condiciones lógicas y éticas de esta actividad. Si esto es así, entonces toda argumentación tiene su última ratio en el método del argumentar. (VIEHWEG, 1991, p.172). 

Perante o que, brevemente, foi exposto, os trabalhos de Viehweg tentam unir a Moral e o Direito. A Moral consiste em uma conduta interna que fornece substratos para a formulação e aplicação do Direito. O Direito, a seu turno, pode ser visto como uma ordem nas soluções de conflitos.

Assim sendo, pode-se dizer que a Bioética é subárea de conhecimento da filosofia, e, portanto, seus questionamentos são abertos, suas premissas são provisórias, analisa e questiona valores morais. Quanto ao Biodireito, há uma imposição ao que se considera certo sobre algo que é duvidoso, existe “[…] procedimento dogmático. Há normas de direito positivo que fornecem uma estrutura de soluções intra-sistêmicas.” (NAVES, 2002, p.135). Nesses termos, “a zetética relaciona-se com a dogmática, na medida em que fornece fundamentos, bases valorativas a serem incorporadas pelo sistema dogmático.” (NAVES, 2002, p.135).

 

4 A TÓPICA E O BIODIREITO

O pensamento positivista que via o Direito como mero corpo sistemático de normas, com apego excessivo às palavras da Lei já sofria críticas desde a formação da Escola Histórica do Direito, no início do séc. XIX.

Esse movimento defendia que o Direito deveria ser o resultado dos estudos da doutrina científica sobre as organizações sociais, que são também organizações históricas formadas pelo costume, que seria capaz de demonstrar o verdadeiro “espírito do povo”, reproduzido através de conceitos.

Essas idéias acabaram por formar um pensamento conceitual, culminando uma Jurisprudência dos Conceitos, na qual o Direito era oriundo de um pensamento lógico-indutivo – dedutivo, no qual, por indução, tem-se um princípio que, por dedução, era capaz de servir como juízo concreto em uma decisão.

Mesmo com toda a força das idéias positivistas, essas se mostraram insuficientes. Não consideravam os valores humanitários que, atualmente, em sua grande maioria, estão contidos em princípios positivados, respeitando o Devido Processo Legislativo, exigido no paradigma do Estado Democrático de Direito.

O pensamento tópico de Viehweg, construído e publicado na década de 1950, insere-se no contexto das Teorias da Argumentação Jurídica, que se opuseram à lógica formalista positivista, tentando conciliar a justiça e a segurança. Aproximadamente na mesma época em que Viehweg retomou a retórica e construiu seu pensamento argumentativo tópico, a comunidade científica levantou questões éticas e morais diante do uso de novas tecnologias em experimentos com seres humanos, durante o regime nazista, em especial na II Guerra Mundial.

O Tribunal de Nuremberg, em 1945-46, editou o Código de Nuremberg, que condenava as experiências realizadas com seres humanos pelos médicos nazistas e estabelecia regras para experimentos que envolviam seres humanos. Iniciavam-se, nesse momento, as preocupações com a repercussão da biotecnologia na sociedade. Em 1964, o Código de Nuremberg foi revisto pela Organização Mundial da saúde e essa revisão deu origem à Declaração de Helsinque, que atrelou a pesquisa biomédica a valores éticos. Nessa época, pesquisadores e cientistas viram a necessidade de impor limites à aplicação da tecnologia existente, que era invasiva, em muitos casos, à saúde do homem e desconhecida, até então, pela maioria da sociedade leiga.

Em uma tentativa de preservar o ser humano, tais profissionais estabeleceram moratória de um ano, por volta de 1969, nas pesquisas de engenharia genética. A moratória foi, sobretudo, um ato da comunidade científica que sentia a necessidade de estabelecer normas de comportamento capazes de disciplinarem as pesquisas. Entretanto, foi suspensa pela própria comunidade científica, pela indústria farmacêutica e pelo sistema de saúde os quais desejavam fazer dos novos campos do conhecimento, possibilidades de comercialização e atendimento médico amplo.

Os resultados foram altos investimentos, descobertas de novas doenças, novas curas para doenças que atormentavam a sociedade, e também uma série de invenções e pesquisas nunca antes imaginadas, como a possibilidade de fertilização extracorpórea de gametas, a possibilidade de criopreservar esses embriões, as células-tronco, a clonagem. Situações fáticas que não podem ser vistas sob a ótica positivista regra-fato, justamente por não ser possível encaixar a “moldura” da Lei a essas situações. A busca de controle absoluto das relações jurídicas demonstrou-se inconsistente, principalmente em relação aos avanços das sociedades modernas, notadamente do Biodireito.

Os casos apresentados ao Biodireito necessitam de solução. Não há normas previamente estabelecidas para regulá-los, a sociedade não possui mais um consenso universal sobre os vários aspectos morais, éticos e valorativos de situações que envolvem os avanços da Biotecnologia. Então, nada mais favorável do que a utilização de um pensamento problemático, fundado na análise das possibilidades do sistema.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os avanços da ciência, notadamente a partir do desenvolvimento tecnológico, permitiram a manipulação bioquímica de diversos elementos, como por exemplo, as células-tronco, que até a metade do século passado, estavam fora do alcance humano. Esses avanços acabaram por colocar em xeque o pensamento moderno frente aos valores éticos e morais e à “moldura” jurídica do positivismo.

      O momento presente deve observar não mais os contornos firmes e inflexíveis da norma escrita ou do precedente fixados; mas as circunstâncias do fato, descrito por Viehweg, como a situação a ser problematizada, que carece de uma solução a ser dada em torno dos “topoi”, que ao fato se ligam, sem utilizarem de mecanismos pré-determinados.

A razão para a utilização do pensamento problemático e a rejeição do formalismo positivista são justificáveis, vez que aquele oferece um campo de possibilidades abertas, que respeitam a pluralidade de opiniões da sociedade. A sociedade chamada plural foi conduzida por inúmeras transformações em todos os seus seguimentos, em especial no Direito Privado, houve transformações na família, na propriedade e no contrato, nos cinqüenta últimos anos do século passado.

      Diante da teorização de Viehweg, inúmeras críticas foram construídas, talvez pelo fato de o ser humano ainda não ter se adaptado à situação de insegurança, que o momento informa e que a teoria argumentativa tópica de Viehweg se dispõe a enfrentar. Os casos descritos no texto sobre Biodireito não estão distantes da realidade de incerteza, vez que estão inseridos num contexto que não informa uma única norma orientadora de solução, mas sim um conjunto de princípios que representam, na lição de Viehweg, lugares comuns, que devem ser identificados no caminho da decisão.

Diante disso, o caminho apontado por Viehweg voltado para as questões de Biodireito, considerando-o uma ciência dogmática, mas que trabalha com elementos da zetética, passa pelo incessante atuar do intérprete em sua busca pela identificação dos “topoi” mais próximos de uma decisão que, antes de tudo, seja justa. Para Atienza, “o mérito fundamental de Viehweg não é ter construído uma teoria, e sim ter descoberto um campo de investigação. Algo, ao fim e ao cabo, que parece se encaixar perfeitamente no ‘espírito’ da tópica.” (ATIENZA, 2002, p.78-79).

Nessa mesma ordem de raciocínio, segue a lição de Tércio Ferraz Jr.,

como técnica de pensamento, a tópica (material e formal) leva a argumentação judicial a um jogo eminentemente assistemático, em que se tem observado ausência de rigor lógico, impossibilidade de redução das decisões a silogismos etc. Ressalta-se, ao contrário, o uso abundante das distinções, das redefinições de velhos conceitos, das analogias, das interpretações extensivas, do retorquir, das ironias, da exploração técnica das ambigüidades, das vaguezas, das presunções, tudo conforme a boa retórica. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p.326). 

As perspectivas da tópica são úteis no caso do Biodireito, na media em que esse campo de atuar do Direito está sempre sujeito a forças endógenas presentes na sociedade submissas a influências da Biomedicina e Biotecnologia, a clamarem por uma Biosegurança a partir do Direito, que não mais passa pelos velhos e arcaicos métodos jurídicos, mas suscita uma metodologia dinâmica e dialética, capaz de permitir a interseção dos diversos novos fatores éticos mundializados, a fim de proporcionarem a salvaguarda da pessoa humana enquanto partícipe de uma sociedade aberta e plural. 

 

REFERÊNCIAS

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BARBOZA, Heloísa Helena. A insuficiência de conceitos da Bioética e do Biodireito. In BARBOZA, Heloísa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Coords.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. Vol. I. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001. 

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. 

GALUPPO, Marcelo Campos. O direito civil no contexto da superação do positivismo jurídico: a questão do sistema. In FIUZA, César Augusto de Castro; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 

LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 

MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Bioética e Biodireito. In BARBOZA, Heloísa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Coords.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.  

NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Introdução ao Biodireito: da zetética à dogmática. In SÁ, Maria de Fátima Freire de (Coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, PUC Minas, 2002. 

PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica. São Paulo; Martins Fonte, 1998. 

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na tradição paradigmática. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília: Imprensa Nacional, 1979.

VIEHWEG, Theodor. Tópica y filosofia del derecho. Trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1991. 

 

NOTAS DE FIM

1 Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito Processual Civil pelo CAD / Gama Filho. Especialista em Direito Civil pela UCAM. Advogada. E-mail: janiceborges@hotmail.com 

2 Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito de Empresa pela PUC Minas. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado. E-mail: michael@adv.oabmg.org.br 

3 Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito de Empresa pela UFRJ. Advogado. E-mail: sabre@oi.com.br