Raimundo Cândido Júnior*
Os modernos computadores, quando neles digitada a palavra Legística, sublinham-na de vermelho, como se fosse vocábulo inexistente no nosso léxico,fato a revelar que se trata de ciência ainda desconhecida pormuitos, pelo menos com esse nome. A propósito, lembra Nóbrega Netto que a Legística,é área de conhecimento relativamente recente, que se ocupa da elaboração das normas, visando dar qualidade aos atos normativos (1).
Assunção Cristas, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, define Legística como “o ramo do saber que visa estudar os modos de concepção e de redação dos atos normativos”, dizendo tratar-se da arte de bem fazer as leis, reunindo um conjunto de fundamentos com o objetivo de elaborar a melhor norma possível (2).
Para os professores de Genebra, Alexandre Flückiger e Jean-Daniel Delley, a Legística visa racionalizar a produção legislativa, apoiando-se nas ciências sociais, para estabelecer elo com a realidade, e no estudo da comunicação e da linguagem, para a elaboração das normas (3).
Em artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFMG,sobre a qualidade da lei no quadro da otimização de uma melhor legislação,bem observou Fabiana de Menezes Soares, a Legística é um conhecimento sistematizado ainda pouco conhecido no Brasil, tendo ela trazido a cotejo outros vocábulos que designam esse ramo do conhecimento jurídico sobre o qual discorreu: Legisprudência, Legislação, Ciência da Legislação. Segundo ela, a Legísticadeve ser entendida como saber jurídico que evolui com anecessidade de uma legislação mais eficaz (no sentido de estar maisatuante e disponível para a produção de efeitos), com o desafio decompatibilizar o direito codificado com os reclames da sociedade. Mas Fabiana de Menezes Soares adverte que se deve fazer oquestionamento da lei, como instrumento exclusivo para consecução demudanças sociais e com a necessidade de democratizar o acesso aos textos legais (4).
Para André Leandro Barbi de Souza, a Legística é a ciência que deve produzir conhecimento para elaboração de uma lei, visando proporcionar qualidade, racionalidade, clareza, coerência, efetividade à norma.Para ele, em termos mais simples, pode-se dizer que a Legística dedica-se ao estudo da lei, da sua concepção, da sua redação e da sua razoabilidade. Assim, duas são as áreas de sua inserção: a construção da matéria que comporá a lei (legísticamaterial); e a redação do conteúdo normativo (legística formal).
No dizer de Morand, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Genebra, a Legísticaficou, por muito tempo, confinada à redação dos textos legais. Contudo, trata-se, segundo ele, de uma disciplina mais vasta, que deve cuidar, também, da maneira como o direito pretende resolver os problemas sociais. Para Morand, deve ser feita, pois,essa distinção entre a legística formal e a legística material, destacando que“le point commun de cesdeuxaspects de lalégistiquerésidedanslarecherche de l’efficacité” (5).
Para Morand, a legística formal estaria ligada à comunicação legislativa, à edição dos textos legais, enquanto a legística material trataria de outros aspectos ligados ao conteúdo da legislação. O ponto em comum desses dois aspectos da legística residiria na busca da eficácia, evitando-se o que, no Brasil, é comum dizer e se constata, na prática: há leis que pegam e há leis que não pegam.A propósito,enquanto parlamentar, assustado com a sanha legislativa do Parlamento, Delfim Neto dizia temer, a qualquer momento, a revogação da “lei da gravidade”, pelo Congresso Nacional…
A lei, de per se, não resolve os problemas vivenciados pela coletividade.Os representantes do povo, no melhor estilo Volksgeist na voz de Kant, nem sempre disso têm consciência.Por isso, muitas vezes elaboram os textos legais de acordo com a sua própria conveniência e oportunidade. Basta lembrar que a Câmara dos Deputados, recentemente, contrariando as expectativas do povo brasileiro, não cassou o mandato de parlamentar condenado por sentença transitada em julgado e que cumpre pena privativa de liberdade. O artigo 15 da Constituição da República, no seu inciso III, estabelece como hipótese de perda e de suspensão de direitos políticos a “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”. Mas o § 2º do artigo 55 do texto constitucional impõe que, neste caso, a perda do mandato do deputado ou senador “será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.
Batendo-se contra o ato da Câmara, o deputado Carlos Sampaio e outros impetraram mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal, distribuído à relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, que deferiu liminar, suspendendo os efeitos da deliberação do plenário daquela casa legislativa, até o julgamento definitivo daquele mandamus.
Segundo Antônio Álvares da Silva, essa medida liminar deferida pelo Min. Barroso estaria a revogar expressamente o citado § 2º do art. 55 da Lei Maior. “Não cabe ao intérprete substituir a vontade da Constituição pela sua própria, colocando-se em posição superior a outro Poder e rompendo o equilíbrio democrático entre eles”, pontuou. Desse embate entre os Poderes Legislativo e Judiciário, o professor Antônio Álvares tira uma lição: “a Constituição tem que ser respeitada não só pelo Congresso que a fez, mas também pelo Supremo que a interpreta e, finalmente, por nós, o povo, que temos nela a defesa de nossos direitos e a garantia de nossa liberdade” (6).
Desde os primórdios da humanidade, o homem definiu a lei como o traço que separa os bárbaros dos civilizados. Os seres humanos perceberam a necessidade de regular as ações entre si, para que, na medida do possível, pudessem ter uma convivência pacífica ou quiçá menos conflituosa.
Passagens bíblicas revelam que o próprio Cristo, quando questionado sobre a desobediência à lei sabática pelos discípulos, que se puseram a colher espigas num dia de sábado, foi categórico: -“O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado!”. Sim, porque, também no sábado, era preciso matar a fome.Ou seja, a lei não pode ser feita para escravizar o homem, mas para libertá-lo para as ações indispensáveis à sua sobrevivência digna.Na elaboração das leis, perguntar sobre quais são nossas primeiras preocupações ajudará a escolher o que é mais essencial para a vida humana. Se fariseus se preocupavam com o cumprimento frio da lei, Jesus quis, através dela, garantir a vida e a dignidade às pessoas.
Dos romanos é conhecida a máxima legemhabemus: temos lei.E, ainda que seja dura, dura lexsedlex, é preciso cumpri-la. Dos italianos vem outro ditado, que questionao anterior: fattalaleggetrovatol’inganno. Sim,porque, muitas vezes, editada a lei, logo se descobre o seu engano. Sem menoscabar os hermeneutas e suas diversas teorias sobre a interpretação das leis, podemos, com Fernando Sabino, invocar o dura lexsedlatex(7), ou seja, a lei é dura mas estica, não só para os ricos, como sugeria o conhecido romancista mineiro, mas para todos, a fim de que que se alcancem os fins sociais a que ela se dirige eas exigências do bem comum.
Sabemos que não é de hoje a preocupação com a elaboração de boas leis e esse caminho vem sendo perfilhado, ao longo dos tempos, pelos cientistas do direito. O Poder Legislativo, um dos sustentáculos da democracia, é composto por representantes eleitos pelo povo e tem como uma de suas competências a elaboração das normas jurídicas nos âmbitos federal, estadual e municipal. Na formulação dos preceitos que regulam a vida da sociedade e garantem o desenvolvimento do País, mediante a elaboração dessa diversidade normativa, vários aspectos e princípios devem ser observados para a produção do ordenamento jurídico, como a organização sistemática de seus dispositivos, a linguagem a ser utilizada, o preparo técnico de quem o elabora, a intenção política do legislador, a avaliação periódica da norma, entre outros (8).
A inflação legislativa, porém, tem perturbado o ordenamento jurídico, não dando chances para a segurança jurídica nas contendas dos tribunais. Lamenta-se que os elaboradores da lei, muitas vezes atendam aos interesses do governo, sem, contudo, atender aos interesses dos destinatários da norma, dando ensejo, portanto, a uma frustração coletiva.Se houvesse o bom exercício da Legística,poderiam ser evitadas invasões do Poder Judiciário no controle legal das normas jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo. Que o exercício da Legísticaobedeça à sinfonia e à sincronia da vontade democrática, é o nosso desejo.
* Doutorando em Processo Coletivo pela Faculdade de Direito da UFMG; Ex-Presidente da OAB/MG; Professor de Direito Processual Civil.