Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Valéria Edith Carvalho de Oliveira[1]
Aurélia Tinti Lourenço de Lima[2]

 

[3]Resumo: A limitação quanto a idade dos nubentes para a escolha livre do regime patrimonial vigora nos dias atuais apesar das mudanças efetuadas em diversas leis brasileiras em favor dos idosos. A controvérsia doutrinária sobre a legalidade da limitação imposta subsiste sendo, entretanto, nos Tribunais brasileiros, amplamente aplicado o preceito legal, em que pese a contrariedade a dispositivos principiológicos constitucionais e específicos em relação aos idosos.

Palavras-chave:  Regime Obrigatório de Bens. Idoso. Liberdade. Dignidade

Áreas: Direito Civil e Direito de Família.

 

1 BREVE HISTÓRICO DA LIMITAÇÃO DA ESCOLHA DO REGIME DE BENS DE CASAMENTO, COM FUNDAMENTO NA IDADE DOS NUBENTES, NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A época do descobrimento do Brasil vigorava em Portugal o casamento religioso, celebrado sob os moldes da religião católica. O matrimônio era regulado pelo Direito Canônico, e uma vez colônia de Portugal, no Brasil, nos mesmos moldes, a legislação era aplicada.

O aspecto patrimonial da relação casamentária ficava evidenciado no 4º livro das Ordenações Filipinas, §1º do título 46 que estabelecia que “quando marido e mulher forem casados por palavras de presente à porta da Igreja, ou por licença do Prelado fora dela, havendo cúpula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda.”

Assim, para que se firmasse a comunhão patrimonial decorrente do casamento bastariam dois requisitos: a autorização da Igreja e a consumação do ato sexual. Destarte não havia que se falar em idade ou qualquer outro requisito discriminatório à época.

No governo Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, através do Decreto Executivo 181, promulgado em 24 de janeiro de 1890, regulamentou-se a lei do casamento civil. Esta normatização estipulou em seu artigo 58, limitação à comunhão de bens com base na idade dos contraentes.

Com esta determinação, manifestada ha mais de um século atrás, quando a expectativa de vida do cidadão era bem menor que a atual, o Estado tentou proteger o ancião que aos olhos da sociedade e do Direito seria vulnerável demais a ponto de colocar em risco o patrimônio construído ao longo de uma vida, com um casamento realizado em fase mais avançada da vida.

A codificação civil de 1916 manteve a limitação da escolha do regime de bens dos nubentes em decorrência da idade. A previsão encontrava-se no art. 258, parágrafo único, inciso II. Em consonância com a desigualdade vigente entre homens e mulheres o artigo estabelecia diferentes limites de idade, sendo de sessenta anos para homens e de cinquenta para mulheres.

Tendo percebido que o referido artigo prejudicava um dos os cônjuges, uma vez que em muitos casos havia a colaboração mútua pra a o acréscimo patrimonial do casal durante a convivência, caracterizando enriquecimento sem causa de uma das partes, o Supremo Tribunal Federal entendeu por bem que deveria ser resguardado o direito dos cônjuges que mesmo contraindo matrimônio no regime de separação obrigatória, o faziam de boa fé.

Desta feita visando flexibilizar a rigidez do referido artigo foi editada a Súmula 377 que estabeleceu que independente do enquadramento do regime jurídico determinado pelo art. 258 do Código Civil de 1916, referente ao regime de separação obrigatória de bens, deveria haver comunicabilidade entre os bens adquiridos na constância do matrimônio.

Em 10 de Janeiro de 2002 o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou a Lei 10.406, ou o novo Código Civil Brasileiro. A partir deste novo codex a limitação pela idade quanto a possibilidade de livre escolha do regime de casamento passou a ser regulamentada pelo artigo 1641,inciso II, no limite previsto de sessenta anos.

O novo tratamento legislativo dado ao tema, em consonância com a vedação constitucional de tratamento discriminatório em razão do sexo, extirpou a diferença anteriormente existente quanto a diversidade de idade para homens e mulheres, no entanto manteve para o sexagenário a impossibilidade de escolha livre do seu regime matrimonial.

A restrição quanto a liberdade de escolha dos sexagenários sempre incomodou muito a comunidade jurídica trazendo a baila com frequência a discussão do tema. Assim, em 2010 a Lei 12.344 acabou conferindo ao referido artigo nova redação que aumentou de sessenta para setenta anos o limite de idade para a escolha do regime de bens.

A modificação frustrou as expectativas daqueles que ansiavam pelo fim da limitação, fazendo prevalecer a autonomia da vontade dos nubentes, bem como a liberdade de escolha, garantida constitucionalmente a todos. Foi a última alteração legislativa ocorrida nesta matéria, entretanto ainda se faz merecedor de reparos o artigo limitador por violar garantias constitucionais dos idosos.

 

2 A TUTELA JURÍDICA DO IDOSO

Uma das inovações apresentadas pela Constituição Federal foi a proteção específica em relação aos idosos, apresentada no art. 230.

O dispositivo em referência per si bastaria para que fosse juridicamente garantido o direito do idoso sem distinção alguma. No entanto, visando materializar e complementar os direitos ali apresentados, editou-se a Lei 8.842, de 4 de janeiro de 1994 trazendo a Política Nacional do Idoso, atualmente vigente. 

Expressamente considera-se idoso a pessoa maior de sessenta anos de idade. Tal instituto traz em seus artigos dispositivos garantidores de direitos, princípios e diretrizes de políticas que visem garantir a participação efetiva do idoso na sociedade e uma vida digna aquele que já prestou sua colaboração para a construção da sociedade.

A lei 8.842, de 4 de janeiro de 1994 expressamente em seu artigo 10 §1º garantiu ao idoso o direito de gerência sobre sua vida patrimonial assegurando ao idoso o direito de dispor de seus bens, proventos, pensões e benefícios, salvo nos casos de incapacidade judicialmente comprovada.

Destaca-se nesta disposição legal que qualquer limitação neste sentido deverá ser derivada de incapacidade judicialmente comprovada, ou seja, a limitação só se impõe diante da interdição declarada em um processo que comprove a incapacidade do idoso para praticar por si só os atos da vida civil, sendo a ele assegurado neste processo o contraditório e confirmada a incapacidade por perícia médica.

Pablo Stolze Gagliano e Pamplona Filho manifestam-se sobre o assunto:

Se existe receio de o idoso ser vítima de um golpe por conta de uma vulnerabilidade explicada por enfermidade ou deficiência mental, que seja instaurado procedimento próprio de interdição, mas disso não se conclua em favor de uma inadmissível restrição de diretos, simplesmente por conta da sua idade. (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2011, p. 325):

 

Em 1º de outubro de 2003 foi publicado o Estatuto do Idoso, Lei 10.741, destinado a regular os direitos adquiridos pelas leis anteriores, mantendo-se o critério das pessoas com idade superior a sessenta anos.

O art. 2º do Estatuto apresentou inicialmente os direitos a eles garantidos, destacando as condições de liberdade e dignidade. O direito a liberdade do idoso foi reforçado no §1º do art. 10 da mesma lei.

É de se ressaltar que se omitiu o legislador quanto a positivação dos direitos de propriedade e decisões de cunho patrimonial do idoso. No entanto, um olhar mais atento faz notar no caput os dizeres “entre outros. Assim, razoável é a interpretação que compreende estarem ali abarcados o direito de uso, gozo e disposição de seus bens.

Confirmando este entendimento extrai-se do Capítulo II, do Estatuto do idoso, intitulado como: Dos crimes em Espécie que o legislador quis dar proteção especial aos direitos do idoso imputando à conduta discriminatória em relação ao idoso ou àquela que tenha por objetivo impedir ou dificultar seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar, por motivo de idade, pena de reclusão de seis meses a um ano e multa.

Assim, não poderá ser negado o direito ao idoso de contratar e dispor de seus próprios bens tão somente em função de sua idade, salientando que no que se refere à capacidade civil, deve-se observar os dispositivos do art. 3º e 4º do Código Civil. Permanecendo a capacidade nos moldes dos referidos artigos não há que se presumir a incapacidade do idoso.

 

3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AOS DIREITOS DOS IDOSOS

Além do tratamento específico dado ao idoso em seu Estatuto próprio, não se pode olvidar das garantias constitucionais de dignidade da pessoa humana, liberdade, propriedade, à família, dentre outros.

Acrescente-se a isso que violar princípios constitucionais é romper com a própria Constituição.

Assim, o homem é o destinatário das normas e consequentemente seu próprio remetente haja vista ser ele o único possuidor de direitos e deveres e ser ele a razão destas.

Para Edinês Garcia a dignidade da Pessoa Humana:

É o atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim, a dignidade entranha e se confunde com a própria natureza do ser humano. (GARCIA, 2003, p. 37)

 

Calha informar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem logo em seu preâmbulo também traz o norte dos direitos da dignidade da pessoa humana.

Tendo sido ratificada a Declaração Universal de Direitos Humanos, devem ser respeitados os preceitos ali constantes.

Não se olvide os artigos pertinentes ao tema manifestamente esposados na no art. 1º da Constituição, estabelecendo a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. E por fim, no mesmo sentido caminhou o Estatuto do Idoso ao dispor no Art. 230 que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Assim, qualquer ofensa a este princípio é considerado ofensa ao próprio homem.

De amplo sentido normativo constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana consolida a força dos direitos fundamentais e a proteção do homem desde o direito à vida, tendo este último o direito a ser tratado pelos semelhantes como pessoa humana. (GARCIA, 2003, p.32)

 

A aplicação de tais direitos é imediata e de interpretação extensiva sendo a razão para decisões conforme os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Então, limitar o direito do idoso de gerenciar conforme sua vontade o seu patrimônio, incluído aqui o direito de escolher o próprio regime de bens no casamento, viola a direito à liberdade de escolha e à dignidade do cidadão que, sendo plenamente capaz para a prática de todos os atos da vida civil, vê-se cerceado em um direito fundamental.

 

4 A LIMITAÇÃO QUANTO A ESCOLHA DO PRÓPRIO REGIME DE CASAMENTO, EM FUNÇÃO DA IDADE, NA CODIFICAÇÃO CIVIL E A SÚMULA 377 DO STF

O Código Civil dispõe em seu art. 1641, inciso II que é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos. Esta disposição foi assim determinada por força de nova Lei em 2010. A Lei 12.344 ampliou a limite de sessenta para setenta anos.

Quis o legislador com este dispositivo legal assegurar proteção especial ao idoso imputando-lhe uma limitação de disposição patrimonial. A intenção foi de evitar a confusão patrimonial nestes casos, com o escopo de preservar os interesses individuais do cônjuge idoso, diante do suposto interesse alheio no patrimônio daquele em virtude da idade poderia apresentar-se vulnerável, levando-o a ser ludibriado e enganado.

Calha lembrar que os nubentes que estiverem sob a égide deste regime além de não possuírem a partilha dos bens comuns, não podem estabelecer sociedade entre si, não necessitam da outorga uxória e tampouco gozarão dos direitos sucessórios.

A norma contraria a liberdade assegurada no art. 1.639 do Código Civil de estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

Destarte, verifica-se a inegável afronta ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana por diminuir a autonomia da pessoa detentora de direitos e deveres e constrangê-la socialmente imputando-lhe uma incapacidade de discernimento e restrição à sua manifestação de vontade que a própria constituição vedou. É imputar deficiência mental presumida iuris et de iure àquele que de fato possui maior capacidade pela maior experiência e maturidade acumulada devendo revelar a mais apurada sabedoria

Se a legislação civil impôs a restrição ao direito de escolha dos septuagenários é fato que discrepâncias podem advir desta norma. O casamento representa comunhão plena de vida, e não necessariamente todos que se casam com pessoas idosas têm interesses outros senão compartilhar com o par eleito as amarguras e alegrias da vida.

Assevera Caio Mário que:

Esta regra não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem a razão para substituir. Se é certo que podem ocorrer matrimônios por interesse nesta faixa etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir. (PEREIRA, 2006, p.206)

 

Então, impedir que o cônjuge compartilhasse patrimônio adquirido a título oneroso durante a constância do casamento exigiu do judiciário posicionamento que teve entendimento consolidado na súmula 377 do STF, aprovada em sessão plenária em 03 de abril de 1964, que se posicionou no sentido de que no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

Assim a referida Súmula flexibilizou a aplicação do artigo 258, II do então Código Civil de 1916 no intuito de ver imperar a justiça diante de algumas situações levadas àquele órgão.

Poderia ter garantido o direito de escolha aos maiores de sessenta anos à época, no entanto, de forma genérica aplicou os efeitos do regime de comunhão parcial de bens, garantindo a partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância do matrimônio ao cônjuge. Ou seja, permaneceu a presunção de incapacidade para escolha do regime que melhor conviesse ao idoso, assim, caso o mesmo quisesse optar pelo regime de separação convencional, não poderia assim o exercer tendo em vista a obrigatoriedade do regime legal de separação e consequentemente a aplicação da súmula que dividiria o patrimônio adquirido onerosamente na constância do matrimônio.

Em 2010 a ampliação do limite para setenta anos ainda faz atual e necessária a discussão uma vez que em nada modificou as argumentações contrárias à vedação imposta.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoje em dia os idosos acima de setenta anos que estejam em vésperas de casar-se encontram restrição legal para livremente escolherem o regime de bens do casamento.

Esta restrição teve redução em seu alcance quando em 2010 a faixa etária sujeita à limitação passou de sessenta para setenta anos.

Em que pese a ampliação do limite, a restrição ainda permaneceu deixando implícito todos os preconceitos do legislador em relação ao idoso. Mais especificamente no tocante a sua vulnerabilidade em relações afetivas estabelecidas em momento mais avançado da vida.

A restrição representa ofensa a direitos assegurados constitucionalmente como a liberdade de escolha, a igualdade e a dignidade humana, bem como afronta direitos assegurados aos idosos em estatuto específico, o Estatuto do Idoso.

Assim, não havendo incapacidade comprovada que retire do idoso sua capacidade de discernimento e consciência, bem como uma interdição legalmente constituída, razoável a interpretação de que é inconstitucional a limitação estabelecida no art, 1641, II do Código Civil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil: famílias. São Paulo: Lumen Juris, 2010.

CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 23. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.

GARCIA, Edinês Maria Sormani, Direito de família: princípios da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Editora de Direito, 2003.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família: direito matrimonial. Campinas: Bookseller, 2001. v.2.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 16. ed. rev. e ampl. São Paulo: Forense, 2006. v.6.

CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 6., 2007, Belo Horizonte(MG ; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e solidariedade: teoria e prática do direito de família. Rio de Janeiro: IBDFAM, Lumen Juris, 2008. 477 p.

TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Controvérsias sobre o regime de bens no novo código civil.  Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

RIZZARDO, Arnaldo, Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007.  v. 6

VILLELA, João Batista. Liberdade e família. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, 1980, n. 2, v. 3. Série Monografias.

 


[1] Mestre em Direito Privado. Professora no curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogada.

[2]Aluna do 10º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva