Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Ingrith Gomes Abrahão[1]

 

Resumo: Ao analisar os conceitos de direito e interesse trazidos por Rudolf Von Ihering e a repercussão de sua construção teórica para a história do direito e para a hermenêutica jurídica, busca-se, neste artigo, exaltar as contribuições de Maciel Júnior (2004) sobre sua análise de que essa equiparação de conceitos tem gerado confusões no tema dos direitos coletivos. Tudo implicando na dificuldade de se definir com critério os conceitos de direitos difusos e coletivos para fins de construção de uma teoria geral do direito coletivo com bases científicas seguras e bem estruturadas. Para tanto, faz-se um estudo sobre a célebre concepção de direito como “interesse juridicamente protegido”; a influência de Ihering na classificação de direito e interesse; a inadequação da concepção de Ihering sobre direito como interesse juridicamente protegido para uma teoria geral do direito coletivo; a teoria de diferenciação necessária entre direitos e interesses defendida     por Maciel Júnior e a definição legal e doutrinária sobre os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Palavra-chave: Direito – Interesse – Direito coletivo.

Área de interesse: Direito coletivo.

 

1. INTRODUÇÃO

Reconhecido, na atualidade, como meio de concretização de direitos constitucionais direcionados à promoção de benefícios e garantias de toda uma coletividade, seja ela determinável ou não, o direito processual coletivo tem merecido destaque no meio acadêmico no que tange à delimitação e definição do mesmo como uma “nova” vertente do direito processual nacional.

Apesar de muitos serem os doutrinadores que tratam do assunto, podemos constatar que não são tantos aqueles que se preocupam em construir uma teoria do direito coletivo que seja bem estruturada de modo a permitir a solução das diversas dúvidas que permeiam o pretenso sistema de tutelas coletivas, diferenciando-o, na medida do necessário, do sistema de tutelas individuais do ordenamento jurídico brasileiro.

Uma das dificuldades estruturais para a construção de uma teoria do direito coletivo no Brasil encontra-se justamente no conceito e definição do que seriam os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, bem como se poderiam mesmo ser chamados de direitos ou se deveriam ser chamados de interesses.

E é sobre este problema que este breve artigo irá tratar, trazendo para análise e reflexão o posicionamento de alguns doutrinadores, tentando, ao final, oferecer definições sobre em que consistem os direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Não há a pretensão de que este trabalho esgote o assunto e nem mesmo que traga todas opiniões acerca de tal polêmica, mas apenas possa ser  um sucinto resumo de algumas posições doutrinárias a respeito do tema que se propõe analisar.

Para melhor análise do objeto deste trabalho, será feito, a princípio, um breve estudo sobre a concepção de interesse e direito criados por Rudolf Von Ihering que ainda vige no Brasil; analisando-se, posteriormente, a compatibilidade desta concepção diante da mudança de paradigma ocorrida ao longo dos tempos e a proposta oferecida por  Maciel Júnior de uma diferenciação entre interesse e direito para a construção de uma teoria do processo coletivo. Por fim, serão expostas as posições doutrinárias sobre o tema e as definições, em linhas gerais, de direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Diante do exposto, passamos agora à análise do tema proposto.

 

2. DESENVOLVIMENTO    

2.1. O direito como interesse juridicamente protegido

A importância do estudo do interesse para a definição do que consiste o direito, conforme ensina Maciel Júnior (2004, p. 4), surge com os utilitaristas, mais especificamente com Rudolf Von Ihering.

Rudolf Von Ihering foi um autor que se destacou na evolução da hermenêutica jurídica, sobretudo por ser o precursor das bases que permitiram a elaboração, por Philipp Heck, da Jurisprudência dos Interesses. (FIUZA, 2003, p. 41) Isso porque:

Rudolf Von Ihering, antes um dos principais teóricos da Jurisprudência dos Conceitos, percebe a crise que se manifesta na cultura da segunda metade do século XIX e acaba por ser autor de uma das críticas mais contundentes ao método lógico-dedutivo e ao formalismo jurídico, pelo seu alto grau de abstração. No livro A luta pelo direito, escrito em 1891, como resultado de idéias que vinha defendendo desde 1872, Ihering mostra o direito como uma vivência que deve ser assumida tanto pela parte de quem o aplica, o Estado, quanto por quem o postula na qualidade de interessado. Segundo ele, o direito é, na realidade, uma luta, ou um verdadeiro esforço animado pelo espírito prático que subjaz à sua própria realização.” (CAMARGO, 2003, p. 90-91)

 Ihering exalta a finalidade do direito, isto é, soma a noção de fim à ideia de direito, podendo-se afirmar, por isso, que sua concepção do direto é chamada de teleológica. (MATA-MACHADO, 1995, p. 299) Segundo sua doutrina, o fim precípuo do direito é a realização da utilidade, do interesse, algo futuro que a vontade pretende realizar.(CAMARGO, 2003, p. 91)

Referido autor desenvolve, então, dois elementos que são colocados como constitutivos do “princípio do direito” (o interesse), que são o substancial e o formal.

O primeiro elemento dito substancial, nas palavras de Pereira (1998, p. 22), “se situa na sua finalidade prática, isto é, na sua utilidade, na sua vantagem ou no interesse”. Esse elemento substancial se manifestaria, como fim prático do direito, através de uma sucessão de ideias, como de utilidade, valor, gozo, interesse, e de bem. (MATA-MACHADO, 1995, p. 299)

A ideia de bem merece destaque na teoria de Ihering porque qualquer tentativa de definir o que seja o direito deveria tê-la por base, sendo que a mesma significa “toda coisa que possa servir para algo”, e estaria unida à noção de valor (medida de utilidade) e de interesse (valor na relação particular entre sujeito e finalidades). (MACIEL JÚNIOR, 2004, p. 7)

Por sua vez, o elemento chamado de formal consiste na proteção jurídica desta utilidade ou vantagem, o meio utilizado para garantir a obtenção do fim prático do direito. Seria, em síntese, a proteção do direito.

Da conjunção destes dois elementos é que foi possível a célebre frase de Ihering de que “o direito é o interesse juridicamente protegido”.

Por destacar que o direito sempre tem um fim que seja útil para a sociedade, segundo Ihering, “o jurista deve ficar atento às necessidades práticas dos indivíduos, geradoras de determinados fins, e não a conceitos lógicos oriundos de normas e instituições jurídicas”.(FIUZA, 2003, p. 41)

Por tudo isso é que:

“ …a partir de Ihering, a ideia de que o direito se liga a um fim, que se pretende ver realizado na prática, faz com que o mesmo abandone o campo da abstração e veja aberto o caminho para a Jurisprudência dos Interesses, encarregada de formular metodologicamente essa questão.”  (CAMARGO, 2003, p. 92)

 Com toda essa construção de Ihering, a ideia de interesse por ele formulada permaneceu e influenciou sobremaneira a classificação até hoje vigente entre direitos e interesses. Baseando-se nessa concepção é que se tem a afirmação de que só se pode falar em um direito quando o interesse ao qual visa atender estiver sendo submetido à “ação em Justiça”, ou melhor, estiver sendo objeto de um meio, um instrumento de tutela jurídica.

 

2.2. A influência de Ihering na classificação de direito e interesse.

Como dito supra, a concepção de Ihering sobre direito e interesse influenciou fortemente as classificações dos direitos e interesses, o que repercute no significado do que sejam hoje os direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais  homogêneos, bem como o modo do surgimento destes.

Uma forma de demonstrar essa influência é trazermos a clássica classificação dos direitos e interesses em gerações feita inicialmente por Bobbio em sua obra A Era dos Direitos destacando a sua vinculação ao paradigma vigente ao tempo de seu surgimento.

Conforme ensina citado autor, os direitos e interesses que foram primeiro reconhecidos na história da humanidade foram aqueles vinculados apenas ao indivíduo, o qual era visto com primazia sobre o Estado. São os chamados direitos de “primeira geração” os direitos individuais. Surgiram durante a vigência do paradigma[2] do Estado de Direito e do liberalismo, em que se destaca a característica do individualismo exacerbado e da primazia da propriedade privada.

Os interesses individuais podem ser entendidos como aqueles que dizem respeito à liberdade e ao poder do indivíduo de agir conforme sua vontade, são interesses exclusivamente particulares, sem qualquer preocupação com terceiros. Destacam-se por serem vistos como uma forma de proteção contra o poder e arbítrio do Estado.

No entanto, a vivência à luz deste paradigma acabou por justificar as explorações de trabalhadores e da população economicamente desfavorecida, possibilitando acirrar as desigualdades sociais e ensejando o surgimento de novas ideias como as comunistas e socialistas que questionavam a realidade vivida.

As revoluções industriais e, principalmente, a I Guerra Mundial serão desencadeadoras, por fim, do surgimento de uma nova sociedade de massa e um novo paradigma que será o do Estado Social. (CARVALHO NETTO, 1998, p. 480).

No paradigma do Estado de bem-estar social, há a luta e o reconhecimento de uma nova espécie de direitos e interesse, agora não mais focados apenas em um indivíduo ou beneficiário, mas sim em uma coletividade. Surgem, assim, os direitos e interesses de “segunda geração” que consistem nos direitos e interesses coletivos e sociais, ou seja, direitos que têm como interessados um grupo ou coletividade de pessoas em razão dessa qualidade de participante daqueles. [3]

Interesses e direitos sociais são vistos como interesses de toda uma sociedade e interesses coletivos estão mais vinculados aos interesses de um grupo ou coletividade determinada. [4]

Passados os tempos e com a ocorrência da II Guerra Mundial, o paradigma do Estado Social também começa a ser questionado, principalmente com a sobreposição do Estado provedor de serviços públicos (e muitas vezes também privados) sobre as demais empresas, isto é, o intervencionismo estatal exagerado passou a ser questionado cada vez mais.

Diante disso, surge um novo paradigma que vai trazer consigo uma nova era de direitos e interesses que se tornaram necessários diante da complexidade e fluidez das relações na sociedade. É o paradigma do Estado Democrático de Direito e os direitos de “terceira geração”, que abarcam os chamados direitos e interesses difusos, que seriam aqueles cujos titulares são não determináveis e o objeto do interesse não pode ser dividido, pois aproveita necessariamente a todos, podendo citar como exemplos os direitos ao meio ambiente, do consumidor, dentre outros. [5] “São direitos e interesses tuteláveis, mesmo sem a apresentação imediata de um titular, decorrentes de um fato básico que afeta a todos.”(MACIEL JÚNIOR, 2004, p. 10)

Após a tradicional definição em três grandes gerações de direitos, fala-se em outras novas gerações ou, para outros, dimensões de direitos fundamentais, chegando-se a uma quarta e quinta dimensão de direitos que englobariam, reciprocamente, no entendimento de Bonavides (1997), os direitos fundamentais atrelados à pluralidde (democracia, informação e pluralismo) e à paz (axioma da democracia participativa).

 

2.3. A inadequação da concepção de Ihering sobre direito como interesse juridicamente protegido para uma teoria geral do direito coletivo.

Conforme demonstrado alhures, a classificação de direitos e interesses toma por base a teoria de Ihering, que coloca direito e interesse como sinônimos, uma vez que identifica o direito como aquele interesse que tenha proteção jurídica.

Em que pese a importância de Ihering para a história do direito e para a hermenêutica jurídica, necessário é exaltar as lições de Maciel Júnior (2004, p. 22 -23) que coloca que essa equiparação de conceitos tem gerado confusões em muitos casos em que se tem como temas os direitos coletivos e direitos difusos. Tudo implicando na dificuldade de se definir com critério os conceitos de direitos difusos e coletivos para fins de construção de uma teoria geral do direito coletivo com bases científicas seguras e bem estruturadas.

Para ilustrar a possível situação em que poderia se verificar um conflito entre interesses difusos com interesses coletivos ou de interesses difusos com interesses individuais, o autor traz o seguinte exemplo que merece ser aqui citado:

“Bastaria como exemplo a esses problemas que imaginássemos a situação da existência de interesses difusos contrapostos a interesses individuais. Consideremos a hipótese em que a entidade estatal de controle ambiental, fundada em legislação que lhe confere o poder de fiscalização para autuação e aplicação de sanções, embarga a atividade de determinada empresa siderúrgica que polui o meio ambiente e ofende as regras vigentes quanto ao setor. Temos a entidade estatal que atua com poder de polícia e de acordo com o direito legislado, na tutela das situações jurídicas previstas nas normas. Temos os interessados difusos na qualidade do meio ambiente, que são atingidos pela atuação da entidade estatal e, mesmo que não tivessem se manifestado ou percebido a importância do embargo imposto, seriam atingidos individualmente por ele. Teríamos ainda o interesse da empresa na manutenção e exercício de sal atividade comercial, que estaria comprometida e poderia gerar o seu encerramento. Teríamos ainda os trabalhadores da empresa, que estariam atingidos individualmente em seus interesses de manutenção do emprego. (…) Todos esses interessados poderão manifestar-se e, ocorrendo o impasse, não poderemos afirmar a existência de um direito de qualquer dos envolvidos sobre os demais.”(MACIEL JÚNIOR, 2004, p. 22-23)

Se for entendido interesse na concepção de Ihering, só poderíamos falar efetivamente em direito de qualquer dos interessados após um processo judicial em que os princípios do devido processo legal e ampla defesa fossem respeitados e em que o provimento jurisdicional definisse a situação.

Dentro desse contexto é que se vê que a equiparação de direitos e interesses feita por Ihering não satisfaz essas situações envolvendo vários interesses diante da norma, bem como não consegue ser suficiente para dizer qual deles poderá ser considerado a priori como direito e assim deverá ser aplicado ou cumprido.

 

2.4. A teoria de diferenciação necessária entre direitos e interesses defendida por  Maciel Júnior.

Maciel Júnior (2004) vai criar, em contraposição a essa concepção de Ihering adotada por estudiosos do direito[6] até hoje, a tese de que direitos e interesses são conceitos que jamais poderiam ser colocados como sinônimos, sendo necessária a sua diferenciação para fins de elaboração de uma sólida teoria geral do direito coletivo.

O autor acima citado vai estabelecer a diferença primordial entre os dois conceitos quanto ao seu momento de formação e processo de transformação do interesse em direito.

Os interesses para o autor são vistos como manifestações de vontade ligadas unicamente à vinculação de um indivíduo a um bem, não podendo ser vistos fora da esfera privada do sujeito.

Diferentemente, o direito surgiria em outro momento e não estaria vinculado à esfera particular do indivíduo, mas sim a toda uma sociedade que como tal o reconhece.

Maciel Júnior (2004) fala em duas espécies de direitos. A primeira delas seria composta por aqueles direitos que são fruto de um “processo de validação espontâneo” previamente definido pela sociedade, como meio de reconhecer ao indivíduo que a sua vontade manifestada diante de um bem é legítima e como tal deve ser respeitada por todos.

A segunda espécie de direitos seria composta por aqueles direitos que advêm de um processo formal de validação de vontade, que significa o mesmo que dizer que são aqueles resultantes de processos judiciais em que houve um provimento jurisdicional fixando a vontade da lei para aquele caso em questão.

Nas palavras do autor:

“O interesse, desse modo, sempre será um momento anterior à formação do próprio direito. O direito pressupõe um processo de validação do interesse pela sociedade, seja pelo consenso e respeito à manifestação do interesse individual pela coletividade, seja pela adoção de um processo de validação substitutivo do processo de validação espontâneo pela sociedade, que é o processo judicial.”(MACIEL JÚNIOR, 2004, p. 25)

Fica, assim, evidente o equívoco daqueles que adotam a concepção de Ihering sobre direito e interesse, podendo fazer referência inclusive à própria legislação brasileira[7] que por muitas vezes confunde ou utiliza os termos como sinônimos, o que serve de fundamento para alguns doutrinadores[8] não darem a importância merecida à precisão terminológica necessária para construção de uma teoria geral do direito coletivo com bases realmente científicas.

Diferente é a proposta do autor citado supra que melhor define sua tese da seguinte forma:

“A nossa teoria de que os interesses são diferentes dos direitos explicaria de modo satisfatório e simples essa questão [ o autor refere-se à equiparação entre direitos e interesses difusos na legislação brasileira]. Em verdade não haveria interesses difusos ou coletivos, porquanto admitimos que os interesses são sempre individuais, sempre ocorrem e se exaurem na esfera particular do indivíduo. Os interesses são uma  manifestação, uma afirmação unilateral da vontade em face de um bem. Dessa forma, nunca poderíamos aceitar que interesses, que são individuais, fossem classificados em coletivos ou difusos. No máximo poderíamos reconhecer que, em face de um determinado fato, existe um número indeterminado de indivíduos numa mesma situação jurídica. Se pudéssemos identificar ou agrupar esses indivíduos em uma classe de pessoas, com interesses comuns e legalmente reconhecidos e previstos, estaríamos diante de interessados coletivos ou homogêneos, dependendo das características peculiares dos interesses individuais envolvidos e manifestados individualmente. Por outro lado, se não pudéssemos identificar os interessados que são atingidos por um determinado fato ou ato jurídico, teríamos a hipótese de interessados difusos, o que decorreria da existência difusa de diversos interessados que poderiam ter uma solução conjunta e abrangente para todos os que se encontrassem na mesma situação jurídica prevista em lei.”(MACIEL JÚNIOR, 2004, p. 26-27)

Diferenciados os conceitos de direito e de interesse, resta-nos agora apresentar a definição legal e de alguns doutrinadores sobre o que seriam esses direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

 

2.5. egal e de alguns doutrinadores sobre o que seriam esses direitos difusos, coletivos e individuais homog 16 A definição legal e doutrinária[9] sobre os direitos difusos, coletivos e individuais  homogêneos.

O diploma legal que traz uma definição expressa sobre o que seriam os chamados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos é o Código de Defesa do Consumidor (lei n. 8078/90).

O art. 81, § único, inciso I do Código de Defesa do Consumidor traz a definição do que seriam os direitos difusos: “… os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.”

A doutrina, então, seguindo de certa forma o definido pela lei, coloca que as características para identificação não se prendem somente à pertinência subjetiva, aos titulares ativos, como se pensou inicialmente[10], mas também a uma circunstância de fato[11] que vincula e liga os indivíduos de tal forma que o objeto de interesse de cada um deles se torna um só indivisível.

Por serem indivisíveis, a apropriação dos mesmos direitos não é possível se der feita de forma exclusiva por um de seus titulares, da mesma forma que a fruição daqueles não pode se dar de forma diferenciada entre os indivíduos.

“Não se trata da identificação dos interesses difusos como simples soma de interesses individuais, tampouco como síntese destes, referindo-se sim a necessidades que são da coletividade como um todo, daí surgindo sua indivisibilidade.(…) Recorde-se que os interesses difusos são caracterizados pela indivisibilidade do objeto, com a conseqüente comunhão de destino dos respectivos titulares, de modo tal que a satisfação de um só implica, por força, a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui lesão à inteira coletividade.”(LEONEL, 2002, p. 100-101)

Destaca-se, por fim, que “em quaisquer dessas hipóteses os interessados poderão agir individualmente ou em litisconsórcio”, o que afasta o critério de definição dos direitos difusos pelo tipo de tutela jurisdicional pretendida que é trazida na obra de Leonel(2002). (MACIEL JÚNIOR, 2004, p. 41) Nesse sentido, temos também:

“…propomos compreender a distinção entre direitos individuais, coletivos, direitos sociais e direitos difusos como uma distinção lógico-argumentativa. Ela deve ser considerada do ponto de vista do processo argumentativo de aplicação das normas que lhes consagram. Assim, é possível a utilização dos mais variados meios processuais, quer individuais, quer coletivos, para garantia jurisdicional desses direitos”. (OLIVEIRA, 2003, p. 132)

 Os direitos coletivos, por sua vez, têm a seguinte definição legal prevista no Código de Defesa do Consumidor, art. 81, § único, inciso II: “os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica”.

Leonel (2002), então, coloca que é possível identificar dois elementos diferenciadores entre os direitos coletivos e os difusos, quais sejam,

 “a maior limitação dos interesses coletivos, em virtude da existência do dado organizativo do grupo interessado (ausente nos difusos), e existência de uma relação jurídica embasando o liame existente entre os interessados.”(LEONEL, 2002, p. 105-106)

 Esse caráter organizacional é destacado como peculiar dos direitos coletivos também pelo italiano Vigoriti(1979), senão vejamos:

“In questo quadro si inserisce l’espressione «interesse collettivo»: essa espri me l’esistenza di uma relazione fra interessi di uguale contenuto, facenti capo a soggetti diversi, organizzati per il raggiungimento del medesimo fine. Il «collettivo» è la valenza di uma certa relazione fra interessi di natura individuale, non confliggenti, ma solidali, congiunti e organizzati per el soddisfacimento della pretesa comune.”(VIGORITI, 1979, p.19)

 Assim, os direitos coletivos podem ser identificados pela presença de um mínimo de organização, que permita visualizar a coesão e identificação dos interesses individuais dos membros do grupo, bem como a afetação desses interesses a determinadas classes ou grupos que serão os chamados ente esponenziali, os portadores daqueles (exemplo sindicatos, associações etc), além de um vínculo jurídico básico entre todos os membros dessa coletividade.

No que concerne aos direitos individuais homogêneos, temos o inciso III, do § único do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor: “os decorrentes de origem comum”.

Os direitos individuais homogêneos não são direitos coletivos por essência, mas sim direitos individuais que, por conveniência processual, se ligam uns aos outros em função de terem uma origem comum, isto é, uma “a mesma fonte e espécie de conduta ou atividade, ainda que tenha sua ocorrência postergada no tempo em mais de uma ação”.(LEONEL, 2002, p. 109)

Como já fora afirmado quanto aos direitos difusos e coletivos, não há nenhum empecilho para que os indivíduos acionem o Poder Judiciário através de ações individuais.

“São características destes interesses [leia-se direitos]: serem determinados ou determináveis os seus titulares; serem essencialmente individuais; ser divisível o objeto tutelado; e surgirem em virtude de uma origem ou fato comum, ocasionando a lesão a todos os interessados a título individual”. (LEONEL, 2002, p. 108)

Definidos os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, é importante exaltarmos o fato de que é o caso concreto imprescindível para definir qual dessas espécies de direitos está presente e assim as regras procedimentais que deverão ser aplicadas à hipótese analisada.

 “Se partirmos de uma concepção procedimentalista do Direito, em que qualquer proposição jurídica é fruto de interpretação, sobre o pano de fundo de visões paradigmáticas concorrentes, não se pode pré-definir o ‘conteúdo’ou a ‘extensão total’ de um dispositivo normativo que ganha sentido a cada novo caso concreto, predeterminando-se materialmente a argumentação jurídica. (…) o que sejam direitos individuais homogêneos, direitos coletivos e direitos difusos, com base no art. 81, parágrafo único, incisos I, II e III, do Código de Defesa do Consumidor, só pode ser determinado e, até mesmo, diferenciado mediante uma argumentação jurídica de aplicação adequada em cada processo jurisdicional, tendo em vista o caso concreto.”(OLIVEIRA, 2003, p. 135-136)

 

3. CONCLUSÃO

Os conceitos de direito e de interesse, como fora visto, apesar de se confundirem para a quase totalidade da doutrina nacional que segue a teoria de Rudolf Von Ihering, não poderiam jamais ter sido equiparados.

Isso porque o interesse acontece e se manifesta apenas na esfera privada do indivíduo, sendo fase anterior ao aparecimento e formação do direito. Esse, por sua vez, decorrerá sempre de um processo de validação, que poderá ser espontâneo, em que a sociedade reconhece aquele interesse do indivíduo como legítimo e merecedor do respeito da coletividade; ou formal, que consiste em um processo judicial pelo qual será definido o direito para o caso concreto.

A insuficiência da teoria de Ihering de que o direito seria o interesse juridicamente protegido ficou demonstrada, dentre outras razões, por não explicar como seria possível uma situação em que interesses individuais, interesses coletivos e interesses difusos entrassem em conflito diante do texto normativo, assim como não permite saber qual deles deveria prevalecer a priori.

A precisão terminológica é essencial para a construção de uma teoria geral do direito coletivo, uma vez que ideias e conceitos fluidos não são bases capazes de sustentar uma teoria por muito tempo.

Daí, então, o destaque dado à tese de Maciel Júnior(2004) que trouxe inovações na tentativa de elaboração de um teoria geral do direito coletivo.

Adotado o posicionamento doutrinário de que interesses não podem ser difusos ou coletivos, mas unicamente individuais, apresentamos os conceitos previstos na legislação brasileira (que utiliza os termos interesse e direito como sinônimos) de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, bem como as principais características de cada espécie segundo as lições de alguns doutrinadores.

Por fim, exaltamos a ideia de que a norma jurídica é incapaz de abarcar todas as situações que podem se enquadrar na classificação de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo, de tal sorte que se torna imprescindível a análise do caso concreto para melhor definição.

 

4. REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de defesa do consumidor. Lei n. 8078/90. São Paulo: Saraiva, 2010.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe Hemenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 294p.

CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, p. 473-486, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. at. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1997.

FIUZA, César Augusto de Castro. Crise e interpretação no direito civil da escola da exegese às teorias da argumentação.In: FIUZA, C.A.C., et. al. Direito civil atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 23-59.

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 462p.

MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria do direito coletivo: direito ou interesse (difuso, coletivo e individual homogêneo)? Revista Virtuajus, disponível em ‹ http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/1_2004/TEORIA%20DO%20DIREITO%20COLETIVO%20DIREITO%20OU%20INTERESSE%20DIFUSO%20COLETIVO%20INDIVIDUAL%20HOMOGENEO› Acesso em agosto de 2005.

MATA MACHADO, Edgar da. Teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995. 408p.

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Método, 2009.782p.

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual jurisdicional dos direitos fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n° 88, p. 109-146, dezembro de 2003.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. vol.I. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 463p.

VIGORITI, Vicenzo. Interessi collettivi e processo: la legittimazione ad agire. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1979. 331p.[12]

 


[1] Mestre em Direito Privado pela PUCMG; Especialista em Direito Processual pela Universidade do Sul de SC; Professora Universitária; Advogada.

[2] “O conceito de paradigma (…) vem da filosofia da ciência de Thomas Kuhn (KUHN, T.S.A estrutura das revoluções cientificas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, sobretudo da p.218 à 232). Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões-de-mundo, consubstanciados no pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro lado, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados.”(CARVALHO NETTO, 1998, p. 476)

[3] Sobre a mudança de paradigma do Estado de Direito para o do Estado Social, interessante citar: “Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material. (…) O direito privado, assim como o público, apresentam-se agora como meras convenções e a distinção entre eles é meramente didática  e não mais ontológica.”(CARVALHO NETTO, 1998, p. 480)

[4] Sobre a denominação interesses coletivos, temos: “a expressão ‘interesse coletivo’ é indistintamente manipulada para significar os interesses atinentes a um grupo ou categoria determinada, quanto para representar a referência aos interesses gerais, ou mesmo difusos.” Destaca-se que, durante todo esse trabalho, a terminologia direito ou interesse coletivo tem sido e será usada no primeiro sentido.

[5] “Os direitos de 1ª e 2ª geração ganham novo significado. Os de 1ª são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação, sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto.”(CARVALHO NETTO, 1998, p. 481)

[6] É o caso do autor italiano Vicenzo Vigoriti, em sua obra Interessi colettivi e processo, datado de 1979.

[7] Podemos citar, por exemplo, o art. 1º, inciso IV da lei da Ação Civil Pública (Lei n 7347/85); o art. 81 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8078/90); art. 3º da lei que trata dos direitos dos portadores de deficiência (Lei n. 7853/89), dentre outras.

[8] É o caso, por exemplo, de Ricardo de Barros Leonel (2002) que coloca o seguinte: “para o processo coletivo – pela ausência de distinção axiológica, pela falta de relevância prática, e pelo tratamento dado pelo legislador -, válido é o exame indistinto das posições ou situações concretas de vantagem protegidas juridicamente, como ‘direitos’ ou ‘interesses’ supra-individuais. As conseqüências no plano normativo substancial e processual, para a tutela jurisdicional, serão as mesmas.”(LEONEL, 2002, p. 89)

[9] Neste trabalho não trataremos das classificações de direitos materiais, processuais, públicos, privados, gerais, simples e nem dos chamados legítimos. Ressaltamos também que a terminologia direito coletivo aqui utilizada não se confunde com a terminologia direito coletivo lato sensu que abrange tanto os direitos coletivos stricto sensu, quanto os direitos difusos. Quando nos referimos aos direitos coletivos, estamos nos referindo aos direitos coletivos stricto sensu.

[10] “A doutrina tradicional, centrada na tese de Ihering, já referida nesse trabalho, sempre privilegiou o aspecto subjetivo como critério de classificação dos interesses difusos. A explicação dos interesses difusos sempre se fez a partir da indeterminação dos sujeitos, restando a circunstância de fato como um dado secundário da definição.(MACIEL JÚNIOR, 2004, p.41)

[11] Esse é o entendimento de grande parte da doutrina, podendo citar, por exemplo, José Carlos Barbosa Moreira citado por Leonel (2002) e Maciel Júnior (2004).