Ingryde Stéphanie Guedes[i]
1. Introdução
Este artigo apresenta algumas reflexões teóricas acerca da importância da participação da família no tratamento do dependente químico, e, para exemplificar, segue um estudo de caso clinico da cliente N, mãe do cliente F, que está em tratamento na CAMT (Clinica de Atendimento Multidisciplinar à Prevenção e Tratamento da Toxicomania).
De acordo com a 10ª versão da classificação internacional de doenças (CID-10), a presença, no último ano, de três ou mais dos quesitos abaixo, indica o diagnóstico de dependência. Acompanhe:
Forte desejo ou compulsão para consumir a substância.
Dificuldade de controlar o comportamento de consumir a substância em termos de seu início, término ou níveis de consumo.
Estado de abstinência fisiológico quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por: síndrome de abstinência característica para a substância ou uso da mesma substância com intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência.
Evidência de tolerância.
Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso e aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou consumir a substância ou para se recuperar de seus efeitos.
Persistência no uso a despeito da clara evidencia de consequências nocivas. [ii]
Segundo PRATA, SANTOS, citando FILHO (1995), nas últimas décadas do século XX, o uso abusivo de drogas aumentou significativamente, passando a ser encarado como um dos problemas mais sérios nesta área. E com essa expansão, os usuários de drogas deixaram de ser considerados como um tipo marginal no contexto social para ser identificados como nossos amigos, irmãos e colegas de trabalho. A palavra droga, no sentido científico do termo, designa todo e qualquer medicamento, e corresponde a qualquer substância química que pode alterar a função biológica e psicológica do usuário.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o uso de drogas pode ser classificado em seis categorias. São elas:
(a) uso na vida – esta categoria refere-se ao uso de qualquer droga por uma pessoa, pelo menos uma vez na vida; (b) uso no ano – neste caso, a pessoa utilizou substâncias psicoativas pelo menos uma vez nos doze meses anteriores à consulta ou à pesquisa; (c) uso no mês – esta categoria corresponde ao uso de droga(s) por uma pessoa, pelo menos uma vez nos últimos 30 dias que antecederam à consulta ou pesquisa; (d) uso frequente – neste caso, a pessoa utilizou drogas seis vezes ou mais nos últimos 30 dias; (e) uso de risco – padrão de uso ocasional que apresenta alto risco de danos futuros à saúde, tanto física quanto mental do usuário, mas que ainda não causou efeitos mórbidos acentuados seja em termos orgânicos ou psicológicos; (f) uso prejudicial – este tipo de padrão de consumo já provoca danos à saúde da pessoa, em termos físicos e/ou mentais. (GALDURÒZ,1997 citado por Prata; Santos)
Segundo Silveira (1996), o dependente de drogas é um indivíduo que está em uma realidade objetiva ou subjetiva insuportável. Essa realidade, o indivíduo não pode modificar e nem dela se esquivar; sendo assim, o que lhe resta é a alteração da percepção dessa realidade por meio de sua relação com a droga. Portanto é estabelecido um duo indivíduo – droga, e tudo o que não é pertinente nessa relação passa para o segundo plano na existência do dependente.
A família é a primeira unidade social à qual o indivíduo pertence, e é onde estabelece suas primeiras interações. Assim, a família, como um todo, é de fundamental importância para a estruturação do comportamento do indivíduo.
A dependência se constitui a partir de três elementos: a droga, o indivíduo, e o contexto sociocultural, em que se realiza esse encontro entre indivíduo e droga. Há um descontrole do uso da substância, que se manifesta pelo consumo persistente e compulsivo, mesmo na presença de problemas acarretados pelo uso. A dependência é acompanhada pela necessidade, cada vez maior, de obter o efeito desejado, e também da presença de sintomas físicos e psíquicos ao diminuir ou parar o uso.
Segundo Silveira, Gorgulho (1996, p. 235), vê-se a necessidade da família no tratamento do usuário de drogas, pois a família afeta e é afetada pelo familiar dependente de drogas. O sistema familiar funciona como um sistema total, e qualquer parte do sistema familiar está relacionada com as demais partes; e qualquer mudança em uma delas provocará mudanças nas demais, e, consequentemente, no sistema total .
Portanto, conforme Silveira, o atendimento familiar tem o objetivo de observar os efeitos que a droga gera na família, e, como as ações e interações dessa repercutem no dependente. O usuário de drogas, na maioria das vezes, tem vínculos afetivos com suas famílias, sendo que normalmente as pessoas mais atingidas pelos dependentes são os pais, cônjuges e filhos.
Considerando os dados acima, percebe-se a importância da família no tratamento do usuário de drogas, pois é necessário compreender não apenas o dependente, mas também o meio no qual este está inserido, de forma que haja um melhor resultado psicoterapêutico. A família adoece juntamente com o dependente, e, na maioria das vezes, não sabe como agir com o usuário, o que acaba repercutindo no tratamento do adicto, que, por sua vez, vê muita importância no apoio da família no seu processo de recuperação.
Exemplificando os dados acima, segue o estudo de caso clinico da cliente N.
Alguns dados descritivos de N:
N. é mãe de F., o qual faz tratamento na CAMT. A solicitação para realizar seu atendimento foi feita pela própria N, mãe do cliente F. N foi atendida apenas duas vezes e durante o atendimento apresentou-se de maneira bastante frágil, devido às suas dificuldades psicomotoras, causadas pelo Mal de Parkinson e também por problemas de audição, o que dificultava bastante o atendimento. Ela apresentou-se bastante abalada pela tentativa de suicídio de seu filho devido ao término de seu relacionamento com a namorada.
Durante as sessões, N chorava bastante e falava da sua dificuldade em se relacionar e conviver com as brigas de seu marido com seu filho. Os atendimentos foram mais de acolhimento devido ao fato da mesma ter bastante relatos a fazer.
Nos dois atendimentos, a cliente já, ao chegar ao consultório, começa a chorar muito e disse não suportar mais passar por tantas coisas ruins. Disse ter sofrido muita na sua vida, e que, desde muito cedo, trabalhou muito para criar os seus filhos. Acrescenta que seu filho F tentou suicídio porque a namorada terminou com ele, e tem medo que ele faça uma besteira, pois não quer que ele morra. Segundo ela, seu filho é um rapaz muito bom, só tem o problema das drogas, e por este motivo não combina muito com o pai, chegando mesmo a agredi-lo e ameaçá-lo. No dia em que houve a ameaça, o pai chamou a policia, e F., hoje, cumpre uma medida socioeducativa.
Segundo BINSWANGER (1967), existem três aspectos de ser-no-mundo: Umwelt (mundo ao redor), Eigenwelt (mundo pessoal) e Mitwelt (mundo interpessoal). Esses três aspectos são simultâneos do mundo e caracteriza a existência da pessoa como ser no mundo. Mitwelt é o mundo dos relacionamentos interpessoais, da partilha de valores e da interação comunitária.
Em N, percebe-se que o Mitwelt se destaca como muito comprometido, pelo fato de ter dificuldades interpessoais de se relacionar com o marido, e o mesmo acontece com o cliente F.
Conforme a abordagem Existencial Fenomenológica, e pelos relatos da cliente N., percebe-se que o cliente F. vive sua existência de forma inautêntica, não se responsabilizando por seus atos e escolhas. Mostra-se que é necessário possibilitar ao individuo, desde a infância, reflexões, críticas e escolhas, para que se torne livre para “ser” ao se conscientizar dos diferentes aspectos de sua personalidade. Dessa forma, o indivíduo, desde a infância, passa a viver de acordo com os valores escolhidos por ele mesmo, e, conseqüentemente, se responsabiliza por esses.
De acordo com a entrevista inicial anexada em seu prontuário, o cliente F. relata que sempre brigou com seu pai. Conta que, desde pequeno, escutava sua mãe dizer que a briga com o pai começou antes mesmo dele nascer, “na barriga já brigava com seu pai”. A cliente N. relata que o pai de F. nunca foi muito presente, ele “aprontava muito”, e teve uma vez que a filha o viu no carro com outra mulher. N. diz já nem ligar mais, porque já sofreu muito e a vontade que tem é de alugar uma casa e ir morar com os filhos. A mãe estabeleceu uma díade com o filho, desde quando ele era um bebê, contra o marido, pois ela não conseguia e ainda não consegue abrir conflito com este e, portanto é muito submissa a ele. Assim, N construiu uma relação simbiótica com o filho, na qual este se mostra muito dependente dela.
A maioria das pessoas que abusa do uso de drogas mantém estreito vínculo emocional com suas famílias e é o que acontece com F, pois seu relacionamento com a mãe é de grande dependência, visto que ela o acompanha sempre às sessões do tratamento e em outros lugares.
Assim, observa-se a importância do atendimento da cliente N., mãe de F., para maior compreensão do caso e, portanto, possibilitando a maior eficácia do tratamento. No entanto com a participação da família no tratamento de F., facilitará um melhor relacionamento entre os membros da família. N., mantém o filho muito dependente, e, sem o atendimento dela, não saberíamos da sua relação com o marido, e como isso influencia a vida do cliente F.
A única pessoa da família que se prontificou a participar foi a mãe. No entanto, não sabemos se ela levou o convite ao marido. Esse convite será feito a ele pessoalmente e à irmã também.
No entanto, a família, por ser um grupo social que se organiza por alianças afetivas, é de suma importância o seu envolvimento no acompanhamento do tratamento do usuário de drogas, pois a formação de um sintoma ou distúrbio está ligado aos vínculos constituídos entre os membros da família. Portanto ao considerar o uso de drogas como um sintoma ou distúrbio, é importante pesquisar qual seu papel, sua representação no grupo familiar e assim tornarão mais evidentes as interações entre os membros da mesma. Ackerman (1986)
REFERÊNCIAS
FEIJOO, An. a Maria Lopez Calvo. O Ser no mundo: ser-com e ser-próprio In___ A escuta e a fala em psicoterapia. São Paulo: Vetor, 2000. Cap.2.79
PRATTA, Elisângela Maria Machado; SANTOS, Manoel Antonio dos. Reflexões sobre as relações entre drogadição, adolescência e família: um estudo bibliográfico. Estud. psicol. (Natal) , Natal, v. 11, n. 3, 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/. Acesso em: 26 maio 2008. doi: 10.1590/S1413-294X2006000300009
PROPENSOS AO EXCESSO. O olhar adolescente: Os incríveis anos de transição para a idade adulta Revista Mente e Cérebro, p. 72-81, ed nº 2, 2008.
SILVEIRA FILHO, Dartiu Xavier; GORGULHO, Mônica. Dependência: compreensão e assistência ás Toxicomanias (Uma Experiência do PROAD). São Paulo: Casa do psicólogo, 1996.
NOTAS DE RODAPÉ
[i]Aluna do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Wânier Aparecida Ribeiro.
[ii] Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados á Saúde, 10 revisão, centro colaborador da OMS para a classificação de doenças em português, OMS Universidade de São Paulo. Edusp, 1993.