Ana Carolina Guedes Costa [i]
Introdução
Este artigo tem como foco de investigação a análise do fenômeno da dependência subjetiva, que corresponde a um comprometimento na relação com o Outro, em sujeitos usuários abusivos de substâncias psicoativas, correlacionando esse fato, mais especificadamente, com o estudo de caso de um cliente em atendimento na Clínica de Atendimento Multidisciplinar à Prevenção e ao Tratamento da Toxicomania do Centro Universitário Newton Paiva(CAMT).
Nos atendimentos psicoterapêuticos pôde-se evidenciar que se trata de um modo de ser existencialmente doentio, em que o cliente estabelece com sua esposa uma relação de dependência, cuja ocorrência vem permeando o comportamento desse sujeito, causando-lhe sofrimento.
No decorrer do desenvolvimento do artigo, foram coletados dados do cliente, adquiridos durante o processo de psicoterapia e formalizados em relatórios, observando a relação da dependência química com a dependência subjetiva, tendo como pressupostos para a articulação os fundamentos teóricos da fenomenologia-existencial, o que resultou em um estudo de caráter qualitativo e reflexivo.
Neste estudo, considera-se que os seres humanos possuem potencialidades que lhes são próprias (amor, liberdade, responsabilidade) e, como ser-no-mundo, só podem atualizá-las quando se encontram e entram em relação com o outro. Portanto o mundo é sempre um mundo compartilhado com os outros, existir é ser-com-o-outro(HEIDEGGER, 2005, p.170). Com isso, as relações entre os indivíduos devem ser observadas a fim de se obter uma compreensão melhor sobre a visão que o sujeito possui sobre si mesmo e o mundo em que vive, especialmente no processo de terapia. Com base nesse pensamento que foi analisado o estudo de caso clínico, sob a ótica fenomenológica-existencial, objetivando a relação da toxicomania com a dependência subjetiva.
1. Dependência subjetiva e ser-com
A dependência subjetiva corresponde a uma vivência inautêntica do indivíduo em relação ao Outro. Em certas situações, pode ser qualificada como a busca, muitas vezes autodestrutiva, de preencher o vazio emocional, de tamponar a angústia existencial, que é própria de cada indivíduo, por meio de uma relação de dependência e, até, submissão a um outro indivíduo. Segundo Ribeiro (2002/2003, p. 582):
A inautenticidade pode ser vivenciada por uma queda objetiva ou subjetiva. A queda subjetiva realizada por F. ocorre quando a pessoa vive em grande parte, em função dos ditames dos outros, deixando que estes determinem o seu modo de existir. Isso significa omitir-se da responsabilidade de ser-si-próprio.
Emocionalmente dependentes dos outros, esses indivíduos têm dificuldade de conhecer a sua realidade e de estabelecer os seus limites, podendo perder a integridade da sua identidade. Tendem a viver uma vida de ilusão, de sofrimento, de ansiedade e de angústia. Por uma certa dificuldade de conhecer os seus sentimentos, podem dizer não para si mesmos, deixando-se controlar pelo outro, perdendo, por vezes, o controle de sua própria vida (ROCHA, 2006).
Esse tipo de dependência, a subjetiva, caracteriza um indivíduo que tem muito medo de ficar sozinho, medo da rejeição, do abandono daquele que é sujeito de sua dependência(mãe, irmão, esposa etc.), podendo perceber o mundo de uma maneira distorcida e inadequada, para que esse abandono não venha acontecer de fato. A realidade pode ser tão distorcida, que, dentro da sua ilusão, acredita que a sua felicidade depende dos outros. Passa a ser um escravo, emocionalmente falando, das outras pessoas.
Quando há envolvimento com a toxicomania, as coisas podem se complicar, visto que há semelhanças entre a dependência química e a dependência subjetiva, no sentido que as duas convergem para a negação, raiva, angústia, depressão e desespero, além de ser relevante considerar que a progressividade das duas formas de dependência caminham lado a lado (ROCHA,2006).
É necessário que o adicto não só trate da sua adicção, mas também das suas relações interpessoais, sua forma de estar no mundo e de se relacionar com o outro.
2. O comprometimento do estruturante ser-com no caso clínico F.F.B
F.F.B, 57 anos, sexo masculino, casado, 4 filhos, motorista, atualmente desempregado, buscou a CAMT devido a dependência de tabaco. O cliente diz que quando está angustiado, guardando mágoas, não consegue expressar seus sentimentos, colocá-los para fora, ele fuma.
Ele afirma que perdeu o emprego, em 2002, e acredita que isso o desanimou, levando-o a beber e fumar mais. Ainda sobre o desemprego, F.F.B diz que sente falta de arrumar alguma coisa para fazer. Era motorista de caminhão e ônibus, mas foi demitido por causa do uso excessivo de álcool. Relata que essa situação é complicada pelo fato de não contribuir financeiramente em casa. Afirma ficar sempre em “cima do muro”, isto é, deixar que a esposa tome as decisões por ele em casa. Diz ter virado dona-de-casa, pois faz almoço, lava as vasilhas, arruma a casa, leva e busca as filhas na escola etc. sendo essa uma situação que não o deixa satisfeito. Sobre essas considerações, ele diz que os papéis das tarefas de marido e de esposa se inverteram, não estando feliz, o que afeta sua auto-estima.
F.F.B relatou um episódio de descoberta de uma traição conjugal, de forma detalhada, concluindo que está precisando de acompanhamento psicológico para não fazer “bobagem”, ou seja, brigar ou agredir a esposa. Afirma que ela ficou mansinha dentro de casa, nos primeiros dias, diante da reação agressiva dele. Frente ao ocorrido, o cliente parou de fazer os serviços em casa, bebeu uns quatro dias ininterruptamente, sem saber o que fazer. Emagreceu 4 quilos neste período. F.F.B afirma que chama sua mulher para conversar e ela evita o máximo que pode. Dessa forma, ela não vai embora de casa, permanecendo de uma maneira insatisfatória, pois não há diálogo entre eles.
Após dois meses, o tema é dominante nas sessões de psicoterapia e F.F.B inicia quase todos os atendimentos afirmando que nada mudou na sua relação com a esposa, mesmo tentando algumas investidas de diálogo para amenizar a situação.
F.F.B: Eu tento conversar com ela, mas ela não quer, sai de perto ou aumenta o tom de voz porque ela sabe que eu não gosto de discutir.
Estagiária(E): Você acredita que por ela saber disso ela aumenta o tom de voz para encerrar a conversa.
F: Sim. Ela sabe, não gosto de gritar, as crianças escutam e isto não é bom. Mas eu gostaria de resolver esta situação, pois não estou bem.
F.F.B demonstra, constantemente, certa dificuldade em tomar uma decisão em relação à presença da mulher em casa. Em alguns momentos, apresentou o desejo de que ela saísse de casa e em outros que ela ficasse.
F.F.B afirma, em determinada sessão:
Uma coisa é quando você é guiado e outra é quando você guia sua vida. Eu estou melhorando, era muito dependente dela, fazia tudo pensando em todos, menos em mim.
Essa afirmação remete a uma análise da fundamentação do Existencialismo, visto que, para o mesmo, o homem é visto como um sujeito, não um assujeitado. O homem não é. Ele apenas pode ser. Ele apenas pode vir a ser. E é a escolha de uma dentre muitas possibilidades que vai definindo o ser único que vai se tornando. Sendo assim, o homem tem total responsabilidade por sua existência.( Feijoo,2000)
No trecho citado abaixo, F.F.B diz de um assujeitamento ao desejo de um outro, que no caso é sua esposa, e reitera assumindo uma posição diferente ao escolher seguir seu desejo, se valorizar mais. E, dessa forma, reconhece sua liberdade para optar por ser aquilo que lhe convém.
Era sim. Muito dependente. Hoje eu percebo que tudo que eu fazia era em função dela, eu dava satisfação de tudo, até pra comprar um pão eu avisava. Eu não pensava nada em mim, não ligava se meu cabelo tava grande, a barba, se estava com a mesma roupa muitos dias.(…) Estou pensando mais em mim, mas ainda não me desliguei 100% dela e tenho medo porque não sei como seria se ela saísse, acho que poderia ser melhor pra mim, mas acho que pode ser ruim também.(Relatório de Atendimento do dia 4/7/08)
Visto como um ser de possibilidades e potencialidades, o homem é um DASEIN, um ser lançado no mundo, cuja característica é ser, eternamente, um vir-a-ser. Segundo Feijoo(2000,p.73):
Dasein (sein= presença; Da= aí), também denominado de pre-sença … ‘Ser-aí’ significa o ser lançado em um mundo, cuja mera presença implica na possibilidade completa e total da existência. Desta forma, cria a máxima do existencialismo, onde a existência tem prioridade sobre a essência. A essência do ser reside na sua existência, logo, o ser não pode jamais distinguir-se do seu modo de ser…Existir, enquanto Dasein ou pre-sença, implica em não ser passível de objetivação.
Para entender a relação entre F.F.B e sua esposa, é preciso, primeiramente, compreender que o mundo é sempre um mundo compartilhado com os outros (HEIDEGGER, 2005, p. 169-170). Os indivíduos têm a capacidade de compreender-se mútua e imediatamente, visto que são semelhantes, embora cada um apresente peculiaridades em seu perceber e em compreender as situações. No momento do encontro com seu semelhante, ocorre uma relação de reciprocidade, na qual ambos influenciam-se. Sendo assim, só sabemos quem somos como ser humano, convivendo com nossos semelhantes.
Para Heidegger, há dois modos de ser-no-mundo que consistem na existência autêntica (ser-para-si) e na existência inautêntica (ser-para-o-outro).
A autenticidade do indivíduo corresponde à sua forma de ser-no-mundo, por meio de ações verdadeiras consigo mesmo, de ser o que se é, e isso ocorre quando as palavras, os gestos, os atos de um homem condizem com sua verdadeira intenção. Já a inautenticidade diz de uma falsidade do indivíduo com ele mesmo, este tenta ser aquilo que não é, simulando seus atos. Essa condição pode ser fruto de uma relação mal estabelecida com o outro, ou seja, eu me perco nos desejos de um Outro e me coloco numa falsa posição. F.F.B, ao falar de sua relação com a esposa, explicita uma vivência inautêntica, pois entrega ao Outro, sua esposa, a responsabilidade sob sua própria vida. Ainda sobre a inautenticidade subjetiva ou dependência subjetiva, Lang(1986, p.121) afirma que:
A pessoa se preenche com outros, ou vive por intermédio de outrem, enquanto a própria vida fica estacionária. Anda em círculos, num turbilhão indo a toda parte sem chegar a lugar algum.
É interessante a consideração feita por Laing(1986, p. 129) a respeito do ser humano e sua relação com outros indivíduos:
Todo ser humano, criança ou adulto, parece exigir uma significação, isto é, um lugar na vida de outra pessoa. Adultos e crianças procuram posição aos olhos dos outros, uma posição que lhes permita mover-se.
Neste sentido, a cautela é sempre recomendada nas relações interpessoais para que, ao se relacionar com os demais, o indivíduo não abra campo para que seu desejo seja governado pelo Outro. Afinal, o outro não é, nem deve ser, responsável pela minha vida, meus projetos e escolhas, isso seria um existir de forma inautêntica ou, até mesmo, a morte de meu ser como possibilidade de escolha, de tomadas de decisão, liberdade e, logo, responsabilidade.
F.F.B se encontrava nessa posição de dependência subjetiva, em que sua existência estava voltada ao que lhe era imposto, sem críticas e indagações, tornando-se alheio a si mesmo. Entretanto, com o processo de psicoterapia, o cliente está construindo um modo de ser mais autêntico, que o possibilitou, inclusive, melhorar sua auto-estima e autoconfiança.
REFERÊNCIAS
FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo. A Filosofia Existencial e a Analítica da Existência. In____ A escuta e a fala em psicoterapia. São Paulo: Vetor, 2000. Cap.2. p.73-80.
HEIDEGGER,Martin. Ser e tempo. Petrópolis:Vozes, 2005. Parte I.
LAING, R.D. Posições falsas e insustentáveis. In:____ O eu e os outros: o relacionamento interpessoal. (tradução de Áurea Brito Weissenberg). Petrópolis: Editora Vozes, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1986. Cap.IX. p.119-142. (Coleção Psicanálise)
ROCHA, Anabela. Co-dependência. Disponível em: http://damnqueer.blogspot.com/2006/07/co-dependncia.html. Acesso: 01 jul. 2008.
NOTA DE RODAPÉ
[i] Aluna do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Wânier Aparecida Ribeiro.