Alice Aparecida da Silva Ribeiro[i]
Dentro do hospital geral, o analista é convocado a ocupar um lugar diferenciado, lugar que é marcado por uma escuta particular daquilo que o sujeito tem de mais precioso, a sua subjetividade. É a partir dessa escuta que o analista possibilita ao sujeito elaborar sua experiência re – significando questões como a morte, a doença, a dependência do outro para os cuidados pessoais, a ausência da família, a perda da integridade do corpo etc.
O lugar do hospital implica em uma escuta diferenciada, determinada pelo tempo de internação do sujeito. É preciso astúcia por parte do analista para que, em apenas um encontro, seja possível ouvir daquele paciente adoecido a voz do sujeito.
É preciso um misto de agilidade e cautela. Agilidade no sentido de ganhar o tempo, que nunca se sabe de quanto será, desenvolvendo um trabalho produtivo. E cautela quanto à natureza e oportunidade de cada intervenção, só contando com o cálculo da clínica a cada passo que se dá, pois o trabalho pode ser interrompido a qualquer momento, por motivos externos a seu curso. (MELLO,1995, p.46)
É no manejo da transferência que o analista consegue que o sujeito se apresente. Em seu texto sobre “As cinco lições de psicanálise” Freud (1996a, p.61) vai falar sobre a transferência como:
Todas as vezes que tratamos um paciente neurótico, surge nele um estranho fenômeno chamado “transferência”, isto é, o doente consagra ao médico uma série de sentimentos afetuosos, mesclados muitas vezes de hostilidade, não justificados em relações reais e que, pelas suas particularidades, devem provir de antigas fantasias tornadas inconscientes. Aquele trecho da vida sentimental cuja lembrança já não pode evocar, o paciente torna a vivê-lo nas relações com o médico (…).
A transferência funciona como se o sujeito estivesse preso a certos estereótipos, e que não somente em análise, mas em todas as relações, se estabelece uma reedição das cenas, objetos e afetos infantis, caracterizando uma compulsão à repetição.
Segundo Maurano:
A transferência é a aposta de que há que existir um saber que virá dar conta dessa falta do encontro perfeito, desse furo presente na relação do sujeito com o Outro (…). O modo como falamos, o modo como nos apropriamos das palavras e escolhemos significantes, testemunha uma organização de nossa subjetividade que é comandada por esse Outro, por esse referente. O inconsciente se justifica pelos efeitos da fala sobre o sujeito (MAURANO, 2006, p.28-29).
O inconsciente é marcado pelo discurso do Outro, o que faz com que sejamos estranhos para nós mesmos, uma vez que o que nos determina é o inconsciente. A transferência então acontece quando o sujeito supõe ao analista esse saber sobre si, esse saber que falta ao sujeito. Segundo Lacan (1964, p.220), desde que haja em algum lugar, em quem quer que seja, analista ou não, o sujeito suposto saber, a transferência está estabelecida.
O contexto hospitalar exige do analista um manejo da transferência diferenciado já que o suposto saber é a instituição, contudo, em alguns casos, é possível estabelecer um vínculo transferencial, que vai se fortalecer ao longo dos atendimentos.
No momento em que a estagiária se apresenta como membro do “serviço de psicologia do hospital”, algo da transferência do paciente com o hospital se endereça à estagiária e assim é estabelecido um primeiro vínculo de abertura para a fala.
Tomemos como exemplo o caso de Rodrigo, uma criança de 12 anos, magérrima, que é portadora de um sarcoma e estava em tratamento quimioterápico, internada em um hospital de Belo Horizonte, porque apresentara picos de febre após suas sessões de quimioterapia.
No momento em que a estagiária entra no quarto, Rodrigo estava sentado junto de sua mãe, assistindo televisão. Chamou a atenção sua cabeça raspada e uma cicatriz enorme em seu braço direito. Rodrigo diz, sem demora o motivo de sua internação, que tem um sarcoma e faz tratamento de quimioterapia. De forma muito positiva, fala, insistindo sempre, que está tudo bem. E ao ser perguntado sobre como estava sendo a internação, mais uma vez Rodrigo insiste em dizer “ta tudo ótimo, estou bem!”
Percebemos aqui um traço claro de resistência em Rodrigo para falar sobre sua doença e toda a angústia que ela implica. Segundo Maurano (2006, p. 19), o analista analisa a transferência, lugar onde aparecem as resistências, que, quando são acolhidas, podem ser trabalhadas. O paciente resiste em se abrir e não dizer sobre si.
Não acreditando que estava tudo bem com Rodrigo, a estagiária decide insistir um pouco mais. Sua mãe, que até então acompanhava a conversa, levanta-se dizendo que iria dar uma volta, e que Rodrigo poderia se sentir mais à vontade para falar em sua ausência.
Rodrigo segue seu relato contando sobre como sua mãe percebeu o “caroço” em seu braço, em novembro de 2007, mas só em março deste ano descobriu que estava com câncer. Apesar de seus pais já saberem desse diagnóstico, Rodrigo diz que não ligava a palavra sarcoma a câncer, e que isso começou a fazer sentido para ele quando percebeu seus cabelos caindo.
Ao ser perguntado pela estagiária como foi a sensação dos cabelos caindo, Rodrigo diz que sempre quis raspar os cabelos e que para ele o pior são os enjôos causados pela quimioterapia. Rodrigo diz à estagiária como foi difícil escutar dos médicos que teria de amputar o braço e, de forma autoritária, se opôs dizendo que jamais faria isso.
A idéia de amputar um dos membros do corpo é recebida por Rodrigo com horror. A angústia de castração é agora experienciada no medo de se perder uma parte do corpo.
O conceito de castração (…) designa uma experiência psíquica completa, inconscientemente vivida pela criança por volta dos cinco anos de idade, e decisiva para a assunção de sua futura identidade sexual. O aspecto essencial dessa experiência consiste no fato de que, pela primeira vez, a criança reconhece, a preço da angústia, a diferença anatômica dos sexos. (NÁSIO, 1997, p.13)
A criança, que até então vivia a sensação de onipotência, depara-se com a castração e percebe que o corpo tem limites. Essa experiência não é única, será revivida e renovada ao longo de nossas vidas.
Rodrigo fala sobre como seus pais receberam a notícia de sua doença e, de forma emocionada, conta que ver a tristeza nos olhos de seu pai foi o mais difícil, “eu sou o xodó do meu pai!”, diz ele. O braço de Rodrigo, que até então permanecia imóvel, se ergueu para enxugar as lágrimas silenciosas. Segue o silêncio. Há uma ferida narcísica, na qual o ideal de um filho saudável se desfez, com a constatação do corpo doente.
Nesse momento, a dor e a angústia de Rodrigo, perante o seu adoecimento, puderam ser ditas a partir de uma transferência estabelecida entre a estagiária e Rodrigo. Há um acolhimento desse sujeito, que, para suportar sua angústia, decide encarar o adoecimento de outra forma, não se deixando esmorecer. Contudo algo subjetivo dessa dor precisava ser simbolizado e falado.
Rodrigo, em uma única sessão, pôde falar. Falar de suas dores, de sua doença, significar, re – significar. Percebemos que não em função de um tempo cronológico, mas, apesar dele, o tempo do sujeito pôde emergir. De acordo com Quinet (1951), é no atendimento breve que acontecem as entrevistas preliminares, no qual se torna possível fazer uma retificação subjetiva, como uma interpretação do analista.
Quinet (1951, p.32) esclarece que “na retificação subjetiva há, portanto, a introdução da dimensão ética – da ética da psicanálise, que é a ética do desejo – como resposta à patologia do ato que a neurose tenta solucionar escamoteando-a.” Segundo o autor, o analista, por meio da fala do sujeito, aponta a importância da responsabilização das suas escolhas e de como ele está submetido ao desejo do Outro.
Nossos pacientes não vivenciam um processo analítico clássico, mas sabemos dos efeitos que a escuta analítica pode produzir, principalmente em momentos de urgência em que o sujeito elabora parte de sua história, ressignificando-a (GRANHA, 1996, p.105).
Na tentativa de fazer emergir um sujeito, o analista intervém, oferecendo sua escuta para que esse possa transformar a urgência psíquica em demanda, e assim poder elaborar suas questões subjetivas.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. As cinco lições de psicanálise. Tradução de Jayme Salomão. In:_____ . Cinco Lições de Psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1910). Rio de Janeiro: Imago, 1996a. V. XI, 16-65. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).
GRANHA, Maria Tereza. Reflexões sobre a prática do psicanalista no hospital geral. In:_____. Psicanálise e Hospital. Rio de Janeiro.: Revinter, 1996. p 103-110.
LACAN, Jacques. Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem. In: _____ Seminário 11: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ,1964. Cap. XVIII, p. 218-230.
MAURANO, Denise. A transferência: uma viagem rumo ao continente negro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2006.
MELLO, Carlos Antônio Andrade. Mas… o que faz o psicanalista no hospital? Revista de Psicanálise, Belo Horizonte, n.39, p 40-47, Maio -1995.
NASIO,Juan David. Lições sobre os 7conceitos cruciais de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:Jorge Zahar ,1997,p. 13-30.
QUINET, Antônio. As funções das entrevistas preliminares. In: _____ As 4+1 condições da análise. 8ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1951, p.13-34.
NOTA DE RODAPÉ
[i] Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Luiza Angélica.