Marcela Diegues Sarti Silva[i]
Margaret Pires do Couto[ii]
RESUMO
Este artigo fundamenta-se na prática do Estágio Supervisionado IV oferecido pela Clínica de Psicologia Newton Paiva. O objetivo é discutir o que é o sintoma da criança e como se apresenta na clínica. Além disso, indaga-se qual a posição do analista na clínica da criança. Para essa discussão, partiu-se do conceito psicanalítico de sintoma da criança, trabalhado por Lacan no seu texto “Nota sobre a criança”.
Palavras-chave: Sintoma da criança. Psicanálise.
Laura[iii] é uma menina de oito anos de idade, filha de pais separados. A queixa da mãe, que vem se repetindo desde a inscrição na clínica, refere-se ao medo de que a filha se ressinta pelo fato de seu pai não morar com ela, de não estar presente em sua vida, como os pais de outras crianças.
No decorrer dos atendimentos, Laura conversa bastante, é brincalhona, reclama das médias perdidas e do excesso de dever de casa, porém não aparece a queixa trazida pela mãe. Aliás, a criança quase não fala sobre o pai e a qualquer questionamento sobre ele Laura responde de forma sucinta e não rende o assunto. Apenas uma única vez, Laura diz que o final de semana foi “ruim”[iv], pois teve aula no sábado e não pôde ver o pai naquela semana[v].
Em um dos atendimentos, Laura relata que faz de tudo para agradar a mãe, mas que para esta nada está bom. Além disso, Laura acostumou-se a levar duas pastas para os atendimentos, cada uma com folhas, estojo e lápis de cor. Indagado o porquê de duas pastas, ela respondeu que uma era da sua mãe e a outra do seu pai.
A partir das conversas na supervisão, foi estabelecido que se deveria desvalorizar as pastas, ou seja, não dar importância a elas como era de costume. Essa orientação baseou-se na hipótese de as pastas representarem os próprios pais, não podendo haver um entendimento entre ambos. Atualmente, Laura não leva as pastas para o atendimento, a cada dia ela traz uma novidade, maquiagem, esmaltes ou bonecas.
Durante as entrevistas com a mãe de Laura, foi escutado que a queixa trazida à clínica era uma demanda dela, a qual tem dificuldade em lidar com as questões da separação, principalmente, no que tange à divergência de comportamento entre ela e o ex-namorado. Ademais, verificou-se que a mãe de Laura não faz distinção entre o pai da paciente e o homem que existe além deste pai, o que provoca conflitos na relação entre os três, mãe-criança-pai.
No último atendimento com a mãe de Laura, apareceram queixas pessoais. Se antes todo o discurso da mãe estava voltado para as questões da criança, agora a mãe diz de si, da mulher que existe por trás da mãe. Dessa forma, pode-se questionar de quem era a demanda? Será que Laura apresenta algum sintoma? O que cabe ao analista em uma situação como essa?
Para tentar esclarecer tais questões, partiu-se do conceito de sintoma da criança. Segundo Lacan (1969), o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar, a saber, ou o sintoma revela a verdade do par parental ou ele responde ao fantasma da mãe. De tal modo, compreende-se que o sintoma da criança é uma maneira encontrada pela própria criança de inscrever-se no discurso familiar. Ainda, conforme Fléchet[vi] (1989, apud FERREIRA, 2000), o sintoma da criança não tem um enunciado próprio e sim, encarna o dizer dos Outros que trazem a queixa.
Laura encontra-se nessa posição de resposta, de atender a demanda do Outro, da mãe. Ao dizer: “Faço tudo para agradar ela[vii], mas para ela nada está bom.”, pode-se interpretar que Laura responde ao que há de sintomático na estrutura familiar, pelo fato de que não há relação sexual, ou seja, entre os pais algo sempre tropeça. Outrossim, Laura encarna o sintoma da mãe, apresentando, no brincar, a dificuldade do encontro entre a mãe e o pai, o que por sinal, é um receio da mãe.
Laura ocupa o lugar de sutura da falta da mãe, mas fracassa nisso. A mãe abdicou das amizades, da faculdade e até do dinheiro em prol da filha. Queixa-se que não tinha outra opção. Surge, na fala, o sintoma da mãe. Um sintoma não significado por Laura, apenas respondido.
A função da análise, nesse sentido, é deslocar a criança do lugar que ela ocupa, bem como proporcionar que o sujeito construa seu próprio fantasma e encontre a causa do seu desejo. (FERREIRA, 2000) Dessa forma, na clínica da criança, é importante a presença dos pais para que se possa implicá-los “naquilo que se queixam.” (FERREIRA, 2000, p.63) No caso de Laura, escutar a mãe possibilitou a implicação dela (a mãe) na queixa, diferenciando o que é dela e o que é de Laura e surgindo, então, uma demanda de análise da mãe.
O caso de Laura, juntamente com a orientação lacaniana, mostra como é tênue a relação entre o sintoma da criança e o sintoma dos pais, uma vez que o sintoma da criança revela o que há de não dito no discurso parental. A verdade velada é desvelada através do sintoma da criança. Portanto, a criança apresenta o que há de insuportável no discurso parental, sendo então, levada para análise. O dever ético do analista é diferenciar qual é o sintoma da criança e qual o sintoma dos pais. (FERREIRA, 2000, p. 121)
Neste caso, não se sabe ao certo qual o sintoma de Laura, contudo ela está saindo dessa posição de resposta ao sintoma do Outro para construir seu próprio sintoma. Ou seja, segundo Laurent, Laura deixa de se perguntar “o que quer minha mãe?”[viii] e começa a se perguntar “o que quer a mulher?”[ix].
A mãe de Laura iniciou um atendimento psicológico e implicou-se nas queixas trazidas, percebendo que o motivo que levou Laura ao atendimento é uma questão sua (da mãe). No entanto, coube escutar tanto o sintoma da filha quanto o da mãe e possibilitar a construção do sintoma da criança.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Tânia. As estruturas clínicas. In: ______. Escrita na clínica: psicanálise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.47-84.
FERREIRA, Tânia. A posição dos pais na psicanálise com crianças. In: ______. Escrita na clínica: psicanálise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.111-126.
LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 369-370.
LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Revista Opção Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.
[i] Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
[ii] Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
[iii] Nome fictício dado à cliente, a fim de preservar sua identidade.
[iv] Fala da paciente Laura
[v] O pai de Laura há vê aos sábados, caso ambos não tenham compromissos.
[vi] SOUZA, Auduísio (org). FLÉCHET, Martine Lerude. Algumas observações sobre os sintomas da criança, Psicanálise de crianças – interrogações clínico/teóricas, v.1. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
[vii] A mãe.
[viii]LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Revista Opção Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.
[ix]LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Revista Opção Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.