Arlene Vieira de Faria Coelho[i]
Margaret Pires do Couto[ii]
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo articular o caso clínico Ricardo³ com a teoria psicanalítica, principalmente a de orientação lacaniana. Nesta articulação apresentar-se-á o entrelaçamento do sintoma da criança às fantasias parentais, pois, a criança com seu sintoma responde ao que há de sintomático na estrutura familiar. Sendo assim, o sintoma da criança inclui a ação da metáfora paterna.
Palavras-chave: Sintoma. Castração. Função Paterna.
“Não quero mais ir ver meu pai, porque ele não me protege”. Esta fala é de Ricardo, uma criança que não conseguia aprender a ler e escrever, porque não enxergava o que a professora escrevia no quadro. No entanto, os exames clínicos oftalmológicos, não diagnosticaram problemas orgânicos. Em virtude da ausência de anomalias visuais, Ricardo foi encaminhado, pela escola, para atendimento psicológico.
A queixa apresentada pela mãe na entrevista de acolhimento foi a de que Ricardo está com dificuldades para aprender, porque não enxerga o que é escrito no quadro. Nos dizeres da mãe: “Quando Ricardo entrou para a escola aos cinco anos, apresentava um bom desempenho, mas, na nova escola, as professoras, que são muito exigentes e incompreensivas, começaram a queixar que ele não presta atenção nas aulas e, por isso, está com dificuldades para aprender a ler e escrever. O problema é que ele senta longe do quadro, por isso não enxerga o que é escrito no quadro, mas as professoras não compreendem que é por isso que ele não aprende”.
Segundo a mãe, conforme relatado na entrevista inicial, quando conheceu e uniu-se ao pai de Ricardo, ambos já tinham filhos de outro relacionamento, por isso o marido não via necessidade de eles terem mais filhos. Mas, segundo diz, ela se descuidou e ficou grávida. O marido não quis saber da gravidez e exigiu o aborto. Por não ter coragem e não saber como fazer um aborto seguro e acreditando que se fosse um menino, o marido iria amá-lo e se tornaria um homem dócil, ela não atendeu sua solicitação.
A mãe acrescenta que seu marido era um homem muito violento e batia muito nas crianças, quando ela estava trabalhando, até mesmo em Ricardo, desde que ele era bebê. Por não saber o que fazer para proteger os filhos, “ela fingia não ver” os hematomas deixados, pelo marido, nos corpos dos filhos.
Ricardo, de acordo com a mãe, era uma criança quieta e obediente, mas, atualmente, às vezes, tem crises de agressividade. Ela não sabe o porquê da sua agressividade, mas acredita que é porque ele sente falta do pai. […] O pai de Ricardo foi preso por tentar abusar sexualmente da enteada adolescente. Após cumprir a pena, ele foi proibido de se aproximar da enteada, por isso não pode ir ver Ricardo. […] Ricardo dormia com a irmã, mas, depois da prisão do pai, passou a dormir com a mãe, porque passou a ter medo do escuro.
Nas primeiras sessões, Ricardo chegava ao consultório, muito angustiado e pouco falava. Durante as brincadeiras, a morte era o tema principal de suas poucas falas: “Este é o chefe dos bichos. O que ele manda fazer, os outros obedecem, senão ele mata. […] O homem mandou os caras baterem os aviões nos prédios, para suicidar. Vi muita gente, que estava pegando fogo, pulando pelas janelas. […] Minha irmã mandou prender meu pai. Ela disse que ele fez uma coisa, mas ele não fez. […] Meu pai me contou que lá na prisão ninguém pode olhar no olho do outro, porque pode morrer. […] Na prisão, tem muita gente morta. Vi muitos corpos queimados e muitas cabeças no chão. […] Tenho medo do escuro, então, quando sinto medo, fecho os olhos, para não ver. […] Não quero mais ir ver meu pai, porque ele não me protege.”
A última fala de Ricardo, rica em significantes, remete à queixa inicial trazida pela mãe: “ele diz que não vê” e anuncia um pai que falha na função de protegê-lo. Mas, do que esse pai não protege? A que o sintoma de Ricardo responde? São a estas perguntas que este estudo se propõe, fundamentado na teoria psicanalítica, a discutir.
Analisando o discurso da mãe e o sintoma de Ricardo, percebe-se a existência de uma intrínseca relação entre ambos. Isso se explica porque, segundo Lacan (1969, citado por Bernardino, 1997), há um entrelaçamento do sintoma da criança às fantasias parentais. A neurose dos pais tem um papel fundamental na eclosão dos sintomas da criança, pois esta fixa sua existência num lugar determinado pelos pais em seu sistema de fantasias e desejos. A criança encena, “fala” de algo do real da historia dos pais que está fora de suas cadeias associativas. Com seu sintoma, a criança responde às falhas que encontra na estrutura familiar.
Segundo Lacan (1969, citado por Couto, 2011), mesmo que o sintoma se afirme como emergência do Real no corpo da criança, ele é um dizer que pertence ao campo simbólico daqueles que trazem a queixa. O sintoma da criança pode ser o representante da verdade do par parental ou se constituir para satisfazer a fantasia materna, obturando a falta onde se especifica o desejo materno. No sintoma, “os significantes fundamentais da história do sujeito provenientes do Outro se fazem presentes” (COUTO, 2011, p. 97). Nos dizeres de Lacan, (2003), em seu texto “Nota sobre a criança”:
A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o “objeto” da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. (LACAN, 2003, p. 369)
Visto que o sintoma da criança anuncia um fracasso na mediação da função do pai na relação mãe-criança, Tendlarz (1997) menciona que o sintoma da criança, algumas vezes, não representa somente a verdade do discurso da mãe, mas inclui a ação da metáfora paterna. Então, para se entender o sintoma da criança, primeiramente, se faz necessário compreender a ação da metáfora paterna.
O pai para a psicanálise, conforme Chaves (2008), não é o pai progenitor. O pai é uma função, um representante da Lei que interdita a folia inebriante da díade mãe-bebê. A Lei que instaura o espaço facilitador das operações simbólicas. Logo, a função paterna marca a entrada da criança na trama edípica ao introduzir o terceiro elemento, o pai, na relação mãe-criança. A entrada do pai nessa relação salva o filho de ser, para sempre, o objeto de desejo da mãe ao convocar mãe e filho a reconhecerem que um não completa o outro. A entrada do pai provoca uma estrutura, convoca à cena edípica.
O pai, segundo Lacan (1957-1958, citado por, Couto, 2011), no complexo de Édipo, intervém em diversos planos, porém sua intervenção central é proteger o filho do risco de devoração, articulando o princípio do complexo de Édipo à lei da proibição do incesto. É tarefa da função paterna é dar condição para que o filho possa ser desejante.
O pai biológico, conforme Flecha (2004) é um, entre os outros possíveis, operador que organiza a cadeia de significantes e barra a satisfação incestuosa mãe-criança ao unir o desejo à lei. Com a ausência em sua função, a lei não vigora. Quando esse pai falha em cumprir sua função de ser agente da castração, de acordo com Bernardino (1997), o sintoma da criança se apresenta como uma ferramenta para barrar o gozo e fazer surgir o sujeito do desejo.
Avaliando o sintoma de Ricardo atrelado ao que falta a essa mãe que “não vê e não sabe” e ao “não ver e não saber” de um pai gozador, que falha em proteger o filho, pode-se inferir a existência de uma articulação entre seu sintoma e o declínio da função paterna.
A psicanálise, principalmente a de orientação lacaniana, entende a alienação da criança ao discurso da mãe como a expressão do fracasso da articulação dos significantes parentais e da lei. Neste sentido, o sintoma é um dispositivo que protege a criança de permanecer alienada à mãe. Portanto, pode-se pensar o sintoma de Ricardo como uma resposta ao que há de sintomático nessa estrutura familiar.
Nos últimos atendimentos, realizados com Ricardo, ele falou do delito do pai e manifestou alguns desejos: “Hoje vou brincar com os tijolinhos. Acho que ainda sei construir um castelo. […] Vou fazer um buraco aqui e um aqui, mas não vai cair, porque eu enxergo bem e sei onde posso mexer. Vamos jogar varetas, […] eu pego muitas, porque vejo as que estão livres e sei como fazer para pegar a de cima, sem mexer as outras. Quando você voltar de férias, vamos montar um quebra cabeça”.
Durante o tratamento psicanalítico de Ricardo, foi possível verificar o deslocamento do sintoma de um significante a um outro significante, ao possibilitar que seja dito o que ainda não foi colocado em palavras.
REFERÊNCIAS
BERNARDINO, Leda Mariza Fischer. Sim, Toma! In: _____ (org.). Neurose infantil versus neurose da criança. Salvador: Algama, 1997. p. 53- 65.
COUTO, Margaret Pires do, O fracasso escolar e a família: o que a clínica ensina? Belo Horizonte: Faculdade de Educação/UFMG, 2011.
CHAVES. Maria Prisce Cleto Teles. Ausência paterna e o impacto na mente da criança. 2008. Disponível em: http://www.fundamentalpsychopathology. org/8_cong_anais. Acesso em: 15 abr. 2012.
FLECHA, Renata Dumont. Freud e a função paterna: psicanálise e religião. Belo Horizonte: Newton Paiva, 2004.
LACAN, Jacques, 1901-1981. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.369-370.
TENDLARZ, Silva Elena. De que sofrem as crianças? A psicose na infância. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997.
[i] Acadêmica de nono período do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
[ii] Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva