“O ser participa da formação do seu futuro, em virtude da sua capacidade de conceber e reagir a novas possibilidades e trazê-las para fora da imaginação, experimentando-as na realidade”.
Rollo May

 

Selma de Oliveira Fróes[i]
Raquel Neto Alves[ii]

 

RESUMO

A elaboração deste trabalho se deu a partir de alguns casos clínicos atendidos na Clínica de Psicologia Newton Paiva, onde alguns clientes relataram vivências de relacionamentos virtuais e como esses estavam presentes com tamanha intensidade em sua vida. O objetivo deste trabalho, portanto, é descrever como a internet favorece um isolamento do mundo real.

Palavras-chave: Relacionamento virtual, Relacionamento real, Ser com os outros.

 

Para compreender como ocorre o processo de priorizar os relacionamentos virtuais, cabe relatar um encontro entre psicoterapeuta e cliente. Com o propósito de preservar a identidade da cliente, seu nome será substituído por Lúcia.

Lúcia, 31 anos, separada, chega à sessão dizendo ter procurado atendimento psicoterápico, pois se encontra deprimida. Casou-se aos 18 anos e teve uma filha, após um ano de casada, separou-se devido à imaturidade de ambos. Após o término do casamento, voltou a morar com os pais e duas irmãs mais novas. Passado um período, conheceu um rapaz mais novo, com o qual  viveu um relacionamento intenso, porém a família do rapaz não aceitava o relacionamento de ambos pelo fato de ela ser mais velha e ter uma filha. O rapaz, por sua vez, não suportou a pressão da família e eles romperam o relacionamento, bem no momento em que Lúcia estava prestes a realizar uma cirurgia para retirada de um tumor no ovário. Segundo a cliente, após essas perdas, ela se deprimiu e se fechou, e como válvula de escape encontrou o emprego e a internet. Após o término do relacionamento, a mesma entrou em depressão e diz que os problemas foram aparecendo, ela não estava conseguindo dar conta, e os relacionamentos também ficaram comprometidos, pois ela relata ter medo de vivenciar novamente a situação passada. “Eu até me envolvo, mas não amo” (SIC).

Em uma das sessões, Lúcia chega dizendo que conheceu um rapaz por meio do MSN[iii] e ambos começaram a conversar sobre diversos assuntos. Esse rapaz mora em Maceió, e eles trocaram fotos e ela ficou muito encantada com a beleza do rapaz, diz: “ele é muito simpático, agradável e sempre fazia elogios fazendo com que eu me sinta bem” (SIC). Ele cogitou a possibilidade de um encontro, mas ainda não aconteceu, pois, segundo a cliente, é devido à distância entre ambos. A cliente pontua que está muito envolvida com esse rapaz, mesmo sabendo que ele mora em outro estado e possui uma vida fora do virtual. Porém, ela está tão empolgada com esse relacionamento virtual, que, muitas vezes, não vivencia um relacionamento real. “Eu estou deixando de fazer muitas coisas na vida real por ficar muito tempo na internet, mesmo sabendo que isso não é certo” (SIC).

A partir dos relatos apresentados por Lúcia, surgiu o interesse em compreender que lugar esse outro real ocupa na sua vida e quais os possíveis sentidos de um relacionamento virtual.

O mundo contemporâneo apresenta um gigantesco avanço tecnológico, e a internet faz parte desse avanço, principalmente relacionada às redes de relacionamentos. Proporciona a uma quantidade imensa de pessoas de diversas faixas etárias, países e idiomas diferenciados se conectarem e se conhecerem a cada instante. A era da informação está influenciando de uma forma direta as relações interpessoais.

A internet proporciona uma facilidade na comunicação, seja com pessoas próximas ou até mesmo com pessoas que estão a longa distância, sem muitas vezes se conhecerem pessoalmente. A partir de então, os laços afetivos vêm se tornando cada vez mais comprometidos e influenciados por essas novas possibilidades de relacionamento. A internet favorece uma nova forma de relacionamento, como o e-mail, as salas de bate papo, o MSN, o Facebook, Twiter, Orkut e a webcam, os quais facilitam a comunicação e o relacionamento virtual. Cria-se então o relacionamento virtual, e, ao mesmo tempo, compromete os relacionamentos reais.

De acordo com Romero (2002), de um modo fenomenológico existencial, o homem está em permanente interação com seu ambiente; nesta interação homem-mundo, os eventos, os objetos e as pessoas que configuram este relacionamento têm um certo grau de ressonância na existência da pessoa, ressonância que estrutura a subjetividade de maneira que afeta todo seu ser, em algum grau.

“O outro fornece um modelo para a construção da imagem de si. Por ser outro, contudo ele também revela que a imagem de si comporta uma parte integral de alteridade”. (AUGRAS, 1993, p.56)

Para Augras (1993), o homem é definido como um ser social e seu crescimento individual depende, em todos os aspectos, do encontro com os demais. Ainda segundo a autora, o mundo humano é essencialmente mundo da coexistência.  “[…] Buber diz se então que o homem é um ente de relação ou que a relação lhe é essencial ou fundamento de sua existência […]” (BUBER, 2001, p. 44).

Mesmo sem a presença do outro, o ser no mundo é ser com os outros. Estar só é estar privado do outro, num modo deficiente da coexistência que constitui uma das estruturas do ser no mundo. O conhecimento do outro, pois, supõe a compreensão da existência com o ser da coexistência. (Augras apud Heidegger, 1993).

Para Romero (2001), o relacionamento entre dois ou mais indivíduos, em termos de interação, constitui o interpessoal. A formação da pessoa passa por toda uma trama de relacionamentos interpessoais, nessa trama, pauta-se o estilo de relacionamento predominante do sujeito e o modo de interiorizar o outro.

A cliente cria para si uma relação para além do real com esse outro que não está presente no plano real, esse está no virtual e na imaginação da cliente. […] Romero afirma que pela imaginação estabelecemos um modo peculiar de relação com o mundo: a invenção do possível como prenuncio de uma outra realidade […] (ROMERO, 2001, p.307).

Ainda segundo o autor, real é tudo aquilo que é de nossa incumbência, é o que nos toca e nos afeta de uma maneira inevitável, são realidades que configuram nosso mundo, o corpo, os relacionamentos interpessoais, o trabalho e as obrigações que a vida prática nos impõe. A realidade é um conjunto de  relações que configuram o mundo do sujeito, toda ela imantada e qualificada pelo sujeito em termos de valores possíveis. Esses valores já interiorizados e expressos em forma de atitudes e afetos operam como crenças. Valores, afetos e crenças constituem substrato subjetivo do individuo e são a matéria- prima das representações que ele faz da realidade: sua visão do mundo. (ROMERO, 2001)

Martin Buber em sua obra traz uma reflexão sobre a existência humana de uma maneira bem peculiar.

Para Luczinsk, Lopes ( apud Buber 2010), as palavras princípio eu-tu e eu-isso assinalam modos de ser do homem, formas de responder à realidade que sempre solicita um posicionamento. O eu que se abre para um tu não é como o eu que se relaciona com um isso, ou seja, a forma de relacionamento estabelecida fundamenta o modo de ser. Por isso, a relação produz diferentes possibilidades de a pessoa estar no mundo. Eu-tu e eu-isso são parte do movimento humano, sendo inseparáveis, alternando-se constantemente a cada relacionamento.

De acordo com as autoras, na atitude eu-tu, a pessoa entra em relação, deixa-se impactar, deixa-se atravessar pela presença viva do outro. Há nesse instante uma dimensão intensiva, não mensurável ou redutível à temporalidade, espacialidade e questões objetivas. O mundo do tu não tem coerência no espaço e tempo: é um campo de forças, de presença, de vitalidade. Não pode ser apreendido ou aprisionado em representações: sempre escapa. Não se reduz à percepção: é intenso, vivo, pulsante. Sempre ressurge diferentemente, em contínua transformação. A atitude eu-isso, por sua vez, leva a experienciar de forma objetiva as situações. O mundo do isso ou da objetividade ordena o real, transformando-o em habitável e reconhecível.

Percebe-se através dos relatos apresentados pela cliente uma dificuldade em se relacionar com o outro no plano real. Augras (1993) afirma que o outro fornece um modelo para a construção da imagem de si. Por ser outro, contudo, ele também revela que a imagem de si comporta uma parte igual de alteridade.

Todos os tropeços, os desencontros, os problemas de aceitação do outro como tal passam então a refletir a dificuldade intrínseca de superar a ambiguidade fundamental do ser para si e para os outros. Muitas perturbações individuais que se situam principalmente no plano do relacionamento poderiam ser entendidas como dificuldades de relacionar-se com a própria alteridade.

 

REFERÊNCIAS

AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação depsicodiagnosticos. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

BUBER, Martin. Eu e tu. 5. ed. São Paulo: Moraes, 200. p. 170.

LUCZINSK, Giovana Fagundes; LOPEZ, Marília Ancona. A psicologia fenomenológica e a filosofia de Buber: O encontro na clinica. Estudos de psicologia. Vol. 27, nº1, Campinas, janeiro/março. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-166X2010000100009&script=sci_arttext&tlng=es>. Acesso em: 16 maio 2011.

ROMERO, Emilio. O inquilino do imaginário: formas de alienação e psicologia. 3. ed. Ver. e ampl.  São Paulo: Lemos, 2001. p. 330. 


[i] Acadêmica do 10º período do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

[ii] Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

[iii] MSN é um programa de mensagens instantâneas criado pela Microsoft Corporation. O programa permite que um usuário da internet se relacione com outro que tenha o mesmo programa em tempo real, podendo ter uma lista de amigos virtuais e acompanhar quando eles entram e saiam da rede. (Wikipédia, 2011)

E3-51 Relacionamentos virtuais: a ausência do outro