Luiz Flávio Chinelato[i]
Geraldo Majela Martins[ii]
RESUMO
Este texto analisa a descrição de uma experiência realizada durante o Estágio VII – Clínica Psicanalítica, na Clinica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, onde ocorreram os atendimentos de C.S, que neste trabalho teve a alcunha de Daniela. Durante o estágio, o aluno Luiz Flávio Chinelato pôde empregar na prática os conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação acadêmica, sempre sob a supervisão do professor orientador Geraldo Majela Martins. Nesta ocasião, o aluno teve a oportunidade de atender a paciente em 10 sessões terapêuticas. Os conceitos teóricos foram articulados neste artigo com a vivência no tratamento. Os nomes mencionados neste trabalho foram modificados para preservar a identidade dos mesmos, em respeito à ética do profissional de psicologia e em acordo com o código de ética da profissão. O caso apresenta uma trajetória análoga à compulsão, à repetição, em que foi possível relacionar com os conceitos de transferência.
Palavras – chave: Estágio, Psicanálise, Compulsão à repetição, Transferência.
Este artigo foi elaborado a partir do estágio Clínica Psicanalítica II, sob a supervisão do professor Geraldo Majela Martins, no ano de 2010.
Daniela, 30 anos, solteira, foi contemplada com o serviço de atendimento psicológico oferecido pela faculdade. Sua estrutura familiar é composta por pai e mãe, uma irmã casada,que tem uma filha, sendo que o marido da irmã não é o pai da sobrinha e seus pais, que são separados, moram todos no mesmo terreno. Em uma casa vive Daniela, sozinha, em outra, a mãe também sozinha, e na terceira construção vivem os outros membros desta família. A jovem senhora havia procurado a clínica no semestre anterior em busca de atendimento em terapias breves no plantão psicológico. De acordo com os registros da clínica, o atendimento ocorreu na abordagem comportamental, e Daniela queixava-se de aflição, sem saber explicar o que seria. Incomodada com a relação vivida com o namorado, ela não confiava nela e não tinha coragem para terminar o relacionamento. Na ocasião, houve somente uma sessão e o motivo de sua busca por ajuda estava relacionado com o rompimento de seu romance com Eduardo. Em seguida, houve recesso escolar e o tratamento fora interrompido.
No semestre seguinte, Daniela retorna a clinica e, dessa vez, para o tratamento continuado e na abordagem psicanalítica. A paciente chega pontualmente e de pé aguarda o momento de ser chamada. Ao ser anunciada, Daniela caminha a passos largos e aparentemente com pressa e ansiosa para o atendimento. Vai logo se assentando na poltrona, antes mesmo de a porta ser fechada. Essa cena se repete em todas as sessões. A paciente remonta a cena com a riqueza de detalhes como um ritual necessário para os trabalhos.
Daniela entra no consultório e vai logo dizendo que o pior já passou. Sua exposição não é o bastante para que o terapeuta possa compreender o sentido de sua fala, mas é o suficiente para relacionar que trata de uma onda cíclica, conhecida pela paciente. Essa repetição, que Daniela deixou entender que existira, logo no primeiro instante do tratamento, é um ponto a ser observado pelo analista e que, mais tarde, no transcorrer do tratamento, é capaz de elucidar um sentido para a cura.
A primeira queixa da paciente é em relação ao abandono do namorado. Daniela conta que o rapaz a deixou e que não deseja mais reatar o relacionamento. Ela diz que não quer saber mais de homens trastes em sua vida. O terapeuta, neste momento, recorta esse fato, pois mais tarde irá compreender que Daniela sempre se envolveu com namorados dessa categoria e que não há um motivo aparente para admitir este tipo de relação.
Nas sessões seguintes, a paciente trata dos conflitos familiares em que há sempre uma relação conflituosa com os parentes. A mãe de Daniela teve diversos relacionamentos ao longo da vida e sempre com homens que a paciente considera trastes, assim como os que Daniela escolheu também. A irmã da paciente procede de igual maneira, sempre se relacionando com homens considerados trastes. Ao longo do tratamento, Daniela conta que em sua família as mulheres sempre agem dessa maneira. “As mulheres da minha família têm o dedo podre para escolher homens” afirma a paciente, ressaltando a reincidência desses acontecimentos. Os conflitos relatados estão centralizados nos relacionamentos amorosos vividos pelas mulheres desta família. Mãe e filhas vivem trocando desafetos entre si, provocando um ambiente de animosidade familiar. As brigas acontecem invariavelmente entre as mulheres. Já os homens aparecem de forma estática nos relatos. “Meu pai não apita nada”, Daniela diz colocando o pai em posição de quem está fora de cena. “Meu cunhado não participa de nada”, se referindo ao padrasto da sobrinha como um homem que não faz parte família. “O Eduardo não contribui com nada”, se referindo ao ex-namorado como um homem que não participa afetivamente ou financeiramente. O foco das queixas da paciente, durante o tratamento, sempre esteve voltado para as relações entre as mulheres de maneira competitiva. Os ataques e provocações eram ofensas relativas aos homens que cada uma arranjava. Daniela ressalta que “minha mãe não tem moral para falar de mim nem dos homens que tive”. Fala que sua mãe tivera homens alcoolistas, preguiçosos e mentirosos e que era “velha para arranjar coisa melhor”.
No decorrer das sessões, Daniela denuncia a sua sobrinha Tatiana como uma quarta mulher na família e que passa a incomodá-la. “Ela está muito bonita e tem mais corpo do que eu”, explica. A sobrinha, de 12 anos, iniciou um namoro e pratica sexo no portão de sua casa. Os vizinhos filmaram e divulgaram as gravações com cenas íntimas. A paciente ainda lamenta que “Ela já está na boca do povo”. Contudo, a paciente afirma que Tatiana é, apesar de tão pouca idade, uma pessoa que tem o comportamento capcioso. “Ela é o capetinha”, esclarece a paciente em um tom de indignação.
O conflito existente entre a paciente e as mulheres de sua família se estende à sobrinha a partir do momento em que a mesma ingressa no universo feminino, apresentando-se como uma mulher. Neste momento, a paciente desloca para a mesma situação anterior, em que o sujeito retorna para uma realidade aparentemente reconhecida. A compulsão á repetição é expressa de forma sistemática e dinâmica, sendo que os motivos para as queixas de Daniela, a princípio, são inconscientes.
O tratamento de Daniela aponta para a consideração de que a resistência do eu consciente e pré-consciente coloca-se a serviço do princípio do prazer. De acordo com Freud (1920), o desprazer seria suscitado no sentido de obter permissão, convocando o princípio de realidade. Isto é, Daniela tem o desprazer ao brigar com a mãe, a irmã e a sobrinha, expressando a força recalcada, na qual se instala a compulsão à repetição.
O florescimento da vida sexual de Tatiana, sua sobrinha, vai em direção ao declínio da vida sexual de Daniela, assim como ocorreu entre Daniela e sua mãe. Esse desapontamento da paciente gera o desprezo, formando um sintoma que é a compulsão à repetição.
As vivências de Daniela na infância são apontadas durante o tratamento quando relata suas lembranças carregadas de sentimento. A relação amorosa de sua mãe é reapresentada por ela e isto é o ponto central dos conflitos familiares da vida adulta. Para Freud: “Muito daquilo que se poderia denominar compulsão de destino parece-nos compreensível através de uma ponderação racional, de maneira que não temos necessidade de expor um novo e misterioso motivo.” (FREUD, 1920, p, 12)
A paciente repete em vez de lembrar e repete também durante o tratamento. O analista pode notar que os rituais durante o tratamento estão relacionados na transferência. A maneira como Daniela chegava ao consultório, sempre apressada, e a ansiedade para iniciar a sessão demonstram os aspectos da transferência na relação analista e analisando. De acordo com Freud (1914), o meio principal de amarrar a compulsão à repetição do paciente está no manejo da transferência. A partir dessas reações, é que são conhecidos os caminhos para a cura.
É preciso que o analista tenha a compreensão de que o sucesso do tratamento dependerá do manejo na transferência, que cria uma região intermediária entre a doença e a cura. A compulsão à repetição está relacionada com a superação das resistências, que são mostradas durante o tratamento, e que são fundamentais para a análise.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. (1920) Além do princípio do prazer. In:______. Griphos – Psicanálise, Belo Horizonte, n. 12, p. 8-13, junho/2005
_____. (1914). Erinnern, wiederholen und durcharbeiten – Freud – 1914. Lembrar, repetir e trabalhar através. Trad. Ana Maria Portugal M. Saliba. Belo Horizonte. ALEPH. (2000).
[i] Acadêmico do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[ii] Professor supervisor do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva