“O homem é para uma mulher, tudo o que vocês quiserem, uma aflição pior do que um sinthoma […] trata-se mesmo de uma devastação” (LACAN, 2007, p. 98).
Leziane Parré de Souza[i]
Margaret Pires do Couto[ii]
RESUMO
A proposta desse artigo é apresentar um caso clínico abordando o tema da devastação feminina, a partir do gozo feminino, que pode tanto favorecer para a mulher o encontro com o prazer sexual quanto promover uma experiência de devastação. Diante desse gozo e na falta de um significante que defina o que é ser uma mulher, a devastação pode se apresentar como uma resposta tanto nas relações entre mãe e filha quanto nas relações amorosas.
Palavras-chave:Devastação, Mulher, Feminino, Gozo.
INTRODUÇÃO
O termo devastação vem de ravage, termo francês derivado do verbo ravir, que significa encantar ou arrancar algo. Segundo o dicionário Larousse, quer dizer arrasar, fazer estragos. A devastação e o amor são questões frequentes na clínica com mulheres por estarem sob o mesmo registro: o do sem limite e da falta de significante no Outro.
A paciente que motiva a escrita deste trabalho nos evidencia a mulher diante da questão com o feminino e suas atuações na busca de uma resposta que lhe afirme o que é ser mulher. A partir de sua estrutura, se nega ao gozo fálico e vai em busca de um gozo pleno, completo, todo. Nessa busca, abre mão de seu casamento em prol da loucura do gozo devastador por meio do encontro com O Homem[iii] que a satisfaça.
Sabemos, por meio da teoria psicanalítica, que a menina diante da falta articulada ao significante, apela para o Outro materno por um significante que a represente enquanto mulher. Ou seja, a menina direciona para a mãe a demanda para que esta lhe aponte aquilo que possa designá-la como mulher. O esperado significante que representa o feminino não pode ser dado pela mãe, simplesmente por não existir um significante que o represente. Dessa forma, a mulher tem que se fazer mulher, feminina, e o faz de forma singular, uma a uma.
Soler (2006) recorre a Lacan ao afirmar que a mulher, diante da falta do significante que a define, incorpora a diferença sexual, bem como sua posição de ser o falo para o Outro. As relações entre os sexos giram em torno de ter ou ser o falo, no entanto permanecem nas bordas daquilo que falta ao Outro. A autora também recorre a Freud discorrendo sobre a demanda de amor própria da condição do feminino, lembrando que na falta fálica, a mulher tem como possibilidade ser aquilo que falta ao Outro, ao homem.
Portanto, a mulher anseia ser desejada pelo Outro, porém, quando convocada no lugar de objeto na relação sexual, pode não aceitar, o que implica numa saída histérica. Por outro lado, quando ela atende ao desejo do Outro, ou seja, quando a mulher consente em ocupar esse lugar para o homem juntamente com o sentimento de ser amada e desejada por ele, pode conseguir uma significação fálica e dar consistência ao seu ser-mulher, configurando assim uma saída pelo feminino. O gozo feminino, ilimitado, em excesso, tem efeito de devastação, ao passo que o encontro com o homem, pela via do amor, pode possibilitar alguma inscrição que limite esse gozo.
Lacan, em seu Seminário 20, situa o sujeito feminino como aquele que tem acesso a um outro gozo, fora da lógica fálica; o gozo do Outro ou gozo feminino “não pode ser dito, é rejeitado naquilo que subsiste entre os ditos, a título de indizível, de fora-da-linguagem”. (ANDRÉ, 1998, p.214). Dessa forma, as mulheres têm acesso a um modo de gozo real, altamente destrutivo, pelo excesso da pulsão de morte diante da falta de modulação simbólica.
Nesse mesmo Seminário 20, Lacan diferencia o gozo fálico e o gozo feminino, sendo o primeiro marcado pela significação do falo e o segundo denominado de suplementar, sendo exclusivo da mulher. É suplementar por ser o gozo da mulher não-toda, uma vez que não se submete à linguagem.
Ao contrário do gozo fálico, o gozo outro, suplementar, “ultrapassa” o sujeito. Para começar, por ser heterogêneo à estrutura descontínua dos fenômenos regulados pela linguagem, com a conseqüência de que esse gozo não é identificatório. (SOLER, 2006, p. 56)
Diante desse gozo e na falta de um significante que defina o que é ser uma mulher, a devastação pode se apresentar como uma resposta tanto nas relações entre mãe e filha quanto nas relações amorosas. Para a mulher, o amor e a devastação estão intimamente ligados por situarem-se, conforme já dito anteriormente, no registro da falta de significante no Outro.
Freud ([1917-1918] 2006), em seu texto “O Tabu da Virgindade”, discorre sobre a expressão “sujeição sexual” para falar da possível dependência que geralmente uma pessoa cria em relação à outra a partir da relação sexual. Acontece mais comumente com as mulheres, podendo se estender por um longo período e “[…] ir até a perda de toda vontade independente e até fazer a pessoa sofrer os maiores sacrifícios de seus próprios interesses.” (FREUD, [1917-1918] 2006, p. 201). Essa sujeição pode ocorrer pela associação de fraqueza de um com o egoísmo excessivo do outro.
Tal questão levantada por Freud nos remete a nossa paciente, que, mesmo após separar-se do marido, ainda se submete aos pedidos deste pela relação sexual. Ela sempre cede, mesmo diante da angústia que a acomete após o ato. Queixa-se da falta de prazer, porém não se nega a oferecer-lhe seu corpo como objeto de gozo. Conforme Drummond (2007) “De qualquer forma a devastação implica em dificuldades do sujeito nas relações de troca, em colocar o corpo na troca amorosa, no relacionamento sexual e na maternidade”. (DRUMMOND, 2007, p.9). A mulher também pode ficar diante de um abismo perturbador, no qual não consegue estabelecer uma medida entre ser mãe e ser mulher. Segundo Soler (2006), esse abismo é característico do gozo da devastação:
É esse o núcleo da devastação: é o gozo outro que devasta o sujeito, no sentido forte de aniquilá-lo pelo espaço de um instante. Os efeitos subjetivos desse eclipse nunca faltam. Vão da mais leve desorientação até a angústia profunda, passando por todos os graus de extravio e evitação. (SOLER, 2006, p. 185)
No entanto, embora a vida não seja feita apenas de bons encontros amorosos, é possível à mulher construir sua feminilidade e manter seus relacionamentos a partir de laços que suportem a castração, pois assim como a pulsão visa à satisfação, o amor visa ao encontro. Conforme Barros (2008), em seu texto Tinha sido apenas um sorriso… e nada mais!, “fazer laços não é natural, mas acontece”. Sabemos que o viver junto, o encontro com o outro em sua singularidade, causa estranhamento, mal-estar. No entanto, o homem não vive só. Sabemos também que é necessário criar laços, como fios que nos amarram a vida para adiar e tratar o encontro com a morte.
O amor nos coloca numa situação paradoxal, pois, ao amarmos, nos colocamos mais à mercê do outro e, consequentemente, ao alcance dos infortúnios e das dificuldades da vida, arriscando-nos a sofrer com as vicissitudes, os desencontros, as decepções e as desilusões. Mas é possível o sujeito assumir outra relação com os objetos para sua satisfação pulsional que não passe pela via do gozo catastrófico. Para isso, é necessário que o sujeito reconheça sua castração e faça escolhas amorosas calcadas na sua condição de sujeito desejante, fazendo uso do discurso amoroso, dando-lhe uma medida humana para se enlaçar na vida.
REFERÊNCIAS
ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BARROS, Fernanda O. Tinha sido apenas um sorriso… e nada mais!. In: JORNADA DE DIREITO E PSICANÁLISE, 5, 2008, Curitiba. Anais… Curitiba: Lumen Juris, 2008. p. 10.
DRUMMOND, Cristina. A devastação. Disponível em :http://www.ebp.org.br/biblioteca/pdf_biblioteca/Cristina_Drummond_A_devastacao.pdf. Acesso em: 19 nov. 2010.
FREUD, Sigmund (1917-1918). O Tabu da virgindade. In: _____. Cinco Lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p.197-215. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11).
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MILLER, Jacques-Alain. A criança entre a mãe e a mulher. Opção Lacaniana. São Paulo: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n.21, abr.1998.
SOLER, Colete. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
[i] Acadêmica do 10º Período do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[ii] Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[iii] Grifo nosso