Ismael Cândido Filho[i]
Raquel Neto Alves[ii]
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre o suicídio a partir da abordagem fenomenológico-existencial, que compreende a pessoa como um ser de possibilidades e limites. O suicídio a princípio é visto como uma transgressão ao projeto existencial e à vida. A partir dos estudos de sociólogos, filósofos, psicólogos, psiquiatras será apresentado o que se entende por suicídio, como a pessoa que tenta o suicídio se sente diante do fracasso existencial, os sentimentos de vergonha, de culpa e de incapacidade frente à situação vivenciada e a necessidade de criar novos projetos para continuar na condição de ser-no-mundo.
Palavras-chave: Suicídio, Fenomenologia existencial, Vergonha, Culpa, Escolha.
Não sei quando começou, mas o fenômeno suicídio sempre me instigou. O que me ocorre no momento é uma lembrança do incômodo que vivenciei ao ser apresentado, ainda criança, na escola, ao poema de Alphonsus de Guimarães intitulado Ismália. Solidão, abandono, angústia, desespero, desesperança são os sentimentos que me vêm em mente ao lê-lo. Esses são também os sentimentos vivenciados por uma cliente que atendi em psicoterapia, na abordagem fenomenológico-existencial, na Clínica Escola do Centro Universitário Newton Paiva, poucos meses depois de ela ter tentado suicídio. Para preservar a identidade dessa cliente, usarei o pseudônimo Marta para denominá-la.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, divulgados pela UOL Ciências e Saúde:
cerca de 3.000 pessoas por dia cometem suicídio, o que significa que a cada 30 segundos uma pessoa se mata (…). A agência da ONU (…), por ocasião do Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio, que as estimativas revelam que para cada pessoa que consegue se suicidar, 20 ou mais tentam sem sucesso. A OMS estima que a maioria dos mais de 1,1 milhão de suicídio a cada ano poderia ser prevista e evitada. (…) Segundo a OMS, a média de suicídio aumentou 60% nos últimos 50 anos, em particular nos países em desenvolvimento. O suicídio é atualmente uma das três principais causas de morte entre os jovens e adultos de 15 a 34 anos, embora a maioria dos casos aconteça entre as pessoas de mais de 60 anos. A organização lembra que cada suicídio ou tentativa provoca uma devastação emocional entre os parentes, amigos, causando um impacto que pode perdurar por muitos anos.[iii]
A depressão é apontada como a principal causa de suicídio. A OMS (Organização Mundial da Saúde) e a Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (AIPS), em pesquisa realizada em 2006, apontaram também os transtornos bipolares, o abuso de drogas e álcool, a esquizofrenia, os antecedentes familiares, os contextos socioeconômicos e educacionais pobres ou fragilidades física e salutar, como fatores relacionados à situação vivenciada por pessoas que cometeram suicídio.
Na obra de Rodrigues (1993), encontra-se assim resumidos os três tipos de suicídios:
O suicídio egoísta resulta de que os homens não vêem mais razão de ser na vida; o suicídio altruísta de que esta razão lhes parece estar fora da própria vida; o terceiro tipo de suicídio, (o anômico) decorre do fato de estar desregrada a atividade dos homens, e é disto que eles sofrem. (DURKHEIM, apud RODRIGUES, 1993, p. 121 – 122)
Marta, a cliente do caso em questão, chega ao atendimento apresentando-se como depressiva. Com uma voz fraca, trêmula, ela falou: “Desde pequena pensava em me matar, sou depressiva”. Nas sessões posteriores, foi necessário trabalhar com a cliente que na existência humana nada é determinado, nenhum ser humano é. Na condição humana, nós estamos, somos seres de possibilidades, fadados pela condição de liberdade e em cada contexto estamos numa vivência.
O homem é um ser livre e essa condição existencial, juntamente com a morte, a solidão e o projeto vital, são considerados angústias fundamentais inerentes a todo ser humano. Leia o que nos diz Yalom (2007):
A liberdade, como um dado, parece a própria antítese da morte. (…) a liberdade, sob uma perspectiva existencial, está vinculada à angústia ao afirmar que, contrariamente à experiência cotidiana, não entramos para um universo bem-estruturado com um grandioso desígnio eterno para finalmente deixarmos. A liberdade significa que a pessoa é responsável por suas escolhas, ações e condições de vida. (…) ser responsável é “ser autor de”, cada um de nós sendo assim o autor de seu próprio plano de vida. Nós somos livres para sermos qualquer coisa, exceto não sermos livres – nós estamos, diria Sartre, condenados à liberdade. (YALOM, 2007, p. 16)
Yalom (2007) continua sua explanação sobre liberdade afirmando que: “A liberdade não apenas requer que aceitemos a responsabilidade por nossas escolhas de vida, como também pressupõe que a mudança demanda um ato de vontade”. (YALOM, 2007, p. 16)
A cliente não conseguia reconhecer que a sua condição era produto das escolhas que ela havia feito ao longo da sua existência. Ela atribuía ao ex-noivo a responsabilidade sobre o ato que cometera.
Na perspectiva da fenomenologia existencial, o suicídio é considerado um ato de escolha pessoal. Não se deve explicar o suicídio como sendo uma ação provocada por força inconsciente ou por motivação não identificada. Angerami (1986) destaca o que Sartre afirmou a esse respeito:
Somos a realidade de nossos fenômenos em tanto quanto o observamos na consciência. Dessa maneira a autodestruição é uma manifestação humana, mas não como afirmam alguns teóricos “inconsciente” e “obscuro”, ao contrário, assumida pela condição de liberdade. O homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e, no entanto livre, porque uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer. (ANGERAMI, 1986, p. 39)
Frente à angústia do término de um relacionamento de 13 anos, da frustração de ter o projeto de se casar e constituir uma família interrompida, Marta se jogou em um abismo: sentia-se como uma mulher feia, incapaz de ser amada e desejada. Nada mais lhe fazia sentido. Falava angustiada que não valia mais a pena viver e escolheu então ingerir uma boa quantidade de veneno para matar ratos. “Queria acabar com tudo”. Senti que nesse momento era preciso que eu me colocasse inteiramente entregue ao processo, demonstrando suspensão dos meus preconceitos, como é proposto pela abordagem fenomenológico-existencial. O fato de ela estar buscando atendimento sinalizava a mim que havia ali uma pessoa com desejo de encontrar novas razões para ser-no-mundo, apesar da vergonha e da culpa que ela declarava estar vivenciando. Coloquei-me pronto a escutá-la, esse era o meu papel como psicoterapeuta. Segundo Erthal (2004), o objetivo da psicoterapia vivencial é:
(…) maximixar a autoconsciência para fomentar a possibilidade de escolha; e facilitar autodescoberta e regulação do “self”. A terapia ajuda o cliente a aceitar os riscos e responsabilidades de suas decisões e, acima de tudo, aceitar a liberdade de ser capaz de usar suas próprias possibilidades de existir. (ERTHAL, 2004, p. 30)
Viver sobre o estigma de ser suicida ou ter ao seu lado uma pessoa estigmatizada por ter cometido tal ato não é tão fácil, pode gerar incômodos, preocupações e insegurança. Era necessário ajudar Marta a desvelar seus sentidos.
A culpa de caráter individual, experimentada por quem tentou o suicídio, causa constrangimento. Marta se sentia culpada, envergonhada e recriminada pelo olhar do outro. A clássica composição de Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles ilustra a vivência de Marta nesse momento da sua existência:
De tanto levar frechada do teu olhar / Meu peito até parece sabe o quê? / Táuba de tiro ao álvaro / Não tem mais onde furar /Teu olhar mata mais do que bala de carabina / Que veneno e estriquinina / que peixeira de baiano / Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver / Mata mais que bala de revórver (BARBOSA e MOLES, 1960)
Essa música demonstra o que o olhar do outro pode causar. Como “táuba de tiro ao Álvaro”, era como se sentia a cliente, que afirmou: “o olhar dos outros me fulminam, me levam para o fundo do posso. Às vezes tenho vontade de sumir”.
Sartre (1997) escreve que “o olhar que os olhos manifestam, não importa sua natureza é pura remissão a mim mesmo” (SARTRE, 1997, p.333). Em outro trecho, o autor apresenta: “(…) basta que o outro me olhe para eu ser quem sou” (SARTRE, 1997, p.338). A maneira como se é visto pelo outro tem implicações em nossa existência. Não significa que vivemos em função do outro, mas como viver em sociedade é coexistir, precisamos reciprocamente dessas trocas de olhares.
O homem é um ser social, a vivência humana no mundo implica na coexistência. Augras (2009) reporta Heidegger que “chama a atenção para o fato de que mesmo sem a presença do outro, o ser no mundo é o ser com os outros” (AUGRAS, 2009, p. 56). Diante do tribunal eterno, é como se sente a pessoa estigmatizada pela tentativa do suicídio. Vergonha, culpa, fracasso, constrangimento, incapacidade são sentimentos que assombram a existência de Marta após ter a sua tentativa de suicídio interrompida.
A vergonha revela muito da maneira como nos vemos. Sobre isso Sartre (1997) escreveu:
A vergonha ou o orgulho me revelam o olhar do outro e, nos confins desse olhar, revelam-me a mim mesmo; são eles que me fazem viver, não conhecer, a situação do ser-visto. (…) a vergonha (…) é vergonha de si, é o reconhecimento de que efetivamente sou este objeto que o outro olha e julga. (SARTRE, 1997, p. 336)
Envergonhar-se é reconhecer-se da maneira como se é visto pelo outro. A vergonha cola a pessoa ao olhar do outro, impedindo que essa se perceba e se reconheça pelo seu próprio olhar. Marta vivenciava isso, um estado de alienação. A fusão de si com o olhar do outro eliminava a sua autoconsciência e impedia que ela percebesse outras possibilidades no momento atual e no futuro.
A culpa é também um sentimento inerente à condição humana, que, assim como a agústia, pode paralisar ou mobilizar a pessoa rumo ao inimáginavel. Para Romero (2001):
O sentimento de culpa é outra temática afetiva que dilacera o espírito de quem percorre as vias descendetes da melancolia. (…) Não é um setimento gratuito, que emanaria de uma suposta falta incosciente. Não. Via de regra, a culpa tem uma razão de ser: o sujeito cometeu uma falta, um erro, ou de alguma maneira não soube cumprir seu dever. Não se pense que todo sentimento de culpa se direciona pelo lado da depressão. Há uma culpa que emana da pura consciência da responsabilidade – consciência que nos adverte dos “maus passos e dos desvios” que amiúde caracterizam nossa caminhada”. (ROMERO, 2001, p. 272)
A partir do que nos afirmou Romero (2001) no trecho acima, podemos considerar que uma pessoa que tentou suicídio pode se sentir culpada por reconhecer que não foi capaz de cuidar da sua própria vida.
O fim pode trazer o começo, esse é um dos princípios básicos da abordagem fenomenológico-existencial. Era essa possibilidade que Marta não conseguia vislumbrar. Não enxergar e não reconhecer essa possibilidade fazia com que ela perdesse o desejo de ser-no-mundo. Era preciso então ajudá-la a compreender que quando sentisse que já não existia mais razão para existir, era justamente nesse momento que deveria começar a trilhar novos caminhos.
REFERÊNCIAS
ANGERAMI, Valdemar Augusto. Suicídio: uma alternativa à vida, uma visão clínica-existencial. 1. ed. São Paulo: Traço, 1986, p. 112. v. VI. (Série Psicoterapias Alternativas).
AUGRAS, Monique Rose-Aimée. O Ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 96.
BARBOSA, Adoniran e MOLES, Osvaldo. Tiro ao Álvaro. Manaus: EMI Music Brasil LTDA, série Bis, 2005. CD 1.
DA EFE. OMS: 3.000 pessoas por dia cometem suicídio no mundo.
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultnot/efe/2007/09/10/ult4429u1004.j>htm .
Acesso em: 8 nov. 2010.
ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. Treinamento em psicoterapia vivencial. 1. ed. Campinas: Editora Livro Pleno. 2004. p. 158.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Ismália. Disponivel em: <http://www.releituras.com/alphonsus_ismalia.asp.> Acesso em: 8 nov. 2010.
RODRIGUES, José Albertino (Org.). Durkheim. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993, p. 208.
ROMERO, Emílio. O Inquilino do Imaginário: Formas de Alienação e Psicopatologia. 3. ed. São Paulo: Lemos Editorial, 2001, p. 330.
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 127.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 782.
YALOM, Irvin D. O carrasco do amor e outras histórias sobre psicoterapia. Tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese. 1. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007, p. 286.
[i] Acadêmica do 10º período do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton
[ii] Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[iii] http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultnot/efe/2007/09/10/ult4429u1004.jhtm