Francis Mara Lopes Barcelos[i]
Raquel Neto Alves[ii]
RESUMO
Este artigo tem como objetivo abordar como é o outro na abordagem fenomenológico-existencial, pretendendo compreender como o indivíduo é afetado pelo outro. Uma compreensão de si fundamentada no reconhecimento da coexistência, e, ao mesmo tempo, uma constituição do ser como ponto de partida para a compreensão do outro, tornando-se possível a atualização. Na convivência humana, muitas vezes, o homem ocupa uma posição que não é de sua preferência por justamente não compreender o outro. Dessa forma, leva-o a fazer idealizações do outro conforme sua particularidade de valores. Quando o indivíduo se reconhece e percebe a alteridade, pode-se construir dentro do processo.
Palavras-chave: Indivíduo, Coexistência, Alteridade. Autoconsciência, Existencial.
O outro é uma alteridade no qual eu me encontro e me diferencio. É em relação com o outro que eu me compreendo. O outro não é só aquele que está fora de mim, mas sim os vários outros eus que sou e não reconheço em mim. O mundo está entre o eu e o outro, na relação. É no mundo com o outro que tudo acontece e é sempre na relação que se produz movimento. Assim cada um vive num mundo que constrói.
De acordo com Augras (1978), o mundo humano é essencialmente mundo de coexistência. O homem defini-se como ser social, e o crescimento individual depende, em todos os aspectos, do encontro com os demais.
A compreensão de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistência, e, ao mesmo tempo, constitui-se como ponto de partida para a compreensão do outro. O outro fornece um modelo para a construção da imagem de si. Por ser outro, contudo, ele também revela que a imagem de si comporta uma parte igual de alteridade.
[…] Ser e não ser, exprime o fato de que o não-ser é inseparável do ser. Para que se compreenda o significado do termo “existir”, é preciso que haja conhecimento do fato de que ela (a pessoa) poderia não existir, de que se encontra passível, a cada momento, de despencar no abismo que a separa de uma possível destruição, e jamais poderá escapar ao fato de que a morte virá em algum momento desconhecido no futuro. (MAY, 2000, p.115)
A percepção da existência na outra pessoa ocorre num nível diferente do nosso conhecimento de suas peculiaridades. Um conhecimento dos sentidos e das escolhas da outra pessoa é sempre rico para sua compreensão. Uma familiaridade com seus padrões de relacionamentos interpessoais é altamente relevante; uma informação a respeito de seu condicionamento social, o significado de certos gestos especiais e ações simbólicas é importante. Mas tudo isso é transportado a um nível diferente quando nos confrontamos com o mais doloroso e real dos fatos, ou seja, a própria pessoa ali presente, em carne e osso. Quando descobrimos que nosso volumoso conhecimento acerca da pessoa subitamente a transforma em um novo modelo por causa desse confronto, isso não significa que o conhecimento estivesse errado; ao contrário, ele passa a ter conteúdo, forma e significado a partir das expressões peculiares à realidade da pessoa em questão.
No caso de “A”, cliente em tratamento, atendido por mim na Clínica de Psicologia Newton Paiva desde o início de 2010, ela chegou com a demanda de que após ficar viúva, estava com muitas dificuldades no relacionamento com as filhas, principalmente com a filha mais velha. Moram numa mesma casa, e a filha mais velha tem dois filhos. Nessa relação quase não existe diálogos devido às dificuldades de expressão dos seus sentimentos numa posição autêntica. “A” constrói no seu mundo inter-relacional uma insistência para que sua filha mais velha ajuste-se a ela, quer que a filha crie seus netos do jeito que ela a criou, não a toma como pessoa, mas como objeto. Nesse aspecto, no decorrer do tratamento, houve crescimento no sentido, no qual aparece a possibilidade de reflexão, que um relacionamento envolve sempre mútua percepção e que também é o processo de serem mutuamente afetadas pelo contato.
O enfoque fenomenológico-existencial na psicoterapia sustenta que o objetivo central da terapia é ajudar a promover o entendimento do próprio modo de ser no mundo. Falar do ser humano enquanto existência é considerá-lo em sua essência mais fundamental, ou seja, é concebê-lo enquanto abertura para que o mundo se dê, singularmente, sempre envolvido de forma afinada com suas emoções. É nessa abertura que o homem constrói as suas relações e os sentidos de sua existência. Nessa abertura, que é sempre relacionada com os outros, é que acontecem as escolhas que fazemos ao exercer nossa liberdade. Porém não somos nós que escolhemos tudo o que acontece em nossas vidas. Não escolhemos o lugar onde nascemos, a família que temos. Não escolhemos o momento de nos despedirmos de pessoas queridas que falecem. Não escolhemos a concretização do nosso medo mais tenebroso, embora, por vezes, ele se concretize. E não são só acontecimentos frustrantes, carregados de angústia, que chegam sem pedir licença.
Nosso arbítrio nada conta também em situações agradáveis, que simplesmente acontecem. Aquele encontro casual com alguém do passado de quem sentimos muita saudade, a proposta de emprego naquela hora mais inusitada, as mudanças inesperadas que chegam para desarrumar tudo e depois percebemos o quão melhor ficou depois delas. Por tudo isso, vamos percebendo que não conseguimos escolher tudo, que não temos esse poder, que viver implica estar aberto aos acontecimentos que nos afetam de uma determinada maneira e responder a eles a partir de nossa compreensão. Posso compreender algo que aconteceu como favorável e acolher o sentido disso que me chega, apropriar-me desse acontecimento. Mas também posso compreender algo que acontece como ameaçador e então eu escolho não me relacionar com aquilo. Viver, então, é ser afetado o tempo todo por aquilo que escolhemos e por aquilo que não escolhemos. Nesses casos, Existir é oscilação. Essa oscilação se traduz em momentos de familiaridade em que nos sentimos abrigados, tranquilos, sabemos como agir, temos certa previsibilidade do acontecer e momentos de estranhamento nos quais não sabemos o que fazer diante de uma situação, nos sentimos desamparados, sem referências para caminhar frente ao desconhecido. Querer negar ou anular essa oscilação, inerente ao existir humano, é o maior dos absurdos, pois é descaracterizar a essência do ser humano, e transformá-lo em qualquer coisa que siga à risca um projeto previamente determinado, passo a passo, sem surpresas, com tudo sob controle, o que é impossível para a realidade humana.
De acordo com Romero (2001), a apreensão de nós na situação é que denominamos compreensão. Essa é justamente a característica precípua da consciência. Ser consciente é saber localizar–se na trama de relações que constituam a situação, articulando nossa conduta de um modo consequente. É no desconhecido de nossas vidas que temos a oportunidade de experimentar novas possibilidades de ser e agir no enfrentamento da angústia. É a partir do estranhamento que podemos construir novos caminhos significativos e importantes fontes de autoconhecimento.
Atualmente, a cliente “A”, no decorrer do tratamento, consegue construir em seu mundo próprio o que significa a falta do marido na sua vivência, consegue dar sentido a essa falta, o que possibilita uma abertura para que sua autenticidade apareça nas contingências. Consegue construir em seu mundo próprio menos culpa e ter um reconhecimento do ser mulher, saindo assim de uma visão anteriormente tão somente do ser mãe. No seu reconhecimento do ser mulher, a cliente “A” consegue namorar atualmente e mostra uma auto-imagem deteriorada, que a impede de perceber o olhar do outro, o desejo do outro. Diante dessa angústia, o trabalho dentro do processo continua no sentido do autoreconhecimento. “A” começa a se interrogar na busca de novas compreensões.
Uma das alegrias da vida, numa época de angústia, é o fato de sermos forçados a tomar consciência de nós mesmos. Quando a sociedade contemporânea, nessa fase de reversão de padrões e valores, não consegue dar-nos uma nítida visão do que somos e do que devemos ser, vemo-nos lançados à busca de nós mesmos.
REFERÊNCIAS
AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagóstico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 230.
ROMERO, Emílio. O inquilino do imaginário: formas de alienação e psicologia. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Lemos, 2001. p. 330.
[i] Acadêmico do 10º período do Curso de psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[ii] Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva