Diéferson Artur Brandão[i]
Raquel Neto Alves[ii]
RESUMO
Este artigo trata do abuso sexual infantil e suas consequências na vida adulta. Inicialmente, foi realizado um estudo bibliográfico sobre o assunto no intuito de definir o abuso sexual infantil. Nesse estudo, também trataremos de algumas consequências do abuso sexual na criança, como excesso de agressividade ou de medo, além de outras que afetam a pessoa já adulta. Em seguida, será feito um estudo de caso, tendo em vista relatos de uma cliente atendida no período de aproximadamente um ano na Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, onde foi realizado o Estágio Supervisionado de Psicologia. Tais atendimentos foram baseados na abordagem Existencial-Fenomenologica.
Palavras-chave: Abuso sexual infantil, Transformação da autoimagem corporal
1. INTRODUÇÂO
Uma criança pode sofrer diferentes tipos de abuso. Um deles é o abuso sexual infantil, que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, não se configura apenas por um abuso físico, mas também por um abuso mental, conforme afirma Glaser (1991 apud Amazarray e Koller, 1998). Uma pessoa que sofre abuso na infância pode possuir traumas que, futuramente, na vida adulta, podem acarretar consequências impactantes.
O objetivo deste artigo é justamente pesquisar algumas dessas consequências. Primeiramente, definiremos o conceito de abuso sexual, para, em seguida, trabalharmos com suas consequências. Assim, após uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto, será feito um estudo de caso, com base na teoria existencial-fenomenológica, no qual serão analisados relatos feitos pela cliente J. R. N.[iii] no período de aproximadamente um ano (agosto de 2010 a junho de 2011), em que se realizou o estágio supevisionado na Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
A cliente J. R. N., aparentemente, tenta transformar a sua autoimagem corporal de modo a não ser desejada sexualmente. Dessa forma, após uma pesquisa teórica sobre esse assunto, observaremos, por meio da análise dos relatos da cliente, se tal característica, em sua vida adulta, é para afastar o desejo do outro.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Segundo Benjamin Sadock e Virgini Sadock (2008, p.405) “A maioria dos casos de abuso sexual envolvendo crianças nunca é revelada devido ao sentimento de culpa, vergonha, ignorância e tolerância da vítima”. Entretanto, o abuso sexual infantil é mais comum do que se pensa.
O abuso infantil pode ser definido de várias formas, uma delas é quando a criança é mal-tratada de forma violenta tanto física quanto psíquica. Assim, para que tenha ocorrido abuso não é necessário que obrigatoriamente ocorra violência física. Outro fator que caracteriza abusos sexuais é que crianças abusadas não compreendem a atividade sexual em sua totalidade e, por isso, não estão aptas a concordar com elas.
Ainda sobre a definição de abuso sexual, vejamos três características apontadas por Watson (1994 apud Amazarray e Koller 1998):
Watson (1994) define abuso sexual como qualquer atividade ou interação onde a intenção é estimular e/ou controlar a sexualidade da criança. Além disso, segundo esse autor, devem ser observados três fatores, a fim de distinguir atos abusivos de atos não-abusivos:
– Um poder diferencial, implicando em que uma das partes exerce controle sobre a outra e que a relação não é mutuamente concebida e compreendida;
– Um conhecimento diferencial devido à idade cronológica mais avançada do agressor, a um maior avanço desenvolvimental do mesmo ou a uma inteligência superior à da vítima;
– Uma gratificação diferenciada, reconhecendo que o propósito da relação é a satisfação do agressor e que qualquer prazer por parte da vítima é acidental e de interesse para o prazer de quem abusa.(AMAZARRAY; KOLLER, 1998)
Dessa forma, para esse autor, para haver abuso deve haver também: 1) controle do autor em relação à vítima; 2) agressor com idade ou conhecimento superior à vítima; 3) sentimento de satisfação restrito ao agressor.
Definido o que é abuso sexual, cabe agora tratar de suas consequências. Ainda Segundo Benjamin Sadock e Virgini Sadock (2008), é difícil se provar que uma criança sofreu algum tipo de abuso sexual, entretanto há algumas características que podem denunciar tal ato. Crianças que, por exemplo, têm conhecimento detalhado sobre o ato sexual, incomum para sua faixa etária, podem já ter sido abusadas. Além disso, tais crianças comumente são agressivas e têm medo de adultos, principalmente homens. Benjamin Sadock e Virgini Sadock (2008) também afirmam que crianças que sofrem abuso físico ou sexual exibem muitos transtornos psiquiátricos, incluindo ansiedade, comportamento agressivo, ideação paranóide, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos depressivos e maior risco de comportamento suicida.
Pode-se afirmar também que um adulto que foi abusado sexualmente na infância pode apresentar problemas com relação à transformação de sua imagem corporal. Por exemplo, uma pessoa que possui algum histórico de abuso sexual devido ao fato de em sua infância ter tido o corpo desejado por alguém poderá, na vida adulta, transformar sua imagem corporal de modo que esta não desperte desejo em outrem. Ela prefere que seu corpo esteja fora dos padrões de beleza, diferentemente daquele corpo que um dia foi alvo de interesse, ficando, assim, mais distante de possíveis interesses.
Isso ocorre porque o corpo do indivíduo está diretamente ligado às suas emoções e atitudes, como afirma Schilder (1950 apud Erthal 1989, p.60): “A topografia do modelo postural do corpo será a base de atividades emocionais. Nossas emoções e ações são inseparáveis da imagem corporal”.
A seguir, traremos um estudo no qual investigaremos as possíveis consequências do abuso sexual infantil na vida adulta de J. R. N, cliente atendida durante o estágio supervisionado de psicologia. A abordagem teórica nos atendimentos é a Existencial-Fenomenológica, definida por Erthal (1989) como uma abordagem psicoterápica que:
tem como princípio básico a compreensão do cliente na sua totalidade (visão holista), e não numa coleção de parte, partindo do seu próprio ângulo, analisando a estrutura de sua existência humana. Referindo-se ao homem como criador de si mesmo e do seu mundo, procura compreendê-lo a partir dessa verdade. Seu objetivo é, portanto, decifrar os padrões de comportamento para então chegar ao projeto ou imagem que o indivíduo tem de si mesmo. Parte da experiência apoiando-se, principalmente, na compreensão pré-ontológica que o homem tem da pessoal humana (filosofia de base). (ERTHAL, 1989, p. 72)
Assim, a abordagem existencial-fenomenológica trabalha com uma visão de que o ser humano é um ser-no-mundo. Dessa forma, essa teoria visa fazer com que a pessoa seja capaz de transformar o que é oferecido pelo mundo, tendo assim uma existência autêntica.
3. DISCUSSÃO
Nos atendimentos realizados à J. R. N na Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, esta relatou episódios de abuso sexual sofridos em sua infância. Durante um determinado atendimento, a cliente relata que uma vez estava brincando com suas amigas em um local próximo a sua casa quando um homem, que era seu vizinho e conhecido da vizinhança, convidou-a para ir até a sua casa. Chegando lá, ele lhe mostrou seu órgão sexual e começou a falar várias coisas para ela. Ela conta que não fez nada e que ele nem tirou a roupa dela, pois sua amiga começou a chamá-la do lado de fora da casa. A cliente relata que o homem lhe disse para não contar o que havia ocorrido a ninguém sobre forte ameaça de machucá-la e à sua família também.
J. R. N conta que sua mãe foi buscá-la e fez várias perguntas sobre o que havia ocorrido dentro da casa daquele homem. A cliente disse que não conseguia falar nada do que aconteceu com medo de que o homem pudesse fazer mal a ela ou a sua família. J. R. N também relatou que sua mãe a levou para o banheiro, deu-lhe banho e perguntou novamente o que havia ocorrido. Como ela não falava nada, sua mãe começou a lhe bater. Ela conta que nem conseguia chorar e apanhou calada.
Em outro atendimento, a cliente conta que, quando era adolescente, tinha um corpo magro e bonito. Morava com sua mãe, e seu padrasto tentou violentá-la sexualmente. Um dia, este a chamou no quarto e, chegando lá, ela o viu nú. Nesse momento, ele a pediu para também tirar a roupa. Assustada, J. R. N se retirou, conseguindo sair sem que nada acontecesse. Ela disse que contou o episódio para a mãe, mas que esta não acreditou e que acusou, ainda, J. R. N de estar se oferecendo para o padrasto. Então, mãe e filha começaram a discutir, e J. R. N é agredida.
Em outro atendimento, J. R. N. disse que hoje em dia não consegue sentir vontade de manter relações sexuais com seu noivo. A cliente relatou que fica muito tempo sem ter nenhuma relação sexual com esse. Eles se encontram, dormem juntos, mas ela quase nunca sente vontade de ter intimidade com ele. Assim, às vezes, faz sexo para agradá-lo e, vez ou outra, quando sente vontade, necessita de seguir certa sequência, ou seja, não pode ser muito tarde, eles têm que tomar banho antes, e ela precisa estar muito bem disposta.
J. R. N. também relatou que seu noivo estava comentando que ela deveria começar a emagrecer, pois, quando eles começaram a namorar, ela pesava 20 kg a menos. Ele acredita que ela está perdendo o controle da situação e que corre o risco de ficar obesa. Ela, então, contou que tem uma amiga que fez redução de estômago e que estava pensando em continuar engordando para poder chegar no peso em que o plano de saúde poderia cobrir uma cirurgia de redução de estômago. Ela disse, ainda, que não consegue seguir dietas, frequentar academia, fazer exercícios físicos em geral e que seria mais fácil ganhar peso e fazer a cirurgia do que ter que perder quilo por quilo.
Os relatos de J. R. N. sobre problemas entre essa e seu noivo, hoje em dia, parecem ter origem em sua infância. Como vimos no estudo bibliográfico, crianças que foram sexualmente abusadas podem carregar traumas na vida adulta. Quando J. R. N. se recusa a fazer sexo com seu noivo, faz para agradá-lo ou mesmo somente após impor algumas condições, parece estar evitando o contato que a traumatizou em sua infância. Também, à medida que J. R. N. descuida-se de seu corpo, ela deixa de ser desejada, o que também é uma forma de evitação.
4.CONCLUSÃO
Este estudo, que teve como base a Teoria Existencial-Fenomenológica, tentou compreender que adultos que sofreram abusos na infância podem trazer consigo traumas marcantes em sua existência. No caso estudado, percebeu-se que J. R. N., além de não desejar fazer sexo com seu noivo, transforma sua imagem corporal de modo a não ser desejada. Tal estudo é válido, pois mostra que problemas trazidos pelos clientes podem ser reflexos de situações conflitantes que os afetaram na infância.
REFERÊNCIAS
AMAZARRAY, Mayte Raya; KOLLER, Silvia Helena. Alguns aspectos observados no dessenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicologia Reflexão e Crítica. Vol. 11. N. 003. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. 1998.
ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. Terapia Vivencial: uma abordagem existencial em psicoterapia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1989.
SADOCK, Benjamin J.; SADOCK, Virgini A. Manual Conciso de Psiquiatria Clínica. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.
[i] Acadêmico do 10º período do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[ii] Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[iii] Por questão de privacidade, manteremos o nome da cliente em sigilo