Bárbara Coelho Ferreira[i]
Margaret Pires do Couto[ii]
RESUMO
Este artigo pretende apresentar as construções teóricas que se fizeram possíveis, por meio da prática do Estágio Diagnóstico e Tratamento das Dificuldades Escolares, realizado na Clínica de Psicologia Newton Paiva. Esta prática permitiu a experiência de atendimentos na clínica com crianças encaminhadas para atendimento psicológico com queixa escolar, sob a luz da Psicanálise. O objetivo deste trabalho é investigar, a partir de um caso clínico, os conceitos relevantes no processo de tratamento com crianças, considerando a peculiaridade do caso que será apresentado. Enfatiza-se a forma com que a criança vem responder ao discurso do Outro e os efeitos disso na vida do sujeito que responde fracassando na escola.
Palavras-chave:Criança, Dificuldade Escolar, Sintoma, Outro.
INTRODUÇÃO
A clínica com crianças nos aponta para um modo particular de saber-fazer da Psicanálise, já que as crianças são trazidas à clínica através do discurso do Outro, que se encarrega de oferecer uma série de significantes para descrever esse sujeito. Assim, a demanda inicial é algo que tangencia a subjetividade desse Outro que nos apresenta a criança.
Na clínica que trata das dificuldades escolares, o discurso dos responsáveis pela criança acerca da queixa que a leva a procurar o tratamento, vem com aval e encaminhamento da instituição escolar, o que nos suscita um questionamento sobre o manejo que norteará esta clínica: somos autorizados a intervir junto aos pais e professores? Qual o efeito destas intervenções para a criança? Prosseguiremos sem responder a essas perguntas, mas orientados sobre o indicativo de que o analista servirá de anteparo entre o Outro e a criança, sempre inventando novas formas de intervenção, seguindo a peculiaridade de cada caso.
Lacan (1969) nos adverte que o sintoma da criança é uma resposta ao que há de sintomático na relação do par parental ou faz articulação com o que diz respeito à subjetividade da mãe. O sintoma, de acordo com Lacan (2003, p. 369), “é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade”.
Para ampliar as discussões acerca da criança e seu sintoma, tomemos como exemplo o caso de Sara[iii], uma criança que, aos 7 anos, foi encaminhada pela escola para atendimento psicológico na Clínica de Psicologia Newton Paiva. Sara apresenta problemas de aprendizagem na escola, e a demanda inicial para atendimento é trazida por sua avó paterna, que diz da sua dificuldade em lidar com a situação de fracasso escolar da neta.
A avó possui a guarda de Sara e seus irmãos e diz sobre o histórico de negligências que seus netos já vivenciaram. Conta que a mãe das crianças os agredia e chegou ao ponto de abandonar os filhos. A partir disso, foi preciso uma intervenção junto a Justiça, e a avó solicitou a guarda dos netos juntamente com o pai das crianças, que, de acordo com o discurso dela, é um “retardado” e que sempre teve problemas psicológicos.
De acordo com relatos da avó, Sara é a neta que lhe dá mais trabalho já que é a “menorzinha”. Ao contar da sua preocupação com a neta, diz que Sara não aprende na escola, não lembra das coisas que são ensinadas e se faz de “bebêzinha”. A avó mostra-se incomodada com a posição de Sara e diz que dentre os seus irmãos ela é a pior. Fala sobre o seu medo do que possa acontecer com Sara no futuro, essa preocupação com a neta atualiza a preocupação com o filho, pai de Sara, que fez muitos anos de tratamento psicológico e não se curou. Algo da fantasia desse Outro materno coloca essa criança num lugar de dejeto, do pior. Lacadée (1996) aponta que a criança então fica sendo correlata do objeto do fantasma da mãe, já que a função de mediar do pai não tem operado, e assim, a criança é tomada no fantasma da mãe e vem realizar a presença do objeto a em seu fantasma.
Sara, durante os atendimentos, se mostra uma criança tímida, apresentando certa dificuldade na fala, que por ora parece algo relacionado ao aparelho fonador, sendo que isso se apresenta com a troca de algumas letras como “r” e “s” ou, como palavras conectadas numa frase. Sara conta histórias infantis durante as sessões, com destaque para a história do filme “A Feirurinha”. Ela relata que nesse filme Feiurinha é uma princesa que morava com os pais num castelo, e uma bruxa foi pegá-la e a levou para outro castelo, onde ela ficava presa, sem comida e não conseguia dormir à noite. Sara fala que essa história é triste, que Feiurinha sofreu muito, mas que foi libertada.
Na mesma sessão, Sara resolve brincar de “Escravos de Jó” e diz que gosta dessa brincadeira, porque os escravos foram libertados. É sabido que a lógica do inconsciente opera de outra maneira e Sara consegue dizer através de suas histórias e brincadeiras algo de sua singularidade, ponto fundamental de sua própria história, que é marcada pelo aprisionamento a este Outro devastador.
Ao final dessa sessão, Sara diz “essa história é uma lenda. Lenda é uma coisa que alguém inventa”. Assim, é possível reiterar que essa história carrega consigo um pedaço do Outro, e de seus caprichos, dos quais Sara faz uma tentativa mínima de se libertar, no momento em que diz que cansou dessa história de Feiurinha, que não gosta mais de ver esse filme e que os outros colegas da escola insistem em assisti-lo novamente. Neste momento, ela afirma “eu quero saber de outros filmes, com outras histórias”. A intervenção no momento foi dizer que ela mesma poderia construir sua história.
Além das histórias contadas por Sara, a paciente canta algumas músicas nos atendimentos, sendo a mais curiosa delas um trecho da música de título “Quem eu sou”: “Não quero mais saber, o que eles vão dizer/ Sobre o que eu vou fazer ou sobre o que eu não vou ser/ O caminho é longo eu sei/ E eu vou fazer valer” e continua em outros versos: “São tantos desencontros/ São tantas linhas tortas/ Formando a identidade que eu sempre sonhei pra mim”. Esta é a pergunta que está posta: descobrir quem se é para que se possa construir algo acerca da verdade que o sujeito carrega. Estando às voltas com isso, o sujeito deve encontrar uma solução viável para saber-fazer com seus sintomas na vida.
A verdade deve ser inscrita de uma resposta frente a alguma coisa que não está lá, que não pode ser dita em termos de uma representação significante e é, face a esta representação significante em falta, no lugar desse vazio, que vão se articular o lugar e a questão do sujeito, mesmo que seja ao preço de um sintoma. É aí que o sujeito vai colocar a questão da legitimidade de sua existência: quem sou eu, onde estou, onde é meu lugar? Ele terá sempre uma dúvida sobre sua concepção, sobre a sexualidade de seus pais, sobre a legitimidade de sua existência. (LACADÉE, 1996, p. 76.)
Após essa sessão, tenta-se introduzir para a paciente algo do funcionamento do inconsciente, dizendo do interesse de Sara, interrogando melhor sobre o seu interesse sobre essa pergunta “Quem eu sou?”, presente na música. Sara se mostra surpreendida com esse questionamento e começa a dizer da sua história e ao contar sobre a família, ela fala “eu tenho dois irmãos. Uma irmã mais velha, um irmão do meio e eu, eu sou a última”. Neste momento, se intervém com uma pergunta sobre este lugar que ela ocupa “como assim você é a última?”, Sara não responde a essa pergunta, mas diz algo de sua posição, que é corroborada pelo discurso da avó que sempre aponta que Sara está regredindo, que entre os irmãos ela é a pior. A avó então, se apresenta deste lugar de um Outro gozador que lhe coloca neste lugar de resto: a última.
Nos últimos atendimentos com Sara, sua avó pede para conversar com a estagiária e diz da sua preocupação com a neta, pois está percebendo que ela está fazendo xixi na roupa. Conta que Sara está prestes a perder mais um ano na escola, já que suas notas estão muito baixas. Sara se mostra bastante acanhada quando a estagiária se dirige a ela questionando sobre o conteúdo trazido pela avó. A mesma disse que fica nervosa, e não consegue segurar o xixi. Diz que quando está na escola, fazendo alguma atividade com a qual tem dificuldade, fica ansiosa e com medo da avó. Percebe-se que a angústia é um afeto que retorna no corpo, já que a criança frente ao seu medo desse Outro devorador atua fazendo xixi na roupa.
Sara exemplifica essa situação contando sobre uma questão da prova que realizou na escola e tirou nota baixa. Segundo ela, a questão era sobre “os eleitos”. Diz que não conseguiu fazer e ficou muito nervosa com essa situação. A criança nesse momento se interroga sobre o seu sintoma: “Não gosto de ficar assim. Será que eu vou tomar bomba de novo? Não sei te falar o que acontece não”, neste momento a estagiária afirma que é preciso construir algo sobre isso que ela está dizendo. Assim, faz-se preciso que o sujeito comece a fazer dessa dificuldade um sintoma a fim de poder ter acesso ao seu inconsciente.
REFERÊNCIAS
LACADÉE, Philippe. Duas Referências essenciais de J. Lacan sobre o sintoma da criança – O Seminário “A relação de objeto” (1956/1957) e “Duas notas sobre a criança” (1969). Opção Lacaniana, nº 17, Novembro de 1996.
LACAN, Jaques. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 369-370.
[i] Acadêmica do 10º período do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva