Luciana Neves Ferreira[i]
Fernando Dório Anastácio[ii]
RESUMO
Este artigo tem como finalidade compreender a relação da adolescência com os conceitos existenciais de liberdade, responsabilidade e dimensão corporal, como esses conceitos são vivenciados na adolescência, a partir da interlocução com um caso clínico. Para a elaboração deste estudo, foram utilizados embasamentos teóricos da Abordagem Existencial Fenomenológica e a vivência de uma adolescente no setting terapêutico.
Palavras-chaves: Adolescência; Liberdade; Responsabilidade; Dimensão Corporal.
1.INTRODUÇÃO
O trabalho a seguir terá como objetivo articular as vivências clínicas de uma adolescente, adquiridas a partir de atendimentos psicoterápicos com algumas questões existenciais, como liberdade, responsabilidade e com sua vivência corporal, e de que maneira essas questões podem estar interligadas diretamente com sua existência. A cliente que chamaremos de T., a fim de preservar sua identidade, chega à clínica de psicologia acompanhada pelo seu pai, buscando atendimento psicoterápico, dizendo que precisava conversar com alguém sobre as questões que a angustiava. A adolescente T. tem doze anos e encontra-se em uma fase de mudança, está saindo da fase infantil e passando para a adolescência, trazendo consigo questões dessa mudança. Sua demanda inicial está relacionada justamente com essa transição, questionando sobre a autoridade dos pais, do excesso de responsabilidades que julga ter, e sobre a privação de liberdade por parte dos mesmos.
A adolescente chega com um conflito muito grande em relação a sua mãe, pois essa se encontra doente, (sic) “está com depressão”. Depois desse adoecimento de sua mãe, T. retrata que toda sua vida mudou, principalmente, seu relacionamento com ela, e o relacionamento com seus familiares em geral. Segundo T. ela passou a ser a grande responsável pelo cuidado da mãe, dos medicamentos, da casa, de acompanhá-la em seu tratamento. T. diz não achar ruim cuidar da mãe, porém acha muito “pesado” para uma menina de sua idade. Ela acredita que a doença da mãe desorganizou, de certa forma, sua família, e que ela assumiu um papel muito denso, o de cuidar o tempo todo dela. Por causa da doença de sua mãe e de alguns conflitos entre seus pais e as outras pessoas de sua família, ela deixou por muito tempo de ver seus avós, tios e primos. Essa privação, segundo T., foi uma das coisas mais difíceis que ela enfrentou. T. percebe a mãe como mantenedora de sua doença, ou seja, para a adolescente, a mãe, de certa forma, não deseja melhorar, e vê como aquela que acaba por privá-la de ser criança, pois a mãe não tolera barulho, não gosta que ela brinque com seus primos. Assim, para ela, fica muito difícil de fazer o que realmente gosta.
Além das questões retratadas anteriormente, T. também traz consigo questões que estão diretamente relacionadas com a adolescência com a sua transformação corporal.
Conforme Romero (2005, p.91)
Na adolescência aprendemos, devagar, a relacionarmos com os outros enquanto pessoas. Antes, na infância, éramos figuras vicárias, ramificações do tronco parental, dependência de casa familiar. Tanto a lei como os adultos consideram a criança como irresponsável, ou de responsabilidade muito limitada.
Dessa forma, pode-se perceber que T. ainda encontra-se com um conflito entre a infância x adolescência. Ela se percebe muito madura para sua idade e que realiza coisas que outras pessoas com sua mesma idade cronológica normalmente não realizam, como a responsabilidade de cuidar da mãe, porém não assume seus atos e suas escolhas como sendo seus, colocando sempre os pais como responsáveis pela sua vida, retirando de si qualquer responsabilidade do sucesso ou fracasso da mesma.
Questões Sobre Liberdade e Responsabilidade
Em uma visão sartreana, o ser é visto como ser de ação, e a condição essencial da ação é a liberdade, dessa forma a base da estrutura humana se forma a partir das escolhas que o homem faz de si mesmo e de seu modo de ser. Assim, nessa visão, retira-se toda a consequência da existência humana de um terceiro, e sim é o homem que se constrói como sujeito, e é ele que dá o sentido para sua vida. “O homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se agarrar”. […] “ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.” (SARTRE, 1987, p.9).
Nessa visão, a existência humana vai preceder a essência, e a liberdade vai ser vista como explicação para fundamentar essa essência. Dessa forma, a liberdade é fundamento de todas as essências, e que essas são desvendadas a partir as possibilidades próprias. Sartre (1997, p. 545) retrata que
A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade-humana a fazer-se em vez de ser. Como vimos, para a realidade-humana, ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ele possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonado, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. O homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre livre, ou não o é.
O homem é visto como totalmente responsável pelo o que é, ou seja, responsável pela sua existência. Dessa forma, as escolhas feitas pelo sujeito são vistas como responsabilidade dele, responsabilidade de escolher ser isso ou aquilo. A questão da responsabilidade está vinculada diretamente com as consequências das escolhas realizadas, ou seja, com a questão da liberdade. Tudo aquilo que acontece com o ser humano é consequência das escolhas que esse fez durante seu processo de existência.
Conforme Moutinho (2001, p.77-78)
Responsabilidade é tomada por Sartre no sentido de “consciência de ser o autor de um evento ou um objeto”[…]. O “coeficiente de adversidade” das coisas, já que é também colorido pela liberdade, tampouco pode ser tomada como desculpa por um fracasso, uma resignação, uma revolta. Mesmo o fracasso, qualquer que seja a situação e a adversidade, remete à milha liberdade, e a consciência disso é a responsabilidade.
Assim o ser humano vai carregar a consciência que é o autor de sua própria vida, e que o sucesso ou o fracasso da mesma é de sua própria responsabilidade. Essa consciência pode, por vez, trazer certa angústia, por isso muitas sujeitos tentam fugir dessa responsabilidade, negando-a ou a deslocando para outra pessoa.
Essas questões podem ser bastante angustiantes no período da adolescência. Como já foi retratado, essa fase é de mudança, deixa-se a fase de criança, em que eram os pais que decidiam tudo, escolhiam para a criança o que deveriam ou não fazer, repassando assim a responsabilidade para os mesmos. Agora, já na adolescência, algumas coisas começam a mudar, ainda não são vistos como adultos, porém também não são mais crianças. A adolescente T. traz à clínica questões relacionadas com esses temas, diz se sentir com muita responsabilidade, segundo a mesma, é ela a responsável pela organização de toda casa, pelo cuidado com a mãe doente, é a intermediária dos conflitos dos pais e entre outras funções. Todavia questiona também que apesar de achar ter muita responsabilidade, (sic)” Acho que tenho muita responsabilidade, para uma menina de 12 anos”, não se sente livre para escolher fazer o que realmente gostaria, ainda se acha submetida totalmente às vontades dos pais.
Nesse sentido, pode-se esperar que seja no contexto terapêutico que T. poderá tomar consciência que ela sim realiza escolhas, mesmo que essas, a princípio, não sejam para ela as melhores. Assumir suas escolhas com responsabilidade proporciona que ela possa perceber mais as ações como suas, e que mesmo nesse impasse infância x adolescência o sujeito deve enxergar que é ele o autor da sua vida, e que as escolhas feitas por ele nesse processo vão constituir toda a sua existência como ser humano. É compreender que deslocar a responsabilidade de suas escolhas e de seu modo ser livre não mudará o fato que ela será ainda responsável por essas escolhas, pois mesmo quando escolho não escolher, ainda estou escolhendo, e assumindo a responsabilidade dessa escolha.
Vivências Corporais
Pode ser percebido que a adolescente T., dentro do contexto terapêutico, trouxe várias questões relacionadas com sua dimensão corporal. Nessa dimensão, o sujeito vai estabelecer com o seu corpo um espaço interno e ao mesmo tempo um espaço externo, pois serve como meio de comunicação para o mudo. Como relatado por Augras (1993), “o corpo tem como função estabelecer a relação entre o eu e o mundo exterior. Manifestação da individualidade, garantia da identidade, o corpo expressa toda a ambigüidade existencial”. Assim em uma visão Existencial – Fenomenológica, o corpo é compreendido como uma expressão da manifestação da subjetividade e é nesse corpo que se vai experienciar as percepções de si e do mundo.
Considerando que a adolescência é uma fase em que essas mudanças ocorrem de forma bem veemente, ela traz consigo exatamente esse conflito da infância x adolescência. Segundo Romero (2001), para a fenomenologia, o corpo é o local onde se organiza a existência humana. Assim para ele,
O que nos interessa é o corpo experimentado, imaginado, valorizado-vivido. Para nos o corpo não é mera figura expressiva, denunciando um suposto psiquismo subjacente nem é puro instrumento material da ação: é o veículo de nosso ser-no-mundo, é existência encarnada (ROMERO, 2001, p.136).
Assim o corpo pode ser compreendido como o lugar em que o sujeito vai vivenciar toda a sua existência. A adolescente T. vai trazer um dilema entre crescer e não crescer, seu corpo como suporte físico-biológico está todo preparado para encarar a adolescência, porém a vivência trazida por ela é de um corpo que ainda não quer amadurecer. Existe uma luta constante em querer por sua parte continuar sendo criança. Seu corpo, a partir da dimensão da práxis, está vinculado apenas ao brincar, livre de preocupações. Encarar esse corpo em desenvolvimento seria assumir que já não se é mais criança, assim algumas questões são trazidas por ela com certo sofrimento, por exemplo, a menarca, que para ela é vista como um marco, agora já não sou mais criança.
A questão corporal da adolescente T. pode estar interligada diretamente com a questão de liberdade e responsabilidade, pois assumir que seu corpo já está fisicamente pronto, consequentemente seria assumir que está pronta para crescer e assumir suas escolhas, como pode ser visto em uma de suas falas: (sic) “Essa é a melhor fase, não precisa se preocupar com nada, a gente só está preocupado em brincar e se divertir, não existe cobrança com nada”.
Dessa forma, percebe-se que para a adolescente, encarar seu crescimento é perceber que agora ela terá que tomar o rumo de sua própria vida. A contradição também perpassa por esse âmbito, pois em várias vezes ela trouxe para o setting terapêutico a vontade da maior idade, para assim se sentir mais dependente dos pais.
2.CONCLUSÃO
Pode-se analisar que o momento da adolescência traz consigo o momento de compreender melhor vivências que perpassam pela vida do sujeito. Nessa fase, é importante compreender como o adolescente se confronta com sua vivência, e a partir a forma como ele percebe seu corpo, suas escolhas, sua liberdade e sua responsabilidade diante sua vida.
Fazer com que o adolescente possa compreender seu processo de existência, é possibilitá-lo ter uma maior reflexão diante sua posição como autor, diretor e ator de sua própria história. Perceber que mesmo na trama da adolescência já se constitui um ser capaz de escolher por si só a direção de sua existência, passar então assumir com responsabilidade suas ações perante a ele próprio e ao mundo. É encarar que todos, independente da idade, já escolhemos, e que essas escolhas vão afetar minha história e a das demais pessoas que me cercam. Perceber isso é compreender que não existe justificativa ou culpado pelas consequências de minhas escolhas. Assim permitirá que, mesmo na adolescência, o sujeito possua a mesma responsabilidade pelos seus atos do que uma pessoa adulta. É compreender que não existem fases ou períodos de nossa vida que nos façam mais ou menos responsáveis pelos nossos atos, conforme relatado por Sartre, todos nos somos seres condenados a ser livres.
Assim, a partir dessa compreensão, poderemos analisar o homem não mais como aquele sujeito determinado, mas sim como um ser capaz de construir seu próprio destino. Dessa forma, nunca seremos um ser acabado, sempre se poderá olhar para o sujeito como um ser em desenvolvimento, capaz de transformar-se em qualquer momento a partir das escolhas que fizer.
REFERÊNCIAS
AUGRAS, Monique. O espaço. In: ______. O Ser da Compreensão. 3 ed. . Petrópolis: Vozes,1993. p. 38-54.
MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 2001. p. 120.
ROMERO, Emílio. O corpo vivido. In:______. As dimensões da vida humana: existência e experiência. 3 ed. . São José dos Campos: Novos Horizontes, 2001. 385 p.
ROMERO, Emílio. A formação de si e os desafios da etapa adolescente e juvenil. In:______. Estações no Caminho da Vida: o desenvolvimento dos afetos nas diversas etapas da vida. São Jose dos Campos: Della Bídia, 2005. p. 79-137.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método. 3 ed. . São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 191.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 782.
[i] Acadêmica do 8º período do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
[ii] Professor supervisor de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva