Bárbara Coelho Ferreira[i]
Fabrício Ribeiro[ii] 

RESUMO 

O presente artigo pretende apresentar os descaminhos no manejo da transferência, em um caso de psicose, acompanhado pela Casa PAI-PJ[iii]. Após breve relato do conceito de transferência e sua singularidade no trabalho com psicóticos, destacaremos a erotomania como uma das formas possíveis de transferência na psicose e o manejo delicado que exige.

 Palavras-chave: Psicose. Erotomania. Acompanhamento Terapêutico

 

 A letra freudiana nos ensina que a Psicanálise tem como modus operandi o manejo da transferência. Labor que convoca o analista a posicionar-se diante do que podemos nomear de mola mestra da cura, motor terapêutico que leva o paciente ao tratamento analítico. O conceito de transferência, segundo MILLER (1988), sofreu algumas modificações no percurso de Freud a Lacan. Apesar de tais transformações, a conceituação lacaniana, avança, mas sem deixar de ser essencialmente freudiana. Lacan situa um ponto fundamental para compreendermos a transferência que, não está clara em Freud: o sujeito do suposto saber. Suposto saber que nos leva do lugar até então ocupado por Freud, leditor do inconsciente, e que agora atribuímos a Lacan. Conceito considerado por Lacan o pivô no qual se articula tudo que se relaciona com a transferência. 

A retomada do conceito de transferência é o que permite Lacan inaugurar a clínica da psicose, diferenciando-a da clínica da neurose. O sujeito psicótico, forcluído do significante Nome-do-Pai, opera com outros recursos, fala de outro lugar. A relação do psicótico com o Outro é peculiar. Não há uma barreira simbólica que produza uma escansão, um sopro de ar, permanecendo, na maioria das vezes, uma relação especular, imaginária. “É na medida em que ele não conseguiu, ou perdeu esse Outro, que ele encontra o outro puramente imaginário” (LACAN, 1988, p.328). Sendo assim o analista deve ter cautela no manejo da transferência, considerando ser este um cingido pelo imaginário. 

Lacan (1988) indica sobre a possibilidade de escuta da psicose, e que não devemos recuar diante da mesma. No entanto se faz necessário esclarecer que o lugar do analista passa distante da suposição de saber. Na clínica das psicoses o analista ocupará outro lugar: objeto.  

Encarnar uma posição de não-saber como condição para que o sujeito psicótico se autorize a uma tentativa de enunciação, para além de todo enunciado, para além de toda identificação, e, por outro lado, a saltar, por meio de um “não” intratável, sobre quem quer que surja como “sabendo” ao se dirigir ao sujeito psicótico (BAIO, 1999: 71). 

Sendo assim, a transferência na clínica da psicose diz de uma ruptura com a posição de suposto saber do analista. O sujeito do suposto saber cai, e é justamente da posição de não saber, posição de esvaziamento, que o analista deve se localizar o lugar de secretariar o alienado. Como podemos perceber no caso de Amadeu[iv], 49 anos, paciente antigo acompanhado pela Casa PAI-PJ – Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator do estado de Minas Gerais.  

O paciente responde processo por lesão corporal seguida de morte, e por este ato recebeu pena de seis anos de reclusão. Sendo que, após exame de insanidade mental foi considerado inimputável por ser portador de sofrimento mental. Sendo assim, inicia o cumprimento de medida de segurança de internação em hospital da rede privada da capital Mineira. Amadeu permaneceu internado durante vinte anos em um nesta instituição, até sua desinternação devido às novas políticas de saúde mental do município, que teve como consequência o fechamento do hospital. A partir deste ponto o trabalho do Programa se organizou de modo a possibilitar a inserção de Amadeu na cartografia da cidade. 

O início do trabalho foi marcado por várias tentativas frustradas, não só para o paciente deixar o hospital, mas, também em reintegrá-lo ao núcleo familiar. O restabelecimento dos vínculos com a família foram gradativamente reconstruídos, entretanto não foi possível pensar sua moradia com os mesmos, devido a questões do próprio paciente. Percebe-se que a proximidade do paciente com sua família têm como efeito certa desorganização do mesmo e, também, no arranjo familiar. Essa questão se resolveu após Amadeu receber uma vaga pela Secretaria de Saúde Mental, para morar numa Residência Terapêutica, localem que Amadeu se refere como sendo “a casa da grande família”. O modo de se referir à moradia revela o uso que o paciente faz deste lugar: sua casa. Além da vaga na Residência Terapêutica, Amadeu começou a fazer tratamento no Centro de Referência em Saúde Mental – CERSAM. 

O ponto de principal avanço no caso, agora acompanhado efetivamente pelo PAI-PJ, iniciou-se com a entrada do Acompanhante Terapêutico (AT). Trabalho de ressocialização do paciente que precisou enfrentar as rupturas com a cidade que o tempo de internação produziu. A figura do AT aparece neste caso enquanto mediador das situações que ocorrem num setting terapêutico a céu aberto. A possibilidade de propiciar a retomada do laço de Amadeu com o social, através do dispositivo do AT, fez-se necessária após tantos anos de reclusão, de “prisão” como o próprio paciente aponta e pelas questões da própria estrutura.  

O sujeito que já está fora – forcluído devido a sua estrutura, deve se arranjar e utilizar de dispositivos que busquem certa amarração, para se torne possível a inserção no meio social. “Mesmo inserido na cultura, na linguagem e no cotidiano, o louco não se encontra submetido às mesmas normas simbólicas de organização, por conta de sua constituição” (GUERRA, 2004: 47). Desta forma o trabalho inscreve-se na produção de cercanias que permitam o sujeito, mesmo fora do discurso, incluir a seu modo, ancorando-se nas trilhas construídas no encontro com a cidade. 

Amadeu passa contar com o dispositivo do AT, convocando-o todo o tempo no caminhar do seu tratamento. Minha entrada enquanto AT do caso aconteceu quando a acompanhante do caso saiu do PAI-PJ. O processo de transição das AT’s foi informado a Amadeu, sendo que, ao ser apresentada a ele, o mesmo entende este processo de mudança dizendo: você é minha nova secretária. Momento fundamental para entendermos a posição do AT neste caso, secretariá-lo, obediente nos caminhos por ele trilhados. Ensina-nos sobre a posição do analista diante ao sujeito psicótico: secretário do alienado. Ao me colocar no lugar de secretária, Amadeu aponta de qual lugar devo me pronunciar, o que nos indica uma posição possível para que o psicótico possa se anunciar como sujeito, deslocando-se do assujeitamento ao Outro como pressupõe a questão da estrutura. De acordo com Ribeiro (2002) 

Orientados pela psicanálise, o acompanhante se situa como “testemunho” e “secretário”, como disse Lacan, não colocando em dúvida os dizeres do psicótico, nem verificando a veracidade de seu discurso em termos dos “dados da realidade”. O que se oferece aqui ao psicótico é uma possibilidade de falar sem ser rejeitado, de não estar tão só. Paralelamente, o acompanhante age sobre a palavra delirante marcando seus limites e fazendo surgir furos, ou seja, nem tudo pode ser atribuído ao Outro. (RIBEIRO, 2002) 

Logo no início do acompanhamento, em uma das vezes que fui me encontrar com o paciente, Amadeu me vê e fala “minha secretária está aqui”. Percebe-se que o paciente diz sobre o lugar ocupado pelo AT e demarca qual a sua função. Ao ser indagado sobre o que iremos fazer naquele dia, o paciente diz que me levará para casa de sua irmã para me apresentar a ela. Ao chegarmos à casa apresenta-me dizendo: Eu vim trazer a Bárbara aqui pra você conhecer, ela é minha namorada. Pontuo dizendo que meu papel não era esse. Neste momento Amadeu ri e diz: ela é do PAI-PJ, minha secretária. A peculiaridade deste caso que convoca o analista no manejo da transferência localiza-se no eixo erotômano. Neste modo de se apresentar diante do analista revela que é doente por amor e afirma ter ficado preso por amar demais.  

De acordo com Broca (citado por Riguini 2005), a erotomania é a modalidade do amor de transferência na psicose e estabelece uma forma de laço social, ou supre a dificuldade do sujeito em estabelecer esse laço. É aí que está apontada a direção para um laço social possível. Singular, certamente, mas possível. O paciente canta algumas músicas endereçadas à acompanhante durante os AT’s, sendo, a principal delas o seguinte trecho da música “Secretária” de Amado Batista: Secretária que trabalha o dia inteiro comigo/ Estou correndo um grande perigo de ir parar no tribunal/ Secretária às vezes penso em falar contigo/ Mas tenho medo de ser confundido por um assédio sexual. 

A interpretação dos significantes presentes neste trecho da música nos aponta o modo de conduzir o caso. Ao dizer, através da música, do amor pela secretária, Amadeu assinala sobre a via em que se dá a transferência. Soler (1991) afirma que a erotomania é uma posição do sujeito psicótico, uma posição de objeto do Outro. Sendo assim, isso implica: 1) uma relação com o Outro na qual o sujeito é tomado como alvo da libido; 2) uma certeza, que constitui o saber psicótico. Cabe ao analista, no caso, ao acompanhante terapêutico o lugar de esvaziamento, fazendo vacilar a certeza do psicótico.  

Com relação ao perigo de ir parar no Tribunal o paciente nos direciona sobre a grande questão do caso: o fato de ser doente por amor e esta ser a causa de sua prisão. Uma orientação que atravessa a condução do caso, passa pela banalização deste conteúdo quando o mesmo se apresenta no acompanhamento. Manobra no sentido de acolher se consolidar o que está sendo dito, com pontuações como: você não corre esse tipo de risco não, estou aqui pelo meu trabalho e o Juiz sabe disso. 

Em outro momento do acompanhamento terapêutico, Amadeu convoca o acompanhante e canta mais um trecho de música que traz a marco do amor: esse medo terrível de amar outra vez é meu, né? O amor é o que está em jogo e aparece em cena durante a realização dos AT’s. Segundo Lacan (1988) a relação amorosa na psicose passa pela abolição do sujeito, admitindo uma heterogeneidade radical do Outro. Desta forma o manejo da transferência com a psicose orienta-se por uma operação de esvaziamento. Manobrar a transferência é dirigi-la com o objetivo estratégico de propiciar um limite a essas experiências que invadem o psicótico, deixando-o sem opção de qualquer resposta (MENDES, 2005: 22). 

Destaca-se que este caso caminha por um paradoxo. Ao mesmo tempo em que Amadeu coloca a AT no lugar de secretária, demarcando o lugar de esvaziamento, não saber que o analista deve ocupar na clínica da psicose, sentimos também contrariamente os efeitos da erotomania. Pela via da transferência o paciente convoca o analista em um lugar devastador. Sendo que cabe ao analista a manobra do tratamento. O psicanalista certamente dirige o tratamento, o primeiro princípio desse tratamento lhe é soletrado logo de saída […] é o que não se deve de modo algum dirigir o paciente (LACAN, 1998: 592).

 

Portanto, a direção do tratamento caminha de acordo com os passos do paciente. Durante os AT’s faz-se necessário consentir com o caminho apontado por Amadeu. Sendo que, neste caso a transferência exige um manejo delicado, considerando as peculiaridades. É assim que se faz a clínica, no caso a caso, nas singularidades. O paciente deve saber o lugar do Outro nessa relação. O Outro da transferência na psicose deve ocupar de não-saber para que se possa convocar o sujeito a responder por si e para deslocá-lo da posição de objeto. Na erotomania, especificamente, o que há de fazer é buscar tentativas de pontuar para o paciente que a relação AT – paciente sustenta-se pelo trabalho e não será possível a concretização deste amor.  

Certa vez, Amadeu diz: “Bárbara, você tem que ser minha namorada, o Reverendo mandou você para ser minha namorada. Eu sou doente, sou doente por amor”, intervenho dizendo que o meu lugar ali não era este, que estava ali pelo meu trabalho no Tribunal de Justiça, que o juiz é quem me manda ir conversar com ele. Neste momento, ele diz “ah, é secretária, né?” pontuo que sim, secretária.

   

REFERÊNCIAS 

BAIO, V. O Ato a partir de muitos. Curinga, Belo Horizonte-MG, n. 13, p. 66-73, 1999. 

GUERRA, Andréa Máris Campos. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In: FIGUEIREDO, Ana Cristina (Org.). Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004. p.23-58. 

LACAN, Jaques. O seminário: livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 366 p. 

_____. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 531-590. 

MACIEL, Viviane de Souza. A transferência no tratamento da psicose. Mental. [online]. jun. 2008, vol.6, no.10 [citado 07 Setembro 2009], p.x-xx. Disponível em: <http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167944272008000100003&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1679-4427>. Acesso em: 25/08/2009. 

MENDES, Aline Aguiar. Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional. Mental rev. (Barbacena). [online]. Jun. 2005, p. 15-28. Disponível em: http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/mental/v3n4/v3n4a02.pdf. Acesso em: 20/07/2009. 

MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. 2. ed. Jorge Zahar, 1988 152 p. 

RIBEIRO, Thais da Cruz Carneiro. Acompanhar é uma barra: considerações teóricas e clínicas sobre o acompanhamento psicoterapêutico.Psicol. cienc. prof. [online]. jun. 2002, vol.22, no.2 [citado 22 Octubre 2008], p.78-87. Disponível em: <http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932002000200010&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.> Acesso em: 18/08/2009. 

RIGUINI, Renata Damiano. Da passagem ao ato à transferência: duas soluções em um caso de psicose. Psyche (Sao Paulo). [online]. dez. 2005, vol.9, no.16 [citado 07 Setembro 2009], p.153-164. Disponível em: >http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141511382005000200010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1415-1138>. Acesso em: 20/08/2009. 

SOLER, Collete. Artigos Clínicos. Salvador: Fator, 1991.


[i] Acadêmica do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. 

[ii] Professor supervisor de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva 

[iii] Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 

[iv] Nome fictício.

E2- 78 Doente por amor: o manejo da transferência e a erotomania na clínica da psicose